ofereço esse livro a o maior presente que alguém...
TRANSCRIPT
Ofereçoesselivroa
Omaiorpresentequealguémpodeganharéadescobertadoseupropósito.Quenadamaislhesejatãourgente.
EmmemóriadeJoséCarlosVassoler,oeternomenino.
AossempremeninosemeninasPauloRoberto,Felipe,Ivo,Carolina,Renata,Edu,VictorHugo,ThéoAlan,Matheus,Laura,meusqueridosafilhados.
PREFÁCIODomedodeousaràcoragemderealizar
PARTE1OvelhoeomeninoOVelhoTafulOmeninoeoseudestinoAsetaeoalvoAvidadaspalavras
PARTE2OscincodesígniosOprimeirodesígnioOdesafetoOsegundodesígnioOlharapreciativoOterceirodesígnioOlharempáticoRetornoaolarDeatalhosecaminhosOmelhorlíderdetodosostemposDo“aqui”e“acolá”OquartodesígnioOlharconscienteAvoltadomeninoOsorrateirocamaleãoOquintodesígnioLiçõesdeliderançaOba-obaOdesafetoperpétuoOdinheiroébomOtestefinal
PARTE3Omeninoeovelho
PobresenganosOmeupropósitoAstrêsperguntas
EPÍLOGOConvicçãoénãotercertezas
PREFÁCIODomedodeousaràcoragemderealizar
Oqueestáacontecendo?Preste atenção na conversa daquelas duas operadoras de caixa de
supermercado.Sabedoquefalam?Dacompensaçãodehoras,dosdiasdefolgas,dohoráriodesaída–momentosquemalpodemesperar.Elassãoapenas um exemplo, entre muitos outros. O mesmo acontece comatendentesdasredesdefast-food,balconistasdelojasderoupas,frentistasdepostosdegasolina,funcionáriosdeescritóriosetc.Oqueelestêmemcomumé apressade ir embora,de retornarpara casaoude sedirigir aalgum lugar que lhes traga algum tipo de satisfação que eles nãoencontramnotrabalho.Enquantoissonãoacontece,atenuamotédioeafaltadeânimodialogandoentresiounasredessociais,pormeiodeseussmartphones.
Comprove por sua própria conta! Uma despreocupada passagem porváriosambientesdaempresaeumrelaxadobate-paponorefeitóriovailhemostrarqueboapartedaspessoasseencontranessevácuo.Elasestãomaispreocupadas com o momento de ir embora dali, ansiando por qualqueroportunidadedecompensaçãodehoras,folgaseferiadosprolongados,emvez de se concentrar no propósito de seu trabalho. O absenteísmo e osproblemastrabalhistassãoprovasdisso.
Nãopense,noentanto,queémuitodiferentecomosgerentesdessesmesmos negócios, líderes, portanto, dos profissionais desencantados.Também eles não veem a hora de chegar o final de semana para então,finalmente, fazer as coisas de que gostam. Talvez sair de bicicleta pelacidadeoudemotocicletapelasestradas,viajarcomoparceiroparaalgumlugaroucomafamíliaparaapraiaouointerior,emumhotelfazenda.Ecomigualobjetivo:asatisfaçãoouacompensaçãoaoárduocotidiano.
Sevocêacreditaqueodonodonegócio,porusufruirdeumasituaçãoprivilegiada de poder e autonomia, está mais feliz do que os demais,engana-se. Acredite, ele não vê a hora de chegarem as suas férias paraconcretizar aquela viagem para o exterior – América do Norte, Ásia ouEuropa,entreoutroscontinentes–,rumoaqualquerlugardoplanetaquesatisfaça,mesmoprovisoriamente,umabuscaincessanteaocotidianosemtempero.
Oqueexisteemcomumentreeles?Todosvivemumaausênciadepropósito!
A ausência depropósito atinge aqueles queoptampelo sustento emumempregoquenãoconversacomseusdonsetalentosnemabreespaçoparaacriatividade.Milharesdepessoasgastamseusdiasemumtrabalhoquenãolhesoferecenenhumtipoderecompensa,alémdafinanceira,quandomuito.
A ausência de propósito é comum também entre os empreendedores,executivoseempresários refénsdadimensãoeconômicaeque,por isso,têm como únicos objetivos lucrar e crescer. Com uma perspectiva tãolimitada, seus negócios são destituídos de significado. Eles conseguemêxito, mas, depois de uma vida inteira e ainda no topo, tardiamentedescobrem que escalaram a montanha errada. Da mesma forma, einfelizmentenessescasos,opropósitonãofoialgocomquevalesseapenasepreocupar.
Nãopense,porém,queaausênciadepropósitoafetesomenteomundodos negócios e do trabalho. Quem vive sem propósito é presa fácil daentropia, geradora de preocupação, medo e estresse. Hoje, esse malenvolveamaioriadapopulação,sobretudoos jovensperdidosnasdrogaslícitaseilícitas,combaixasperspectivasprofissionais.Oestudante,emsuabuscainterminávelporcurrículo,podedescobrirquenãoéissooquelhefalta, e sim a definição de um propósito. Os pais, sem saber muito bemcomolidarcomessesdilemaseimpotentesdiantedeumcenáriocadadiamaisameaçador,ajudaminvoluntariamenteapioraroquadro.
Oproblemaserepeteentreosqueseaposentameque,aindarepletosdevigor,desconhecemoquefazercomaterceirapartedavida.
Não existe desesperomaior doque viver sem sentido.E o sentidodavida, bem como o seu significado, só acontece quando se descobre evivenciaumpropósito.
Ébom,noentanto,discernir claramenteentrepropósitoeobjetivosemetas ou ainda coisas a fazer. Permanecer em estado de excesso deocupações pode ser uma decorrência de falta de propósito, algo muitocorriqueiro quando existe a tradicional dobradinha: trabalho demais ebaixocompromissoemocional.
Emumaempresa,adeclaraçãodepropósitoéamaisimportantedefiniçãode posicionamento. Vale para uma organização, para uma pessoa, sejaempregado,estudante,profissionalliberal,religioso.Sim,porqueexpressaosentidoeosignificadodetodooseuprojetodevida.
Por experiência própria, descobri que um propósito bem definidoproporcionatransformaçõesnavida.Asoportunidadesaparecem,porqueaatençãoestáconcentradanopropósitoeemtudooqueaeleserelaciona.Atomadadedecisãotorna-semaisfácil,porquepassaaterumparâmetroquefacilitaasescolhas.Odesejo,abasedopropósito,acionaamotivaçãoesecontrapõeaomedo.
Estelivrovaiajudarvocêadefiniroseupropósito,casoaindanãootenhadescoberto. Vai reavivá-lo, se tiver perdido o viço. Vai propiciar umareorientação, caso esteja construindo castelos na areia. Vai, no mínimo,mantersuaatenção focadanesseexercíciodebusca.Oquedepiorpodenosaconteceréterpassadoaoladodonossopropósitosemreconhecê-lo.Qualquerquesejaasituação,defini-loajudarávocêamigrardaplatitudeàplenitude.
Paraondevamoseoquevemaseguir?Saibaque,apartirdeagora,vocênão está só! Trilharemos juntos o percurso rumo ao seu propósito.
Tambémtiveasortedeelaboraromeuemboacompanhia.Quero,então,retribuir.
Vamos?
PARTE1Ovelhoeomenino
1OVelhoTaful
ConhecioVelhoTafulnumônibusquesedirigiaàBarraFunda,naquelesmeus20epoucosanosuniversitários.Maniadeler,traziasemprecomigoumlivroparameentretereampliaroconhecimento,amenizandootédiodotrânsitodacidadedeSãoPaulo,jáintensonadécadade70.
Estava mergulhado na leitura de uma obra do realismo fantástico quefaziamuitosucessonaquelaépoca,Odespertardosmágicos,dedoisautoresfranceses.
–Estágostandodolivro?–foioqueouvidopassageirosentadoameulado.
–Sim–respondicurtoegrosso–,econtinueiconcentradonoquefazia.Detestava ser interrompido por dar menos importância às conversas,
considerando-asquasesemprebanais.–Recebiosoriginaisdesselivropararevisãoecontribuição–eleinsistiu
naprosa.Diante do que considerei um grande atrevimento, tratei de medir de
cimaabaixoapessoa.Eraumsenhorelegante,commagníficosbigodes,acalvície encoberta pelo chapéu impecável. Portava uma bengala, emboraaparentassevigorfísicoedisposição,apesardosseusmaisde60anosedaindumentáriamaiscondizentecomosanos30ou40,nostrajes formais,deternoegravata.
– Ah, é mesmo? – indaguei desconfiado, quase desacatando aquelafigurasuigenerisinstaladajuntoamim,notransportecoletivo.
Resolvi suspender a leitura para dar espaço ao que eu considerei umcontodacarochinha.Semprecortês,tambémnamaneiradesecomunicar,ele me disse que os autores franceses eram seus amigos e que haviamsolicitado a avalição dele sobre a edição brasileira do livro. Ressabiado,
finalmente resolvi aprofundar a conversa, mas já sem tempo. Meuinterlocutoriadesembarcarnopróximoponto.Antesdeselevantar,falou:
– Aprecio quem gosta de leitura. Deixe-me seu endereço. Vou lheenviarumlivrodeminhaautoria.
Assim, trocamos cartões de visita. No dele, estava escrito: BenjaminTaful,escritoreempresário.
Alguns dias depois, recebi pelo correio o que ele prometera. Na singeladedicatória,elehaviaescrito“com lembrançasdopassageirodeônibus”.Corriosolhospelasorelhasdascapas,querendosabermaissobreumserhumano tão singular.De fato, ele possuía umabagagemconsiderável deobrasliteráriasedeiniciativasculturaissuficientesparafazerdelealguémderelevonavidaintelectualdopaísetambémreconhecidonoexterior.OVelho Taful, denominação que adotei por minha conta, foi crucial nainspiraçãoeelaboraçãodemeupropósitodevida.
Como um arauto, o Velho Taful era um amigo de confidências, comquemeupodiacompartilharminhasincertezasemedos,naconvicçãodeseraceitoecompreendidoincondicionalmente.
Pormuitosanos,apósaqueleencontrocasual, tiveasortedebeberdasabedoria daquele velho homem. Encontrava-o sempre sorridente edisponível.Euapreciavaarelaçãodelecomavidaeoseujeitodedesfrutardoqueelalheoferecia.
Repasso o que aprendi com o Velho Taful, na esperança de que vocêtambém trilhe, ao seu modo, o caminho em direção a seu verdadeiropropósito.
“Façadesuavidaumaaventurafértil!”,diziaoVelhoTaful.Eraoquefaziaefoioquepasseiapraticar.
2Omeninoeoseudestino
ComeceiafrequentaroateliêdeleituraeescritadoVelhoTaful.Percorriacomaminhamagrelaadistânciadecercadeseisquilômetrosentreminhacasaeoendereçodele.Alieraoseurefúgioe,também,asuafortaleza.Eraonde ele se nutria de algo que o mantinha cada vez mais vivo: oconhecimento.
As prateleiras estavam sempre abarrotadas de livros, discos e revistas.Sobreosarmários,fotografias,artesanatosesouvenirsdelugaresporondeandou. Havia, ainda, brinquedos, quebra-cabeças e miniaturas deinstrumentos musicais. O Velho Taful gostava muito de música,especialmente de canções populares de todos os lugares. Comparava:livrossãocomopedrasparadasnofundodeumrio.Estáticosesilenciosos.Éprecisomergulharparaacessá-los.Ascançõessãoborbulhantescomoasondas.Inquietasevibrantes.Elasseachegamporcontaprópria.Comessaanalogiabemtípica,elerealçavaaimportânciadoestudoedapesquisa.
Emumadasparedes,mantinhaumatelacomaimagemdeFranciscodeAssis, em meio a uma paisagem exuberante, de flora e fauna tropicais,comoseosantotivessevividonãonaItália,masemalgumpaísabaixodalinhadoequador,frutodoimagináriodeumpintordoestadodaParaíba.No ladooposto,haviaoquadrodeummeninoolhandosuplicantementeparacima,dirigindo-seaalguémquenãoaparece inteiramente,mascujamãoafagasuacabeça.Aimagemmefaziaviajarnotempo.
Reencontrava o menino que, ao longo da infância, ajudava o pai nocomércio.ViviaemumapequenacidadedointeriordoestadodoParaná,com cerca de oito mil habitantes. O menino vivia o trabalho, mas viviatambém os amplos quintais, entre goiabeiras e bananeiras, cachorros egalinhas,borboletasejoaninhas.Porproblemasfinanceiros,enalutapela
sobrevivência,afamíliaseesfacelou,eomeninoveiomoraremSãoPaulo,poucoantesdecompletar14anosdeidade.
Paraomenino,acostumadoàliberdadedocampo,apraçaJúlioPrestes,localda antiga rodoviária,pareceuuma ilha intransponível.Atordoado, aprincípio,sequerousavaatravessarparaooutroladodarua.
Ovaivémdosveículoseobarulhodasbuzinasformavamumambientecaóticoparaos seus sentidos acostumados comobucólico lugar emquevivia,oventosoprandosobreacopadasárvores,ogrunhidodosanimais,oaboiodosvaqueirosconduzindoasboiadas.
Mas o choque maior ainda estava por vir. Foi o seu primeiro contatocom a instituição chamada de “organização”. Para manter-se na cidadegrande,eraprecisoterumemprego.
Omeninocriadonaliberdadedosquintaisdeparou-secomumaestruturahierárquica, feita de normas e procedimentos, formulários e controles.Nunca tinha ouvido falar de burocracia, mas a sentiu de perto. Perdiahorasembuscadeumaassinaturaoudeumcarimbo.Lidavacomnomesestranhos como voucher, borderô, memorando, duplicata, fatura, notafiscal. Logo ele, acostumado com outro vocabulário: forquilha para fazerestilingue,boladegude,bilboquê,pipaeatéboladecapotão,emboraessafosseparaosmaisabastados.
Logodescobriuqueasleisdeforavaliammaisdoqueasleisdedentro.Aprodutividade,maisdoqueacriatividade.Eoresultado,maisdoqueoprocesso.
Estranhavaserchamadodemãodeobra,comoquesugerindoumnãopensar, não criar, não sonhar, apenasproduzir e render.Algumas vezes,referiam-se a ele como recurso humano, a ser equiparado comdesvantagens a outros, como os físicos ou financeiros. Pior, ainda, foidescobrir que não passava de um item de custo, incluído na folha depagamentos,ainfluirsobreosresultadosdaempresa.Enotar,maistarde,queasorganizaçõescostumavampromoverumtaldeturnover,umnomechique para indicar os candidatos a colocar no olho da rua. Algumas
pessoas chegavam a temer aumentosde salário, por entender que, se osrecebessem,passariamafazerpartedalistadaquelesqueiriamrodar.
Era preciso se enquadrar e, assim, enquadrava-se também o potencialcriativo,avontadederealizar,acoragemparaousar,odireitodesonhar.Reduzia-se,portanto,acapacidadedesereodesejodeviraser.
Notou, ainda, que a maior parte das pessoas trabalhava cerca dequarentahorasoumaisporsemana,fazendooquedetestava.
Emcontrapartida,existiamasanedotas,paraaliviarador.Comoaqueladofuncionárioquechegaparaochefeediz:“osenhorvaimedesculpar,mas estou ganhando muito pouco”, ao que o superior hierárquico,laconicamente,responde:“estádesculpado”.
Aspessoasadoeciameconsultavammédicosembuscadeatestadosparaque suas faltas não fossem descontadas. Algumas chegavam a simularproblemas, comomesmoobjetivo.Entre o querer agradar e omedodedesagradar, desenvolviam habilidades políticas para manter o emprego econquistarpromoções.Comisso,desenvolviammúltiplaspersonalidades,transformandoavidanotrabalhoemumapeçadeteatro.
Definitivamente,aquelenãoeraumambientesaudável.
Mas nada calou mais fundo no menino do que o dia em que ele foirevistado.Tudopor causa de um furto na empresa e, então, todos eramsuspeitosatéseprovarocontrário.Sentiu-sehumilhadoeultrajado.Comtodarazão.Foirevistadoeinterrogadoporumcolegadetrabalho,alguémqueele,antes,consideravaamigo.Apartirdali,omeninosedeucontadequeoparaísohaviaficadoparatrás.Arelaçãodeconfiançaqueummeninotinha em outro menino era diferente da relação de confiança entre osadultos.Adultosqueperdiamameniniceperdiamtambémaconfiançaunsnos outros. E a desconfiança era a marca mais representativa da tal“organização”. Por isso, todo aquele aparato cerceador de comando econtrole,devigilânciaepunição.
Omeninoperdiaasasasenquantoseacostumavacomagaiola.
Amãoqueafagavaasuacabeça,quandosecomparavaàimagemdoquadronaparede,agoratinharosto.OVelhoTafulsabiaqueoconhecimentoeointelecto são insuficientesparaocuparo lugarda ternura edo afeto.Elebemcompreendiaaminhadesdita,similaratantasoutras,eomeuolharsuplicante,comotantosoutros.
3Asetaeoalvo
O Velho Taful acabava de retornar da sua caminhada matinal e, pelosemblante,pareciamaisanimadodoquedecostume.
–Estánahoradecomeçar!–Começaroquê?–perguntei,intrigado.–OfilósofoSênecaensinaque“nenhumventosopraa favordequem
nãosabeparaondeir”.–VaidizerqueconheceutambémofilósofoSêneca?–questionei,com
umapitadadeironia.Rindodaminhaprovocação,elepuxouumlivrodaestante.– Você precisa se orientar por um propósito. Veja só... – folheando,
localizouapágina–proponere,dolatim,aquiestá:pro,“adiante,colocaràfrente”; ponere, “colocar, pôr”. Propósito significa pôr adiante. Algo,portanto,quevemnafrente.
–Porondetudocomeça,então.–Nãonecessariamente...–respondeuoVelhoTaful,componderação–
opropósitoéalgoquevocêprocura.–Procuraropropósito?–interpelei,atônito–Penseiqueopropósitoé
queiriameconduzir.– Vamos recorrer, agora, aos gregos – ele continuou, puxando outro
livrodaestante–Estáaqui:propósito,emgrego,éomesmoqueskopós.Deonde saemoutraspalavras como telescópio,microscópio,periscópio.Todas elas servem para observar em estado de alerta. É assim quedescobrimosonossopropósito.
–Étantoprocurarcomocolocaràfrente–arrisquei,tentandosintetizar.–Étantooalvocomoosentidodaseta–eleesclareceu.Euestavaconfuso,masresolviseguiradiante,prestandoatençãonoque
ouvia.
OVelhoTafulcolocouumdiscoparatocar,enquantopreparavaocaféemsuainseparávelcafeteiraitaliana,aquemchamavacarinhosamentedeRita.
–Ponhaasxícarasnamesa,Aladim.–Aladim?Essenãoéomeunome!–reagi,espantado.–ApartirdeagoravocêvaiseroAladim–eleordenou,comoapropor
umjogo.–Conheceahistória?–Sim,masgostariadesaberqualéasuaversão.Enquantoserviaocafé,oVelhoTafulcontinuou:–Éumdosprincipaiscontosdaculturaárabeeestáno livroAsmile
umanoites.A bebida tão aromática estava bem quentinha; muito apropriada para
aquelamanhãfriadedomingo.– Vou resumir – ele falou. – Aladim é um jovem que se recusa a
aprenderoofíciodopai,queéalfaiate.Consideradodesobedienteporsuamãe, ele não se preocupa com o seu futuro. Até que se depara com ummago.Esseencontroédeterminanteparamodificarasuatrajetória.
Respireifundo.Conheciaahistória,masnãoessesdetalhes.–OmagolançaumdesafioparaAladim:obterumalâmpadamaravilhosa
quecontémumgêniocomopoderderealizarosdesejos.Vasculhando entre badulaques, oVelhoTaful recolheuuma lamparina
colorida,lembrançadeumadesuasviagensàTurquia.– Aladim, basta esfregá-la para que o gênio apareça e realize os seus
desejos–elesimulaogesto,antesdepassá-laparamim.Segureiaquelalamparinacomoímpetodefazeromovimentoindicado,
comoseestivessevivendoocontodeAladimemAsmileumanoites,masmecontivesentindo-meridículo.
–Oquetudoissotemavercomopropósito?OVelhoTafulcofiouosbigodesantesderesponder.–Vocêdescobreoseupropósitoquandobebenafontedodesejo.Antes
do propósito, o desejo. E, assim como Aladim, você tem direito a trêsdesejos.
Pensativo,tomeimaisumgoledecafé.–Vouprecisardeumtempo.Nãoseidireitooquepedir,ainda.–Aladim,estamosdiantedeumproblema!Vocênemaomenossabeo
que pedir. Precisa imaginar o que deseja. Essas imagens são projetadaspara fora, o que permite encontrá-las. Sem desejo, não há busca. Sembusca,nãoháencontro.
–Achoquecomeçoaentenderahistóriadasetaedoalvo.Opropósitodependedosdesejoseosdesejosdependemdopropósito.
–Éissomesmo:asetabuscaoalvo,oalvobuscaaseta.Proponhoquevocêpensearespeitoetragaosseustrêsdesejosnopróximoencontro.
Antesdeirembora,brinqueicomoVelhoTaful.–Duvidoquetenhaconhecidoogêniodalâmpada.–Errounamosca!Conheço-obem–comentou,rindo,enquantosorvia
oúltimogoledeseucafé.
4Avidadaspalavras
OVelhoTafuleraumhomemdasletras.Comobomleitoreescritor,tinhapaixão pelas palavras. Ele as apreciava, tanto em prosa como em poesia.Com ele também aprendi a gostar das palavras e de seus significados.Ensinou-me a buscar seu étimo, ou seja, sua origem. Uma de suasdiversões era pesquisar nos dicionários etimológicos e analógicos, quemantinhasempreàmão,facilitandoasconsultas.
–Vocêjápensounapalavra“ódio”?–indagouenquantoaescreviacomgizbranconalousaescuraquemantinhaemseuateliêdeleituraeescrita.
–Nãoseiondequerchegar–murmurei.–Oquevocêsentediantedessapalavradeapenasquatro letras?–ele
voltouaindagar.–Algoperturbador!Nãodesperta,emmim,bonssentimentos–admiti,
semrodeios.– De fato, é mesmo impressionante o mal que pode causar, se
buscarmos em nosso interior o lugar sombrio onde ela e o sentimentocorrespondentehabitam–eleacrescentoupara,emseguida,registrarmaisumapalavranooutrocantodalousa.
–Eessa,quesentimentolhecausa?Diantede“entusiasmo”,respondi:–Paramim,essaéinspiradora,metrazbonssentimentos.–Enãoéparamenos–frisouoVelhoTaful–,poisemseuétimoestáa
palavra Deus, do grego, enthousiasmós, que pode ser traduzido, entreoutrasalternativas,por“inspiraçãodivina”.Nãoépossívelsentir-semal,sejapronunciando,pensandoousentindoessapalavra.Apreciooqueelaprovocaemmimenasoutraspessoas–elecomentou,sorrindo.
Nasequência,afirmou:–Palavrastêmpoder!Opoderdeseusignificado.
–Masoquetudoissotemavercompropósito?–indaguei,sóparamecertificar,emborajáintuíssearesposta.
–Tudo!Propósitossãodescritosporpalavrase,comovimos,elas têmvidaepoder.Tantopodemabrircomofecharjanelas,incluindoasjanelasdeoportunidades.
Notei que ele estava me preparando para o que viria. Como um bomeducador,sabiaprepararoterrenoantesdasemeadura.Aspalavrasfazempartedessemovimento.Emprestamaopropósitoosignificadodequeeleprecisaparafazeroseutrabalhonomundo.Assimcomoumbomartesãoescolhe o melhor insumo para o seu artefato, cada um de nós deveescolheramelhorpalavraparaoquedávidaevigoraoquevaiconduziranossahistória.
OVelhoTafulseguiuadiante:– Tome como exemplo a palavra “destino”. Há quem compreenda
destinocomoalgoindependentedenossosplanos,vontadeoucapacidade.Os antigos gregos acreditavam que três irmãs fiandeiras decidiam odestinodeumapessoaaolongodofiodavida,doamoredopoder.Umadelas controlava o comprimento do fio, a outra, tecia-o, e a terceira,cortava-o,quandochegavaofim.Tudopreviamentedeterminado.Éumametáforadapresençadeumaforçaoupoderforadenossocontrole.
–Ouseja–acrescentei–,destinoéalgoqueestápostoesobreoqualnadapodemosfazer.Estáalémdasnossaspossibilidades.
–Diferentementededesígnio,emboraambassejamoriundasdoverbo“determinar”–eleesclareceu.
–“Oriunda”,quepalavraéessa?–quissaber.–Significa“quetemorigemem”.“CadapalavraqueoVelhoTafularranja!”,pensei.– Destino, como algo determinado; desígnio, como algo a ser
determinado–eleprosseguiu.–VelhoTaful,conseguesermaisclaro?– Desígnio implica que temos alguma ingerência sobre o que nos
acontece.VocêconheceolivrodeJonas,daBíblia?
Não,nãoconhecia.Sódeouvirfalar.Escutei,atento.–Jonaséoarquétipobíblicoqueserecusouatransformaroseudestino
em desígnio. Não queria viver o desígnio. E sua vida se tornou trágica.Enquanto não fazia a escolha, ele viveu desventuras, a ponto de serlançadoaomareengolidoporumabaleia.Láficoutrêsdiasetrêsnoites,esóconseguiusairquando,finalmente,aceitouoseudesígnio.
– “Dentro da baleia mora mestre Jonas” – cantarolei uma canção quefaziamuitosucessonaépoca.
OVelhoTafulsorriueretomouofiodameada.– Assim acontece conosco quando vivemos encerrados nas teias do
destino, sem encarar o desígnio. As portas se fecham, os esforços sãodesmedidos,osempenhosgeramdesempenhoscadavezmaisfracosenãose cessa de dar murro em ponta de faca. Um grande potencial pode serdestruídoeasortepassaráentreosdedos.Háquemchametaisinfortúniosdedestino,masnãopassamdereiteradarecusaaodesígnio.
Ouvi estupefato. Sentia-me exatamente assim: dandomurro empontadefaca.Eachavaquepodiairmaisalém.
– Destino, porém, não leva necessariamente ao fracasso; pode, sim,determinar o tão propalado sucesso. E talvez esta seja a sua faceta maiscruel:tantoasescolhasquefazemoscomooêxitoobtidopodemcamuflarorealdesígnio,ondemoraonossoverdadeiropropósito.
Sentiumfrionaespinha.Seráqueestavanoempregocerto?Evoluíanacarreira e conquistava postos, mas esse seria o meu melhor futuro? Porvezes,sentiavontadederespiraroutrosares.Masestavacomosustentoassegurado,eissomeretinha.
Compreendi a importância das palavras. Embora com a mesmaetimologia, destino e desígnio tinham significados diferentes, e escolherentreumaeoutrafaziatodaadiferença.
Desígnio é dar sentido e direção à vida. É revesti-la de propósito esignificado. Aprendi, com o Velho Taful, que não se deve esperar queaconteça do jeito que se imaginou. Seria apostar na previsibilidade e na
regularidade, tirando toda a graça da aventura. E isso nem é o maisimportante.
Destinoserefereaofuturo,enquantodesígniotemavercomoimpactofuturodasdecisõestomadasnopresente.Nãosetrata“doquefareiseissoacontecer”, mas “do que acontecerá se eu fizer isso”. A seta e o alvo,sutilmente,maisumavez.
Nãoporacaso,portanto,oVelhoTafulmeassegurou:–Seestivernorumocerto,avidaseabrirácomoumgirassoldiantedo
astrorei,ambosemperfeitaconexão.Epoderáiralémdoquehaviasidoimaginado,poisoSolfazasuaparteenquantoogirassolfazadele.
–Eentão,Aladim,elaborouosseustrêsdesejos?–eleperguntou,comosempre,demaneiradireta.
–Sim.Estãoaqui.Mostrei-lheafolhaondehaviaescrito:1ºDesejo:tersucessonaprofissão.2ºDesejo:ganharmuitodinheiro.3ºDesejo:gostardoquefaço.
Cofiandoobigode,oVelhoTafulexaminouumaum,lendoemvozalta.–Poisbem,Aladim.Vocêmesmovaicolocá-losemxeque.Eu,comoo
gêniodalâmpada,voulhedarsinaisparaqueavaliesevaiounãorealizarosseusdesejos.
ComeçavaagostardaexperiênciadereviverAladim.Sentiaocheirodeaventuranoar.
– Esta é uma viagem que se inicia sem um destino definido. Vai,portanto, moldando-se à medida que prossegue. Lembre-se de que opropósitonãoéalgoaserdefinido,esimdescoberto.Paratanto,éprecisoprocurá-lo.
O Velho Taful desenhou, na lousa, uma rota margeada de cincoestações.
–Esseéopercursoquevocêvaifazer.Éapenasumesboço.Cadapessoadelineia o que prefere, a partir de seus desejos. Portanto, não há um
percursoigualaooutro.Oimportanteépassarpelascincoestações.Cadaumadelas implicaumdesígnio.Visitá-lose fazerajustesnosdesejos farácomqueopropósitosejarevelado.
–Então,sebementendi,passareiporcincodesígnios–trateidetestarmeuentendimentoedesimplificarasexplicações.
–Sim,masavancesempressa.Descubraesigaseuritmo.Importanteéassimilar bem cada um dos desígnios. Conceda, generosamente, tempoparareflexão,ajustesderotaeexperimentação.Sóassimalcançaráoseupropósito.
Senti-medesafiado.–“Ocaminhosefazcaminhando”,bemdisseopoetaFernandoPessoa
–frisouovelhomestrecomtodooentusiasmo.
PARTE2Oscincodesígnios
5Oprimeirodesígnio
–Psiu!Foioqueouvi aoentrarnoateliêdoVelhoTaful,deixandoamagrela
encostada lá fora. No parapeito da janela estava pousado um bem-te-vigarboso, tão colorido, com aquela listra branca no alto da cabeça, acimadosolhos,abarrigaamarela,opescoçoalvoeacaudapreta.Umabelaave.Obiconegro,achatadoelongo,comumaligeiracurva,dava-lheumardenobreza.
O Velho Taful ali estava, tentando fazer contato com o pássaro, e eleparecia corresponder, mexendo a cabeça como se quisesse captar ochamado. Nós nos aproximamos um pouco mais e, talvez assustado, elealçouvoo,preferindoasalturasaonossoconvívioestreito.
Provavelmenteporcausadacena,umquadronaparedechamouaminhaatenção. Era o perfil do poeta Mário Quintana com os seguintes versos:“Todosessesqueaíestãoatravancandomeucaminho,elespassarão...eupassarinho!”.
– Conheci Mário Quintana em Porto Alegre – comentou o mestre aoverqueeu apreciavaos versos. –Elemorava emumhotelno centrodacidade. Naqueles poucos metros quadrados, ele produziu uma obraliteráriadeprimeiragrandeza.
– Gostaria de conhecer mais a sua obra, mas não tenho conseguidomuito tempo para as boas leituras. O trabalho e a faculdade estão meconsumindo–lamentei.
–Quandoeuovisitava,saíamosparacaminharpelaruadaPraia,pertodocaisdoporto,atéapraçadaAlfândega,ondesentávamosparaconversarsobreavidaealiteratura,aliteraturaeavida...esobrepassarinhos!
–Bomparaquemtemtemposobrando–comentei,poralto,dispostoaretornarlogoaotemadonossoúltimoencontro.
O Velho Taful, percebendo a minha ansiedade, mudou o curso daconversa.AbdicoudasdocesmemóriasdePortoAlegreparamergulharnarealidadenuaecruafeitadepressaepressão.
–Comoestãoascoisasnotrabalhoenosestudos?–Umachatice!Naempresa,meuchefenãopensaemoutracoisaanão
sercobrarresultados.Asmetasdoano...asmetasdosemestre...asmetasdomês...sempreasmetas,edane-seoresto.
–Qualéacausadetantascobranças?–Acrise!Aquiconfinado,osenhornãoconseguevernada,mas,talvez
reconheçaqueomundoaí foraestápegando fogo!Éum“salve-sequempuder!”.Ésólerosnoticiários.
–Ah!E,diantedessecenário,oqueestásendofeito?–Agoraestãocortandocabeças.Cadaumdenósesperaasuavez.–Eoquevocêachaquenãodeveriatersidofeito?– Não deveriam nos pegar de surpresa. Um de meus colegas foi
demitidonavésperadoNatal.Imaginecomofoiissoparaele!Tinhamdeconversar mais com a gente, pois gostaríamos de ser levados em conta.Ninguém,nalinhadecomando,quersabernossaopinião.
–Masoquepoderiaserfeito,agoramesmo,parareparartalsituação?–Seilá!Oshomensládecimaéqueresolvem.Elesdecidemtudo.Eu
sóestouláparafazeromeutrabalho.–Quaissãoasconsequênciasdoqueestáacontecendo?–Umclimahorríveldedesmotivação equedadeprodutividade.Cada
umquechegaaotrabalhoparecequeestásedirigindoàguilhotina.Semtréguanemintervalos,oVelhoTafuldisparavaquestionamentos.–Enafaculdade,ascoisasestãomelhores?– Estariam se os professores fossem mais preparados e os diretores,
maisexigentescomeles.–Oquedeveriaserrealizadoagoraequeelesnãoestãofazendo?–Deveriamdiminuir o volumede trabalhos ede livros a serem lidos,
principalmente na época das provas. Acho, ainda, que os professoresdespreparados–algunssão,mesmo–teriamdesersubstituídos.
–Dojeitoqueestá,quaissãoasconsequências?–Osalunosfazemdetudoparafugirdasaulaseosbaresnosarredores
estãorepletos.De repente, o Velho Taful parou de perguntar e me encarou, firme,
olhosnosolhos.Noafãderesponder,eusequerhaviamedadocontadequeasquestõesforamlançadascomoprojéteisdemetralhadora.Aminharespiração estava curta, o Velho Taful me fez perceber esse detalhe.Aquelediálogotinhasidocomoumadescargadeadrenalina.
– Tome um gole d’água e respire devagar – ele me serviu um, com ahabitualcortesia.
OVelhoTafulesperoupacientementequeeumeaquietassee,cofiandoobigode,pareceuvoltaràcarga:
–Qualéoproblema?Logocompreendiqueeraumaperguntamaisparapensardoquepara
responder. A sessão pinga-fogo havia terminado. Depois de um brevesilêncio,oVelhoTafulretomouoquestionárioemoutracadência.
–Qualéoseudesafionotrabalhoenafaculdade?– O meu desafio... bem... no trabalho, é prosperar, conseguir uma
promoção, sei lá, ganhar mais... – respondi, hesitante – na escola é meformar...terumaprofissão...
–Dequemaneiravocêpretendeenfrentarasituação,tantonaempresacomonaescola?
– Penso que, na empresa, terei de me preparar melhor... e na escola,também...
–Vocêacreditaquepoderiaterfeitoalgoparaevitarissotudo?– Pensando bem... acho que sim... tem muita coisa que a gente pode
fazerenãofaz.–Porexemplo?!–Termeempenhadomais,indoàluta,oferecendooubuscandoajuda,
emambososambientes.Poderiatertentadoconversarcomomeuchefesobre o trabalho, da mesma forma com os professores, apresentandosugestõesparamelhorarasaulas.Puxa!Quantascoisaspodemser feitas!
Sóagora,apósrefletir,consigoimaginarumaporçãodelas–concluí,maisanimado.
–Ecomovocêvaiarranjartempoparafazertodasessascoisas?– Tempo a gente arranja, quando interessa – respondi quase
instintivamente.–Muitobem,muitobem!–elecontinuavaacofiarobigode,satisfeito
comodesdobramentodaconversa.–Comovocêsesente,agora,olhandodeumoutrojeitoparaoseuproblema?
–Achoquenãotenhoumproblema,estoudiantedeumdesafio!–Issomesmo!–exclamounovamenteoVelhoTaful,exultanteporter
conseguido chegar aonde queria. – Estamos, então, diante do primeirodesígnio:odocriadoredacriatura!
Armei-medeoutrogoled’água.–Quemagecomocriaturanãoassumeoproblemaparasi,acreditaque
tudodependedosoutrosequeoculpadoestásempredoladodefora:nochefe, na empresa, nos pais, em casa, no professor, na escola, nosgovernantes,nopaís.Sempreachamalguémquedeveria terdecididodedeterminadaformaouagidodeumcertojeito.Nunca,porém,trata-sedacriatura,vítimadetudoedetodos.
– Isso é muito comum – sussurrei, tentando desviar o foco de mimmesmo,semquemedessecontadeque,agindoassim,assumiaaatitudedecriatura.
– Diferente da conduta de criador, aquele que assume aresponsabilidadesobresimesmoesobresuavida.Ocriadoréprotagonistaeserecusaapermanecernaarquibancadaxingandoojuizouotécnicoeosjogadores,senãoatendemasuasexpectativas.
OVelhoTaful,naqueledia,estavafulminante.– Aliás, expectativa é uma palavra bem ao gosto das criaturas. Estão
sempre esperando que alguém faça alguma coisa. Esperam... esperam...esperam...aofinal,frustraçãonacerta!
– Mas acho que as criaturas também têm vontade de acertar –contemporizei,tentandosercondescendente.
–Ficamsónavontade.Nãoevoluemparaaforçadevontade.Econtinuou:–Sãopróximas,masnão iguais.Vontade éumanseio, uma aspiração.
Forçadevontadeédeterminadapelarazãooumotivação,poisambasestãopor trás dessa vontade. Mas, qualquer que seja o impulso inicial, nadaacontecesevocêficarsomentenavontade.Aescolhadependedavontade,masadecisão,daforçadevontade.
Nãohavia aindamedetido a refletir sobre essasdiferenças.Continueiatento,ouvindooVelhoTaful.
–Suponha,eéapenasumasuposição,quevocêacabadeperceberqueémuitodesatentoemseu trabalho.Apartirdessapercepção,vocêdecide,conscientemente,serumapessoamaisatenciosa.Ouseja,farátudooqueforpossívelparadesenvolveravirtudedaatenção.
Estava ligado! Afinal, era a minha primeira estação, o meu primeirodesígnio. Tinha ainda um bom percurso pela frente e vontade deprosseguirnopassocerto.
–Emseguida,vocêterádeaprenderoquefazereoquenãofazerparapraticar tal virtude. Isso depende de se livrar do destino de criatura eassumirodesígniodecriador.
Opa!Destinoedesígniocomeçamaficarmaisclarosparamim.– Para tanto, você terá de desconsiderar todos os argumentos que
sabotamasuaatenção,mesmoquepareçamrazoavelmenteconvincentes.Você recusa o batido “é assimque as coisas funcionam” e acredita – deverdade!–quepodelidardeoutramaneiracomsituaçõescapazesdelevaràdesatenção.
Por instantes, repassei mentalmente as respostas que havia dado aoVelhoTafulduranteseuarsenaldeperguntas.
–Vocêvaiterumanovaperspectivadassituações,porquevaiolharparacadaumadelasdeoutramaneira.
– Foi o que percebi entre as duas abordagens de perguntas –acrescentei,exultante.
–Éissomesmo!Nasegundarodada,vocêcomeçaaagircombaseemseudesejoeforçadevontade.
–Eu,senhordemim!–afirmei,sentindo-mefortalecido.– O seu desejo, agora, é a sua preferência, da mesma forma que é
também a sua exigência. Não se trata da preferência ou da exigência deoutrapessoa,masda sua, legítimaeúnica.Você, agora,éumcriadordesua própria vida. Tem o desígnio como baliza e não precisa mais seentregaràsortedodestino.
– Mas... e as recaídas? – perguntei, inseguro com a suposta firmezademonstradapeloVelhoTaful.
–Claro!–eleconcordou,sorrindo.–Afinal,vocêestálutandocontraasuacriatura,queinsisteemsobreviveremanterosvelhoshábitos.Maséapartirdessaconsciênciaquevocêretomaodesafio.
– Vai ser uma boa queda de braço! – eu disse, prevendo a disputaacirrada.
–E,mesmoquereaviveoseudesejoereforceasua forçadevontade,vocêpoderáteroutrasrecaídas.
–Eaí?– Aí você se levanta e anda novamente. Quantas vezes forem
necessárias. Se lhe parece um cenário de luta sucessiva, a imagem ébastantecorreta.Éumcombate.Masdosbons!
Compreendi! O criador vai além da criatura, assim como a força devontade vai além da vontade. Não é simplesmente uma escolha. É umadecisãoeumcompromisso.
– Sempre que esmorecer, lembre-se dos ganhos, e são muitos: asensaçãodepoder,aautonomiadiantedotrabalhoedesuavida,eaalegriapelasconquistas.
–Issotudoémuitobom,masnãomeparecefácil...–Mudarnãoéfácil,masétudo,quandooquevocêdeixaparatrássão
conceitosepráticasultrapassadasequenãofazemomenorsentidodiantedodesafiodeviverumpropósitoedeseguiradiante.
Eu antevia que a mudança de atitude faria muita diferença em minhavida.
–Aladim– ele frisoumeunovo codinome–,porquevocê cursaumafaculdadedeEconomia?
–Nãoseibemoporquê.Achoqueporcontadomeuempregoemumainstituiçãofinanceira.
–Foivocêquemescolheuesseemprego?– Na primeira oportunidade de colocação, a gente aceita quem nos
aceita. Eu sequer tinha carteira de trabalho quando consegui a vaga deoffice-boynaquelainstituiçãofinanceira.
–Aladim,vocêestápreparadoparasaberseosseusdesejospassampelocrivodoprimeirodesígnio?
–Sim!–respondi,resoluto.–Então,façaotestedocriadoredacriatura:osseusdesejossãoseusou
sãodesejosdeseuspais,desuafamília,dasociedade,dapublicidade?Examineiosmeustrêsdesejos.1ºDesejo:tersucessonaprofissão.2ºDesejo:ganharmuitodinheiro.3ºDesejo:gostardoquefaço.Refleti,sempressa,arespeitodecadaumdeles.– O sucesso busca o aplauso da sociedade – disse--me o Velho Taful.
Será mesmo um desejo pessoal, do âmago do meu ser, ou uma induçãoadvindadasociedade?Éomeuquererouéumquerercoletivo?Eaminhaprofissão?Foimesmominhaescolhaouinfluênciademeuemprego?
O Velho Taful me fez notar que muitos seguem a manada, copiampadrões, imitam outras pessoas. Incorporam uma identidade que não ésua. Descaracterizam-se. Constroem a própria gaiola, onde ficarãoprisioneiros.
Omesmovaleparaosegundodesejo,odeganharmuitodinheiro.Sim,euqueroserrico,existealgumproblemanisso?Seiqueosricossãomais
apreciados e valorizados pela sociedade. Será que eu estou em busca dedinheirooudeprestígio?
Gostardoquefaço!Seeunãogostardoquefaço,comopodereifazê-locomgosto?Vejonasrevistasenatelevisãopessoasfelizescomoqueestãofazendo.Queriaserumadelas.
– Noto que os meus desejos estão cheios de influências – confessei,agoraciente.
–Masnãoseaborreçacomisso.OpoetaFernandoPessoajáreconheciatalfatohumanoquandodisseque“somosointervaloentrenossodesejoeaquiloqueodesejodosoutrosfezdenós”.Buscaraverdadeiraidentidadeé,portanto,umbelodesafio.
–Estoupensandoemreformularosmeusdesejos–admiti.–Faça isso. Já era esperado–disse sorrindooVelhoTaful. –Pense a
respeitoe tratede refazê-los, agoracomocriadorde seusdesejos.Enãodeixequeninguémmais atravanqueo seu caminhopara que vocêpossavoar,livrecomoumpassarinho.
6Odesafeto
Eu sempre retornava muito reflexivo dos encontros com o Velho Taful.Gostava de aprender com ele, embora, por vezes, achasse-o um tantoradical, como, por exemplo, quanto ao fato de evitar os noticiários.Nãotinhaohábitode ler jornaisnemrevistase,depois, foiaindamais longe:deixoudeassistiràtelevisão.Diziaqueotempoéumbempreciosoparaser desperdiçado com efemérides, palavra bem característica dovocabuláriodele.Preferiainvestirseutempoematividadesmaiscriativaseprodutivas.
Reservas à parte, quando saía de seu ateliê, eu me sentia bastanteanimado. Esperançoso é a palavra! Ansiava encontrar o meu propósito,acreditava na importância dele para a minha vida. Mas aquele estado deespíritonem sempreduravamuito.Defrontar-me coma realidadenua ecruanãoera tarefa fácil, eomundo lá foraestava longedeserassimtãopositivocomooVelhoTafulfaziacrer.
Em meu trabalho, os problemas continuavam. Crises, metasinalcançáveis,conflitosentreaspessoasevilanias,veladasounão.Nadaaver,portanto,comummarderosas.Damesmaforma,tudomaisaoredordoplaneta:sofrimento,guerras,misériasemfim,doençasepragas.
Diferentemente do Velho Taful, eu gostava de assistir a filmes natelevisão.Umdeles,vistoháalgunsanos,jamaissaiudeminhamemória:Anoitedosdesesperados.Otítulojádiztudo.Mostraumconcursoemqueosparticipantes concorrem a um prêmio em dinheiro. Ganhava quemconseguiasemanterempéatéofinal,dançandohorasehorassemparar.A maioria acabava desistindo, por vontade própria ou limites do corpo,agonizando entre dores, câimbras e desmaios. O pior é que não erasimplesobradeficção,masumroteirobaseadoemfatosreais.Nosidosde1929, nos Estados Unidos, proliferavam certames atraindo milhares de
pessoasdesempregadasembuscadealgumdinheiro.Elassesubmetiamatudo para ganhar uns trocados e garantir sua sobrevivência, naquela decadaumporsi.
OfilmefoibaseadonolivroMasnãosematamcavalos?,emalusãoaoatode sacrificar o animal quando ele já não serve para mais nada. E amensagem sórdida é que, se vale para cavalos, vale também para sereshumanos.
Àsvezes,osencontroscomoVelhoTafulseespaçavameeumesentiaestranho,comosetivesseperdidooeixo.Sim,porqueficarsemorientaçãoacabaporminar,gradativamente,acoragem.Porisso,ébomteroalvoàfrenteesaberqualéosentidodaseta.Enquantoeunãoencontravaomeupropósito, meu sábio interlocutor havia se transformado em umareferência para mim, a substituir o pai ausente de minha adolescência ejuventude.
Ele recebia, com certa constância, convites para participar decongressosesimpósiossobretemasquetratavaemseuslivros.EramuitoprestigiadoemPortugal,onde,nosanos1960,haviaconquistadoprêmiospelo conjunto de sua obra, além de bons amigos em Lisboa, pelos quaisnutriagrandeestima.SuasviagenspeloBrasiletambémrumoaoexteriordeixavamemsuspensotantonossasconversascomoaelaboraçãodemeupropósito.Mesmoassim,eunãodeixavadeexercitarosaprendizados.
Em um de nossos encontros, dada sua paixão pelas palavras, o VelhoTaful discorreu sobre uma que ele considerava integrar o rol dasimprescindíveis:discernimento.Entendiaqueessadeveria fazerpartedovocabuláriohabitualdetodoserhumano.Emlugardehonra!
Discernimento é uma capacidade que todos nós temos, embora nemsemprefaçamosusodela,eleafirmava.Exemplificavasuaopinião,dizendoque não nos falta conhecimento para saber que o ódio – ou mesmo orancor – é um obstáculo à nossa alegria de viver e que, tal sentimento,traz-nos angústia, ansiedade e medo. Sabemos, também, que perder osono por causa de algumas suposições ou fantasias não compensa. Maisainda, temos ciência de que o que nos maltrata é a nossa leitura da
realidade, sempre parcial, incompleta, tendenciosa. Mesmo assim,preferimos apostar nesse enredo ficcional e ficar remoendo mágoasimaginárias,comaequivocadaatitudedequemvivecutucandoumaferida,apontodeimpedi-ladesarar.
–Discernir–diziaoVelhoTaful–significacompreenderoqueexiste.É ter consciência plena da realidade, sem se deixar levar por miragens,versõesdosfatos,fantasias.
Emboranão ignorasse a realidade, ele achava queuma coisa é escutarnarrativas, assistir a filmes e ler livros sobre momentos dramáticos denossaHistória,outraésaberoquefazercomissotudo.Deixar-selevarpornossocérebro réptil–dizia–é apior alternativa.Esseórgão,esclarecia,está treinado para acionar os instintos mais primitivos de sobrevivência.Assim, se permanecermos à sua mercê, só nos restam duas alternativas:“Para o mundo que eu quero descer” (refrão de uma música que faziasucessonaépoca)ouirparacimacomtudo,pisandoemquemestivernafrente,natentativadegarantirparasiopoucoqueaindaresta.
Mesmo diante dessas explicações, das quais eu não discordava, osentimentodeimpotênciaededesânimo,queporvezesmeassolava,erareal. Resolvi, ao meu jeito, praticar o discernimento de outra forma.Descrevendoedandonomeaomeudesafeto.
Queméele?Prefereviverencaramujado.Aondadeassaltosestáemalta–éoquese
vênosnoticiários–eeleresolvepermaneceremcasa,espiandoomundodo lado de fora pelas frestas das cortinas. Considera a vida um vale delágrimas,tristesinadiantedaqualnadapodeserfeito.
Sua conversa predileta, alémdo clima e da temperatura jamais de seuagrado, é sobre as tragédiasdo cotidiano.Está tãopreso às adversidadesque uma boa nova o deixaria sem assunto, perplexo diante de suasimutáveisemuitoparticularesverdades.
Persistirnadesventura,decertaforma,éoquedáumcertorepertórioàsua vida. Não saberia viver de outra forma. É um derrotado, sempre à
procura de outros fracassados, em meio aos quais não se sente só, maspartícipedoinsanozumbidocoletivo.
Não ter um propósito é um prato cheio para ele, pois uma de suasfunçõeséexatamenteessa:adenospuxaremtodasasdireções,deixando-nosdesnorteadoseestressados.
Qualéoseunome?Mórbido!Ouviaseuspassosebatidasnaporta,otempotodo.Mórbidoé
oseunome!
7Osegundodesígnio
Antesdeumanovaconversa,trateidefazerreparosemmeustrêsdesejos.Ficaramassim:
1ºDesejo:escolhereconquistarumaprofissãopromissora.2ºDesejo:aprenderaganhardinheiro.3ºDesejo:arranjartempoparafazeroquegosto.
Apresentei-osaoVelhoTafulemumaagradávelmanhãensolarada,aoqueelefoilogodizendo:
–Parecequevocêchamouaresponsabilidadeparasi.–Desejosdecriador!–confirmei,animado.– Escolher, conquistar, aprender, arranjar – fazendo referências aos
verbosqueiniciamcadafraserefeita.–Osverbosdizemmuitoedeclaramintenções–acrescentouVelhoTaful,sempreligadonaspalavras.
Nãohaviamedadocontadaimportânciadosverbos.– A intenção de Pedro Álvares Cabral, quando saiu para navegar, era
“descobrir”, não governar. Da mesma forma que outros grandesnavegadores, como Vasco da Gama, Américo Vespúcio, CristóvãoColombo,quedesvendaramnovasterras,masjamaisasgovernaram.Elesestavamcertosdesuasintenções.
–Sebemcompreendi, o criador temas suaspróprias intenções enãoviveintençõesalheias.
–Entendeucorretamente!Masnemsempreasintençõesdocriadorsãoasmelhoresintenções.
Abri mais as cortinas, para que a luz do Sol entrasse com toda aintensidade,enquantomeuinterlocutorseguiaseuraciocínio.
– A palavra “intenção” provém do verbo latino intento, que significaestender-se para frente. Cada uma das intenções que você definiu é
representadapeloverboqueabreasfrases.Sãojustamenteosverbosquedeterminamadireçãoeimpulsionamosnossosdesejos.Edãoosentidoàseta.Ou seja, os verbosque escolhemos apontamanossa intenção, suasinclinaçõesemovimentos,masnemsemprenadireçãocerta.
–Ecomosaber?–Passeosseusdesejospelocrivodosegundodesígnio:afartaeafalta.–Fartaefalta?– Um desejo pode ter como intenção preencher uma falta. Existe um
vazioaserocupadoeodesejocumpreessafunção.Osverbosdãoapista.–Equaissãoaspistas?– Quando as intenções são como setas voltadas para você mesmo, os
desejosestãodoavesso.–Desejosdoavesso?Nãoestouentendendonada!OVelhoTaful,sempressa,limpouaslentesdosóculos.– Os desejos podem existir para preencher algo que lhe falta, como
dinheiro,fama,poder,prestígio.–VelhoTaful,espereaí!Oquetemdeerradoseesses foremosmeus
desejos?–Imaginequeoseudesejosejaacumulardezmilhõesdedólaresantes
deseaposentar.–Estouimaginando–respondi,comosolhosembasbacadosdecifrões.–Imagine,agora,quevocêconseguiu.–Estoufantasiandoeachandoissomuitobom!–Apartir daí, toda a sua atenção vai se concentrar emguardar a sete
chavesa fortunaadquirida.Essepassaa seroseuobjetivovalendo-sedetodo o aparato possível para não ser assaltado e roubado. Aquilo que,teoricamente,fariaasuafelicidade,transformaráasuavidaemuminferno.Etemmais:cadêopropósito?Acabou?
–Querdizerquenãopossodesejarserrico?Sentia-me confuso.Não sabia das reservas financeiras doVelhoTaful,
mas ele tinha uma bela casa, boa qualidade de vida, além de prestígio eexcelentefamaentreaspessoasdeseumeio.Oquehaviadeerradonisso?
– A riqueza como propósito ou a riqueza como recompensa de umpropósito?Eisaquestão!
Parecequehaviaalgoqueeuaindaprecisavacompreender.–Empregosruinstambémsãoresultantesdetentarpreencherasfaltas.–Sabeoqueouviumdiadesses?“Adoromeuemprego.Oqueodeioéo
trabalho!” – e soltei uma boa risada. – Desculpe-me, foi uma piada paraquebrarogelo.
–Umapiadaséria!–eleriu.–Temgentequegostadoemprego,comogarantiade sustentoedeasseguraroque lhe falta,masnãodo trabalho,pelaresponsabilidadeenvolvida.
–É,enãosãopoucososquesesentemassim.–Comisso,vaicrise,vemcrise,ealgonefastonãomuda.A legiãode
desempregadosdeumlado,eanecessidadeportrabalhadores,deoutro.–Andalendoosjornais,hein?–provoquei-o,bemhumorado.–Eprecisa?Essaéumahistóriaantiga.Resolveraequaçãopareceser
simples,matematicamente.Bastaencaixaraofertacomademanda.MasétãodifícilquantomisturarosriosNegroeSolimões.
–Eporqueétãodifícil?Àprimeiravista,aimpressãoeradequefossefácilentender.
–Adificuldadeestá aí: são intençõesmuitodiferentes.Quemprocuraemprego espera encontrar amparo, proteção e segurança. Almeja,portanto, suprir as suas faltas. As setas da pessoa estão voltadas para si.Nãoquercorrer riscos, justamente,comreceiodeperdera razãodesuaprocura:oemprego.Farádetudoparapreservá-loesepreservar.
–Tristerealidade!–Ocaminhodafaltaéodacarência,algoqueseparececomdesejo,mas
nãoé.–Acarênciaé,então,odesejoaoavesso,certo?– A carência é uma necessidade emocional que esconde o desejo
essencial.Quandoinsaciável,tornaodesejoinacessível.–Masasnossascarênciasfazemagentecorreratrásdoqueépreciso...–
argumentei.
– É verdade, a carência também possui força e energia mobilizadora,assimcomoodesejo,masnãolevavocêaomelhorlugar.Oproblemaestánosentidodaseta.Eocarentevaisertomadopelaacídia.
–Acídia?Oqueéisso?–Éoenfraquecimentodavontade.Nemvontadenemforçadevontade.
Acídia.CadapalavraqueoVelhoTaful arranja,penseicommeusbotões,mas
aindanãoestavaconvencido.–Quem luta pela sobrevivência, por exemplo, não está vivendoo seu
desejo,massimasuacarência.Acarênciaérepetitivaegeradependência.Desejo,porsuavez,implicacriatividade.
–Mas,eaí,oquefaçocomaminhacarência?Elaélegítima!–Trate-acomcarinho,masnãoaalimente,senãoelaabsorverá todaa
sua atenção e você não terá energia para os seus melhores desejos. Acarênciaéumapéssimapatroa.Nãopodemosdeixá-lanocomando.
–Estábem!Maseuprecisodoemprego,precisodo sustento,precisosobreviver...oquefazer?
–Emvezdepensarno emprego,penseno trabalho.Trabalho é outracoisa. É risco, responsabilidade, compromisso. É dar a cara para bater,romperbarreiras, furarbloqueios.Épensaralternativas,proporsoluções,usar a criatividade. É realizar e contribuir para que os resultadosaconteçam.
–Caramba!Fácilassim?–ironizei.–Quempensaememprego,emvezde trabalho,não se fixaem lugar
nenhum. Quem pensa em trabalho, em lugar de emprego, tem sempreumavaga à suaespera.Mas isso sóvai acontecer se apessoa seorientarpelafarta,nãopelafalta.
–Afaltatemavercomacarência,entendi.Falemaissobreafarta...–Seafaltarepresentaovazioaserpreenchido,afartarepresentaaquilo
quevocêtemdesobraepodeoferecer.–Desconheçooqueeutenhodesobra–lamentei,comsinceridade.
–Evaicontinuardesconhecendo,seficarpresoàfalta–elecomentou,enquanto enchia os nossos copos de água. – Você tem dons, talentos,inteligências, tanto os que já conhece, comooutros que sequer imagina,masvaisedarcontaquandoagirparasatisfazerosseusdesejoseviveroseupropósito.Alémdisso,temvalores.Elessãoassuaspedraspreciosas.
Euescutava,comprofundointeresseeatéentusiasmo.–Enemestoumereferindoaseuspotenciais.Riquezasocultas,àespera
de revelação!Muitasdaquelasquebuscamos avidamentedo ladode foraestão,mesmo,ébemládentrodecadaumdenós.
Olhosnosolhos, oVelhoTafulde certa forma tratavademedesafiar,enquantocofiavaobigode:
–Sevocêforcapazdedescobriroseupotencial,tambémserácapazdeimaginar a riqueza que ele pode gerar.Ao enxergar dessamaneira,maisprofundaeprofícua,poderáconteroímpetodeolharparaasfaltaseficaráaptoavalorizarmaisasfartas.
–Então,qualéotestedafartaedafalta?– Você se refere ao segundo desígnio. Então vamos lá. O teste é o
seguinte:oseudesejoexisteparapreencherassuasfaltasouparaquevocêofereçaassuasfartas?
Silêncio.Nãosabiacomoresponder.–Antes que você avalie os seusdesejos, deixe-me acrescentar algo.A
farta é diferente do excesso. Parece igual, mas não é. O excesso é paraquemnãoacreditanafarta.
Acoisaestavasecomplicando.Queriasaberaondeelepretendiachegar.– Olhe para os lados e veja como o excesso está tomando conta do
cotidiano: a comida em exagero, a roupa desnecessária, o remédio semprescrição,aprodutividademáxima,oconsumismoexacerbado.Tudoemdemasia.Éoexcesso.Nadaavercomafarta.
Defato,oVelhoTafulsabiaoqueestavaacontecendo,mesmosemseligarnosnoticiários.
–Aeradodemais,sejanaproduçãoounoconsumodesmesurado–,éresultado dos excessos. Pode parecer estranho, mas o excesso existe
justamentepelafaltadefirmeapostanafarta.–Então,porincrívelquepareça,estámaisrelacionadoàfaltadoqueà
farta.–Éissomesmo.Assimcomoafalta,eleseoriginanavisãodeescassez.
Oexcessoexistenomundodeforaparacompensaraescassezquehabitaomundodedentro.“Maisparamim”éomantradoexcesso.
OVelhoTafulfoiaindamaisfundodessavez.–Afarta,porsuavez,nãorequerartifícios.Éaprovadequeavidaéboa
ebela,naturalmente.Elavivenasmentesdesenvolvidasdequemfogedosexcessosenoscoraçõesgenerososdosquesabemdividirepensartambémnosoutros.
Observei atentamente meus três desejos enquanto escutava o VelhoTaful.
– Excessos podem produzir fortunas, mas as fartas geram farturas: deoportunidades,riscos,boasideias,talentos,riquezas.
Entendi que ainda não havia chegado lá. O Velho Taful dava-me boasdicasparaqueeupudesseavançarmaisemminhasdescobertas.
– A farta é a abundância que habita o mundo de dentro para, então,expressar-secomofarturanomundodefora.
–Depoisdessa,vouprecisarreverosmeusdesejos.OVelhoTafulsorriu,comosejásoubessequeissoiriaacontecer.
8Olharapreciativo
Mórbidonãoestavagostandonadadaquilo.Elefaziaoseupapelnomundoe, por isso, a falta imperava em todos os lugares e mentes. Mórbidoargumentavacomveemência.“Vejaosmédicos:tratammaisdadoençadoque da saúde. Os advogados: tratam mais do crime do que da ética. Osguardasdetrânsito: tratammaisdaspenalidadesdoquedaeducaçãodosmotoristas,aovolante”.
Talvezporqueacreditemqueadoençaéoopostodasaúde,ocrimeéoopostodaética,eamultaéoopostodaperícia.Eque,aoaprendersobreadoença, o crime ou a contravenção, compreende-se, também, o que ésaúde, ética e aptidão. As conclusões se sucediam com uma lógicaassustadora. Mórbido sabia como enganar. Eram, mesmo, coisasdiferentes, de maneira que a lição vinha sempre enviesada, não direta enemcompleta.Podiainclusive,sercontraproducente.
Na empresa emque eu trabalhava,Mórbido corria solto, dominante epredominante.Soberano,até.Oslíderesestavammuitomaisfocadosnoserrosdoquenosacertos.Comoseestesfosseminadmissíveise,aqueles,nadamenosqueobrigações.Constateporsicomoerrosdãomaisassuntodoqueacertos.Issovaletantoparaosnoticiáriosdamídiacomotambémpara as conversas na empresa. Veja as pautas das reuniões das quaisparticipa.Veráqueestãomaisvoltadasparaaresoluçãodeproblemasdoqueparaaproduçãodeideias.
DepoisqueoVelhoTafulmostrouadiferençaentreempregoetrabalho,euprestavaaindamaisatençãoaalgumasfrases.Vejaesta:“eusótrabalhoaqui”. Decerto, alguém que anseia se preservar, livrar-se da culpa e seisentardorisco.Ressalvatípicadequemescolheuoempregoaotrabalho.Mais uma: “esse não é o meu departamento”, revela a intenção de seesconder sob o guarda-chuva do não-tenho-nada-com-isso. “Essa é a
normadacasa”,demonstraumaatitudededefesadequemquerdistânciadaresponsabilidade.“Osenhorprecisareclamarnaempresa”,euouvidealguémquetrabalhaexatamentenolugaremqueserecomendaprocurar.Retruqueiindignado:“masvocênãofazpartedaempresa?”.Estavadiantedeumfuncionárioquenãoseconsideravaintegrantedainstituiçãoqueocontratouepagaoseusalário.
OVelhoTafulquemedesculpasse,masnoteiqueMórbidoestavamuitopresente,emtudoeemtodososlugares.
Apartevaziadocoponãoensinacomosefazparaserenchida.Apenasinforma a falta. Nada diz sobre a farta. Os potenciais humanos não sãoassuntosdodia adia.Oras!Quemestranharia?Afinal, todas as atençõesestão concentradas em captar erros, perceber defeitos, identificardisfunções, localizar não conformidades, prever anomalias. É sempre oMórbidoroubandoacena–sejanopassado,emminhasmemórias,ounopresente, quando se instala em alguém, sorrateiramente. Os olhares, detãoviciadosnamesmice,nãoconseguiriamperceberaexistênciadealgoinusitado, extravagante e inovador. Se esbarrassem nesse óbvio, seriamincapazesdenotá-lo.Mesmoquefosseumaoportunidadedeouro!
Mórbido insiste em que se adote o “olhar biruta”, aquele sem foco,desnorteadoe,quandoencontraumadireção,escolheafalta.Seráqueosdesejos não são carências disfarçadas? Mórbido é craque em acionar acriaturaquemoradentrodecadaumdenós.Omedode,porausênciadeumaprofissão,nãoserrespeitadonemprestigiado.Omedodeserpobreesairpelomundomendigandoajudas.Omedodotédioedegastarotempoemtarefasenfadonhas.Seomedoestánocomando,aacídiaécerta.
MasoVelhoTafulensinou-meo“olharapreciativo”,aquelequebuscaenxergarapartecheiadocopoaoinvésdavazia.Nãosetratadeignorarapartevazia,esimimpedirqueelanosretenha.Pormaisavassaladoraquesejaaescassezreinanteaoredor,sempreexistemfiosdeabundânciasqueajudamareconstruirahistória.
Fizamimmesmoperguntasquecolocassememxequeosmeusdesejos.Estouembuscadequaisresultados?Souguiadopeloquemefaltaoupelo
quemefarta?Passei a não negar os medos e emoções negativas que sentia quando
Mórbido invadiaaminhamente,masestavadispostoaexperimentarumnovo olhar. Seria possível, mesmo que o senso comum indicasse ocontrário?
9Oterceirodesígnio
Estava ansioso, mas, ao mesmo tempo, desafiado com o exercício depensarerepensaroquehaviadefinidoinicialmente.Comobomgêniodalâmpada, mestre Taful não deixava por menos. Tinha sempre um novodesígnioparaesculpirosmeusdesejose,enquantoisso,omeupropósitoestava sendo construído. Havia nesse percurso um misto de suspense emistério. Qual será o resultado final? Daquela vez, nem esperei que eleterminassedeprepararabebidaolorosaemsuacafeteiraitaliana.Fuilogoapresentandomeutrioreformulado:
1º Desejo: oferecer os meus talentos para conquistar uma profissão
promissora.2ºDesejo:aprendersobrefinançasenegóciosparasaberganhardinheiro.3ºDesejo:buscarnovosdesafiosquemepermitamdescobriratividadesbema
meugosto.–Hummm!–elemurmurou,comosetivessesentidoocheirodeuma
boa comida. – Um criador oferecendo, aprendendo e buscando as suasfartas!Bonsverbos!Boasintenções!Muitobem!
Animadoedispostoatiraralimpo,reafirmeicomênfase:–Euofereçoosmeus talentos,aprendocoisasnovas,buscodesafios–
salientei.–Eusouoprotagonistadestahistória.Tudooquequeroé serútil,hojeenofuturo.
–Hummm–voltouamurmuraroVelhoTaful,cofiandoobigode,agoracomumtomderesmungo,comoseacomidanãocheirassetãobem.
–Penseiquehaviaapreciado–hesitei.
–Estátudobem,masessasuaúltimafrasedenunciouumaintençãoqueprecisaserajustada.
–Qualfrase?–Essadequererserútilhojeenofuturo.–Imagineiquegostariadessaintençãomaisaltruísta...–Vocêestáarmandoumagaiolaparaficarpresodentrodela.–Gaiola?–Agaiolaéumaarmadilha.Aarmadilhadesefazerútil.–Nãoentendo...–Serútilpareceserumdesejolouvável,àprimeiravista.Oproblemaé
que você se transforma em um utensílio, semelhante aos demais queusamosnacozinha,nadespensaounaoficina.
–Desculpe-me,aindanãoconsigocompreender.–Sevocêquerserútil, logovaiseparecercomumgarfo,umacolher,
umafaca,ummartelo,umalicate,umachavedefenda.Asferramentassãoúteis, servem para fazer coisas específicas, mas depois são descartadas eaposentadas.
–Éassimmesmoqueascoisasfuncionam.– Tem sido, é certo, nas empresas que tratam as pessoas como um
recursoque, somado aosdemais, compõeum itemde custonobalanço,algoaserreduzidoaomáximo.
–Exatamentecomoobservonaquelaemquetrabalho.–Queméútiltemvalordeuso,quediminuicomotempoouàmedida
que surgemutensílios similares,porémmais avançados.Osutensílios separecem.Ésemprebomlembrar.
–Entendi.Sendoútil,torno-meigualaosoutros,deixodeserúnico.–Epassaater,emvezdevalordeuso,valordetroca.Quempensaser
útil concentra nisso a sua capacidade de sobreviver. É tudo o queconsegue.Quemescolhesobrevivernãoécapazdepensaremoutracoisa.
–Daíavelhalutapelasobrevivência,sobreaqualjáconversamos.– Sim, e quem é útil busca a manutenção e a conservação de sua
utilidade.
– Para continuar sendo útil, como uma máquina – acrescentei. – Porque,então,grandepartedaspessoasquerserútilesedeixaengaiolar?
–Ora,porquefazparasiaperguntaerrada.–Equaléaperguntaerrada?– “O que funciona?”, esta é a pergunta errada. O garfo funciona, a
colher funciona, a faca funciona assim como o martelo e o alicate – eleexemplificou. – Perguntas erradas conduzem a respostas erradas.Perguntascertaslevamarespostascertas.
– E qual é a pergunta certa? – eu questionei, sem conter a minhaansiedade.
Sempressa,oVelhoTafullevantou-separaservirocafé.Jáconheciaseuestratagema.Sempreque aminhapulsação aumentava,davaum jeitodeapaziguarosânimosinserindoumintervalo.Sabiaqueoestadodeespíritocontamuitoparaamelhorcompreensãoeaprendizado.
Empoucosminutos,eleserviucomonumritual.Depoisdadegustação,lenta e prazerosa, agradeceu à Ritinha, sua inseparável cafeteira italiana,porseuspréstimos.
–Issoéqueégratidão!–eucomentei,achandoesquisito.–Háanos,Ritinhameofereceesseprazerdiário,entãosoumuitograto
aela.Éminhacompanheiradereflexão,dúvidas,tristezasealegrias.–Puxa!Quantaconsideração!–continuei,comumapontadeironia.–Umacoisaprecisasercompreendida,Aladim–sabiaquequandome
tratava pelo codinome, logo vinha algo que ele queria que eu prestassemuitaatenção.–Umaempresa-objetovaitrataroempregadocomoobjeto,o cliente como objeto, o fornecedor como objeto, o investidor comoobjeto, a comunidade ao redor comoobjeto, a sociedade comoobjeto, oplaneta como objeto. Todos serão coisificados, inclusive o próprioempreendedordessenegócioobjeto.Ouseja,tambémelevaiserelacionarconsigocomofazcomtudoetodos.
“Omundocomoeleé!”,pensei,conformado.– Por outro lado, um empreendedor-sujeito vai empreender um
negócio-sujeito, que vai tratar como sujeitos o colaborador, o cliente, o
fornecedor, o investidor, todos, enfim. E isso inclui a comunidade aoredor,asociedade,oplaneta,ocosmo.
O Velho Taful falava com propriedade. Além de escritor e intelectualrespeitado, também era empresário e conhecia de perto as funções edisfunções de uma empresa. Tinha, no entanto, um olhar lateral, quesempremesurpreendia,sobreessarealidade.
–Aempresaé,nosdiasdehoje,olugarmaisimpactanteparapromoverodesenvolvimentohumanoenquantoseconstróiriqueza–elecontinuou.– É na empresa que temos o adulto com autonomia, capaz de fazerescolhasconscientes.
–Isso,quandoeledeixadesercriatura–acrescentei.– Sim, certamente. É a partir dessa comunidade de trabalho,
denominada empresa, que podemos mudar a comunidade maior,conhecida como sociedade, e outra, ainda mais ampla, a que damos onomedeHumanidade.
–Ecomoissopodeserfeito?–Deixandodeserútil,deixandodeserobjeto.–Equaléaalternativa?–perguntei,comacuriosidadeemalta.–Sercontributivo!–Ah,masserútilesercontributivonãoéapenasumjogodepalavras?– Nada disso! Quando quer ser útil, você olha para fora e procura a
porca ou o parafuso a ser apertado. Quando quer ser contributivo, vocêolhaparadentro eprocura em simesmooquepode seroferecido, seusdons e talentos, suas inteligências, você por inteiro, seus valores evirtudes.Oquefazdevocêoúnicosercapazdefazeroquefaz.
–Afartanolugardafalta!–concluí.– Sim, mas aqui estamos diante do terceiro desígnio: o sujeito e o
objeto.Vocêselivradoestigmadoobjeto,domundodascoisas,eadentrana vida dos sujeitos quando faz a pergunta certa. Não mais “o quefunciona?”,mas“oqueimporta?”
–Entãoessaé apergunta certa!– reafirmei, animadocomose tivessedescobertoumsegredo.
–Vocêvaidescobrirqueoqueimportaconstróioutrahistória:adeserantesdeter,poissersujeitoéoqueverdadeiramenteimporta.
Milquestionamentosmeinvadiram!Seráqueestavameformandoparaserobjeto?Seráqueestavabuscandoumacarreiradeutilitário?Seráque,depoisdenãoservirparamaisnada,eumesmoiriameencostaremalgumcantoechamarissodeaposentadoria?Comomesentiriaquandonãofossemaisútil?
–Serútilremeteàutilidade.Sercontributivoremeteàfecundidade.“Serfecundo!”,–pensei,entusiasmado.Puxa!Serfecundoavidatoda,é
issoqueeuquero!–Serútiléserincompleto.Sercontributivo,Aladim,éterconsciência
dequesomosseresinacabadosequeexistedentrodecadaumdenósumdevir,umviraser,umabusca.
Pausa.OVelhoTafulretomousualinhadepensamento,emtommanso,como
seestivessecontandoumsegredo.– Somos uma promessa de evolução, fecundos e, se bem cultivados,
vamosfazeraflorarriquezasinimagináveis.Senti-me incandescer, a começar pelo brilho que sentia cintilar nos
olhos.– O que verdadeiramente importa – continuou, ainda em tom
confessional–ésaberquenósnostransformamosnaquiloquecultivamos.Emsujeitoouemobjeto.
–Asetaeoalvonovamente–lembrei.Silêncio.–Vamosaotestedoterceirodesígnio?Osseusdesejosestãomaisparao
quefuncionaouparaoqueimporta?–Ouseja:meusdesejosmefazemmaisútiloucontributivo?Fazem-me
maissujeitoouobjeto?–eucomplementei.Enquantorefletia,oVelhoTafulveiocomoutrosdesafios.–Ah!Antesdequemeesqueça:vocêjáagradeceu,hoje,àspessoasque
oajudam, tantoàsque jáconhececomoàsqueaindanãoconhece?Eàs
coisasquefacilitamasuavida:abicicleta,acaneta,ocopo-d’água,amesadetrabalho?
Claro que não! Eu nem ao menos me dava conta da existência dessascoisastãocotidianas.OVelhoTafulestavaexercitandoaminhaatenção.
–Ao invésde transformarpessoas emobjetos, e fazemos issoquandosequerlembramosseusnomes,deveríamospensaremtransformarobjetosemsujeitos–elesugeriu,enquanto,comtodocuidadodevolviaRitinhaaoarmário.
OVelhoTafulapontouemdireçãoàteladoSãoFranciscotropicalizado:–Paraele, tudoerasujeito:oSol,aLua,o lobo,achuva.Chamavade
irmãos.IrmãoSol,IrmãLua,IrmãoLobo,IrmãChuva.Contemplei,emêxtase,aimagemeseuexuberantecolorido.–Vocêsetransformanaquiloquecultiva,emsujeitoouemobjeto–ele
repetiu,oferecendomaisumadesuaslições,válidasparaorestodeminhavida.
10Olharempático
Oterceirodesígniocausouforteimpactonãosomentesobreosmeustrêsdesejos,mas tambémemminharelaçãodiáriacomavida.Nãohaviamedadocontadaausênciadeatençãoegratidãoportudoeportodososqueme cercam. Nem tampouco dos relacionamentos fugazes com pessoas ecoisas.Exemplosexistiamaperderdevista.Alguns?Aindadesconheciaonome daquela senhora que me atendia, há anos, quase diariamente, nocaixadapadaria.Damesmaforma,nãosabiacomosechamavaoguardadanoite que ficava na guarita do prédio onde eu morava ou, mesmo, ovizinho,noapartamentoaolado.
Oterceirodesígniodeumuitopanoparaamangaeaindaprometiamais.O Velho Taful havia viajado novamente, então a Montevidéu, paraparticipardeumencontroculturallatino-americanoquereuniaescritores,pintores,filósofosecientistas.Deixou-meumacarta,quereliváriasvezes,discorrendosobreoterceirodesígnio.
Ilmo.Aladim
O terceiro desígnio, do sujeito e do objeto, é determinante em nosso percursorumoaopropósito.Então,gostariadealertá-losobrealgumasciladasaevitar.Edigoporexperiênciaprópria.Fácil,fácil,agentetrocaosfinspelosmeios.Ouosmeiospelosfins,oquedánamesma.
Éassim:vocêacreditanabondadeepensanafilantropiacomoummeio.Logoascoisasmudamdelugareabondadesetransformaemmeioparapromoverafilantropia.E fica faltandoum tiquinhopara se esquecerdabondade, tendoafilantropiacomofimeumaporçãodeburocraciaaoredor.Constateaorigemdetantas entidades filantrópicas, para resgatar quais eram as suas primeirasintenções,evejaagoraaqueestãoreduzidas.
Trocarosfinspelosmeioséumequívocobastantecomum.Aconteceomesmocomapolítica.Duvida?Políticaéaarteouaciênciadaorganização,direçãoeadministraçãodapólis,ouseja,literalmente,acidade,oestadoouanação.Ummeio,portanto,paraconstruirumasociedademaisjusta.Poisvejanoqueelasetransformou.Emumfimeemprofissãoparamuitoscorruptosedemagogos.
Existemosfinseosmeiosecadaumdeviaficaremseudevidolugar,comoocaloréconsequência,enãocausa,dofogo.Outroexemploéotrabalho.Deveriaserummeiodegerarriquezas.Paramuitos,tornou-seumfim.Feitodesangue,suorelágrimas.Aofinal,semnenhumariqueza.Apenasalida.Algunschegamaseviciarenãoconseguemviversemele.Trabalhoéummeiodegerarriquezasmateriais,emocionais,espirituais.Sobretudo,decrescerefazercrescer.
O dinheiro também é uma armadilha comum. Criado para ser meio,transformou-se em fim.E corre-seatrásdele como se fosseaúnica coisaa serfeitanavida.Inclusivegerouumanovaescravidão.Háosquetêmdinheiroeosquesãoodinheiro.
Entre as empresas, muitas esqueceram os seus fins, de gerar riquezas e decolocar-sea serviço, e se transformaramemmeiosburocráticosde contabilizarganhosecustoserecolherimpostos.Nadaalémdeumatristeplanilha.
Veja o atualmodelo econômico, que só se sustenta pormeio do crescimentoilimitadoemummundolimitado.
Então, para frisar, existem os meios e os fins.Mas de todas as distorções,nenhuma é maior do que aquela que transforma sujeitos em objetos. ValelembrarograndefilósofoImmanuelKant:“Afontedaintegridadeénuncafazerdooutroummeio”.
Pois“fazerdooutroummeio”éopecadomaiordahumanidade.Queéumfimemsi,tendoaeconomiacomomeio,enãoocontrário.
Considereessasreflexõesparareelaborarosseustrêsdesejos.Na volta, poderemos compartilhar bons momentos com o melhor mate
produzidonoUruguai.Doseu,VelhoTaful.
Em seu jeito de educar, ele não intervinha diretamente sobre meusdesejos, mas expunha os elementos para que eu mesmo tomasse umaposição.Fazia-mecriador,comolhosnafarta,emetratavacomosujeito.
As instigantesconversascomoVelhoTafulajudavamaampliaromeucampodevisão.Reconheço,agora,queosmeusproblemasoudesacertosdecorriamdoqueeunãoconseguiaver.Doquemeescapavae,porisso,ignorava.Agiaereagiasódiantedoqueconseguiaenxergar,ouseja,umespaçomuitorestritoqueoferecia,quandomuito,umavisãobemparcialdarealidade.
Pudeconstataressaparcialidadedepoisquecomeceiapraticaro“olharapreciativo”,aquelequeseprendemaisàsfartasdoqueàsfaltas.Eunãoprestavaatençãonemmedavacontadetantacoisa!
Apartirdoterceirodesígnio,oVelhoTafulmepropôsumnovodesafio:apráticado“olharempático”,ouseja,verapartirdoolhardooutro.
Compreenderessapropostanãoeratãodifícilcomopraticá-la,sairdesipara aceitar ou, no mínimo, experimentar, o olhar alheio. Alteridade,ensinavaoVelhoTaful,éacondiçãodoqueéoutro,doqueédistinto.Ésaber lidar como contraste e comasdiferenças.Fácil de falar, árduoderealizar,constatei.
O“olharempático”,assimcomoo“olharapreciativo”,éumaexcelenteestratégiaparaampliarocampodevisão,adotandoaperspectivadeoutrapessoa. Exige treino, pois facilmente resvalamos novamente para oegoísmo,umvíciobemarraigado.
QueriamostraraoVelhoTaful,quandoele retornassedeMontevidéu,os meus três desejos reformulados. E, enquanto isso, passei a treinar o“olharempático”emmeusrelacionamentos.
Essaeraaminhavontadeapoiadaemgenuínaforçadevontade.Éissooqueeuqueria...nãofossemasartimanhasdiabólicasdeMórbido,sempredisposto a interferir negativamente. A passagem do tempo, em seguida,mostrariamuitobemcomoeucaíaemsuasarmadilhas.
11Retornoaolar
Preparava-me para dormir, depois de uma árdua e tempestuosa semana,quandootelefonetocou,játardedanoite.EraoVelhoTaful.
–Aladim,oqueaconteceu?RetorneideMontevidéuháquaseummêsevocênemsedeuconta.Estátudobem?
– Desisti dos nossos encontros. Acho que não vamos chegar a lugaralgum.Talvezopropósitodavidasejanãoterpropósitonenhum.Émuitoesforçoparapouco resultado,muitaelaboraçãoparapouca realização.Ascontas para pagar não dão trégua. São concretas e inadiáveis, diferentedessaabstraçãodedesejosepropósitos.E,lánaempresa,ascobrançasnãocessam.Enfim,issoaquiéumaselva!E,naselva,oquecontaé“salve-sequempuder!”.
Enquanto eu desfiava o rosário, o Velho Taful permaneceu mudo.Resolvifazerumapausa.Depoisdeumligeirosilêncio,elepropôs:
– Que tal uma noite de sono e uma caminhada pelo parque amanhãcedo?Umaconversaaoarlivrevailhefazerbem!
Hesitei,resmungando,maseleinsistiueresolvitopar,acontragosto.
Cheguei com atraso ao nosso encontro. Havia perdido a hora, pois ocansaço e a preguiça me deixavam letárgico. O Velho Taful faziaalongamento, apoiado em uma árvore. Sorriu, mas eu não correspondi.Estavairritadoesemamenordisposiçãodecaminhar.Preferiaterficadona cama.Nemmesmoo afetuoso abraço como qual eleme recebeu foicapazdemeanimar.Mesmoassim,arrastei-metentandoseguirospassosvigorososdele,que,apesardaidade,esbanjavaenergia.
Caminhamos por alguns minutos em boa cadência, quando eleinterrompeuosilêncio.
–Tomoucaféemcasa?
–Sim,paraacordar.Estavacommuitosono.– Ah! Mas não deve ser tão bom como o da Rita – riu-se, fazendo
referênciaàsuacafeteiraitaliana.–É–respondi,secamente,semachargraça.– E você se lembrou de desligar o fogão? É perigoso deixar bules e
chaleirasàmercêdachama,quandosaímosdecasa.–Claroquedesliguei!– Tem certeza? Muitas vezes fazemos as coisas no piloto automático,
nemnosdamosconta.–Achoqueapagueiofogo.–Vocênãotemcerteza?–Agora estou emdúvida, estavamuito sonado e saí compressa, bem
atrasado.– A pressa nos deixa desatentos, inclinados a fazer coisas sem
consciência.–MeuDeus!Agorajáestouachandoquedeixeiofogãoligado!–elevei
avoz,apavorado,ameaçandodarmeia-volta.–Calma!Calma!Provavelmentedeve terapagadoo fogo,por forçado
hábito.Masoquevocêestásentindonestemomento?–Medo!–respondideimediato,agoratotalmentedesperto.– E isso só porque eu cogitei uma probabilidade, pois nada está
acontecendodeconcreto.–É,esperoquenão–retruquei,começandoaentenderasintençõesdo
VelhoTaful.–Avalie,noentanto,oseuefeito.Diantedessaprobabilidade,vocênão
estámaisaqui.Nãosenteosseuspassoseperdeuosentidodacaminhada.–Éverdade–dei-meconta.–Nãoconseguemaisprestaratençãoaoqueacontecenoparquenemé
capazderesolveroproblemaqueeuarranjeiparavocê.–Éverdade–repeti,reconhecendoasemoçõesquevivenciava,naquele
instante.
–Commedo,suaatençãoperdeaforça.Estádivididaentreoaquieoláfora.
ÉoMórbido,pensei.Odanadomepegou,elenãodesiste!–Omedo faz parte da história. Medo externo e interno.Da crise, da
competiçãopredatória, da escassez.Da inadequação, do ridículo, denãodarcerto,dedarcerto.
–Elesemprevaiestarpresente?–Vocêvaisentirmedo.Éinevitável.Fazpartedojogo.Terá,então,de
distraí-lo,comalgoquesejamaispoderosodoqueele.–Eoqueémaispoderosodoqueesseestragaprazeres?–Odesejo.–Maseos trêsque jádeclarei?Nãosão suficientesparadarcontado
medo?– Às vezes, podem ser inspirados pelo próprio medo. Isso acontece
quandoodesejoédecriatura,nãodecriador,ouvoltadoparaafaltaenãoparaafarta,ou,ainda,umdesejodeobjeto,nãodesujeito.
Sim,eujáhaviareconhecidoesseviésemmeusdesejos.–Odesejoéasuaambição,asuaintenção,éondeestáasualibido.Éo
sonharacordado.–Casocontrário–euconcluí–,éumdesejoquenãoeliminaomedo.–Issomesmo.Estáaíoseudesafio,Aladim:tornarodesejomaisforte
doqueomedo.–Ecomosaber?–Vamosfazerumteste:vocêseaventurariaasubiremumaescadasem
saberaondeelavaidar?Silêncio.Aperguntaeraprovocadora.Fuisincero,aoretrucar:–Nãoestousegurodequeaminharespostasejasim.–Osdesígniosestãoajudandovocêatornarodesejomaisfortedoqueo
medo.Masnadadepararnomeiodocaminho!Sãocincoestações,lembra-se?Atéagora,sópassouporduas,eaindatemdeajustarasuarotacomoterceirodesígnio.Precisacontinuarsubindoaescada.
Havíamoscontornadoalgumasvezesolagodoparqueondefazíamosacaminhada, sem que eu notasse. Bem desperto, agora estava atento àconversa.
–Conheci,emMontevidéu,umescritoruruguaiodeboaprosa.–Queméele?–Chama-seEduardoGaleano.Umautorextraordinário!–Edaí?–Pois elemecontouumahistóriaque sepassouemnossopaís,mais
precisamenteno estadodoCeará.No tempodosquenasciammarcadosparamorrer.
“Seráqueissomudou?”,pensei,ensimesmado.– Quando os donos do lugar resolveram acabar com o facínora mais
perigoso que havia por lá, deram o serviço para um cangaceiro queacumulavaumbomcurrículodevítimas fatais.Mastrataramdeadvertir:essevaisermuitodifícil,porqueébemguardadoporseusfiéiscapangas.Eaí, para se certificar de que não haveria desistência, perguntaram aomatador: “Você continua disposto, tem coragem para isso?”. Ao que ojusticeiro prontamente respondeu: “Coragem, não sei... tenho é ocostume”.
Foiaminhaprimeirarisadadodia.–É isso,Aladim!Tratede rirdomedoedeacostumar--seamantero
desejosempreacimadele,paraqueelesaibaondeéoseulugar.Aatitudevemantes,acoragemvemdepois.
Aquela manhã foi como um lampejo de ânimo. Às vezes, o que a genteprecisaédealguémquenosdiga“nãováporaí,váporaqui”.Alguémqueesteja ligadonagente.Alguémquesaibadosnossosmedos,dificuldades,anseiosedesejos.Masquetambémconheçanossasintençõesepotenciais.Alguémquenosajudeacolocarordemnessecaosqueéomundo.Alguémque nos auxilie a compreender aquilo que, sozinhos, não conseguimoscaptar.Alguémquenosincentiveaevoluir.
Eu estava, justamente, em busca de uma direção, de um sentido.Necessitavadeumapresençaquealimentasseaminhaesperança.
Sem um modelo e uma referência, sentia-me como órfão largado nomundo.Queria auxíliopara evoluir e umapessoadisposta a estar ameulado,nessatrajetória.
Precisava de ajuda para crescer. Era muito difícil fazê-lo por contaprópria.Careciadealguémquemeoferecessesignificadoe inspiração.Eque,aomesmotempo,meaceitassedojeitoqueeuera,compreendendomeumomento.Mais:quesedispusesseacontribuircomomeuprogresso.Equemeajudasseaterforçaeserenidade.Umguiaparaosmeuspassosecapazdemeconduzircomsabedoria,demepreservarcomequilíbrioedemeconfortarcomasuaexperiência.
Alguém cujas palavras penetrassem fundo em meu coração. Alguém,enfim,quemelivrassedopesodoabandono,recebesse-meemsuacasaemeauxiliasseaterumaidentidade.
Estavadesejosodoretornoaolar.Gratidão,VelhoTaful!Eraoquemeucoraçãodiziabaixinho.
12Deatalhosecaminhos
RetomeiasconversasnoateliêdoVelhoTafulcomoquemvoltaparacasa.Lá estava ele pitando um chimarrão com a erva que havia trazido doUruguai. Na vitrola, o som de uma milonga gaúcha, música tradicionaldaquelesrincões.ApreciavaastelasdeVilaróquehaviatrazidodelá.
–Bomdia,Aladim!– Bom dia, trouxe os meus três desejos revistos de acordo com o
terceirodesígnio.– Antes, escute essa milonga e dê uma provada no mate – disse,
tranquilo,passando-meacuia.Namanhãfriadeinverno,amúsicaeaervadeboaqualidadeformavam
umaduplaperfeita.–Milonga,paramim,éoutracoisa.Éalgoligadoàmanhaseartimanhas.– Ah! É verdade! – ele riu. – O termo milongueiro define o sujeito
malicioso,manhoso.–Tácheiodemilongueirosporaí–comentei,enquantosorviaomate.– Quando você se fragmenta ou vive uma identidade emprestada, os
seusdesejossediluemeperdemaforça.Afinal,quemévocê?Queméo“você”quedeseja?Dequemsãoosseusdesejos?
–Seeusousujeito,sãodesejosdoeu-sujeito.Sesouobjeto,sãodesejosdoeu-objeto–complementei,referindo-meaoterceirodesígnio.
–Esesãodesejosdevocê-sujeito,provavelmentesãomaispróximosdesua essência. Se são desejos de você-objeto, provavelmente são maispróximosdesuaidentidade.
–Ecomosaber?–Osdesígniosajudammuitovocêadiscernir.Aterceiraestação,onde
paramos,édeterminantedabifurcaçãoentreaessênciaeaidentidade.–VelhoTaful,podedeixarmaisclaro,porfavor?
–Identidadetemavercomosseuspapéissociais.Umaprofissãolhedáumaidentidade,maspodenãoternadaavercomasuaessência.Serpaioumãeéumpapel social,mas talveznãoserefiraa suaessência.Padre,soldado,militar,estudante,empresário,idoso,deficiente,líderexpressampapéis, funções, condições. Fazem parte da identidade, nãonecessariamentedaessência.
–Édifícilnãoterumaidentidade.– Sim; fácil, não é mesmo! Os modelos sociais e profissionais se
caracterizampor inúmeras identidades.Masestáaímaisumdesafio:nãodeixar que elas encubram a nossa essência. Ser quem verdadeiramentesomoséoquevainoslibertardastantasgaiolasemquenosprendemos.
–Querdizerqueprecisoreencontraraminhaessência?–Esseéoretornoaolar.Serquemvocêverdadeiramenteé.OVelhoTafulencheunovamenteacuiacomaáguaquentedachaleira.–Nossaidentidadenosdesviadocaminho.Prefereoatalhoaocaminho.
Oatalhopodenosoferecer,rapidamente,sentimentosdevitóriaeorgulhopor conquistas. Tudo isso, porém, é mera ilusão e, como tal, embota avisãoapontodenempercebermosqueoatalhonãoéocaminho.
–Oproblemaépersistirnoatalho–eucomentei.–Principalmentequandoelenosafasta,cadavezmais,docaminho.Até
perdê-lodevista.Équandopassamosaacreditarqueoatalhoéocaminho.Enosperdemosnessatrilhaequivocada,semchancederetorno.
–Euvousaberdiferenciaroatalhodocaminho?–Existemalgumaspistas.Ocaminhonãocarecedeestímulosexternos
como aplausos, elogios, troféus, apreciações. Condecorações são tãosedutorasquantoefêmeras.Aocontráriodoatalho,ocaminhoéfeitocomcoerência e firmeza de caráter. É orientado pela consciência, aquela quetudovêetudosabe.
–Coerência!–repetiemvozalta,semquemedesseconta.–Sim,coerência.Trilhadocomcoerência,o caminhovai levá-lo à sua
essência,ondemoramosseusdesejosmaisíntimoselegítimos.–Masissopodelevarmuitotempo.
–Odevido tempo,que temumgostoespecial.Edeve servivido sempressa.
–Voltandoaoassunto,Aladim,mostre-meosseustrêsdesejos,depois
doterceirodesígnio.Semtitubear,declineiumporum:1ºDesejo:viveraminhavocação.2ºDesejo:serricodeverdade.3ºDesejo:aprenderagostardoqueprecisaserfeito.– Puxa! – ele exclamou, novamente cofiando o bigode. – Parece que
estamos diante de uma boa evolução! Para me certificar, fale-me sobreeles.
–Viveraminhavocação!Compreendiqueavocaçãoémaisimportantedoqueaformaçãoeaescolhadaprofissão.Estoucerto?
–Sim!Aprofissão é algo foradevocê, instituídoemalgummomentohistórico e que muitos outros podem exercer. Já a vocação é só sua, demaisninguém,evocêpodeoferecê-laemváriasatividadesesituações.
–Ouseja,aminhavocaçãoéúnicaeinsubstituível.– Tem gente que dá muito valor ao currículo. O que já fez, estudou,
vivenciou etc. Os empregos que teve, as funções exercidas, os cursos etreinamentos dos quais participou, os títulos e condecoraçõesconquistados.
– É o que leva em consideração o departamento de recrutamento eseleção,naempresaemquetrabalho.
– Currículo é passado, apenas memória. Pode funcionar como lastroparadesafios futuros,mas semnenhumagarantiadequedê certo,outravez.Avelocidadedasmudançasétãograndequeasvivênciasdeantessetransformamemefemérides.
–Efemérides!Faziatempoquenãousávamosessapalavra.
–Nãoqueo currículo seja totalmente inútil – ele continuou, semdarbola para o meu comentário –, mas nem de longe supera a potência davocação. A sua vocação é mais importante e superior ao currículo, emforça.Podeser,até,quenemsejaprecisousaroquesepassou,massimalgonovo,quevocêsóvaidescobrirquandoviveroseupropósito.
– Quer dizer que o futuro depende menos do currículo e mais davocaçãoedopropósito.
–Semdúvida!– Então, a identidade anseia por uma profissão e um currículo, mas a
essênciaofereceavocação?–Certamente,meucaroAladim.Vocêcompreendeumuitobem!–Poderíamosdizertambém–comentei,dandomostradeserumbom
aprendiz – que eu sou sujeito da minha vocação. A partir dela, dareicontribuiçõesúnicas.Sedependerdeminhaprofissão,podereiserapenasútil,comotantos.
–Sim,existeesserisco.Masvocêpodeterumaprofissãoemquevivaalegremente a sua vocação. Por outro lado, pode escolher uma profissãoem que sua vocação não se expresse parcialmente ou mesmo porcompleto.Todasasprofissõespodemsertransformadasemvocações,masnemtodavocaçãopodesertransformadaemprofissão.
–Entãoestounocaminhocerto.Melhoréater-seàvocação.–Sim,eopróximodesígniovai lhe trazercomplementos.Fale-mede
seusegundodesejo–elequissaber.– Ser rico de verdade! A palavra riqueza costuma remeter a dinheiro.
Esseeraomeudesejoanterior.Noteiqueestavamecolocandomaiscomoumobjetoquetrocaasuautilidadepordinheiro.Comeceiamesentirumobjetodetransação.
– E aí? – questionou o Velho Taful com o olhar vivaz e os sentidosaguçados,semprecofiandoobigode.
–Aí queo terceirodesígnio colocou-menopontode vista do sujeito.Comosujeito,entendiquea riquezadequenecessitoémaisampla,não
apenas material. Quero também uma riqueza que seja, além de corpo,tambémdementeealma.
–Ouseja,uma riqueza intelectual,moral, espiritual...É issoquevocêconsideraserricodeverdade?
–Exatamente.Éissomesmo,alémdeganhardinheiro–sorri.–Eoterceirodesejo?– Aprender a gostar do que precisa ser feito! É que se eu ficar
procurando exclusivamente o que eu gostaria de fazer, posso deixar delado o que precisa ser feito. Então, melhor é aprender a gostar do queprecisaserfeito.
– Issoé coisade sujeito... edequemquer contribuir... – completouoVelhoTaful,orgulhosodasminhasreflexões.
–Éissomesmo.–Muitobem,Aladim!Umbeloavanço.Achoquepodemosseguirpara
oquartodesígnio.–Estoucuriosoparaconhecê-lo.–Entãovamos,sempressaesematalhos,seguindoocaminhoeassuas
estações.
13Omelhorlíderdetodosostempos
Curioso, eu aguardava o quarto desígnio. No meio tempo, uma belanotícia:fuipromovidoaumcargodeliderança.Eu,umlíder!Telefoneideimediato ao Velho Taful, comunicando a boa nova. Dias depois, ele meenviouumabrevemissiva, comocostumava chamar suas cartas, emquecomentavaomeunovopapel.Diziaassim:
Ilmo.AladimChefe, principal, maioral, capitão, cabeça, caput, capo, mestre, patriarca,
prócer, comandante, dirigente, coordenador, orientador, guia, mandante,gerente, diretor, presidente, rei, imperador, cacique, caudilho, mandachuva,morubixaba,tuxaua,czar,sultão,soberano,governadoretc.Nomes,apelidosealcunhasnãofaltamparaidentificarquemmandaouexerceinfluência.
AolongodaHistória,encontramosbonsemausmonarcas,bonsemauschefesdeestado,bonsemausgestores.Oquesemprediferenciouumbomlíderdeummaulíderfoioexercíciodaliderança,nãoadenominação.
Nasempresas,aciênciadaadministraçãosempretevegrandeinfluênciasobreaconcepçãodoperfilidealdelídereempresta-lhe,agora,umanovaalcunha:oadministrador.
Mesmoque se queiradarumabase científica à funçãodo administrador, oque verdadeiramente importa na prática da liderança vem das mais remotaseras.Dos temposemqueo líderse sentavaaoredordeumafogueira juntodeseuslideradose,nesseambienteaquecidoeacolhedor,todosconversavamsobreassuasmazelasedesafios.
Jánaquela época, eaindahoje,omelhor líder équem tomaa iniciativadeacenderafogueira,comoumclaroconviteaqueosdemaissesentem,emcírculo.
Afogueira,hoje,recebeoutronome:propósito.Olíderofereceumpropósitoparaqueoslideradostambémacendamafogueiradentrodesi.
Obomlíder–sejadequetempofor–éaquelequesabeincandescerobreudavida de seus liderados. Mantém o coração da equipe aquecido. No passadoremoto, o calor era físico,diantedo friobrutalnoambiente edasameaçasdaselva.Hoje,éocalorqueencorajadiantedofriopsicológicoedanovaselva,otenebrosomundonaentropia.
Obomlíderdetodosostemposéaquelequedeixaoacampamentopreparadoparaquemvirádepoisdele.Emboratenhahavidotantasguerrasedisputas,osmelhoreslíderesnãoforamosguerreirossanguinários,massimosmovidosporcolaboração, altruísmo e solidariedade. Esses despertam em seus liderados odesejodeservirededarsentidoàvida.
Finalmente,omelhor líderde todosos tempos éaqueleque sempre sabequenãoéasuavisãooquemaisimporta,masavisãodetodos.Sóosonhoquesesonhajuntosetransformaemrealidade,sempreaoredordeumafogueirapararepresentarachamaqueardeemcadaum.
Doseu,VelhoTaful
Essa foiamelhoraulasobre liderançaquetive,considerandotudooquehaviasidotratadosobreotemanauniversidade.Umaliçãoquejamaismeesqueci!
14Do“aqui”edo“acolá”
Estava ávido para conhecer o quarto desígnio, mas compreendi que denadaadiantavaatentativadeapressarorio.Eletemoseuprópriocursoeritmo.
Naquelefinaldetarde,chegueiaoateliêdoVelhoTafulantesdele,queestavaemsuaeditoraresolvendoquestõessobreestratégiasparaadifusãodaleitura.
Emmeioàprofusãodelivrosdispostosnaestante,pegueiumdeautoriadele. Tratava de cosmografia, uma de suas especialidades. Ao folheá-lo,umafotografiacaiuaochão.LáestavaoVelhoTaful,aindacomtodasuacabeleira, e, além do bigode, usava um bem elaborado cavanhaque. Umhomem vistoso ao lado de uma linda mulher. Ela, olhos claros, cabeloChanel, lábios realçados por um franco sorriso. Formavam um paradmirável.
OVelhoTafulnuncahaviamefaladodesuamulher.Jamaisdisseranadasobre a sua vida conjugal. Como em um acordo tácito, eu também nãotocava no assunto. Assim, mesmo sem querer, eu me senti invasivo aoencontrar aquela foto. Guardei-a e recoloquei o livro na estante,exatamente onde estava antes, quando ouvi passos. E tratei de frear aminhacuriosidade.
–Boatarde,Aladim.–Boatarde,gêniodalâmpada.–Umpaísdepoucosleitores,esseéonossoBrasil.Masnãomecanso
de insistirna instituiçãodeumclubeemqueosmembros tenhamgostopelaleituracomotraçoemcomum.
–Porfalarnisso,conseguiretornaràsminhas!Adivinhequemeuestoulendo?
RespondiantesqueoVelhoTafuldesseoseulance.
–MárioQuintana!– Arranjou tempo, é? E o que fez para conseguir tal façanha? – ele
indagou,provocando.–Deiadevidaimportânciaàleitura.Lancei,paramimmesmo,odesafio
de aprender alguma coisa ao fimde cada leitura, demaneira a ampliar aminhaconsciência.Algoalémdameradistraçãooupuroentretenimento.Eissomemotivou.
– Note o que fez: além de considerar a leitura uma prioridade aconquistarespaçonaagenda,concedeuaelaumsignificado!
–Achoquecomeceiatrataro livrocomosujeito,nãoobjeto,umbommestreecompanheiroparaashorassolitárias–completei.
– E com isso você não apenas arranjou tempo, como o fez render.Suspeitoqueassensaçõeseossentimentosqueexperimentou,enquantopermaneciaaliconcentrado,mesmoquedurantepoucashoras,acabaramseestendendoparaodiainteiro,asemana...equiçáseexpandamportodaasuavida.
“Quiçá? De onde, afinal, o Velho Taful garimpa essas palavrasestranhas?Seráqueasinventa?”,pensei.
–Quandosetemumpropósito,agentearranjatempoefazcomqueeletratederender!–elecomentou.
–Eissovaletambémparaopropósitodevidaquevenhobuscando?–Semdúvida.A faltade tempoestárelacionadaaodespropósitoeaos
inúmerosfatoresquedisputamedispersamaatenção–elecompletou.–Aliás,distraçãoedispersãojamaisfaltam...–admiti,semrodeios.– Aonde está a nossa atenção é determinante para uma vida mais ou
menos fecunda. Um propósito tem o poder de canalizar a atenção,garantindo que as nossas experiências não sejam tão efêmeras esuperficiais,masofereçamalgumtipodeaprendizadoesignificado.
Enquantoseacomodavaemsuavelhacadeiradetrabalho,oVelhoTafulvoltouàcarga:
–Eaí,oquevocêdescobriucomaleiturademeuamigoMário?
–“Umbompoemaéaquelequenosdáaimpressãodequeestálendoagente...enãoagenteaele!”–euretruquei,comumacitaçãodopróprioQuintana.
– Supimpa! Um bom poema e um bom livro, o sábio Quintana estácerto!–frisouoVelhoTaful.Umafloresta,porexemplo,podeserdescritapor seus hectares, quantidade de árvores, espécies e víveres. Mas,também, por seus mistérios, encantos, clareiras, breus e réstias de luz,lonjurasefunduras.Coisasdoaquiecoisasdoacolá.
–Gosteidisso,aquieacolá!– No aqui, os sentimentos ficam de lado, e só há lugar para o que é
sólidoeconcretooulíquidoecerto.Noacolá,pensamentosesentimentoscriamumahistóriaquecontinuaemnossaimaginação.
–Masháquemgostedascoisasbemdiretas,semdivagações.Apalavracerta,dojeitocerto,nahoracerta.Tudopretonobranco–ressalvei.
–Enãohánadadeerradonisso–continuouoVelhoTaful.Àsvezes,tudo de que precisamos é um bom entendimento. Para isso servem osmanuaiseasbulas.Masaspalavrasseabrigamemoutroslugares,alémdosmanuaisedasbulas,dosensaiosedos tratados.Apoesia,deque trataosábioQuintana,porexemplo,éumdeles.
–Oentendimentoestáno“aqui”,a imaginaçãoestáno“acolá”,époraí?–arrisquei,testandominhacompreensão.
– No acolá, os significados se escondem por trás de metáforas, desubentendidos,desímbolos.Aspalavrasnemsemprequeremdizeroqueasuaetimologiapropõe.
–Talvezporissomesmoapoesiasejatãopoucoapreciada,elivrosdessanaturezanuncaseencontramemlistasdebestsellers–comentei.
–Poisé.Apoesiapriorizaabeleza.Umpoçode inutilidade,portanto,para quem prefere manuais e bulas. É uma pena restringir-se apenas àsutilidades.
–Querdizerqueapoesiaé importante,masnãofunciona!–brinquei,fazendoalusãoaoterceirodesígnio.
–Éissomesmo.No“acolá”vocêvaiperceberqueaspalavrastêmsom.Algumas são barulhentas, como as dos noticiários, outras guardamsilêncios preciosos. E, no silêncio, elas ganham vida. Uma vida que estámuitoalémdossignificadosmeramenteetimológicos.Écomosevoassemmaisaltoe,dasalturas,nosemprestassemseusolhosparaquepudéssemosveroquenãoconseguiríamosdaqui,confinadosaochão.
–Nuncahaviamedadocontadequeaspalavrastêmsom–eurevelei,sinceramente.
–Somemovimento–oVelhoTafulcontinuou.–Existempalavrasquenosajudamasairdasuperfície,dolugarcomumenoslevamparaoutrosmundos. Talvez já tivéssemos visitado esses espaços, mas sem noslembrarmosdeles,atéqueaspalavrasdessemasenha.Moramemnossoinconscienteeelasconseguemtrazê-losàsuperfícieounoslevaratéondeseencontram.
–Qualarelaçãodissotudocomopropósito?–euquissaber.–Umpropósitosomenteno“aqui”nãovaidarcontadorecado.Quem
deseja visibilidade, regularidade e estabilidade total vai conseguir muitopoucodoseupropósito.Parasercompleto,umpropósitoprecisaavançarparao“acolá”.
– O “acolá” parece ser muito abstrato... e misterioso – arrisquei,mergulhadoemreflexões.
–Tãomisteriosoquantocavalgarpeloscéusmontandonumraiodeluz–oVelhoTaful tratoude ilustraraindamaisomistério.–Vai fazercomqueaspalavrasabramportasdesconhecidas.
–Comosefosseabracadabra–brinquei.–Éissomesmo–eleconcordou,paraomeuespanto.–Essasportasvão
noslevarparaoutrasdimensões.Umsaltoquânticodeconsciência.OVelhoTaful estava enigmáticonaquela tarde.Do “acolá” ao “aqui”.
Semdúvida,preparava-meparamergulharnoquartodesígnio.
15Oquartodesígnio
–Lembra-sedahistóriadoJonas?–Aqueledabaleia?Sim!Elenãoqueria transformaro seudestinoem
desígnio.–Exato!Elenegavaochamado.Foidesignadoparaumaobra:libertaro
povodeNínivedojugodaescuridão,perdidoqueestavanacorrupção.E,ao declinar do chamado, ele enfraqueceu a sua chama, a sua vocação deprofeta. A partir disso, a sua vida se transformou em um tormentoavassalador.Quantomaistentavafugir,maisochamadooperseguia.
–Foiaíqueabaleiaoengoliu–completei,commaisesse importantedetalhedahistória.
–Sim,aquestãofundamentalfoiafugadesimesmo,deseusdesígnios,dochamado,desuaessência.Mesmoqueelequisessedescobrirerealizaroseupropósitodevida,aindaassim,tinhamedodedescobriroqueestavaprocurando.
–Umtipodeautossabotagem–comentei,sintetizando.– Exato. Somente depois que Jonas obedeceu ao chamado, a baleia o
libertoudaqueletranseemqueelepermanecia,eocuspiuparafora.–Sortedele!– O chamado é a inspiração. Inspirare, do latim, ou seja, spirare é
respirar, in édentro.Então, inspirar é respirarparadentro–didático, oVelhoTafulregistravaaspalavrasnalousa.
Euapreciavamuitoaerudiçãodele,tãonatural.– Quando Jonas aceitou o chamado, a chama cresceu dentro dele.
Estava,então,prontoparaviveroseupropósito.–TudoissoestánolivrodeJonas,naBíblia?–questionei.– Não exatamente assim, é claro. Mas essa é a mensagem. Dentro de
cadaumdenóshabitaumachama.Essachamaéavocação,avozinterior
quedizoquedevemosfazereparaondetemosdeir.–Odifíciléconseguirouviressavoz–admiti.– Na cacofonia dos ruídos e agitos das mil distrações diárias, é muito
difícil. O máximo que você consegue é seguir a manada. É na calma dosilêncioqueserácapazdeouvirocrepitardessachama.Nosilênciodeseucoração,natravessiadeseudeserto,nocontatocomasuaessência.
–Acreditoqueaschancesaumentamquandoseésujeito–avaliei.–Certamente.Masessaésóumapartedahistória.–Edepois?– Depois de ouvir a sua chama, busque o som de fora, o chamado, a
convocação.Algoquepulsadentroseencontracomalgoquevibrafora.E,quandoissoacontece,oresultadoéalabareda!Umfogoatrevidoquenãovêlimiteseondeomedonãotemlugar.
Senti uma ardência interior. Aquilo fazia sentido para mim! Será queconseguiriasossegaroMórbido?
– Foi assim com Francisco de Assis, Einstein, Gandhi, Picasso, WaltDisney–exemplificouoVelhoTaful.
– Se bem entendi, precisa haver uma conexão entre a chama e ochamado,omundodedentrocomomundodefora.
– É isso mesmo! O que, às vezes, falta aos nossos desejos é umpouquinho a mais de serviço e entrega para que haja realcomprometimento. Compromisso é energia emocional direcionada paraalgooualguém.Essaéaforçaportrásdodesejo.Umbompropósitonãosobrevivesemquehajaum“paraquem”.
–Queméomeu“paraquem”?–Boapergunta, caroAladim.Vocêprecisa se responsabilizarporuma
partedouniversoqueninguémmaispode.–Porisso,avocaçãoantesdaprofissão.Muitostêmamesmaprofissão,
maspoucosvivemasuavocação.–Estásedandomuitobem,Aladim.Ébomselembrar,nãoobstante,de
quevocênãodecidesozinho.
“Nãoobstante”,cadaumaqueoVelhoTaful inventa,pensei,antesdeperguntardoquesetratava:
–Oqueéisso?–Esqueceotermo,Aladim.Importanteécompreenderquevocêvaiter
deselivrardoseupequeno“eu”,emqueacarênciapredomina,eabrir-separa os outros. Há um comandante superior a quem você deve prestarouvidos.Migrardo“aqui”parao“acolá”éajustaroalvoeaseta.
–Jáentendi!Umrefinamentocontínuo.–Eumajuste,tambémcontínuo,devivercomaconsciênciadequem
vocêéedoquevocêquer.Refletisobreosmeustrêsdesejos,repassando-osemvozalta.
1ºDesejo:viveraminhavocação.2ºDesejo:serricodeverdade.3ºDesejo:aprenderagostardoqueprecisaserfeito.–Semdúvida, elespassampelo terceirodesígnio,mas são reprovados
no quarto – esclareceu o Velho Taful. –Diferentemente dos desígniosanteriores, que exigem uma escolha entre dois extremos (criador ecriatura,fartaefalta,sujeitoeobjeto),oquartopropõeumaconexãoentreachamaeochamado.
Depoisdessasobservações,elemedeixoucomumatarefaparacasa,emrelaçãoaotestedoquartodesígnio:
Osseusdesejosconectamasuachamainternacomochamadoexterno?“Eu quero viver a minha vocação” dizia respeito à minha chama, mas
nãosereferiaaochamado.Seriadepoucavaliaseeunãoaoferecesseparaalgooualguém.
“Serricodeverdade”tambémsereportavaamim,comoanseiodemetransformar em um ser humano melhor e mais completo. Isso eranecessário,masnãosuficienteparafortaleceromeupropósito.
“Aprenderagostardoqueprecisaserfeito”melivravadaarmadilhademededicarapenasaosmeushobbies,masaindanãomecolocavaaserviço
dealgooualguém,alémdemimmesmo.“Serviço”e“entrega”eramaspalavrasqueabriamnovasportas.Elasme
fariamcavalgarpeloscéusmontadonumraiodeluz.Apartirdessasreflexões,decidiquetinhaderefazerosmeusdesejos.
16Olharconsciente
Como explicar que pessoas com escolaridade superior e supostamentemais inteligentes não sejam mais bem-sucedidas do que outras comsituaçõesehistóricomenosfavoráveis?
Como explicar que empresas atuando no mesmo mercado, comsemelhantes canais de distribuição, clientela e produtos obtenhamresultadosdiferentes?
O que as difere, de fato, é a representação que cada uma tem da“realidade”.FoioqueaprendicomoVelhoTaful.Omundomuda,quandomudam nossas percepções. Aliás, é isso que ele fez comigo a cadaencontro,quandoconseguia revelar aquiloque,paramim,encontrava-sevelado.
Voutentartraduzir,agora,comoutracompreensão,oqueentendidaslições: na maior parte do tempo, a gente age como se houvesse um“mundoreal”láfora.Masomundorealésempreinterpretadopornossaexperiência. Nesse sentido não vivemos no mundo real, mas em nossaversão particular dele. Ou seja, se não gostamos da vida que estamoslevando, é melhor assumir a responsabilidade sobre a representação quefazemosdela.Éaíqueentraemcenaoterceiroolhar:oolharconsciente.
Depois que exercitei os olhares apreciativo e empático, a novidadeestava relacionada ao olhar consciente. Para me aventurar nesse desafio,trateiderepassarcadaum,parafixá-losnamemória:
o“olharapreciativo”éumolharsobreooutro,buscandoomelhordesseoutro;o“olharempático”éumolhardooutro,natentativadecompreendê-loapartirdeseupróprioângulodevisão;o“olharconsciente”éumolharsobreotodo,maispanorâmicoe
sistêmico,contextual.
Essa revisita, mais o que aprendi nas conversas com o Velho Taful,levaram-me a várias reflexões instigantes. Pode ser útil concentrar aatenção em determinado ponto, quando ouvimos uma música ou umapalestra,porexemplo.Mastambémpodeserlimitador,quandoperdemosde vista o contexto.Oque ajudanessa hora é a intenção e a atenção.Aintençãodirigeaatençãoeestadeterminaaqualidadedaexperiência.
Searealidadeédistintadoquegostaríamos,entãonãoháoquefazeremrelaçãoaela,masmuitopodeserfeitoquantoàintençãoeàatenção.Emquecolocamosaatençãoecomqualintenção,vaifazertodaadiferençanarepresentaçãoquetemosdarealidade.
Éimportante,entendi, ficaratentoaosmovimentosdefluxoe influxo.Sempreque o influxo acontece, é porqueoMórbido entrou emcena.Éessencial identificá-lo quando isso acontece. Essa é uma das funções doolharconsciente,queabrangetantoomundointeriorcomooexterior.O“aqui”eo“acolá”.
Funciona assim: quando estou me relacionando com alguém, observocomo eu lido com tal pessoa, e ela, comigo. Analiso como é o nossorelacionamento,secooperativo,solidário,crítico,julgadorouomisso.Daípossoagircomconsciência,apartirdaseguintepergunta:“Oquepoderiaajudaressarelaçãoadarcerto?”.
Da mesma forma, calculei que poderia, no lugar da pessoa, colocar aempresa em que trabalhava ou a equipe que liderava. Também poderiafazeromesmoexercício,examinandoarelaçãocomomundo,anatureza,avida.Esseexercícioampliaria,concluí,aminharelaçãocomosoutrosecomotodo.
Nem foi preciso que o Velho Taful me dissesse o quanto o olharconsciente ajuda no quarto desígnio, na busca de uma conexão entre achamaeochamado.
17Avoltadomenino
A tela em que o menino olha suplicantemente para alguém que não vê,mascujamãoafagaasuacabeça,penduradaemumadasparedesdoateliêdoVelhoTaful,saltou-medamemórianaqueledia.Maisumavez,fezcomqueeuviajassenotempo.
Aos30 anos, omeninocrescido aindanão conheciao cernedaquestão,mashaviadecididofazeralgoarespeito.Estavadeterminadoahumanizarempresas.Eracomoseelequisessedevoltaaquelemundoemquevivera,quando todas as crianças eram filhasde todas as famílias e todosospaiseram pais de todas as crianças. Um mundo sem lugar para infânciaabandonada.
Ele pensava a empresa como uma comunidade. Inúmeras das queexistiam em seu país eram, afinal, menores do que sua cidadezinha dainfância.Então,porquenão?Asorganizaçõespoderiamsetransformaremcomunidades de trabalho. Isso implicaria um novo olhar, uma novaconsciênciaetambémnovascompetências.
Em uma organização, valem as leis de fora, na forma de normas eregulamentos.Masemumacomunidade,oquecontamesmosãoasleisdedentro.Aquelasquehabitamaconsciênciadecadapessoa.Aconsciênciacoletivarecebeonomede“conjuntodevaloresvirtuosos”.
Nasorganizações,poucoseconversaequandoissoaconteceésemprearespeito de coisas: os pedidos, as vendas, o faturamento, os boletos, aprodução, as máquinas, a mercadoria, os estoques, as devoluções, osistema, os relatórios, o orçamento, as metas. São coisas e mais coisas,sempre em primeiro lugar. Quase não existem espaços para expressarsentimentoseideias.Nacomunidade,háapreçoeamizade.Osdiálogosse
referemasentimentos,compartilhamentodetristezasealegrias,sonhoseangústias.
Nas organizações, o verbo imperativo é “cumpra-se!” e, por isso,existem os padrões e as normas. Na comunidade, o verbo propositivo é“crie”,oqueestimulacadaumabuscardentrodesiotalentocriativoquetodosujeitotem.
Nasorganizações,ospadrõesediretrizespoucomudam,vão juntandoteiasdearanha.Nacomunidadedetrabalho,existeaprendizadotodososdias. Ninguém, a não ser que rejeite mudar, retorna para casa com amesmaestaturacomaqualsaiupelamanhã.
As organizações são impulsionadas por metas, sempre superioresàquelas jáconquistadas,emumabatalha interminável.Écomofazerumaviagemolhandoohodômetrodocarroao invésdedesfrutardapaisagemaoredor.Nacomunidade,existeumpropósitoquedásignificadoàsmetasevaialém,tornando-asmaisdesafiadoras.
A organização estimula a competição, tanto externa como interna. Acompetição é considerada um estímulo ao crescimento e ao lucro. Acomunidadeincentivaacolaboração,aajudamútua,oespíritodeequipe,acocriaçãoeaconquistaconjunta.Acolaboraçãogaranteaperenidade.
Todoarranjodetrabalhoemumaorganizaçãoérepresentadopormeiodo organograma, em uma estrutura de trabalho hierárquica. Existe umdistanciamentonasrelações,provocadopelaslinhasdepodereautoridadeque categorizam as pessoas por meio de seus cargos. Por isso é muitocomuma ordemdo chefeprevalecer sobre a necessidadedo cliente.Nacomunidade,contammaisasrelaçõeshumanas,demaneiraqueoscargose funçõessãosecundários.Por isso, sãoarranjosde trabalhohorizontais,facilitandoasinterfacespessoais.
Aorganizaçãoconsideramuitooorganogramaea responsabilidadedocargo.Nacomunidade,oquecontaéoacordosinceroeocompromissoassumido. O apoio gratuito é mais importante do que as atribuições docargo.
Na organização, prevalece o controle. Na comunidade, o essencial,mesmo, é a confiança, como a lembrar os primórdios dos melhoresnegóciosfeitoscomoavaldofiodobigode.
O menino ainda presente no homem adulto reconhece que são doismundos diferentes, dois hábitats. Assim, de bate-pronto, reflexõesaprofundadas,perguntouasimesmo:emqualdelesgostariadeviver?Naorganização ou na comunidade de trabalho? Em um lugar regido porvalores oupornormas e procedimentos?As leis de dentro ou as leis defora? Uma comunidade impulsionada por um propósito ou umaorganizaçãoarrastadaporumameta?
Ainda que trabalhasse em uma organização, aquele menino desejava acomunidade. E contava com a solidariedade de muitos outros meninosparaosquaisnãohaviadúvidas:preferiamacomunidadedetrabalho,quepermitiamaelesseroqueverdadeiramenteeram.
Transformarorganizaçõesemcomunidades,noentanto,éumamissãoimpossíveldiantedaperguntaquebuscaoque funcionaao invésdoqueimporta. Elas resvalam fatalmente para a condição de objeto, com acoisificaçãodetudoetodos.
Viver uma comunidade é como “estar em casa”. Não se trataespecialmentedeumlugar,masdeumsentimento,umestadodeespírito.Quemanda compressa emedonão consegue reencontraro seu lar.Larprecisadetempo,atençãoededicação.
Éumdesejolatenteterumambienteemqueseencontraaaceitação,acompreensão, a sensação de pertencer, o afeto. Um ambiente deconfiança,emqueoacolhimentoéumacertezatamanhaqueagentepodeseentregar,porque jamais seráumserestranho,massimaguardadoporalguém; em que alegria e pesar são partilhados mutuamente; em que épossível ser como realmente se é; em que se pode crescer,inexoravelmente,poisfincou-seraizemsolobom.
Todaempresadeveriaseperguntaroquepodefazerparaqueaspessoassesintam em casa, ali. Será possível, se o ambiente for mais parecido comumacomunidadedoquecomumaorganização.
Umacomunidadesósetornaumlar,paranós,quandoestáimpregnadadeamorefazafloraralgoqueémaiordoqueelaeperfeitamentepossível,quandosequerqueassimseja!
O menino, mergulhado em reflexões, sentia saudade do lar, com suasfragrâncias, paladares, sons e músicas, festas e celebrações. Lar é umapalavraquedespertanostalgiaporumlugar,ondesepodesentiremcasa,serquemrealmenteseé,sentiracolhimentoeamor,estaremcontatocomassuasraízes.
Larlembrainfância,infâncialembralar.E,namedidaemqueomeninodentrodoadultosetornouumnômadedeportadodesuainfância,estavasemprequerendoretornaraolar,principalmentequandoolhavaaoredorenãosereconhecianomundoemquevivia.
Talvezportercomeçadoatrabalharmuitocedo,partedesuameninicecontinuoupulsandodentrodele.Eessacriançalivremantinhaodesejodevoar.
18Sorrateirocamaleão
Naqueletempo,oscomputadorescomseustecladosemonitoresjátinhamocupadooespaçodasmáquinasdedatilografia.Mesmoassim,eusempreencontravaoVelhoTafulescrevendodojeitoqueelegostava:àmão.Diziaqueaspalavrassaiamdocoração,percorriamobraço,passavampelapontada caneta e a tinta finalmente desenhava os caracteres, criando vida nafolhadepapel.
É o que ele afirmava em um artigo que seria publicado no Jornal deLetras,doRiodeJaneiro.Otextocomeçavaassim:“Aúnicacoisaemqueacredito sãoosmilagres.Do resto, tenhodúvidas”.Emsíntese, oVelhoTafuldefendiaaideia,comoutraspalavras,dequeascoisasdo“aqui”nãose resolvem sem o “acolá”. E é no “acolá” que milagres acontecem,materializando-se no “aqui”. Tudo isso esbanjando erudição, bem a seugostoedalinhaeditorialdoveículoaqueoescritosedestinava.
Naqueledia,deixeimeusdesejosdelado.Queria,emummomentodeintimidade,apresentaromeudesafetoaoVelhoTaful,parasaberoqueogêniodalâmpadateriaadizersobreoditocujo.
–VelhoTaful,gostariadelheapresentaralguémquemepersegue.–Nãoobstanteodesconfortoquepossa lheprovocar, tereiprazerem
conhecê-lo!Queméele?– Todas as vezes que saio daqui, ele me aguarda em alguma esquina.
Nãomedásossegonemtrégua.Comoumzumbido,ficanaminhaorelhadizendoquetudoissoébobagem.Queodestinojáestátraçado,avidaéumasinaetudojáestádeterminado.Ricoérico,pobreépobreenãoháoquefazer.Questãodesorteoudeazar.
OVelhoTafulouvia,atento.–Ele invalidaosmeusdesejos,osmeussonhos,abuscadepropósito.
No trabalho, ele me diz que não vale a pena dedicar-se tanto. No final,
quemganhamesmoéopatrão.Tomeiumgoled’água,antesdeprosseguir.–Elevivedizendoquenãoháoque fazer.São fomes,sedes,doenças,
guerras.Eledesacreditadetudo,dosgovernantes,dospaíses,doslíderes,dasinstituições,eatédeDeus.
–Masesseseudesafetonãotemnadaquesesalve?–Bem,nãoédetodoruim.Elequerqueeumedivirta,distraia-me,que
busque válvulas de escape para compensar as pressões da vida. Então,concordoefujonosentretenimentos.
–Edácerto?– O curioso é que, até por causa dele, eu me canso muito rápido de
tudo.Seumprogramadetvnãomeatrai,mudologodecanal.Seumlivronãomefisganasprimeiraspáginas,tratodedeixá-loesquecidonaestante.Seumfilmenãomeentretém,passologoparaoutro.
–Esseseudesafetoémesmodeamargar,hein?Comoelesechama?–Batizei-odeMórbido.– Um bom apelido para o medo. Lembra-se do livro As mil e uma
noites?–Sim,omesmoemqueestáahistóriadeAladimedogêniodalâmpada.–PoiscontaumaoutraquetambémsepassanoOrienteMédio–revela
oVelhoTaful,sintetizandooenredo.O criado de um mercador de Bagdá foi procurar seu senhor na maior
aflição.“Patrão”,disseofegante,algumacoisaesbarrouemmim,estamanhã,no
meiodamultidãodomercado”.“Eoqueera?”,perguntouopatrão,curioso.“Voltei-meeviqueeraaMorte.Fixei-anosolhoseelamelançouum
olhartãoestranhoeaterradorqueagoratemoporminhavida”.“Eoquevocêvaifazer?”“Por favor, patrão, empreste-me um cavalo para que eu possa fugir!
Comasuaajuda,aocairdanoitejáestareibemlonge,emSamarra.”
Omercadoreraumhomemgenerosoedeu-lheumdosseusmelhorescavalos.
Maistarde,passeandopelomercado,tambémavistouaMortenomeiodamultidão.Foiatéelaelheperguntou:
“Por que você assustou meu criado esta manhã, lançando sobre eleaqueleolharameaçador?”
“Eunãoo ameacei”, respondeu aMorte. “Foi umolhar de surpresa...Espantei-meaoencontrarestamanhã,emBagdá,umhomemcomquemtinhaumencontromarcadoànoite,emSamarra”.
Senti um frio na espinha, ao término do breve relato, seguido porconsideraçõesdoVelhoTaful.
– Substitua morte por medo, e a moral da história é a mesma: nãoadiantafugirdele.Subterfúgiosnãoajudam.Omáximoqueseconsegueéperder, aos poucos, a sensibilidade. Quando se dá conta, você setransformounaquelegalhoseco,inerte,quenemchoranemri.
–Masaindaqueoreconheça,vouprecisardecoragemparaenfrentá-lo.–Quandopensamosemcoragem,nossamenteépreenchidaporheróis
queconseguiramforçae resiliência,vitóriaseconquistas,aexemplodosgrandes da história, como Alexandre, da Macedônia, ou Frederico, daPrússia.
–Essescaraseramdestemidos–acrescentei.–Destemoréausênciademedo.Nãoeraesseocasodeles,paraquem
corageméantesumaatitudedoqueumavirtude.Nãoéumaquestãodetercoragemparaagir.Éagindoqueacoragemaparece.
– É ir para cima, enfrentar, isso é atitude! – tratei de concluir,rapidamente.
–Nãoébemassim–ressalvoumeuinterlocutor.–Vaidependerdeseuestado de espírito. Considere estado de espírito aquele momento ousituaçãodeenergiageradaporumadisposição“para”eumadecisão“de”.
–Explique,porfavor–solicitei,aindaconfuso.–Disposição“para”oquê?Paraalgooualguém.Essadisposiçãoécapaz
deproduziremnósumaforçaemocionalepsíquica.Decisão“de”quê?De
fazeralgocomelevadosignificadonavida:asuaouadeoutraspessoas.– O quarto desígnio! A chama e o chamado! – acrescentei,
entusiasmado.–Aocompreenderacoragemcomoumestadodeespírito,vocêvaise
reconhecercomocorajoso.Nadaquevocênãoseja,Aladim.Experimenteexaminar o seu passado, revisitar as suas histórias de coragem eatrevimento, e identifique quando e emquais circunstâncias esse estadodeespíritoestevepresente.Eoquanto a suavidamudoudecurso, semvoltaraseramesma.
Um filme passou em minha mente. De fato, quantas fronteiras eu jácruzei,tantascancelasultrapassadas.
–FaçaamizadecomoseuMórbido!–Seramigodomedo?–Vocêdeixouasuabicicletaláfora?–Você se refere àRosalina?Sim,deixei-a encostadanaparede, como
sempre.– Imaginequeela tivessedois lugares,umna frente,outro atrás,para
queambospudessempedalar.–Sim!–euconcordei,criandoacenaemminhamente.– Imagine que você vai subir um morro e o seu amigo imaginário o
acompanha, sentadono lugar atrás.Você sabemuito bemcomoédifícilenfrentar,pedalando,umarampaíngreme.
–Tôsuandosódepensar–admiti,praticamentevivenciandoasituação.– Ao chegar no topo do morro, você diz ao seu amigo imaginário:
“Pensei que não íamos conseguir”. E ele responde: “Se eu não tivesseusado os freios durante todo o percurso, a gente teria rolado ladeiraabaixo”.
Solteiumagargalhada.–Queamigodaonça!–Éelequeodesafiaairalémeasesuperar.Tambémoalertasobreos
perigosefazcomqueassumariscosconscientemente.Nãofosseele,paraonde iria a arrogância de pessoas que tudo querem e tudo podem? Sem
ele,quantasaçõessuicidasadotaríamos!Oseuamigoimaginárioocolocanajustamedida!
–Maseupoderianãoterconseguidoatingirotopodomorroouvencidoqualqueroutrodesafio.
–Issosóvaiacontecersevocêignorá-loouenfrentá-lo.Esedescuidardosdesígnios.
–Entendi.OsegredoéandardemãosdadascomoMórbido–ironizei.–Podemosafrouxarovínculocomele,masnãoconseguiremosdesfazer
a relação. Dá para estabelecer limites e até curar certos males, masMórbido persistirá. Ele renasce com outras faces e persiste com umaengenhosidadediabólica.Omedoéapenasumadelas.Vocêaindavaisabermaissobreessesorrateirocamaleão.
19Oquintodesígnio
Daquela vez, levei pãezinhos para o nosso café. O domingo estavaradiante, e eu também, ávido para apresentar os meus três desejosreformuladosaoVelhoTaful.
1º Desejo: contribuir, por meio de minha vocação, para a construção deempresasbem-sucedidas.
2ºDesejo:enriqueceromundoaomeuredor,embenefíciodetodos.3ºDesejo:transformarotrabalhoembênção.
Ao tomar conhecimento deles, o Velho Taful pareceu satisfeito, comodepreendideseuvelhohábitodecofiarobigode.
– Muito bem, Aladim. A chama e o chamado estão presentes. Entãopodemosevoluirparaoquintodesígnio.
–Finalmente!–euexclamei,animadoecuriosocomodesfecho.–Quase!–Quase?–Oquintodesígniotratadesuaentregadiantedeseusdesejos.Depois,
faremosotestefinal.– Então, seguimos na ordem. Quero saber da entrega – eu declarei,
entrecuriosoedispostoadesvendaromistério.OVelhoTafulcolocouaRitanofogoparaprepararocafé.Depoisdisso,
escreveuduaspalavrasnalousa.–Temo“ufa!”etemo“oba!”Duaspalavrascomapenastrêsletrinhas,
uma consoante e duas vogais. Parecem tão semelhantes, porquepertencemàmesmafamíliadas interjeições,massãomuitodiferentes.Etraduzem sentimentos distintos. São muito usadas nas situações em queatingimos algum tipo de resultado. Também, por isso, assemelham-se.Mascontamhistóriasdiferentes.
–Puxa!Duaspalavrinhassãocapazesdecontarhistóriastãodíspares?– Isso mesmo! Dizemos “ufa!” quando atingimos o resultado, mas o
sentimento é de alívio, no final do processo. Ou seja: ficamos livres,passamosarégua,entregamososerviço.
–Entendi.–Dizemos“oba!”quandoatingimosoresultado,masosentimentoéde
alegria,nofinaldoprocesso.Realizamosenossentimosrealizados.–Émuitosutiladiferença.–Sim,porémébastantesignificativaadiscrepânciaentreomundodo
trabalho “ufa!” e a vida no trabalho “oba!”. Em ambos despendemosenergia,esforçamo-nos,voltamosparacasacansados.Mastudoissoébemdivergentequandoaexclamaçãoé“oba!”aoinvésde“ufa!”.
–Compreendiqueotrabalhoéomesmo,masosentimentoéoutro–comentei.
– No “ufa!”, a satisfação é só pelo resultado, embora o processo nãotenhasidonadaprazeroso.
–Équandoagentenãovêahoradeselivrardele–concordo.–No“ufa!”,ashoraspodemsermaislongasqueavida.Sublinhandoapalavranalousa,oVelhoTafulcontinuou:–No “ufa!”, queremos o resultado, apesar do processo.Chegamos lá,
massemamenormotivaçãocasoprecisemoscomeçartudodenovo.–Tácheiode“ufa!”poraí.–Sim,principalmenteporqueseconfundepropósitocommetas.Busca-
seatingirváriasmetas,oquepodesignificarumalistadecoisasparafazer,como perder dez quilos, fazer exercícios físicos três vezes por semana,estudaringlêsumahorapordia, lerumlivropormês, iraoteatrocomanamorada nos finais de semana, almoçar com os pais aos domingos etc.Tudoissosemmuitopropósito.Evaiacabarem“ufa!”semarealizaçãodemetanenhuma.
–Masno“oba!”nãoexistemmetasdessetipo?–No“oba!”,asmetasexistem,porémcomodecorrênciadopropósito.
Gostamos quando atingimos o resultado pretendido, mas também nos
sentimosgratificadoscomoprocessoquenoslevouaterminarbem.Cadafaseémuitosaboreada.Naverdade,trabalhoédeleiteedeleiteétrabalho.No“oba!”,queremosoresultadoegostamosdotrajetoquenoslevouatélá.Aochegar,nossentimosnutridosemotivadosafazertudonovamente.
–Entendi!O“oba!”dependedeumpropósito.– Sim, não importa tanto se você perdeu um quilo, fez os seus
exercícios, estudou inglês, leu ou foi ao teatro com a namorada oualmoçou com seuspais nodomingo.Oque importa é: comque entregavocêfeztodasessascoisas?Comqueestadodepresença?
–Ouseja,comqualintenção?–completei.– Se isso já está relativamente compreendido, então vai a pergunta:
porquealgunstrabalhossão“ufa!”eoutrossão“oba!”?–oVelhoTafulmedesafiouaconcluir.
–Peloqueestouentendendo,arespostatemrelaçãocomosdesejoseopropósito,estoucerto?
–Sim,ecomofilhodiletodeambos:osignificado.Transfiraparaoseutrabalho uma série de indagações. A quem ele se destina? A quem vocêserve? Ele é, verdadeiramente, uma contribuição? Quem você está,realmente, ajudando? As respostas a essas questões têm o poder detransformar“ufas”em“obas”.Alíviosemalegrias.
–Afartaeafalta,osujeitoeoobjeto,achamaeochamado!–sintetizei.Ritajátinhafeitoasuaparte.Ocaféfumegavanacafeteira.–A transiçãodo “ufa!”para o “oba!” é capazdemudarumestadode
espírito.E,também,detrazerumnovosentidoparaanossavida,comoodetransformarotrabalhoemumabenção,conformeoseuterceirodesejo.
–Vou tentar resumir:pressionadospelos resultados,muitasvezesnosesquecemosdoprocesso–concluí.–Equandoarecompensaficarestritasomente aos resultados, o trabalho é “ufa!” – aquele que provoca umsentimentodealívio,nãodealegria.
– Muito bem, Aladim! A alegria, esta levíssima e agradável sensação,estáno conjunto “resultadomais processo”. Só assim, emvezdo “ufa!”surgeo“oba!”.Équandootrabalhosetransformaemobra.
Euestavagostandodaquelequintodesígnio,o“ufa!”eo“oba!”.– Perdemos de vista as dimensões do trabalho, quando ele suscita
apenas “ufa!”, concentrado só no resultado. Tomemos como exemplo otãoconhecido“pãonossodecadadia”–oVelhoTafulcontinuou,fazendoalusãoaosquehaviatrazidoparaonossocafédamanhã.–Opãotemasuaorigemnogrãodetrigo,plantado,colhido,debulhado.Emcadagrão,estáconcentrado o trabalho do semeador, do lavrador, do ceifador, domalhador, do carroceiro, do moleiro. E, se expandíssemos ainda mais avisãoparaalémdostempos,encontraríamosneleoempenhodoprimeiroserhumanoqueocultivouedetodososqueoaperfeiçoaram,aolongodahistória.
–Puxa!Nuncatinhapensadonisso!–admiti,since-ramente.
–Tantosoutrosatuaramaoredordogrãodetrigo,comoosoperadoresde máquinas agrícolas, capazes de arar, colher, debulhar, entre outrasetapasdoprocesso.Semfalarnosprofissionaisenvolvidoscomoprojetoeaproduçãodasprópriasmáquinas:engenheiros,ferramenteiros,operáriosda indústria, pintores, mecânicos, e outros profissionais, inclusive osresponsáveisporsualubrificaçãoeabastecimento.
– E acho que não para por aí – acrescentei, animado com osdesdobramentos.
–Aimaginaçãoviajarálongesepensarmossobreaorigemdecadapeçadessas máquinas e quem as moldou, forjou, fundiu e transportou emnavios, aviões, caminhões e outros meios. O processo continua commúltiplos desdobramentos até que o trigo seja transformado em farinha,para chegar às mãos daqueles que, no final da linha, vão entregar o pãoquentinhoaocliente.
– O resultado final é essa delícia que temos aqui para saborear naprimeirarefeiçãododia.–comemorei,alegremente.
–Oresultadofinaléavendaeodinheiroemcaixa,masénaobraqueencontramos uma humanidade inteira no mistério da colaboração – eleesclareceu.
Ocaféestavaespecialnaquelamanhã.Bebemos,entreconversasfiadaserisos,comobonsamigos.
–Oseuprimeirodesejoé“contribuir,pormeiodesuavocação,paraaconstruçãodeempresasbem-sucedidas”.Negóciossãofeitosdeofertasedemandas.Asofertassãomuitovariadas,entrematérias-primas,insumos,produtos, serviços. Ao redor delas existe uma sutil aura de energiahumana.
–Coisasdo“acolá”!–comentei.– Sim, e tal energia pode estar carregada de raiva, orgulho, inveja e
vaidade,ouentãodeserviço,solidariedade,entregaeamor.Eéadiferençaentre um e outro desses dois pacotes que torna um trabalho “ufa!” ou“oba!”efazdeleumaobra.
Aquelasíntesemereciamaisumbelogoledecafé.Foioquefiz.–Vamosaotestedoquintodesígnio?–elepropôs.Lávai:aorealizaros
seus desejos, os sentimentos serão de “ufa!” – alívio – ou de “oba!” –alegria?
Emboraarespostaaoquintodesígniomeparecesseóbvia,resolvipensararespeito.Nadaétãoóbvioquenãomereçaumareflexão.
20Liçõesdeliderança
O quinto desígnio me levou a refletir também no exercício de minhaliderança. Comecei a imaginar, mergulhado em reflexões. Existem doisjeitos de pular da cama pela manhã. Um deles, é sair direto para a luta,muitas vezes, sem uma primeira refeição decente, ou apenas com umapressado gole de café, para garantir um mínimo de estímulo. Não hátempoaperdernessemundodosligeiros.Éprecisochegarprimeiroenãodarespaçoparaooutro,queéconsideradooinimigo,oestorvo,orival.Ea maior motivação é superá-lo. Se ele for mais forte, melhor combatê-lopelasbeiradas.Seformaisfraco,oidealéabatê-lopornocaute.
Todos os dias, a história se repete. E o outro ameaçador não acabanunca,talcomoumpesadelo.Acadamanhã,estáali,àespreita.Omesmodesafio, igual embate. Assim, cria-se a musculatura para a luta, com ointuitodelivrar--sedoinimigo,nabuscaincessantedevitória.Sóexistemduasopções:abaterouserabatido.Claro,nocenáriocotidiano,omundonãoéparatolos.Nãoadmiraquemuitagentejáacordecansada.
Todososdiasahistóriaserepete.“Ufa!”Existe, no entanto, outro jeito de despertar. E tudo começa na forma
como eu pulo da cama pela manhã. Oração, exercícios, alimentação. Ameta é me superar, melhorar a cada dia. Mente sã em corpo são, jáensinava o poeta romano Juvenal, citado pelo Velho Taful. Depois, apreparaçãoparaotrabalhoeaconsciênciadequeaqualidadedeledependeda qualidade das relações estabelecidas. O outro não é um inimigo, masum possível aliado. Deve ser conquistado com respeito. Trata-se deconduzi-lo e deixar--se conduzir de mãos dadas. A delicada palavra deordem é parceria. Ao invés da competição e de um único vitoriososolitário,acolaboraçãoeavitóriacoletivasolidária.
Todososdiasahistóriaserepete.Ooutroéalguémcomquemsepodeconstruir, junto, um futuro. O que rege a relação é a confiança. Umaconfiançaqueprecisaserconquistadacontinuamente.Nãosetrataapenasdaquela que se tem no outro, mas também da autoconfiança. É umexercício que desenvolve a espiritualidade, buscando o confiável nointeriordecadaum,acomeçarpordescobriroconfiávelemsimesmo.
Todososdiasahistóriaserepete.“Oba!”Existemdoisjeitosdepulardacamapelamanhã:superandoooutroou
superandooontem.Aescolhaé livre,dependedecadaum.Ahistória acontar,entretanto,podesermuitodiferente,apartirdoqueseelege.Voupensar nisso todas as vezes em que acordar. Mas como fazer com quemeuscolaboradoresfaçamtalexercíciofundamental,diaapósdia?
Elesprecisarãosentir-seinspiradosparafazeraescolhacerta.Ainspiraçãoéalgoquevemdo“acolá”,paranossocorrernosdesafiosdo“aqui”.Mascomoinspirarosoutros,osquetrabalhamanossolado?
Se eu ficar somente no discurso ou na conversa fiada, não serei bem-sucedido.Éprecisoaterrissarno“aqui”efazeromovimentocomgestosconcretos.
OfilósofoRalphWaldoEmerson,citadopeloVelhoTaful,dizia“Oquevocêfazfalatãoaltoquenãoconsigoouviroquevocêdiz”.Assim,elenosmostra a importância dos gestos legítimos e tangíveis como fonte deinspiração.Odiscursoeaspalavrassoltasnoarnãodãocontadissohajavistaos tantossermõeseaulas inúteisdosquaisnosocupamos,semquesejamos capazes de dar um único passo no sentido de incorporá-los aosnossosaprendizadosehábitosdevida.
Inspirar a essência das pessoas é tocá-las no que elas têm de maisverdadeiro,sublime,nobre.Paraisso,tereidemevaler,comlegitimidade,do que tenho de mais verdadeiro, sublime e nobre. Pois que ninguémensina ninguém, apenas aprende, ao ser inspirado. Quando a minhaessênciaseconectacomaessênciadooutroéqueainspiraçãoacontece.
Sendoaminhaessência,souoqueexistedemaissimplesesincero,demaisautênticoenatural,demaislímpidoeluminoso.Nãoháqueesforçar-se, apenas ser. E a essência das outras pessoas saberá corresponderigualmente, em um acordo tácito, como se todos já se conhecessem delongadata.Háamorecumplicidadeentreasessências.
Eu desejo viver a minha essência. Essa é a minha função. Assim,conseguireiinspiraraessênciadaspessoas.
Eudesejoinspiraraessênciadaspessoas.
Antes de encerrar as minhas reflexões, tive de admitir um receio e,daquelavez,nãoera coisadoMórbido.E seo“oba!” se transformaremoba-oba?
21Oba-oba
Emumaoutramanhã,salteidaRosalinaeentreicantarolandonoateliêdoVelhoTaful,esbanjandoeuforia.
–Do“oba!”paraooba-oba,dooba-obaparaatãodesejadafelicidade!Ele estava arrumando livros na prateleira superior, apoiado em uma
escada. Vendo-me chegar, desceu cuidadosamente, preservando-se deuma queda que poderia ser fatal, em sua idade. Foi direto ao ponto,considerandoaminhaefusivaalegriadaquelamanhãdedomingo.
– Agora você mirou o alvo errado. Quem disse que os desígnios quelevamaopropósitosãogarantiadafelicidade?
–Ué,issotudonãoéparaserfeliz?–Dependedoquevocêentendeporfelicidade.–Entendoporfelicidadelevarumavidaprazerosa.–Vocêestásereferindoaoprazereàfelicidade.Eparecequerelaciona
umaàoutra.–Sim,decertaforma.–Oprazerdependedapresençade coisasque são e funcionamcomo
objetosdedesejo.–Objetosdedesejo?–Sim,comooalimentoeabebida,porexemplo.Háquemacrediteque
oprazeréaúnicacoisaboa,eosofrimento,aúnicaruim.–Defato.– De fato, quem pensa assim investe seu tempo, energia e dinheiro
apenas no que considera coisas boas para si. É o que se chama dehedonista.
–Hedonista?Oquesignifica?– A palavra hedonismo vem do grego hedonikos, que significa
“prazeroso”,poisderivadehedonou“prazer”.
GostavaquandooVelhoTafulrecorriaaoétimodapalavra.–Paramuitos,afelicidadeéumacontaemqueosmomentosdeprazer
ganhamdelongedosmomentosdesofrimento.Fazemdavidaumabuscaincessante de momentos de prazer, evitando ao máximo os desofrimentos.Issopodeservistocomobusca,mastambémcomofuga.
EstavacuriosoparasaberaondeoVelhoTafulqueriachegar.–Existe,noentanto,umaoutrapalavra.Ocontentamento.Implicaum
conteúdointernoqueindependedascoisasdefora.Enquantooprazersealimentadepresenças,ocontentamentosealimentadeausências.
–Agoracomplicou!Ficouesquisito!–admiti,confuso.–Esquisito?Poisvocêjáouviufalarqueomelhordafestaéesperarpor
ela? Existe contentamento no tempo da espera, feito de imaginação edeleite. Existe contentamento na recordação, pois aquece o coraçãorememorar sentimentos e emoções. Existe contentamento na saudade,comoadeesperaroretornodofilhoquepartiu.Existecontentamentonasolidão e no silêncio, que é o reencontro de cada um de nós consigo.Todosessessentimentossãomaisausênciasdoquepresenças.
– Jáouvidizerqueesperarpela festa émelhordoque aprópria festa,assim como esperar pela viagem pode ser melhor do que a viagem –comentei,concordando.
–Sim,porque seoprazermorano finitodascoisas,ocontentamentomoranoinfinito,láondeodesejocontinualatente,pulsandoevibrando.
–Issonãoéparecidocomo“aqui”,finito,eo“acolá”,infinito?–Semdúvida.Prazerébom,felicidadetambém,mastantoumcomoa
outra podem acabar nos impedindo de ousar o salto necessário para umestágiomaisavançado,senãohouverum“acolá”.Seriacomoembriagar-see empanturrar-se tanto de prazer e felicidade com os antepastos eaperitivosqueacabamosporabrirmãodonutritivopratoprincipal.
–Ouseja,um“oba!”quepodeacabaremum“ufa!”–concluí.–Sim!Emboraoprazersejabomeafelicidadetambém,nadasuperaa
plenitudedevivercomalegriamesmodiantedasausências,ouseja,semdependerdaspresenças.
O Velho Taful fez menção ao tema, com fundo tropical, de uma dastelas,naparede:
–SãoFranciscochamavadeperfeitaalegriaobemviveralheioàscoisasdomundo.Bastava, a ele, as coisas do coração.Umcontentamento semfim,emquetudoégratidão.
–Masissoécoisaparasanto!–comentei,comironia.–Aladim,vocêprefereserfelizouencontrarsignificado?Silêncio.Eunãosabia,ainda,oqueresponder.O Velho Taful sempre levantava uma questão para espichar a minha
consciência.–Pensenodinheiroenoqueelepodelheoferecer.Evocêtemtudode
que precisa. É isso que muitos chamam de felicidade. É o que acontececomoabastadoquenãotemtempodegastaroqueacumula.E,também,comoprósperoque,de tão rico, sofrede escassezdeprazer emmeio àabundância.Nessahora,oMórbidoretorna,nãomaisnaformademedo,masdetédio.
– Essa não! Mórbido sabe mesmo como se superar! – comentei,espantado.
–Seopropósitoéabuscadeprazer,avidadosidososperdeoviço,poisosprazeressereduzemnaidadeavançada.Portanto,serfelizouencontrarsignificado?Ouserfelizsomenteenquantojovem?
O Velho Taful pegou a sua querida Rita, disposto a preparar o nossoclássico café. Enquanto a colocava no fogo, disse, em um tom quaseconfessional:
–Aladim,nuncalheconteisobreMadeleine.Emseguida,comimensacalma,foiatéaestante,retirouumlivroe,de
dentro dele, aquela foto que inadvertidamente eu já havia visto, sem,contudo,contar-lhedainvoluntáriaindiscrição.
–EstaéMadeleine,aminhaamada.–Linda,umabelamulher!
– Sim, bela em todos os sentidos. Eu a conheci em Portugal, nafreguesia de Santo Tirso, próxima à cidade do Porto, no tempo em queministravaaulasnaUniversidadedeCoimbra.Issonadécadade50.
Naquelavoltaaopassado,elesemostravadispostoaabrirumpoucodesuatãopreservadaintimidade.
–Madeleinefoiaminhacompanheiradetodasashoras.Nãoapenasdevidaconjugal,mas tambémde letrase artes.Ela sempre fazia aprimeiraleitura de meus livros, opinava, dava ideias. Também comentavapreviamente as aulas e palestras que eu preparava. Esteve presente emtodasasminhasescolhasedecisões.
Pelaprimeiravez,elesedispôsdespir-se,emconfidências.–Nãoconseguiaimaginaraminhavidasemela.Docerzidodasminhas
meiasàarrumaçãodenossosarmários.Dascaminhadasmatinaisàsnoitesdeinsônia.Dasleiturasquefazíamosàsmúsicasqueescutávamosjuntos.
Aoabrirsuaintimidade,oVelhoTafulsemostravamaisvulnerável.– Um dia, Madeleine se foi. Inesperadamente. Sem avisar. Nem ao
menos nos despedimos. Uma dor avassaladora se apoderou de mim,invadiumeucorpo,meu sangue,meusnervos,meusossos.Paramim, avidanãofaziasentidosemela.Eraofim.
OolhardoVelhoTafulseperdianoalto,comoaimaginarapresençadeMadeleine.
– Meus amigos, na época, sabedores do amor que tinha por ela,procuraram amainar a minha grande dor de viúvo. Não queriam que eusofresse.Então,evitavammedeixaremcasa,sozinho,paraqueaausênciadelanãomeconduzisseaumadepressãoprofunda.Queriammedistrair,levar-me a passear, sugeriram viagens. Alguns se ofereceram para mereceber em suas casas, outros sugeriram que eu vendesse o quecompartilhara comMadeleine ao longode anos, para quenão restassemsequerrastrosdelembranças.
Enquantofalava,quaseparasimesmo,eleobservavaa foto,comolhosbrilhandointensamente,aindafascinadopelarecordaçãodesuaamada.
–Disseaelesquedesejavaocontráriodoquemepropunham.Queriaficaremcasaechorartudooquetinhadireito.Debulharemlágrimastodoo meu sofrimento. E foi o que fiz. Hoje, resta-me a saudade, uma docesaudade.SougratoàMadeleineporter feitopartedaminhavida.Ela foium presente sublime de Deus. Um dom. Um dom que até hoje mepreenche.
OVelhoTaful esfregouosolhos, atéquenãohouvessemais lágrimas,limpouaslentesdosóculosecompletou:
–Nadadepiorpodenosacontecerdoquenãoreconheceraverdadeiraalegriaquandoelapassaaonossolado.
Depoisdecontar a suahistória,elemepareceuaindamaishumano,emeu afeto por ele aumentou. Fitando-me nos olhos, em confissão,declarou:
– Eu sofri, você vai sofrer. Você vai perder pessoas amadas, pessoasamadasvãoperdervocê.Nascerdói,morrerdói.Adolescerésofrimento,envelhecerésofrimento.Estarunidoaoquenãoseamaédoloroso,viverseparado do que se ama, também. É preciso aprender a viver com osofrimentoparanãotransformarasnossasbuscasemfugas.Eaindamais...muitomais!
22Odesafetoperpétuo
Mórbido não vai desaparecer, disso já me convenci ao mergulhar emminhas tradicionais reflexões, depois de cada um dos encontros com oVelho Taful. Saía deles, sempre, com muitas questões interessantes aruminar,comoacertezadequemeuatormentadorhaviadepermanecerotempotodomerondando,presentedemuitas formas.Senãodo ladodefora, em ameaças, crises, epidemias, tragédias e no noticiário que assintetiza, estava no lado de dentro, em perturbações, alucinações eincessantesdiálogosmentais.
Quem já não se deu conta de que existem muitas pessoas que andampelas ruas falando sozinhas? Eu mesmo concluí que o que nos tornavadiferentes delas – se é que, de fato, fôssemos – era o fato de ainda nãomurmurarmosemvozalta.
Nãohaviaparaondecorrer,quandooquemeperseguiaeraeumesmo,aomesmootempooheróieoalgoz.Oautoritárioeosubmisso.Aqueleque algema e o algemado. O controlador e o controlado. O adultodestemido e a criança vulnerável. Sem dúvida, Mórbido estava mesmosolto,externaeinternamente.Comobomcamaleão,costumavamudardenome:medo,sofrimento, tédio. Issono“acolá”.No“aqui”, tinhaoutrosapelidos: Poderia Ter Sido, Nunca Mais, Tarde Demais e Ah! Se... eAdeus.
Assim, concluí que doMórbidonãome livraria, damesma formaqueum viciado não se livra da droga. Pode até modificar a relação com ela,depoisdetomarconsciênciadesuacondiçãodeenfermoedecidirtratar-separa ter chancedecura,masdelanãoescapa.Mesmoemabstinênciaforçada,delanãosedistrai.Continuafalandoarespeito,emboranãosejamaisumusuário.
Mórbido fazia parte da minha experiência humana e continuaria a semanifestar.OVelhoTafuldeixoubemclaro:erradoédeixarqueeleroubea cena. Sim, porque não era o protagonista da história que eu queriacontar. Era o antagonista que me levava a seguir na direção contrária àcorreta.Semculpá-lo,aotomarconsciênciadessarealidade,eupodiaatéagradecer a ele, por acionar o alerta de que permitia alterar o rumoindicadoporele.
Asreflexõesmelevaramaconcluirquemeudesafiohumanoeraaceitaraexistênciadador.Avidaexigesacrifícios,eudeviasempremelembrar.As coisas não acontecem de mão beijada, assim, sem mais nem menos.Compreendi, porém, corretamente, o que é sacrifício. Nele existe aintençãodecriaredeencontraroamoremtudooquesefaz.Sacrifícioésofrimento com significado. Portanto, um sacro ofício ou um ofíciosagrado.
Omeudesafiohumano,concluí,eracriarcondiçõesparaqueosublimetivesselugar.Eraomeumaiordesejo.
23Odinheiroébom
Acheiqueestavanobomcaminho.Meustrêsdesejospassarampelocrivodoquintodesígnio.
Aorealizá-los,ossentimentosserãode“ufa!”–alívio–oude“oba!”–alegria?
1º Desejo: contribuir, por meio de minha vocação, para a construção deempresasbem-sucedidas.
2ªDesejo:enriqueceromundoaomeuredorembenefíciodetodos.3ºDesejo:transformarotrabalhoembênção.
Ao imaginar o primeiro se realizando, senti uma profunda alegria. Osegundo,umavezconquistado,medeixariaemêxtase.Saberqueestariaenriquecendoomundoaomeuredor,alémdemimmesmo,suscitavaumasensaçãodeplenitude.Oterceirodesejoeraoprópriodesígnio,otrabalhofeitode“oba!”,puraalegria.
Antes acreditava ser preciso fazer o que se gosta para vivenciar otrabalho como um ato de amor. Percebia, depois de tantas conversasinstigantes,queessaeraumacrençaenganosa,pois,sefossemrealizadossomenteostrabalhosagradáveis,oqueseriadosárduoseheroicos,comoaqueles necessários para tratar as doenças e enfrentar os malefícios dasguerras? Aprendi que, para viver o trabalho como um ato de amor, éprecisogostardoquetemdeser feito.Eaprenderaamartodootipodetrabalho,pois,quandorealizadocomamor,érevestidodedignidade.
Viveria os meus desejos mesmo que nada ganhasse para realizá-los.Passei a entender o que disse, de fato, Madre Teresa no esclarecedordiálogoquemantevecomumempresário:
– “Por dinheiro nenhum faria o que a senhora faz”, ele disse àquelamulhersanta,dedicadaaumarealidadetãodesumanaemiserável.
“Nemeu”,respondeuela.O trabalho como um ato de amor não é diferente, concluí. Deve ser
vivido da mesma forma, sem almejar algo em troca. Ele é a própriarecompensa. Deve ser vivenciado plenamente com devoção, não comoobrigação.
Apropósito,odinheiroeraotemadaúltimacartaquerecebidoVelhoTaful.
Ilmo.AladimO dinheiro é bom, meu caro! Gastá-lo com bons propósitos é apenas a
primeiracondiçãoparafazerdelealgobom.Saberdeondevemeparaondevaioquecirculaemnossasmãosécrucialparaquesejaconsiderado,defato,bom.
Odinheiro é bom!Nasmãosde empresários, pode criar empregos sólidos edignos.Assim,serveàspessoase,pordecorrência,suasfamílias.Permite,ainda,queseinvistaemprojetosquepromovamumavidamaishumana.
Odinheiroébomquandoaeleseatrelaoserviçoeasolidariedade.Reveste-sedevirtudeeenergia,fazendocomquesepropaguemquandoelecircula.
O dinheiro é bom quando, via poupança, é destinado a investimentos queapoiamaarteeacultura,aeducaçãoeasaúde,ajustiçaeaecologiaetudomaisquecontribuiparaconstruirumahumanidade.
O dinheiro é bom quando ao invés de ser investido no que rende maisdinheiro,éinvestidonoquerendemaisvida.Valorizarodinheiropelodinheiroé como correr atrás do rabo, sem chegar a nenhum lugar. Todo aquele quefinanciaavidaéumdinheironobre.
Odinheiroébomemsuajustamedida.Aganânciaésinaldequeodinheiroperdeuasuafunçãoe,apartirdaí,restaadistorção.Acorrupçãoésinaldequeodinheirocarecedevirtudee,apartirdaí,sórestaovício.Ocrimeésinaldequeodinheiroperdeuasuavocaçãoe,apartirdaí,restaaviolência.Forataisdefeitos,quenãosãododinheiro,masdopróprioserhumano,odinheiroébom.
Odinheiroéumaboafontedeenergiacomotantasoutras–otempo,asaúde,odivertimento,asrelações–eservetambémparaenriqueceravida.
Muitasvezes,faltaaodinheiroumpropósito.Poisaquivaiumdesafio:tratedetorná-lobom.Nãoesqueçadissoaodefiniroseupropósito.Assim,farácomque o dinheiro, muito além de seu aspecto material, seja também um desafioespiritual.
Doseu,VelhoTaful
Precisava encontrá-lo para lhe dizer que havia passado pelo quintodesígnio.Equeestavaprontoparaotestefinal.
24Otestefinal
Soube,compesar,queoVelhoTafulsemudariaparaPortugal.Elehaviaresolvido viver na terra de sua amada, Madeleine, e também de muitosamigos intelectuais. Encontrei-o encaixotando livros e telas, discos eminiaturas. Ver o seu ateliê sendo desmontado partiu meu coração. Jáhavia me acostumado com aquele ambiente que misturava o lógico e olúdico,orealeofantástico,odivinoeoprofano,ateladesãoFranciscotropicaleafrasedeMárioQuintana,alâmpadadogênioeasminiaturasdeinstrumentos musicais, os discos, os souvenirs e os brinquedos. Essecenáriohaviasidoomeusegundolar,aolongodemuitosanos.
–Partoemtrêssemanas,Aladim.–Temmesmocertezadequeessaéamelhorescolha?OBrasilprecisa
dehomensdesuaestatura!–tenteiargumentar.–Precisoreencontrarminhasfontes,meupontodepartida–elefechou
aquestão,delicadaefilosoficamente.O dia estava quente e o Velho Taful havia preparado uma jarra de
limonada, disposta em uma bandeja com dois copos. Esperava-me,provavelmenteparafinalizarascincoestaçõeseaplicarotestefinal.
–Eentão,Aladim?Seusdesejospassarampeloquintodesígnio?– Sim, e todos eles, quando se transformarem em propósitos, serão
motivosdealegriaparaomeucotidiano.Nãomesentireialiviado,excetoporcontadocansaçodemeentregarcomempenhoaosmeusdesejos.Umsentimentoagradávelegratificanteme invade, aténosimplesatodemeimaginarvivendoopropósitoquemeaguarda.
OVelhoTafulsorriu.–Achoquecomeçoacompreenderessecontentamento,quevai além
doprazeredafelicidade–acrescentei.–Quebom,Aladim.Masselembraqueexisteumtestefinal?
–Sim!Eestoucuriosoparapassarporele.–Os seus três desejos deverão compor umúnico propósito.De quais
vocêabririamãoparaficarcomumsó,aquelequeé?–Eporqueapenasum?– O sábio Confúcio já ensinava, “Quem caça dois coelhos não pega
nenhum”.Umadasfinalidadesdeseterumpropósitoéofocoemestadode atenção. Vai ver como oportunidades surgirão para você depois quedescobriroseupropósitoecolocá-lonaordemdodia.“Eunãoprocuro,euencontro”,diziaPicasso.Evocêvaiencontrar todososdias,comosefossemmilagres,elementosquevãoajudá-loemseupropósito.
–Gostariadeconversarcommeusbotõesparasaberqualéopropósitoqueresultadosmeusdesejos.
–Entãofaçaisso.Otestederradeiroficaparadepoisquevocêformularoseupropósito.
–Equaléotestederradeiro?–Anoteaíparanãoseesquecer:vocêestámesmodispostoalargartudo
paraseguiroseupropósito?Enquanto aguardava que eu terminasse de escrever, o Velho Taful
arrematou:–Casoarespostasejasim,sigaemfrente.Sefornão,continuenabusca.
Nossasconversasseestenderamaolongodamanhã.Aonosdespedirmos,elemeentregouumpresente,embrulhadotoscamente.
–Éparavocê,querodeixardelembrança.–Oqueé?–perguntei,aomelivraratabalhoadamentedaembalagem.–Melhorperguntarquemé.Paravocêtersempreemmentequetodos,
pessoasecoisas,sãosujeitosedevemsertratadoscomotal.Desse dia em diante, Rita esteve presente em casa, como estrela de
todososmeuscafésdamanhã.Paramim,representavaoVelhoTafulmelembrandodoscincodesígnios.
PARTE3Omeninoeovelho
25Pobresenganos
Meses se passaram desde a mudança do Velho Taful para Portugal. Eudissolvia a saudade em cada gole de café que Rita me proporcionava.Mantinha viva a minha gratidão por ele nos bons tratos que oferecia àamiguinhadetodasasmanhãs.
Estava, justamente,entreumgoleeoutro,quando,certodia,aalegriabateu à porta. Era o carteiro, entregando uma mensagem que haviaatravessadooAtlântico.Nãotinhadúvidas,masmecertifiquei,olhandooverso,paraconfirmaroremetente:BenjaminTaful,dafreguesiadeSantoTirso,cidadedoPorto,Portugal.
Abri,quaseofegante,ávidopornotíciasdemeuqueridointerlocutor.
Ilmo.AladimEsperoqueestejabem.Tenhoalgoalhedizer,ainda,sobrepropósitoeasuabusca.Vou começar pela estória de um homem que tinha como propósito de vida
encontrarDeus. Largou tudo para se dedicar a essa procura. Caminhou porvales e montanhas, atravessou rios e lagos, cruzou mares e oceanos, escaloupedras imensas e encarou desfiladeiros. Enfrentou tempestades, inundações eavalanches.Passoufome,sedeefrio,emnomedesuaobstinação.
Umdia, jácansadode tantasandanças,encontrounabeiradeumaestradaumcasebre, ladeadoporumacercaeumportão,ondeumaplacadizia:“Deusmoranessacasa”.
Ocoraçãodohomemseaceleroueele,numímpeto,rompeuacercaedirigiu-seàportade entrada.Estendeuamão,queacaboumantendo suspensanoar.Nãoousoubater.Abaixouobraço,respiroufundo,deumeia-voltaeretornouàsuabusca.
Nãosoubedoresultadofinaldoseutrabalho,maselaboraropropósitoéumprocessoderefinamentoquepodelevaravidatoda.Nãoháporqueterpressa,nadaéparajá.Nabuscadopropósito,sócontaoprimeiropasso,eessevocêjádeu.Os demais chegam por simesmos.Uma pessoa só pode se dizer feliz oubem-sucedidanosúltimosinstantesdesuavida.Então,nãoseprendaapobresenganos.
Sei que cada um de nós se sente incompleto, enquanto não descobre opropósito, mas substitua essa palavra, incompleto, por outra, inacabado. Ajornada em busca do propósito vai nos dando “acabamento” e nos tornandomelhoresacadadia.
Para que o seu contentamento seja completo, é preciso avançargradativamente, amadurecer, refinar-se, evitar os atalhos que atrapalham oalvoeatrajetóriadaseta.
Afinal,Aladim, emquemvocê está se transformando, enquantobuscao seupropósito?Seodescobriu,averigue:elefazdevocêumapessoamelhor?
Acrescente outra palavra ao seu vocabulário: disciplina! Disciplina é serdiscípulodesi,deseupropósito,concebidoemsuaprópriaconsciência.Issovailhetrazernovoshábitosefazercomquelarguemãodeoutrosarraigadosequenãodão certo. Semdisciplina, nada feito, poismudanças reais emnossavidanão acontecem apenas por conta da vontade. Dependem de muito mais. Emespecialdaforçadevontade,lembra-se?Eraoqueeugostariadelhedizer,porora.
Poraquitudobem,muitoafetodafamíliadeMadeleineegrandeapreçodosamigos.Conheciumemespecial,dafreguesiadeAzinhagadoRibatejo,escritorquesomenteagora,quaseaos60anos,resolveuassumirasuavocação.Muitotalentoso,pensoqueaindavaidaroquefalaraquinapátria-mãeetambémnasterrastupiniquins.SeunomeéJoséSaramago.Anoteaí.
Doseu,VelhoTaful
Li e reli muitas vezes essa mensagem. Como foi a última, eu sempreretornava a ela quando me sentia em crise diante de meu propósito ou
quando velhos hábitos ameaçavam ocupar espaços já preenchidos pornovosebonscostumes.Ouapenasparaamainarasaudadequesentiadele.Nunca me cansei da releitura, sempre feita junto de Rita, minhainseparávelcompanheira.
26Omeupropósito
“Sonho com uma nova economia. Um ambiente em que sujeitos sejamsujeitoseobjetos,objetos.Se,poracaso,existiralgumadistorção,queosobjetossejamtratadoscomosujeitos”.
Oauditóriosilenciosomeescutavacomtotalatenção.“Sonho com uma economia que promova a igualdade. Não aquela em
queascoisassejamdistribuídashomogeneamente.Nemtodossofremdasmesmas carências ou padecem das mesmas ambições. Mas que asoportunidadessejamiguaisparaquevivamseusdesejosíntimoseúnicos,aquelesquefazemavocaçãoseexpressar”.
Sempre mantive presente os cinco desígnios. Eles integravam porcompletoomeupropósitodevida.
“Sonhocomaincompletudepreenchidapelotrabalho.Queesteocupequalquer lacunaequea fartatransformeotrabalhoemobra.Aindamais:quenessahierarquiaentrelaçada,trabalhoseobraspromovamaevoluçãodahumanidade”.
Osmeusdesejoshaviamsetransformadoempropósitoeeste,emobra.Umaobraque,naquelaaltura,nãoeraapenasminha.Umaobracoletiva.
“Sonho com uma humanidade com H maiúsculo, em que os errosaconteçam para revelar os acertos, os vícios circundem para ampliar asvirtudes,oprofanoexistaparaelevarosagrado,ohumanoevoluanaturaleserenamenteparaencontrarodivino.Quenessajornadadeidasevindas,possamoscresceremintegridadeecompaixão”.
Via os olhos brilharem e sentia os corações pulsando, à medida quefalava.
“Sonho a empresa como uma comunidade de trabalho, umamicrossociedade bem-sucedida, em que todos tenham voz e vez, as
relações sejam atóxicas e nutritivas, os talentos individuais resultem emcompetênciadegrupo,equeestejamaserviçodobem-estarcoletivo”.
O meu menino ainda permanecia vivo e sabia como conversar comoutrosmeninos.
“Sonho com cérebros e mentes criando, pensando, raciocinando eresolvendoproblemas,semqueocoraçãosecorrompa.Éoórgãoquedevepermaneceràfrente,aoladoeenvolvendotudo,poisoamoréoseumaiorproduto”.
Odesejodeenriqueceromundoaomeuredorestavaseconcretizando.“Sonhocomnegóciosgeradoresdeumariquezasuperior,queváalém
do material, necessária para eliminar males sociais como a penúria e aprecariedade, mas que ao mesmo tempo combata a maior de todas asmisérias: a da escassez de amor. Que ninguém mais morra à mingua nabocadaamargura,doabandono,dasolidão,doisolamento,daexclusão,dafaltadeféedecoragem”.
Aemoçãoeraquasepalpáveldetãointensa,noambiente.“Sonho com a vida feita de sentido e significado, como uma bela e
gratificantejornadavirtuosa.Aindaquesejamúltipla,seguimosjuntos,demãosdadas,poisopropósitoéumsóeaessênciaéamesma.
Trilhemos, assim, com o propósito de criar uma Nova Economia, pormeiodemercadoséticos,humanoseprósperos!”.
Ao me retirar, nos bastidores, ainda ouvia os aplausos, ressoando nosouvidos.Semdúvida,oVelhoTaful ficariamuitoorgulhosodaqueleedetantos outros feitos que se seguiram, por anos e anos, depois de nossasprofícuaseinspiradorasconversas.
27Astrêsperguntas
ConhecioVelhoTafulemminhamocidade.Tenho,hoje,amesmaidadedele,nomomentoemquenosencontramospelaprimeiravez.Oencontrocasualnaqueleônibusmudouaminhavidaporcompleto,deuma formaqueeujamaisteriaimaginado.“Façadesuavidaumaaventurafértil”,elemedisse,nosprimórdiosdenossainteração.Éoquetenhofeitoaolongodosanos.Compreendi,comopassardotempo,queéimportanteterumalvo, porém, mais importante ainda, é o sentido da seta. O propósito étantooalvocomoaseta.
Hoje, ajudooutraspessoase empresas adescobriremo seupropósito.Seioquantoessatrajetóriapodeajudá-lasaevoluir.Mastudocomeçacomosdesejos.Ecomaescolhadaspalavrasquedefinemtaisdesejos.Ogostopelaspalavrasmelevouàescrita,nasequênciadoamorpelaleitura.
Aprendi a diferença entre destino e desígnio. Para mim, os cincodesígniossãocomomandamentosanortearasminhasdecisõeseações.
Pratico diariamente três olhares: apreciativo, empático e consciente.Eles me ajudam na relação com os outros, com o mundo e com o meupersistente parceiro de aventura, Mórbido, um oponente que não medeixaperdero eixo ememantémemequilíbrio.E, claro,nãomedeixolevarpeloolharbiruta.
Sou escritor e um líder educador. Sei o quanto esses papéis sãodesafiadores,masseitambémoquantoumpropósitofacilitaanossavida.Sempre tenhoemmenteque“o ‘aqui’não se resolve semo ‘acolá’”.Asmetas estão no “aqui”, mas só funcionam se houver um propósitoorientadorno“acolá”.
“Vocêquerserfelizouencontrarsignificado?”“Vocêlargariatudoparaseguiroseupropósito?”“Enquantoisso,emquemvocêestásetransformando?”
Jamais esquecerei o gênio da lâmpada e suas instigantes lições, tãovívidasemmim.Enquantoesperoquepermaneçamemtodoscomquemascompartilho.
EPÍLOGOConvicçãoénãotercertezas
EmumencontronacidadedeAtibaia,reunimosmaisdeduzentoslíderesempresariais. Eram participantes do processo da metanoia, como meiopara obter filosofia, estratégia e metodologias capazes de levar seusempreendimentosaumnovopatamar.FalamosdeumaNovaEconomia,compostaporempresaséticas,humanaseprósperas.
No dia seguinte, pela manhã, seguimos em pequeno grupo paraBragança Paulista. Era um sábado do mês de dezembro e queríamosconcluironossoanoemumacasaderepousoparaidosos,boapartedelesesquecidosporsuasfamílias.Paranós,essediaseriaanossafestadeNatal.
Eu já visitara outros lugares semelhantes. Normalmente, neles, haviaencontradovelhinhosqueaindamantinhamintactosaignorância,araivaea avareza. Alguns muito amargurados, carregando rancores antigos deparentes e amigos. Outros, mesmo entre os terminais, ainda fortementeapegados às suas coisas. Guardavam tudo com o afã de quem acha queaquilolhesfariafaltanaoutravida.
Qualnãofoianossasurpresaquandoencontramosumaoutraatmosfera.Alguémhaviapropostoarealizaçãodeumamigosecreto.Osparticipantesconcordaramemtrocarentresialgumdeseusmelhorespertences,comoumaformadesuperaraavarezae,carinhosamente,externarumsinaldedesapegoesolidariedade.
A festa seguia animada, quando, de repente, todos fizeram silêncio.Aguardavam a chegada do dono da ideia. E eis que surgiu, na rampa deacessoaosalão,umsenhoremumacadeiraderodas.Sobochapéu,aquelerostobemconhecido,debarbaebigode.Quasenãoacrediteinoquevia!Era ele! O Velho Taful! Estava ali vivendo o seu propósito. Foiefusivamente saudado e abraçado, enquanto um coral cantava “O
Velhinho”,músicabrasileiradeNatal.Radiante,commaisde90anosdeidade,eleeratodosorrisos,contagiadopelaatmosferaalegre.
Assim que ele me viu, tratei de acenar, para conferir se ele mereconhecia, agora com as marcas do tempo no rosto. Quando mereconheceu, seus olhos marejaram, ao mesmo tempo em que os meus.Assim que nos aproximamos, selamos o reencontro com um grandeabraço,daquelesquesósabemoferecerosvelhosamigos,oucomoumpaiabraçaumfilho.Osdoisachorarerir,aomesmotempo.
O Velho Taful havia retornado de Portugal e, sem condições decontinuarmorandosozinho,resolveumudar-separaacasaderepouso.Obom ar das montanhas o levou para aquelas paragens. Sempre a par dasmodernidades, ele me acompanhava pelo Facebook, mas, sabendo deminhaagendarepleta,nãoquismefazercontato.
Seu passatempo predileto, agora, era escrever cartas para parentes eamigos dos idosos. Primeiro, ele escutava a história de cada um,geralmenterepletademágoaseressentimentosdeumpassadoreprisadovárias vezes na memória. Depois, com a sabedoria de sempre, elaboravatextosmemoráveis,comumapitadadeseujeitodeser,sempreàprocuradoquehádemelhoremtudoetodos.
Ele mesmo me contou a história de uma senhora que sentia umtremendorancorporseumarido,umimigranteeuropeu,muitodedicadoao trabalho,mas desatento e durono relacionamento.O casal vivencioutempos difíceis, na luta incessante pela sobrevivência. Com a idadeavançada, a senhora foi internada na casa de repouso, onde raramenterecebia a visitadomarido, emboramantivesse a esperançade vê-lo commaisfrequência.Aofimdeseutristerelato,oVelhoTafullheperguntou:
–Eoqueasenhoramaisgostanele?–Oolhar...aquelesolhosazuissempremefascinaram!–elarespondeu,
com uma expressão totalmente distinta da crispada, anterior. Seusemblante ficou leve e belo, com as rugas bem atenuadas, ao revelar adoçuraquehavia,ainda,emseuíntimo,aofalarsobreoamordesuavida,comaresdeeternaapaixonada.
–Assimsãotodasascartasqueescrevo,Aladim.Todascomeçamtristesemelancólicas,atéquefaçoaperguntadoolharapreciativo:“eoquevaleuapena”?
–Oamorsemprefoiesempreseráoquevaleapena.Trocamosumolharcúmplice.–Eoamorédaroquevocênãotemaquemnãodesejareceber–ele
continuou.Sorrimos,asmãosdadas,certosdagrandeamizadequenosunia.Ainda
aprendomuitocomele.Emnossoreencontrocompreendiqueopassadoaindaestáporsefazer.
–VelhoTaful,vocênuncamedeclarouqualéoseupropósito.Cofiandoobigode,ovelhosábiorespondeu,sempestanejar:–OmeupropósitoéagradaraDeus.Dele, ficou apenas o que resta, quando nada mais resta. Havia se
destituídodetudo,menosdesuaconvicção.
AGRADECIMENTOS
À Mirian Ibañez, pelo tratamento dos originais, na mesma vibração daescrita.
AosjovensdoPaideia,programadeeducaçãodaMetanoia,pelaleituracrítica dos originais, feita com cuidado e discernimento: Paloma dosSantos Barbosa, Tiffany Daniely Porpilio Hardt, Yasmin Akemi SatoKurokawa,GabrielAraújodaSilva,MariaJuliaBenassiPiola,LíviaTarginodeOliveira.
À coordenação de Fabiana Iñarra, educadora do Paideia, e ao apoioespecialdeLucasBritsky.
ÀMariaHelenaBoscoVaz,sensibilidadesuprema.ÀscontribuiçõesdeCamilaQuerozTargino.AoFrancescoConventi,oamigoTchesco.Aos parceiros de propósito no trabalho e na vida, por avivar o meu
menino: Alexandre Zorita, Ivo Ribeiro, Carlos Soares, Susi Maluf, ZildaFontolan.
ÀIrisMoreira,emespecial.AosadendoseproposiçõesdeSilvioBugellieaoscuidadosprimorosos
deAndersonCavalcanteeàequipedaBuzzEditora.ÀMaria,minhacompanheira,presençaleveedelicada.
www.robertotranjan.com.brfacebook.com/RobertoTranjanLinkedIn:[email protected]
METANOIA–Propósitonosnegócioswww.metanoia.com.brfacebook.com/metanoiapropositonosnegocios
17-09092
©2017BuzzEditora
PublisherANDERSONCAVALCANTEEditoraSIMONEPAULINOEditoraassistente SHEYLASMANIOTOProjetoESTÚDIOGRIFOAssistentesdedesign LAISIKOMAeSTEPHANIEY.SHURevisão DANIELFEBBAProduçãoe-bookBOOKNANDOLIVROS
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)(CâmaraBrasileiradoLivro,sp,Brasil)
Tranjan,RobertoOvelho e omenino [livro eletrônico] /RobertoTranjan. 1ª edição. SãoPaulo:BuzzEditora,
2017.144pp.1.1MB;ePUB;
ISBN978-85-93156-46-5
1. Carreira profissional – Desenvolvimento 2. Conduta de vida 3. Empreendedorismo 4.Desenvolvimentopessoal 5.Desenvolvimentoprofissional6.Sucessoi.Título.
cdd-658.421
Índicesparacatálogosistemático:1.Empreendedorismo:Desenvolvimentopessoaleprofissional:Administração 658.421
Todososdireitosreservadosà:BuzzEditoraLtda.AvenidaPaulista,726-MezaninoCEP:01310-100SãoPaulo,SP
Telefone:[5511]41712318[5511][email protected]