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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Ocupações, desobediência civil e participação política: um estudo de caso sobre a ocupação na reitoria da UFSM em 2011 1 Ana Graciela Videla da Cunha 2 Rosana Soares Campos 3 Rachel Loureiro Andreta 4 Resumo O presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise da ocupação da reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ocorrida em 2011, a fim de verificar se o suposto direito à desobediência civil legitima a ocupação dos estudantes, assim como a relação deste ato com a participação política. Esta ocupação foi selecionada como estudo de caso devido ao processo e resultados gerados: tempo de permanência, opinião da sociedade e da comunidade acadêmica sobre a ação, conflito entre as partes e decisões (paliativas e permanentes). O estudo, realizado através de análise documental e entrevistas com estudantes e representantes da UFSM envolvidos nas negociações aponta descumprimento da ordem legal, mas legitimidade na ação dos estudantes a partir da concepção de desobediência civil utilizada como forma de participação frente às mediações de política convencional que não são capazes de responder/resolver as demandas dos cidadãos (BAQUERO, 2004). Palavras-chave: Ocupações; Ocupação da reitoria da UFSM; desobediência civil; participação política. 1. Introdução Ocupações em propriedades, sejam elas privadas ou públicas, sempre geram controvérsias. De um lado, os que argumentam a ordem e a obediência à lei. De outro, os que defendem a ação como um direito de manifestação frente às injustiças. Embora polêmica, é um mecanismo de manifestação que tem sido bastante utilizado pelos movimentos sociais e estudantis. Em 2007, por exemplo, as reitorias das universidades federais foram marcadas por uma onda de ocupações, realizadas por estudantes, e justificadas pelo não cumprimento do Estado ao dever de fornecer uma educação de qualidade. Em 2011, as ações voltaram a se repetir, porém com um teor mais específico – reclamações sobre o não cumprimento das metas do REUNI. Dentro das inúmeras interpretações para essas ações, a desobediência civil surge como um argumento, justificativa e mecanismo de participação política. Sob essa ótica, a partir dos conceitos de desobediência civil e participação política que se a analisa a ocupação na reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 2011, com o objetivo de verificar se o suposto direito à desobediência civil legitima a ocupação dos estudantes. Esta ocupação foi selecionada como estudo de caso devido ao processo e resultados gerados: tempo de permanência, opinião da sociedade e da comunidade acadêmica sobre a ação, conflito entre as partes e decisões (paliativas e permanentes). O estudo, ainda em desenvolvimento, está sendo realizado a partir de análise documental e entrevistas com representantes dos estudantes e da UFSM envolvidos nas negociações. 1 Este artigo é parte da pesquisa de dissertação ainda em desenvolvimento “Desobediência Civil como mecanismo de garantia de direitos: um estudo sobre as ocupações na reitoria da UFSM em 2007 e 2011”, junto ao Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] 3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES/DS. Email: [email protected]

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I  Seminário  Internacional  de  Ciência  Política    Universidade  Federal  do  Rio  Grande  do  Sul  |  Porto  Alegre  |  Set.  2015  

Ocupações, desobediência civil e participação política: um estudo de caso sobre a ocupação na reitoria da UFSM em 20111

Ana Graciela Videla da Cunha2 Rosana Soares Campos 3

Rachel Loureiro Andreta4 Resumo

O presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise da ocupação da reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ocorrida em 2011, a fim de verificar se o suposto direito à desobediência civil legitima a ocupação dos estudantes, assim como a relação deste ato com a participação política. Esta ocupação foi selecionada como estudo de caso devido ao processo e resultados gerados: tempo de permanência, opinião da sociedade e da comunidade acadêmica sobre a ação, conflito entre as partes e decisões (paliativas e permanentes). O estudo, realizado através de análise documental e entrevistas com estudantes e representantes da UFSM envolvidos nas negociações aponta descumprimento da ordem legal, mas legitimidade na ação dos estudantes a partir da concepção de desobediência civil utilizada como forma de participação frente às mediações de política convencional que não são capazes de responder/resolver as demandas dos cidadãos (BAQUERO, 2004). Palavras-chave: Ocupações; Ocupação da reitoria da UFSM; desobediência civil; participação política. 1. Introdução

Ocupações em propriedades, sejam elas privadas ou públicas, sempre geram controvérsias. De um lado, os que

argumentam a ordem e a obediência à lei. De outro, os que defendem a ação como um direito de manifestação frente às

injustiças. Embora polêmica, é um mecanismo de manifestação que tem sido bastante utilizado pelos movimentos

sociais e estudantis. Em 2007, por exemplo, as reitorias das universidades federais foram marcadas por uma onda de

ocupações, realizadas por estudantes, e justificadas pelo não cumprimento do Estado ao dever de fornecer uma

educação de qualidade. Em 2011, as ações voltaram a se repetir, porém com um teor mais específico – reclamações

sobre o não cumprimento das metas do REUNI. Dentro das inúmeras interpretações para essas ações, a desobediência

civil surge como um argumento, justificativa e mecanismo de participação política.

Sob essa ótica, a partir dos conceitos de desobediência civil e participação política que se a analisa a ocupação

na reitoria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 2011, com o objetivo de verificar se o suposto direito à

desobediência civil legitima a ocupação dos estudantes. Esta ocupação foi selecionada como estudo de caso devido ao

processo e resultados gerados: tempo de permanência, opinião da sociedade e da comunidade acadêmica sobre a ação,

conflito entre as partes e decisões (paliativas e permanentes). O estudo, ainda em desenvolvimento, está sendo realizado

a partir de análise documental e entrevistas com representantes dos estudantes e da UFSM envolvidos nas negociações.

1 Este artigo é parte da pesquisa de dissertação ainda em desenvolvimento “Desobediência Civil como mecanismo de garantia de direitos: um estudo sobre as ocupações na reitoria da UFSM em 2007 e 2011”, junto ao Programa de Pós Graduação de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] 3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected] 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES/DS. Email: [email protected]

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O artigo está dividido em duas sessões. Inicialmente serão discutidos os conceitos que embasam este trabalho

e, posteriormente, apresentação do cenário das ocupações nas reitorias de universidades federais, e análise e discussão

da ocupação na reitoria da UFSM em 2011.

2. Quando a teoria justifica a empiria - a desobediência civil

Embora tenha havido alguma elaboração teórica sobre o direito de resistência em autores contratualistas, como

John Locke (1978), ainda no século XVII, a expressão “desobediência civil”, assim como o tratamento teórico

específico do atual conceito de desobediência civil surgiram com a publicação da obra “Desobediência Civil”, de Henry

David Thoreau, em 1849. O livro foi resultado da insatisfação do autor com o contexto norte-americano escravocrata e,

principalmente, de guerra contra o México, financiada pelo dinheiro arrecadado com a cobrança de altos impostos.

Forte crítico do Estado, o autor considerava essa cobrança, para o financiamento do aparelho, uma extorsão e a

submissão do indivíduo ao governo, uma injustiça.

Thoureau (1997) chama a atenção para o reconhecimento do direito à revolução, à resistência ao governo

quando a tirania e a ineficiência tornam-se insuportáveis:

Se alguém me dissesse que este é um mau governo porque tributa determinadas mercadorias estrangeiras trazidas a seus portos, é bastante provável que eu não movesse uma palha a respeito, já que posso passar sem elas. Todas as máquinas têm seu atrito, e isto possivelmente tem um lado bom que compensa o lado ruim. De qualquer modo, seria bastante nocivo fazer muito alvoroço por causa disso. Mas quando o atrito chega ao ponto de controlar a máquina, e a opressão e o roubo se tornam organizados, digo que não devemos mais ficar presos a tal máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população de uma nação que se comprometeu a ser o abrigo da liberdade é formado por escravos, e um país inteiro é injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei militar, penso que não é demasiado cedo para os homens honestos se rebelarem e darem início a uma revolução. O que torna este dever ainda mais urgente é o fato de que o país invadido não é o nosso mas é nosso o exército invasor (THOREAU, 1997, p. 3).

Para o autor, a desobediência não é apenas opinião, ou desaprovar o caráter e as medidas dos governos.

Conforme Thoreau (1997) é ação baseada em princípio, em percepção e execução do direito, que modifica coisas e

relações. “É essencialmente revolucionária e não condiz inteiramente com nada que lhe seja anterior. Ela não divide

apenas Estados e Igrejas, mas também famílias, ah!, divide o indivíduo, separando nele o diabólico do divino”. É nesse

sentido que o autor relata sobre desobedecer leis injustas. Porém, em Thoreau (1997), a desobediência é um ato do

indivíduo – o argumento coletivo não se faz presente no pensamento do filósofo.

É em Hanna Arendt (1973) que o tema apresenta importância enquanto ato coletivo. A autora parte da narração

da experiência de governo totalitarista da Alemanha nazista para elaborar sua peculiar noção de poder, a qual está

intimamente relacionada com a de desobediência civil e cuja compreensão é necessária para entender esta última

(AGUIAR, 2011). O objetivo da autora parece ser negar que poder seja algo do qual o Estado é detentor. Para Arendt,

poder não seria algo constituído, mas sim constituinte, isto é, poder seria mais como uma potência, uma capacidade, do

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que algo dado, estabelecido. Essa potência, segundo a autora, seria atualizada no momento em que os homens se

reúnem para conviver. Como ela afirma, “o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos e desaparece

quando eles se dispersam.” (ARENDT, 1973, pp. 212-213).

A partir dessa concepção de poder, o Estado passa a precisar constantemente do apoio atual, efetivo ― mesmo

que tácito ― dos cidadãos às suas ações, pois ele não detém, de antemão, o poder para tomar as medidas que bem

entender mesmo a contragosto dos governados. Neste contexto, o conceito de desobediência civil surge, na concepção

arendtiana, como um meio para reinstaurar o espaço público, o espaço em que os homens agem em conjunto, a fim de

criar novas relações e situações, em substituição àquelas com as quais não estão satisfeitos. Ao ser capaz de reinstaurar

o espaço público a desobediência civil acaba por ter o papel de sempre renovar e, assim, fortalecer a comunidade e, ao

ser capaz de criar novas relações entre os homens, ela assume, na concepção de Arendt, um caráter político (AGUIAR,

2011).

Para Arendt, uma vez que os cidadãos não estejam satisfeitos com as leis ou a forma de atuação do Estado, eles

podem ― e é mesmo conveniente que o façam ― praticar atos de desobediência civil. Mas tais atos devem ser

praticados em conjunto com outros cidadãos, todos movidos por interesses em comum e não praticados individualmente

e por interesse individual. Além disso, eles têm de ser praticados na esfera pública, objetivando dar visibilidade à

reivindicação de mudança subjacente ao ato e chamar outros cidadãos para a discussão. Ademais, a desobediência civil

não pode consistir, segundo Arendt, em atos de violência (ARENDT, 1973). Nesta mesma direção e no contexto de sua

teoria da justiça, John Rawls (1997) aborda a desobediência civil como um ato político, legítimo e ilegal:

[...] público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas de governo. Agindo desse forma, alguém se dirige ao senso de justiça da maioria da comunidade e declara que, e sua opinião ponderada, os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão sendo respeitados (RAWLS, 1997, p. 404).

A desobediência civil surge como um mecanismo de correção: ela serviria para apontar eventuais injustiças nas

instituições sociais e para tentar promover uma reforma corretiva nas mesmas. Com isso, ela contribuiria para reforçar

as instituições justas, constituindo, assim, uma prática legítima, embora ilegal (RAWLS, 1997). Rawls ressalta,

entretanto, que a desobediência civil deve ser praticada apenas quando se tiverem esgotados todos os meios legalmente

instituídos para reclamar acerca das injustiças, sendo, portanto, a última alternativa disponível.

Habermas também se debruçou sobre a desobediência civil, analisando-a como um mecanismo de garantia de

direito. Em trabalho intitulado “A desobediência civil: pedra de toque do Estado Democrático de Direito”, publicado

em 1985, esta seria um ato político realizado pelos cidadãos com o objetivo de se insurgir contra normas ou leis

injustas. Na compreensão de Habermas apud Hansen (2010), as normas de uma sociedade devem ser discutidas e

debatidas por todos aqueles que ela pode vir a afetar. Nesse sentido, quando uma norma é considerada injusta pelos

cidadãos, estes poderão praticar atos de desobediência civil a fim de sanar tal injustiça, os quais são considerados pelo

autor como práticas legítimas. O autor, contudo, reconhece a dificuldade de aceitação desse tipo de prática no bojo de

uma sociedade, uma vez que ela “é vista por muitos como o primeiro estágio de uma caminhada que conduzirá à

violência e ao terrorismo” (HANSEN, 2010).

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Na pretensão de sintetizar a desobediência civil enquanto conceito, para o seu Dicionário de Política, Bobbio

(2010) a analisa como uma forma particular de desobediência:

(...) na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la. Como tal, é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada não apenas como lícita mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor. (BOBBIO, 2010, p. 335)

Conforme Bobbio, a desobediência civil torna visível os que os cidadãos consideram como falhas do sistema,

compreendidas como injustas, ilegítimas ou inválidas. E é nesse sentido que o autor fala da importância da publicização

do ato para que outros cidadãos se sintam identificados.

Com uma postura mais radical sobre desobediência civil, Michael Walzer argumenta que desobedecer em certos casos

não seria apenas legítimo; seria, mais precisamente, um dever que surgiria para os indivíduos em determinadas

circunstâncias (POGREBINSCHI, 2004). As circunstâncias sob as quais surgiria tal dever seriam aquelas em que há

conflito entre os deveres dos indivíduos decorrentes de seu pertencimento a grupos menores e os deveres decorrentes de

seu pertencimento a um grupo maior, como o Estado, por exemplo. Sendo assim, os deveres de um indivíduo enquanto

cidadão de um Estado não se sobreporia, na visão de Walzer, a seus deveres, por exemplo, enquanto um membro de

uma comunidade minoritária (POGREBINSCHI, 2004).

Conforme o autor, o dever de desobedecer tem que ser cumprido em grupo, configurando um ato coletivo. Tal

ato tem também de ser praticado em público, mostrando a seriedade e o comprometimento de seus praticantes em se

explicar perante os demais cidadãos (WALZER, 1977). Cabe apontar, porém, que um aspecto em que as visões de

Walzer se distanciam das dos demais autores aqui tratados consiste em sua posição acerca do caráter violento ou não

dos atos de desobediência civil: de acordo com ele, embora seja mais adequado empreender a desobediência sem o uso

da violência, tal uso seria, por vezes, necessário para atingir os objetivos pretendidos. A ineficácia de meios não

violentos justificaria, para Walzer, o uso de violência contra a propriedade, sem que, com isso, seja comprometida a

legitimidade da prática (POGREBINSCHI, 2004).

A partir dos desenvolvimentos teóricos dos autores até aqui tratados, pode-se formular uma caracterização

geral da desobediência civil a partir da qual se pode trabalhar, segundo a qual ela consistiria em: (1) atos que têm como

objetivo fazer oposição à atuação do poder público quando os meios legalmente instituídos para demonstrar a

insatisfação com tais atos se mostrarem ineficazes; (2) atos políticos; (3) atos não individuais, mas sim coletivos; (4)

atos públicos, uma vez que buscam o reconhecimento de reivindicações por parte da opinião pública; (5) atos ilegais e

(6) atos não violentos. Com essa caracterização, é possível distinguir claramente a desobediência civil, tanto das

infrações comuns à lei, que não podem ser consideradas práticas legítimas, quanto da objeção de consciência, que é

considerada legítima por muitos autores, mas possui uma natureza distinta da desobediência civil, não se confundindo,

portanto, com ela. As infrações comuns à lei constituem atos praticados às escondidas, ao contrário dos atos de

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desobediência civil, que são praticados em público. Já a objeção de consciência pode ser distinguida da desobediência

civil por ser justificada através motivos de cunho íntimo, tais como valores morais e religiosos, diferentemente da

desobediência civil, que busca justificativa em interesses coletivos.

2.1 Participação Política

Avelar (2007) observa que, ligada à ideia de soberania popular, a participação política é um instrumento de

legitimação e fortalecimento das instituições democráticas e de ampliação dos direitos de cidadania. Conforme a autora,

são as formas e os canais de participação que variam de acordo com o contexto histórico, as tradições da cultura política

de um país ou região e também mediante a situação social dos que participam, ratificando que a lógica dos diferentes

atores nem sempre é a mesma.

No que se refere a essas formas e canais de participação, é importante salientar que durante muito tempo, a

produção intelectual sobre participação só reconheceu os espaços tradicionais da política, renegando a existência de um

outro tipo de participação, proveniente da sociedade civil, externada por meio de movimentos sociais, associações,

conselhos, etc. (GURZA LAVALLE apud NICOLETTI, 2013). Com isso, nos estudos clássicos sobre o tema – e

predominantes até meados da década de 1960 – a definição de participação se estruturava, sobretudo, em função das

modalidades eleitorais (BORBA, 2012).

Entretanto, Borba verifica que não demorou muito para que o entendimento de participação como o conjunto

de atividades relacionadas ao momento eleitoral mostrarem-se insuficientes: por serem demasiadamente restritivas,

tanto ao definir a influência como único repertório político quanto ao colocar o “governo” como destinatário por

excelência do ato político. No entendimento de Borba (2012), a literatura de movimentos sociais tem exemplos variados

para mostrar que, desde os anos 1960, há uma ampliação significativa naquilo que pode ser chamado de “repertórios

políticos”, para além da simples tentativa de influenciar as decisões governamentais.

A obra de Barnes e Kaase, de 1979, Political Action, é um marco na compreensão de participação política para

além do espaço formal. Borba (2012) observa que o ponto de partida desse trabalho são as ondas de protesto político

que varreram as democracias industriais avançadas no final da década de 1970, permitindo, assim, reconhecer as

atividades de protesto como uma modalidade de participação política, distanciando-se de uma anomalia típica dos

países subdesenvolvidos ou de uma crise de legitimidade das democracias.

O reconhecimento dos protestos como forma de participação, em Political Action, implicou, obviamente, em

novas formas de mensurar e classificar a participação política. Assim, dentre as inovações da obra, está a divisão entre

“modalidades convencionais” e “não convencionais” de participação. No escopo das modalidades convencionais, estão

o voto; atividades de campanha; atividade cooperativa e contato social; contato personalizado. Já as modalidades não

convencionais de participação abarcariam as atividades relacionadas ao engajamento em espaços fora da arena

tradicional – estando atreladas, nesse momento, sobretudo, a protestos (BORBA, 2012; NICOLETTI, 2013).

O trabalho de Verba, Scholzman e Brady (1995) foi também uma inovação ao incorporar a participação não

convencional como modalidade de participação, incluindo também modalidades não endereçadas ao governo, como,

por exemplo, o voluntariado - o que acaba por reafirmar a multidimensionalidade do fenômeno. Essas novas formas de

participação geram um novo espaço de representação, o chamado locus de representação extraparlamentar, onde os

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atores vocalizam publicamente interesses e falam em nome de grupos - a representação política deixa de ser

exclusividade dos parlamentares e o próprio Estado passa a reconhecer o papel da sociedade civil como representante

político.

Atualmente o conceito ampliado de participação permite reconhecer essas novas formas de participação como

fundamentais para o fortalecimento democrático, tendo em vista que as associações e os movimentos sociais estão

ampliando os seus repertórios de atuação e assumindo papéis de representação nos espaços institucionais que foram

criados em função das reivindicações e mobilizações sociais, preenchendo, assim, um quadro mais amplo de espaços

representativos e participativos, como observa Luchmann (2011).

Nesse cenário, onde novas formas de participação ganham espaço e são reconhecidas, até mesmo pelo Estado,

Baquero e Baquero (2012) observam que estudos empíricos têm apontado para o declínio ou para a estabilização das

formas convencionais de participação política e para a ampliação das modalidades não convencionais, bem como para

as iniciativas de caráter comunitário. Ainda, em anos recentes, tem se acrescentado a participação comunitária como

dispositivo alternativo de pressão dos gestores públicos, tendo em vista a ineficácia do uso de modalidades de

engajamento convencional e não convencional (BAQUERO; BAQUERO, 2012).

Norris (2007) entende que uma das causas do enfraquecimento de organizações tradicionais, tais como partidos

políticos, igrejas, sindicatos, etc., diz respeito ao desenvolvimento dessas novas formas de ativismo político, nomeadas,

por ela, “cause – oriented”. Hernandes (2012) explica que está inserida, nesse raciocínio, a ideia da tese de “cidadania

crítica”, sobre a qual Norris argumenta que os cidadãos se envolvem em formas não convencionais de participação

porque apresentam comportamentos críticos em relação às instituições políticas, questionando as elites estabelecidas.

Nesse caso, a desconfiança em instituições tradicionais estimularia a participação em protestos.

É neste sentido que o conceito de participação política de Brady (1999), como a ação de cidadãos comuns com

o objetivo de influenciar alguns resultados políticos, capta o significado desse tipo de participação que ultrapassa a

fronteira do eleitoral, e justifica atos de desobediência civil. Os estudos de Cohen e Arato (1999) trazem à tona essa

relação entre participação e desobediência civil. Esta última não somente sendo capaz de agir na garantia de

direitos fundamentais, mas também na ampliação de tais direitos, e, sobretudo, na ampliação da participação popular no

processo de decisão política, através da contestação de leis e normas elaboradas sem o respaldo popular, cuja

legitimidade seria contestada por atos desse tipo.

Conforme Lanças (2011),

O conceito de desobediência civil dentro da teoria de Cohen e Arato se faz compreensível diante dos conceitos de sociedade civil e movimentos sociais. Segundo tais autores, os novos movimentos sociais, que seriam característicos das democracias constitucionais contemporâneas, seriam os atores sociais capazes de articular mudanças nas leis positivadas (LANÇAS, 2011, p. 7).

Nessa abordagem focada na sociedade civil vem à tona dois aspectos novos dos movimentos sociais, a

influência da sociedade civil na sociedade política, enquanto uma maior democratização do processo político, e as

políticas da identidade, focadas na autonomia e na democratização das relações fora do âmbito político. Haveria, assim,

de acordo com Cohen e Arato (1999) uma dupla orientação dos movimentos sociais, divididos em objetivos ofensivos

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(lutas para solução de problemas; pressão nos parlamentos) e em objetivos defensivos (preservação das vias já

existentes; criação de novas vias de ação da esfera pública política...). Tais objetivos não são, contudo, excludentes, e os

movimentos sociais podem lançar mão da desobediência civil tanto no aspecto defensivo quanto no ofensivo

(LANÇAS, 2011).

Nesse sentido que, para Cohen e Arato (1999), a desobediência civil é vista como uma expressão de cidadania,

que permite aos cidadãos comuns influenciarem a sociedade política e colocarem a política profissional mais próxima

da opinião pública.

3. O cenário nacional das ocupações nas reitorias nas Universidades Federais

Em 2007 uma onda de ocupações das reitorias de universidades públicas federais brasileiras marcou o cenário

político universitário. Vários motivos em comum nas ocupações das diferentes universidades como: infra-estrutura e

assistência estudantil. Além da possibilidade de suas instituições aderirem ao programa REUNI (Programa de Apoio a

Planos de Reestruturação das Universidades Federais). O REUNI foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de

2007 e as 53 universidades federais brasileiras enviaram projetos de reestruturação pelo programa, os quais foram

aprovados. (OLIVEIRA, 2008, p. 24)

O REUNI foi formulado com o objetivo de “criar condições para a ampliação do acesso e permanência na

educação superior, no nível de graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos

existentes nas universidades federais.” (art. 1°, caput, do Decreto nº 6.096) Além disso, com a pretensão de elevar a

“taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para noventa por cento”, bem como elevar a “relação de

alunos de graduação em cursos presenciais por professor para dezoito.” (art. 1°, §1°, do Decreto nº 6.096) Uma vez

aprovados os seus projetos de reestruturação, as universidades tinham o prazo de cinco anos para sua implementação.

Para tanto, o Ministério da Educação prometeu liberar um incremento orçamentário, aumentando em 20% o orçamento

total destinado às universidades.

Em 2011, uma nova onda de ocupações nas reitorias das universidades federais visibiliza os problemas

enfrentados pelas IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) que aderiram ao REUNI, como falta de infra-

estrutura, de docentes e de técnicos administrativos. Com as ocupações, estudantes de 11 universidades federais, de

norte a sul do país, trouxeram à tona os antigos problemas de assistência estudantil e levantaram a bandeira da

“Expansão sem Qualidade” através do REUNI, sob a crítica de abertura de novas vagas nas universidades sem bases

física e de pessoal.

Mapa I – Universidades Federais com reitorias ocupadas em 2011

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Além das pautas em comum, as

ocupações nas reitorias de 11

universidades federais, que representavam 18% do total de universidades federais em 2011, foram marcadas pela tensa

negociação entre as partes. O exemplo extremo é o da ocupação da reitoria da Universidade Federal de Rondônia

(UNIR) por 50 dias, até os estudantes garantirem o cumprimento de seus pontos de pauta.

3.1 O estudo de caso – a ocupação na reitoria da UFSM em 2011

No dia primeiro de setembro de 2011 o movimento estudantil da UFSM decidiu ocupar o prédio da reitoria. A

decisão foi tomada durante assembleia dos estudantes, organizada pelo Diretório Central Acadêmico (DCE)

principalmente, em razão da precária situação de dois cursos: Terapia Ocupacional e Medicina. O primeiro sem espaço

físico, e o segundo; sem professores. Participaram da ocupação cerca de 200 estudantes, de 20 cursos da instituição.

Foram 12 dias de ocupação e tensas negociações até a desocupação do prédio com a garantia de reivindicações

cumpridas.

Os estudantes receberam apoio de várias organizações, entre elas sindicatos e partidos políticos, moções de

outras organizações estudantis, além da manifestação de pessoas físicas como o promotor de Defesa Comunitária de

Santa Maria – João Marcos Adede y Castro. Constatou-se também que muitos participantes eram vinculados ao PSOL,

PT, PC do B e Consulta Popular.

A pauta de reivindicações, publicizada em documento chamado Carta de Ocupação, foi elaborada no contexto

da ocupação, e dividida em dois eixos: pautas gerais (73) e pautas específicas (19). Extensa, a pauta geral abrangia

desde reivindicações como melhorias nos restaurantes universitários, melhoria na infra-estrutura das casas universitárias

e de biblioteca, concursos para docentes, 10% do PIB destinados à educação, fim das terceirizações, reformas de

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prédios, ampliação de laboratórios, até um novo modelo pedagógico, etc. As pautas específicas dos cursos de Medicina,

Enfermagem, Psicologia, Terapia Ocupacional, Relações Internacionais, Produção Editorial, Comunicação Social,

Fisioterapia e Educação Física solicitavam em suma professores e espaços físicos.

A ocupação da reitoria da UFSM em 2011 fez parte das ações de Jornadas de Luta pela Assistência Estudantil,

cujo objetivo era denunciar as condições de precariedade de diversos cursos, além de pautas específicas de assistência

ao estudante como: casas e restaurantes universitários, bolsas de estudo, etc. Mas também pode ser observada como

uma resposta à insatisfação dos estudantes com os resultados e consequências do REUNI na UFSM até aquele

momento.

A discussão e implementação do REUNI na UFSM é uma questão antiga ainda pendente entre estudantes e

instituição. Em dezembro de 2007, às vésperas da votação para a adesão ao programa no Conselho de Ensino, Pesquisa

e Extensão (CEPE), o então reitor Clóvis Lima, juntamente com seu vice Felipe Muller, conseguiu uma decisão judicial

que proibia qualquer um e qualquer tipo de manifestação junto à reitoria. Também ficava proibido o trancamento da

principal avenida de acesso à universidade. No dia da votação, a Polícia Federal foi chamada para que votação

transcorresse sem interrupções de manifestações contrárias. A adesão ao REUNI foi aprovada por 32 votos a favor e 13

contra. Quatro anos depois, a reitoria foi ocupada, sob o forte argumento de uma expansão sem qualidade da educação,

em uma referência à criação de cursos, campi e universidades através do REUNI, sem infra-estrutura e pessoal,

acarretando precarização no ensino.

Durante a ocupação, funcionários e demais pessoas que buscavam a reitoria para a resolução de algum

problema, não puderam entrar no prédio pelo acesso principal. Os acessos secundários foram fechados por decisão do

vice-reitor. Somente mediante a análise da Comissão de Ética (formada pelos ocupantes) o acesso da entrada principal

era liberado para questões urgentes relacionadas ao hospital universitário e às licitações necessárias para o atendimento

às propostas do movimento. Apesar desse impedimento, a ocupação do prédio, que ocorreu de forma pacífica, foi

marcada pela organização e conservação do patrimônio.

As negociações começaram cinco dias após a ocupação e foram mediadas por uma comissão de estudantes e de

representantes da UFSM formada pelos professores João Rodolpho Amaral Flôres, Pró-Reitor de Extensão; José

Marcos Froehlich, Pró Reitor Adjunto de Extensão; Lúcia Rejane Madruga, Pró-reitora Adjunta de Planejamento;

Ubiratan Yupinambá da Costa, Pró-Reitor Adjunto de Assustos Estudantis e Elisângela Mortari, coordenadora de

Comunicação Social. Após o primeiro contato, acertou-se uma mesa de negociações com reitor, vice-reitor, três

estudantes representando o DCE e três representantes dos conselhos da universidade. Durante as negociações, os

estudantes entregaram um documento ao reitor que chamaram de “manifestação formal propositiva, objetivando

avançar na concretização de melhorias para a comunidade universitária”; com prazos estipulados para o cumprimento

das reivindicações. E no dia 12 de setembro estudantes e representantes da Instituição chegaram a um consenso com

relação à pauta de reivindicações, pondo fim à greve estudantil.

Em documento endereçado “aos estudantes alojados no hall da reitoria e à comunidade acadêmica”, a reitoria

apresentou os pontos acordados entre as partes e seu comprometimento em atendê-los. Em sua página na internet, o

movimento de ocupação da reitoria manifestou satisfação com o resultado, mas vigilância.

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“O Movimento Estudantil deixou a Reitoria com vitórias concretas, mostrando que a luta e a mobilização fazem valer os nossos direitos. Serão formadas várias comissões paritárias (com mesmo peso de Estudantes, Docentes e Técnicos Administrativos em Educação) para acompanhar o andamento dos compromissos da Reitoria e audiências públicas mensais de prestação de contas serão realizadas andamento dos compromissos da Reitoria e audiências públicas mensais de prestação de contas serão realizadas (…) Ressaltamos que a nossa luta não termina com o fim da ocupação e que há uma necessidade de manter a mobilização nos cursos e a fiscalização da execução dos compromissos firmados pelo reitor” (Publicado em 13 de setembro de 2011 em www.ocupaçãoreitoriaufsm.wordpress.com)

As conquistas estudantis concentraram-se em questões mais pontuais como Rus, melhorias nas Casas de

Estudantes da UFSM e seus campi, expansão do horário de atendimento das bibliotecas central e setoriais e

atendimentos específicos dos cursos que fizeram reivindicações na pauta de ocupação. No documento da reitoria à

comunidade acadêmica os tópicos acordados são mais extensivos. Já o Diretório Acadêmico dos Estudantes preferiu a

cautela e apresentou em sua página o que considerou conquistas da ocupação.

3.1.2 Desobedecer a lei para conquistar direitos?

A ocupação da reitoria da UFSM em 2011 tem sido observada pelos estudantes como um marco na conquista

de reivindicações. Chama a atenção, ao contrário da de 2007, por sua concentração em alguns itens específicos da pauta

de reivindicações, além contínua demanda de luta por assistência estudantil – as consequências da expansão das

universidades através do REUNI, como falta de infra-estrutura e de servidores.

Parte de uma mobilização em âmbito nacional, a ocupação da reitoria evidenciou a insatisfação local frente ao

que chamaram de “expansão sem qualidade”.

Hoje, o movimento estudantil volta a ocupar a reitoria, após decisão tomada em Assembleia Geral a qual deliberou pela Jornada de Lutas pela Assistência Estudantil, somando-se às lutas e ocupações que estão ocorrendo nacionalmente, para denunciar as precariedades vividas na realidade dos diversos cursos e exigir o atendimento de nossas pautas reivindicatórias. A ocupação foi impulsionada pela mobilização de diversos cursos, como Terapia Ocupacional e Medicina, que têm sofrido com a intensa precarização do ensino superior público: falta de professores, falta de assistência estudantil, infra-estrutura insuficiente, terceirização e precarização do trabalho tanto de docentes, técnicos e estudantes, falta de democracia nos órgãos deliberativos (Trecho da Carta de Ocupação, 1 de setembro de 2011).

O documento (Carta de Ocupação) é um reflexo da interpretação dos movimentos estudantis sobre as políticas

de expansão universitária, considerando-a um processo autoritário, com motivações apenas quantitativistas, sem

considerar acesso, qualidade e permanência na instituição. Nesse sentido, a justificativa de ocupação do prédio pauta-se

em direção ao não cumprimento do papel da instituição “no que tange a contratação de novos professores e técnico-

administrativos e a melhoria da infraestrutura e da assistência estudantil – demandas históricas e de inegável deficiência

na atual expansão da Universidade”5. Por esta razão, em documento, os estudantes consideram o ato legítimo,

5 Trecho retirado de documento entitulado Nota de Esclarecimento Público, publicado em 6 de setembro de 2011, na página www.ocupaçãoreitoriaufsm.wordpress.com

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argumentando que “... se trata de um prédio público, onde o povo tem a liberdade e o dever de exigir respostas daqueles

que lidam com os recursos públicos”.6

Membro do DCE, atuando em uma das comissões da ocupação, o estudante A, sob questionamento, argumenta

que essa não era a única maneira de atingir os objetivos, mas foi o que se decidiu coletivamente. E explica que a

ocupação ocorreu, ao invés de outras formas de manifestação, porque nenhuma das pautas que se apresentou era uma

novidade para a reitoria da UFSM. Segundo o estudante A, algumas já tinham anos de mobilização. E mesmo as pautas

mais específicas, como as dos cursos, já haviam sido apresentadas, sem obtenção de respostas por parte da instituição.

Nessa direção, para o estudante A7, o respeito ao rito interno das instâncias do movimento estudantil

caracteriza a legitimidade da ocupação, apontando-a como ponto pacífico entre os ocupantes. “Nunca houve uma

contestação da legitimidade daquela ocupação”. E ressalta a legalidade do ato. “A ocupação nunca foi judicializada para

ser considerada ilegal. Não houve esse movimento por parte da Reitoria”.

Porém a afirmação da legitimidade do ato é uma constante nas falas, e documentos dos estudantes evidenciam

preocupação com futuras punições ou retaliações.

Assim, por compreendermos que esta atitude é legítima em defesa da educação pública, exigimos que o Reitor manifeste publicamente a ocupação e a paralisação da reitoria, expressando que a mesma encontra-se ocupada pelos estudantes e que estes não sofrerão retaliações como uso da força policial, seguranças, corte de luz, água , internet e perseguição política durante e depois da ocupação. Por entendermos que a luta é por uma educação de qualidade, exigimos que os dias em que estivermos ocupando a reitoria, as faltas em aulas e bolsas de trabalho e/ou pesquisa por parte dos estudantes ocupados sejam justificadas, assim como a perda de possíveis provas e trabalhos. Cabe reforçar que a ocupação é pacífica e nos comprometemos a não depredar o patrimônio público e a nos retirarmos do prédio da reitoria assim que nossas pautas forem atendidas, deixando o prédio limpo e organizado. (Carta resposta à diretoria da UFSM publicada em seis de setembro de 2011 no sítio www.ocupaçãoreitoriaufsm.wordpress.com)

Mas o comportamento estudantil, conforme o pró-reitor de Extensão na época da ocupação, João Rodolpho

Amaral Flores, articulador das negociações entre estudantes e reitoria, não foi colocado em discussão quanto a sua

legitimidade. Apenas questionados os motivos que levaram à ocupação. E nesse sentido, a interpretação do pró-reitor, é

de motivação político-ideológica-partidária, desvinculando-a de questões de infra-estrutura.

“Eu considero legítima a ocupação. No momento em que tu vive uma crise institucional, uma falta de condições de trabalho, precarização, só que eu acho aquele momento que nós tínhamos era uma situação inversa do que se vive hoje. Hoje, em 2015, eu imaginei que os estudantes iriam invadir a reitoria e iam ficar lá até um longo tempo. Por quê? Porque hoje nós estamos com dificuldade de fazer concurso, estamos com dificuldade de ir viajar, estamos com dificuldade de materiais, de reposição de equipamentos, porque o orçamento foi totalmente enxugado. Hoje, os estudantes não pararam. Naquele momento, que havia o REUNI em plena expansão, e sendo aplicados todos os recursos, tava tudo sendo aplicado, nós não tínhamos como fazer milagre, de fazer uma obra em uma semana. A obra leva seis meses, um ano (…) naquele momento que a universidade tinha as vagas garantidas pra vocês, tinha o orçamento, o orçamento tava vindo religiosamente. A universidade comprou

6 Idem. 7 Optou-se pela não identificação do estudante como um recurso de preservação do informante, já que não exerce nenhuma função específica, reportando-se em nome do grupo.

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os equipamentos, tudo aquilo que foi feito em termo de pacto com o governo. Uma questão de tempo para poder concluir o projeto com os recursos, quando eles fizeram a ocupação. Qual a real intenção que havia nisso aí?”

Embora questionando os motivos, o pró-reitor (em 2011) analisa a ocupação como uma forma de participação

política, mas critica o impedimento das pessoas de ir e vir no espaço público. Para ele, é um paradoxo lutar por direitos

e impedir o dos outros e pontua que a intenção dos estudantes, com essa medida, era forçar a UFSM a entrar com um

interdito proibitório na justiça, para a retirada dos ocupantes. Porém, conforme João Rodolpho Amaral Flores, o reitor

optou pela negociação.

“Para chamar o reitor de que? De ditador. Essa era a intenção dos estudantes naquela época. Esse era o fato que os estudantes esperavam alí na frente. (…) Que o reitor faz? Tudo, menos isso. (…) Ele foi costurando, porque assim, os estudantes queriam que ele caísse nelas, nessa, e ele disse: nessa eu não vou cair”.

O pró-reitor, na época, também ressalta que apesar das discussões, de algumas agressões verbais, não houve

violência física de nenhuma das partes. Mas evidencia o episódio da porta de vidro quebrada, que os estudantes,

segundo ele, argumentaram terem sido agredidos pela guarda da universidade. Fato que, registrado em vídeo,

confirmou-se inverídico; já que as imagens evidenciaram os estudantes se jogando contra a porta.

Diante dessas questões, concorda com um certo tensionamento entre os envolvidos no processo. Muito,

segundo ele, advindo da falta de uma pauta concreta por parte dos estudantes.

“Era uma questão política contra o reitor. Se construiu uma pauta em cima de várias outras pautas. Olha, chegaram a pedidos absurdos em determinados momentos, que eu dizia assim: mas vocês estão reivindicando coisas de burgueses, coisas que os trabalhadores que nos sustentam aqui dentro não têm em casa. Eu acho que gente tem que ter um mínimo de comedimento (…) tinha reivindicação de tudo que tu pudesse imaginar (…) Não tínhamos pautas antes da ocupação. A única coisa que os estudantes fazem, eles iam ao reitor, eventualmente, e questionavam alguma coisa”.

Conforme João Rodolpho Amaral Flores, a maioria das reivindicações já estava sendo atendida, era apenas

uma questão de tempo, como construção de mais RUs, casas do estudante, prédio para novos cursos, concursos para

professores.

A tensão também foi reconhecida pelos estudantes, porém, devido, conforme o estudante A, “há uma linha de

radicalização defendida por setores da Reitoria (…) Inicialmente, a negociação foi feita com uma comissão nomeada

pelo professor Felipe Muller, e com alguns professores tensionando muito a negociação, por parte da Reitoria. Tanto

que em algum momento, nós pedimos que a negociação fosse direta com o Reitor”.

Apesar do tensionamento, ambas partes analisam o resultado da ocupação de modo positivo. Para os

estudantes, foi um momento de muitas conquistas, nunca antes possibilitadas na história do movimento estudantil da

UFSM. Para a reitoria, a pauta foi atendida e o desgate, com a ocupação, desnecessário, conforme o então pró-reitor de

Extensão.

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“... se tivesse acontecido num outro canal, não daria o mesmo efeito? Daria! Agora os estudantes dizem que não! Que tem que ter pressão. Eu acho isso aí um rito dentro do movimento estudantil. Como eu disse, talvez já esteja ultrapassado, esse desgaste todo que gera dentro da comunidade interna na comunidade externa”.

Nesse sentido, é que a compreensão dessas interpretações distintas, a respeito do tipo de manifestação e de seu

conteúdo, explicam o difícil diálogo para se chegar a um consenso. De um lado a visão de uma luta político-partidária.

De outro, a visão de uma luta política de assistência estudantil.

4. Algumas considerações

A pesquisa, ainda em desenvolvimento, aponta elementos que sugerem a legitimidade da ocupação da reitoria

da UFSM em 2011 a partir da interpretação do ato como desobediência civil. Assentada nessa argumentação, a

ocupação organizada pelos estudantes parece vir ao encontro de alguns pontos básicos que caracterizam esse

mecanismo de participação política. Até o momento, pode-se verificar que foi um ato pacífico, de não-violência.

Coletivo. Público. Político. E marcado pela ilegalidade, visto que a lei protege a propriedade, com mecanismos de

reintegração do bem.

O questionamento, porém, perpassa pela motivação do ato. A teoria da desobediência civil, conforme

Habermas, Toureau, Arenth, Rawls, baseia-se na configuração de leis injustas e na indução para mudá-las. Que

elementos da pauta de ocupação se caracterizam nessa direção? Mas, por outro lado, Rawls e Arent chamam a atenção

também para o questionamento das políticas de governo e forma de atuação do Estado, respectivamente, como

argumento de desobediência civil. Nesse sentido, os argumentos dos estudantes, para a ocupação, podem ser

explicados à luz da desobediência civil. Vários pontos da pauta de ocupação apontam a insatisfação do grupo com a

atuação da reitoria. Porém, o próprio pró-reitor de Extensão, na ocasião, argumenta que são reivindicações que estão

sendo cumpridas por etapas, como a construção de prédios, ampliação, contratação de servidores. Pontos já definidos

em orçamento e, com orçamento, conforme o pró-reitor, que não justificavam a ocupação. O então pró-reitor de

Extensão levanta também o questionamento de pautas infundadas apresentadas pelos estudantes, que acabam

banalizando a luta. Ele cita o exemplo, em entrevista, do tempo de espera e comidas diferenciadas nos RUs.

O objetivo da ação sucinta ainda investigação para ratificá-la como desobediência civil, já que nos discursos

das partes envolvidas não se encontra um consenso. Uma ação político-partidária com interesses restritos não a legitima

como desobediência civil. Mas uma ação política de questionamento e insatisfação da ação pública referente aos

interesses coletivos garante ao ato aceitação, mesmo na ilegalidade.

Um outro fator a ser colocado em questionamento para entender o ato como desobediência civil é o aspecto da

interferência na liberdade civil, ou seja, o impedimento de ir e vir de qualquer cidadão. Fato ocorrido durante a

ocupação.

Essa forma de participação política para intervir e influenciar resultados politicos (Brady, 1999) é antiga,

questionável por parte da opinião pública, quando por exemplo a entende como violação de propriedade, foge aos tipos

de participação política tradicional, mas tem sido muito usada como mecanismo pressão mais imediato ao atendimento

das demandas dos cidadãos. Ela impõe uma tomada de decisão das partes envolvidas, durante o processo, que levará

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necessariamente ao julgamento das ações como legítimas ou não – o uso da violência, do arcabouço legal para garantir

e justificar a reintegração da posse, da condução das negociações.

Se vista como um ato de desobediência civil e este, consequentemente, um mecanismo de participação política,

a ocupação pode ser interpretada, na teoria de Cohen e Arato, como a influêcia da sociedade civil na sociedade política?

Ou sob a tese de “cidadania crítica”, argumentada por Pipa Norris, na qual os cidadãos se envolvem em formas não

convencionais de participação porque apresentam comportamentos críticos em relação às instituições políticas?

Os dados coletados e analisados até o momento somente nos sugerem possibilidades de interpretações em

direção a considerar a ocupação da reitoria da UFSM em 2011 como um ato de desobediência civil. Mas ainda estão

implícitos elementos que podem direcionar a pesquisa: a ação do movimento representou a insatisfação da comunidade

acadêmica? Era uma ação para mudança de atitudes políticas ou redirecionamento ideológico do comando da

Universidade? Nesse sentido, este trabalho é uma reflexão inicial sobre um objeto cuja categoria de análise, a

desobediência civil, necessita ser muito bem compreendida a fim de não confundi-la com qualquer outro tipo de

desobediência, desconfigurando, assim, o real sentido de sua legitimidade.

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