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ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIOCincias Humanas e suas Tecnologias

FILOSOFIA GEOGRAFIA HISTRIA SOCIOLOGIA

Volume 3

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ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIO

ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIOVolume 1: Linguagem, Cdigos e suas Tecnologias Volume 2: Cincias da Natureza, Matemtica e suas Tecnologias Volume 3: Cincias Humanas e suas Tecnologias

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Cincias humanas e suas tecnologias / Secretaria de Educao Bsica. Braslia : Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2006. 133 p. (Orientaes curriculares para o ensino mdio ; volume 3) ISBN 85-98171-44-1 1. Contedos curriculares. 2. Ensino mdio. 3. Filosoa. 4. Geograa. 5. Histria. 6. Sociologia. I. Brasil. Secretaria de Educao bsica. CDU 371.214.12 CDU 373.512.14

MINISTRIO DA EDUCAO SECRETARIA DE EDUCA BSICA

ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIOCincias Humanas e suas Tecnologias

BRASLIA 2006

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ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIO

Secretaria de Educao Bsica Departamento de Polticas de Ensino Mdio Equipe Tcnica do DPEM Alpio dos Santos Neto Maria de Lourdes Lazzari Maria Eveline Pinheiro Villar de Queiroz Marlcia Delno Amaral Mirna Frana da Silva de Arajo Pedro Tomaz de Oliveira Neto Projeto Grco Eduardo Meneses | Quiz Design Grco Reviso de Textos Liberdade de Expresso Lunalva da Conceio Gomes DPEM/SEB/MEC PROSA Produo Editorial Ltda TDA Desenho e Arte

Tiragem: 120.041 exemplares

Ministrio da EducaoSecretaria de Educao Bsica Esplanada dos Ministrios, Bloco L, sala 500 CEP: 70.047-900 Braslia DF Tel. (061) 2104-8010 Fax: (61) 2104-9643 http:// www.mec.gov.br

Cincias Humanas e suas Tecnologias

Carta ao ProfessorAs Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio foram elaboradas a partir de ampla discusso com as equipes tcnicas dos Sistemas Estaduais de Educao, professores e alunos da rede pblica e representantes da comunidade acadmica. O objetivo deste material contribuir para o dilogo entre professor e escola sobre a prtica docente. A qualidade da escola condio essencial de incluso e democratizao das oportunidades no Brasil, e o desao de oferecer uma educao bsica de qualidade para a insero do aluno, o desenvolvimento do pas e a consolidao da cidadania tarefa de todos. Para garantir a democratizao do acesso e as condies de permanncia na escola durante as trs etapas da educao bsica educao infantil, ensino fundamental e mdio , o governo federal elaborou a proposta do Fundeb (Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Prossionais da Educao). A Proposta de Emenda Constituio (PEC) do Fundeb foi construda com a participao dos dirigentes das redes de ensino e de diversos segmentos da sociedade. Dessa forma, colocou-se acima das diferenas o interesse maior pela educao pblica de qualidade. Entre as vrias aes de fortalecimento do ensino mdio destacam-se o Prodeb (Programa de Equalizao das Oportunidades de Acesso Educao Bsica) e a implementao do PNLEM (Programa Nacional do Livro do Ensino Mdio). A Secretaria de Educao Bsica do MEC passou a publicar ainda livros para o professor, a m de apoiar o trabalho cientco e pedaggico do docente em sala de aula. A institucionalizao do ensino mdio integrado educao prossional rompeu com a dualidade que historicamente separou os estudos preparatrios para a educao superior da formao prossional no Brasil e dever contribuir com a melhoria da qualidade nessa etapa nal da educao bsica. A formao inicial e continuada tambm passa a ser oferecida em parceria com as Secretarias de Educao e instituies de ensino superior para a formao

dos professores, com a implantao do Pr-Licenciatura, do ProUni (Programa Universidade para Todos) e da Universidade Aberta do Brasil. Preparar o jovem para participar de uma sociedade complexa como a atual, que requer aprendizagem autnoma e contnua ao longo da vida, o desao que temos pela frente. Esta publicao no um manual ou uma cartilha a ser seguida, mas um instrumento de apoio reflexo do professor a ser utilizado em favor do aprendizado. Esperamos que cada um de vocs aproveite estas orientaes como estmulo reviso de prticas pedaggicas, em busca da melhoria do ensino.

Ministrio da Educao

Secretaria de Educao Bsica

Cincias Humanas e suas Tecnologias

ApresentaoOs atuais marcos legais para oferta do ensino mdio, consubstanciados na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (n. 9394/96), representam um divisor na construo da identidade da terceira etapa da educao bsica brasileira. Dois aspectos merecem destaque. O primeiro diz respeito s nalidades atribudas ao ensino mdio: o aprimoramento do educando como ser humano, sua formao tica, desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pensamento crtico, sua preparao para o mundo do trabalho e o desenvolvimento de competncias para continuar seu aprendizado. (Art. 35) O segundo prope a organizao curricular com os seguintes componentes: base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversicada que atenda a especicidades regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e do prprio aluno (Art. 26); planejamento e desenvolvimento orgnico do currculo, superando a organizao por disciplinas estanques; integrao e articulao dos conhecimentos em processo permanente de interdisciplinaridade e contextualizao; proposta pedaggica elaborada e executada pelos estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as de seu sistema de ensino; participao dos docentes na elaborao da proposta pedaggica do estabelecimento de ensino. O grande avano determinado por tais diretrizes consiste na possibilidade objetiva de pensar a escola a partir de sua prpria realidade, privilegiando o trabalho coletivo. Ao se tratar da organizao curricular tem-se a conscincia de que a essncia da organizao escolar , pois, contemplada. Por outro lado, um conjunto de questes emerge, uma vez que o currculo traz na sua construo o tratamento das dimenses histrico-social e epistemolgica. A primeira arma o valor hist-

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rico e social do conhecimento; a segunda impe a necessidade de reconstruir os procedimentos envolvidos na produo dos conhecimentos. Alm disso, a poltica curricular deve ser entendida como expresso de uma poltica cultural, na medida em que seleciona contedos e prticas de uma dada cultura para serem trabalhados no interior da instituio escolar. Trata-se de uma ao de flego: envolve crenas, valores e, s vezes, o rompimento com prticas arraigadas. A Secretaria de Educao Bsica, por intermdio do Departamento de Poltica do Ensino Mdio, encaminha para os professores o documento Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio com a inteno de apresentar um conjunto de reexes que alimente a sua prtica docente. A proposta foi desenvolvida a partir da necessidade expressa em encontros e debates com os gestores das Secretarias Estaduais de Educao e aqueles que, nas universidades, vm pesquisando e discutindo questes relativas ao ensino das diferentes disciplinas. A demanda era pela retomada da discusso dos Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Mdio, no s no sentido de aprofundar a compreenso sobre pontos que mereciam esclarecimentos, como tambm, de apontar e desenvolver indicativos que pudessem oferecer alternativas didtico-pedaggicas para a organizao do trabalho pedaggico, a m de atender s necessidades e s expectativas das escolas e dos professores na estruturao do currculo para o ensino mdio. A elaborao das reexes que o Ministrio da Educao traz aos professores iniciou em 2004. Desde ento, deniu-se um encaminhamento de trabalho que garantisse a articulao de representaes da universidade, das Secretarias Estaduais de Educao e dos professores para alcanar uma produo nal que respondesse a necessidades reais da relao de ensino e aprendizagem. Para dar partida a essa tarefa, constituiu-se um grupo de trabalho multidisciplinar com professores que atuam em linhas de pesquisa voltadas para o ensino, objetivando traar um documento preliminar que suscitasse o debate sobre contedos de ensino mdio e procedimentos didtico-pedaggicos, contemplando as especicidades de cada disciplina do currculo. Na elaborao de material especco para cada disciplina do currculo do ensino mdio, o grupo procurou estabelecer o dilogo necessrio para garantir a articulao entre as mesmas reas de conhecimento. A publicao do documento preliminar ensejou a realizao de cinco Seminrios Regionais e de um Seminrio Nacional sobre o Currculo do Ensino Mdio. A pauta que orientou as reunies tratou da especicidade e do currculo do ensino mdio, tendo como referncia esse documento.

APRESENTAO

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A anlise dessa produo contou com representantes das Equipes Tcnicas das Secretarias Estaduais de Educao, com professores de cada estado participante e, em alguns casos, com a representao de alunos. Aps os seminrios, deu-se incio ao processo bastante intenso de consolidao das anlises e consideraes levantadas nos debates e apresentao do trabalho a demais professores-pesquisadores para leitura crtica do resultado alcanado. Assim, este documento que chega escola fruto de discusses e contribuies dos diferentes segmentos envolvidos com o trabalho educacional. O prprio processo, envolvendo diferentes representaes e focos de anlise, indica a natureza do texto cujo resultado est aqui apresentado. Isto , um material que apresenta e discute questes relacionadas ao currculo escolar e a cada disciplina em particular. O currculo a expresso dinmica do conceito que a escola e o sistema de ensino tm sobre o desenvolvimento dos seus alunos e que se prope a realizar com e para eles. Portanto, qualquer orientao que se apresente no pode chegar equipe docente como prescrio quanto ao trabalho a ser feito. O Projeto Pedaggico e o Currculo da Escola devem ser objetos de ampla discusso para que suas propostas se aproximem sempre mais do currculo real que se efetiva no interior da escola e de cada sala de aula. oportuno lembrar que os debates dos diferentes grupos manifestaram grandes preocupaes com as bases materiais do trabalho docente. Certamente a situao funcional da equipe escolar, envolvendo jornada de trabalho, programas de desenvolvimento prossional e condies de organizao do trabalho pedaggico, tem um peso signicativo para o xito do processo de ensino-aprendizagem. Cabe equipe docente analisar e selecionar os pontos que merecem aprofundamento. O documento apresentado tem por inteno primeira trazer referncias e reexes de ordem estrutural que possam, com base no estudo realizado, agregar elementos de apoio sua proposta de trabalho. A Secretaria de Educao Bsica, por meio do Departamento de Polticas de Ensino Mdio busca incentivar, com esta publicao, a comunidade escolar para que conceba a prtica cotidiana como objeto de reexo permanente. Somente assim, se encontrar um caminho profcuo para a educao.

Diretoria do Departamento de Polticas de Ensino Mdio

Cincias Humanas e suas Tecnologias

SumrioCONHECIMENTOS DE FILOSOFIAIntroduo 1 Identidade da losoa 2 Objetivos da losoa no ensino mdio 3 Competncias e habilidades em Filosoa 4 Contedos de losoa 5 Metodologia Referncias bibliogrcas 15 21 28 29 34 36 40

CONHECIMENTOS DE GEOGRAFIAIntroduo 1 Saberes e experincias do ensino de Geograa 1.1 Objetivos da Geograa no Ensino Mdio 1.2 O papel do professor de Geograa no contexto do mundo atual 1.3 O projeto poltico-pedaggico da escola e a Geograa 2 O ensino de geograa: uma combinao entre conceitos e saberes 2.1 Sobre Contedos e Metodologias no Ensino da Geograa 2.2 Os conceitos estruturantes para o ensino de Geograa 3 Estabelecendo conexes entre conceitos e contedos 3.1 Por que pensar em eixos temticos? 3.2 Os eixos temticos: a articulao entre os conceitos e os contedos 4 Avaliao Referncias Bibliogrcas 43 44 44 46 48 49 49 52 54 55 56 60 61

CONHECIMENTOS DE HISTRIAIntroduo 1.2 O currculo do ensino mdio e a disciplina histria 2 A histria no ensino mdio 2.1 Questes de contedo 2.1.1 Histria 2.1.2 Processo histrico 2.1.3 Tempo (temporalidades histricas) 65 66 70 70 72 73 74

2.1.4 Sujeitos histricos 2.1.5 Trabalho 2.1.6 Poder 2.1.7 Cultura 2.1.8 Memria 2.1.9 Cidadania 2.2 Questes metodolgicas 3 Perspectivas de ao pedaggica 3.1 A seleo e a organizao dos contedos 3.1.1 A seleo dos contedos 3.1.2 Diversidade na apresentao dos contedos. 3.2 Construo e uso dos conceitos e dos procedimentos no processo de ensino-aprendizagem 3.3 O projeto poltico-pedaggico da escola e o ensino de Histria 4 Referncias bibliogracas

75 75 76 77 78 79 80 84 84 86 87 90 92 94

CONHECIMENTOS DE SOCIOLOGIAIntroduo 1 A Sociologia no ensino mdio 1.1 Pressupostos metodolgicos 1.2 A pesquisa sociolgica no ensino mdio 1.2.1 Prticas de ensino e recursos didticos 2 guisa de concluso Referncias Bibliogrcas 101 115 116 125 127 131 132

CONHECIMENTOS DE FILOSOFIA

Consultores Antonio Edmilson Paschoal Joo Carlos Salles Pires da Silva

Leitores Crticos Ethel Menezes Rocha Moacyr Ayres Novaes Filho Pedro Tomaz de Oliveira Neto

Captulo

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Cincias Humanas e suas TecnologiasCONHECIMENTOS DE FILOSOFIA

INTRODUOA Filosoa deve ser tratada como disciplina obrigatria no ensino mdio, pois isso condio para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nvel de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando. No entanto, mesmo sem o status de obrigatoriedade, a Filosoa, nos ltimos tempos, vem passando por um processo de consolidao institucional, correlata expanso de uma grande demanda indireta, representada pela presena constante de preocupaes loscas de variado teor. Chama a ateno um leque de temas, desde reexes sobre tcnicas e tecnologias at inquiries metodolgicas de carter mais geral concernentes a controvrsias nas pesquisas cientcas de ponta, expressas tanto em publicaes especializadas como na grande mdia. Tambm so prementes as inquietaes de cunho tico, que so suscitadas por episdios polticos nos cenrios nacional e internacional, alm dos debates travados em torno dos critrios de utilizao das descobertas cientcas. Situao anloga foi detectada em outras instncias de discusso pblica e mobilizao social, como o evidenciam, por exemplo, os debates relativos conduta de veculos de comunicao, tais como televiso e rdio. Ainda que, na grande maioria dos casos, no se possa falar de uma conceituao rigorosa, no se pode ignorar que nessas discusses esto envolvidos temas, noes e critrios de ordem losca. Isso signica que h uma certa demanda da sociedade por uma linha de reexo que fornea instrumentos para o adequado equacionamento de tais problemas. Uma prova disso que mesmo a grande mdia no se furta ao aproveitamento dessas oportunidades para levar a pblico debates de idias no nvel losco, ainda que freqentemente de modo supercial ou unilateral. O tratamento da Filosoa como um componente curricular do ensino mdio, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porm, como um desao, pois a satisfao dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade s so possveis se forem estabelecidas condies adequadas para sua presena como disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e hu-

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ORIENTAES CURRICULARES PARA O ENSINO MDIO

manos. Ademais, pensar a disciplina Filosoa no ensino mdio exige tambm uma discusso sobre os cursos de graduao em Filosoa, que preparam os futuros prossionais, e da pesquisa losca em geral, uma vez que, especialmente nessa disciplina, no se pode dissoci-la do ensino, da produo losca e da transmisso do conhecimento. Considerando a reexo acerca da Filosoa no ensino mdio, cabe mencionar uma diculdade peculiar: trata-se da reimplantao de uma disciplina por muito tempo ausente na maioria das instituies de ensino, motivo pelo qual ela no se encontra consolidada como componente curricular dessa ltima etapa da educao bsica quer em materiais adequados, quer em procedimentos pedaggicos, quer por um histrico geral e sucientemente aceito. Tendo deixado de ser obrigatria em 1961 (Lei no 4.024/61) e sendo em 1971 (Lei n 5.692/71) excluda do currculo escolar ocial, criou-se um hiato em termos de seu amadurecimento como disciplina. E embora na dcada de 1990 (Lei n 9.394/96) se tenha determinado que ao nal do ensino mdio o estudante deva dominar os contedos de Filosoa e Sociologia necessrios ao exerccio da cidadania (artigo 36), nem por isso a Filosoa passou a ter um tratamento de disciplina, como os demais contedos, mantendo-se no conjunto dos temas ditos transversais. Assim, a idia de rediscutir os parmetros curriculares para a disciplina traz novo flego para a sua consolidao entre os componentes curriculares do ensino mdio, e, com eles e outras iniciativas, a losoa pode e deve retomar seu lugar na formao de nossos estudantes. Respeitada a diversidade prpria dos nveis de ensino, vemos desenhar-se, sem soluo de continuidade e em todo o pas, um padro elevado e comum tanto para o ensino de Filosoa como para a formao de docentes, superando-se progressivamente a antiga objeo de que por ausncia de prossionais qualicados seria desastrosa a introduo da Filosoa no ensino mdio. Aqui, entre outros motivos, a qualicao desejada para nossos prossionais decorre, em grande medida, da ampliao e da melhoria dos cursos de graduao e da clara ampliao da rede de ps-graduao, com a existncia de quase trinta programas de ps-graduao em Filosoa em todo o pas. Um ponto central, cuja relevncia talvez escape a reas que j o tm resolvido, a obrigatoriedade do ensino de Filosoa. Muitas das ambigidades dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) anteriores resultam da indenio, que consiste em apontar a necessidade da Filosoa, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas condies curriculares. A armao da obrigatoriedade, inclusive na forma da lei, torna-se essencial para qualquer debate interdisciplinar, no qual a Filosoa nada teria a dizer, no fora tambm ela tratada como disciplina, ou

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seja, como conjunto particular de contedos e tcnicas, todos eles amparados em uma histria rica de problematizao de temas essenciais e que, por conseguinte, exige formao prossional especca, s podendo estar a cargo de prossionais da rea. Caso contrrio, ela se tornaria uma vulgarizao perigosa de boas intenes que s podem conduzir a pssimos resultados. Cabe insistir na centralidade da Histria da Filosoa como fonte para o tratamento adequado de questes loscas. Com efeito, no realizamos no ensino mdio uma simplicao ou uma mera antecipao do ensino superior e sim uma etapa especca, com regras e exigncias prprias, mas essas s podem ser bem compreendidas ou satisfeitas por prossionais formados em contato com o texto losco e, desse modo, capazes de oferecer tratamento elevado de questes relevantes para a formao plena dos nossos estudantes. Como sabemos, uma simples didtica (mesmo a mais animada e aparentemente crtica) no por si s losca. No basta ento o talento do professor se no houver igualmente uma formao losca adequada e, de preferncia, contnua. Isto , pois, parte essencial desta discusso. Ser capaz de valer-se de A Filosoa cumpre, anal, elementos do cotidiano pode tornar rica, um papel formador, por exemplo, uma aula de Fsica, mas no articulando noes torna um discurso sobre a natureza uma de modo bem mais aula de Fsica, no sentido disciplinar que duradouro... estamos dispostos, coletiva e institucionalmente, a reconhecer. Da mesma forma, a utilizao de valorosos materiais didticos pode ligar um conhecimento losco abstrato realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a simples aluso a questes ticas no tica, nem losoa poltica a mera meno a questes polticas, no sendo o desejo de formar cidados o suciente para uma leitura losca, uma vez que tampouco prerrogativa exclusiva da Filosoa um pensamento crtico ou a preocupao com os destinos da humanidade. Com isso, a boa formao em Filosoa , sim, condio necessria, mesmo quando no suciente, para uma boa didtica losca. Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosoa no a pode desejar como um pequeno luxo, um saber supruo que venha a acrescentar noes aparentemente requintadas a saberes outros, os verdadeiramente teis. A Filosoa cumpre, anal, um papel formador, articulando noes de modo bem mais duradouro que o porventura afetado pela volatilidade das informaes. Por isso mesmo, compreender sua importncia tambm conceder-lhe tempo. De modo especco, importa atribuir-lhe carga horria suciente xao do que

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lhe prprio. Nesse sentido, prope-se um mnimo de duas horas-aula semanais para a disciplina, apontando ademais que deva ser ministrada em mais de uma srie do ensino mdio. No desconhecemos, porm, que essas questes envolvem diferenas regionais e so subordinadas a distintas correlaes polticas, de sorte que deixamos essa proposio como um horizonte a ser considerado nas formulaes dos diversos projetos pedaggicos. Outra decorrncia da obrigatoriedade da Filosoa , por conseguinte, uma reexo sobre sua especicidade e seus pontos de contato com outras disciplinas, cabendo ressaltar que, a nosso juzo, a Filosoa no se insere to-somente na ... a noo de competncia rea de cincias humanas. A compreenno pode ser apresentada so da Filosoa como disciplina refora, como soluo mgica sem paradoxo, sua vocao transdisciplipara as diculdades do nar, tendo contato natural com toda ciensino, mas tambm ncia que envolva descoberta ou exercite no constitui obstculo demonstraes, solicitando boa lgica intransponvel. ou reexo epistemolgica. Da mesma forma, pela prpria valorizao do texto losco, da palavra e do conceito, verica-se a possibilidade de estabelecer proveitoso intercmbio com a rea de linguagens. Alm de contribuir para a integrao dos currculos e das outras disciplinas, a armao da Filosoa como componente curricular do ensino mdio traz tona questes inerentes prpria disciplina, tais como: a concepo terica do ensino de Filosoa como Filosoa; as abordagens metodolgicas especcas; e, sobretudo, os contedos que podem estruturar o ensino. Os PCN vigentes para a disciplina, assim como os anteriores, sofrem da ambigidade que pretenderam curar e muitas vezes oscilam entre enunciar pouco e enunciar excessivamente. Assim, ao lado de uma cautela excessiva, podemos encontrar passos por demais doutrinrios que terminam por roubar Filosoa um de seus aspectos mais ricos, a saber, a multiplicidade de perspectivas, que no deve ser reduzida a uma voz unilateral. Mostrou-se, pois, necessria uma reformulao que evite imposies doutrinrias, mesmo quando resultantes das melhores intenes. Um currculo de Filosoa deve contemplar a diversidade sem desconsiderar o professor que tem suas posies, nem impedir que ele as defenda. Essa honestidade inclusive condio de coerncia. Ao mesmo tempo, a orientao geral em um currculo de Filosoa pode to-somente ser losca, e no especicamente kantiana, hegeliana, positivista ou marxista. A cautela losca ainda mais necessria nesse nvel de ensino, no qual posturas por demais

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doutrinrias podem sufocar a prpria possibilidade de dilogo entre a Filosoa e as outras disciplinas, cabendo sempre lembrar que as tomadas de posies, mesmo as politicamente corretas, no so ipso facto losocamente adequadas ou propcias ao ensino. Nesse debate, a noo de competncia no pode ser apresentada como soluo mgica para as diculdades do ensino, mas tambm no constitui obstculo intransponvel. Afastou-se assim tudo que nesse termo possa sugerir competio ou adequao exvel ao mercado de trabalho, ressaltando-se, primeiro, que a denio de competncia no pode ser exterior prpria disciplina, e, segundo, que a competncia pode realizar-se no interesse de contato com nossa tradio e nossa especicidade losca. Nesse sentido, o currculo desejado se articula com o perl de prossional que deve ser formado nos cursos de graduao em Filosoa, cujas habilidades e competncias so bem denidas em documento da comisso de especialistas no ensino de Filosoa da Secretaria de Educao Superior (SESu) do Ministrio da Educao. Essas consideraes iniciais reproduzem, em parte, o Relatrio das Discusses sobre as Orientaes Curriculares do Ensino Mdio e a Filosoa, resultante de uma srie de seminrios regionais e de um seminrio nacional realizados em 2004 sob a coordenao do Departamento de Polticas de Ensino Mdio da Secretaria de Educao Bsica do Ministrio da Educao. Esse texto uma das peas institucionais que subsidiam o presente documento, dando-lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parmetros Curriculares do Ensino Mdio e a Filosoa, as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduao em Filosoa1 e a Portaria das Diretrizes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2005 para a rea de Filosoa.2 O processo de redao deste documento coincidiu com um novo quadro institucional para a disciplina Filosoa. Em primeiro lugar, os cursos de graduao em Filosoa passaram a ser submetidos avaliao institucional, tendo sido nomeada uma comisso para elaborar os critrios para a futura elaborao de provas para o Enade 2005 da rea de Filosoa. Os trabalhos dessa comisso certamente contriburam para o amadurecimento das discusses sobre a composio da disciplina para o ensino mdio, na medida em que se armaram algumas posies acerca da graduao e das competncias esperadas do prossional formado nos cursos de licenciatura em Filosoa. A primeira deciso importante1 As Diretrizes foram elaboradas para o MEC-SESu por uma comisso de especialistas de ensino de Filosoa, composta pelos professores lvaro Valls (Unisinos), Nelson Gomes (UnB) e Oswaldo Giacoia Jnior (Unicamp). 2 A elaborao da portaria contou com apoio de comisso composta pelos professores Alfredo Carlos Storck (UFRG), Antonio Edmilson Paschoal (PUC-PR), Ethel Menezes Rocha (UFRJ), Joo Carlos Salles Pires da Silva (UFBA), Milton Meira do Nascimento (USP) e Nelson Gonalves Gomes (UnB).

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da comisso foi a de no separar, no momento da avaliao, o bacharelado e a licenciatura em Filosoa, uma vez que, como bem rezam as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduao em Filosoa, ambas as habilitaes devem oferecer substancialmente a mesma formao bsica, em termos de contedo e de qualidade, com uma slida formao de Histria da Filosoa, que capacite para a compreenso e a transmisso dos principais temas, problemas, sistemas loscos, assim como para a anlise e a reexo crtica da realidade social em que se insere. Em segundo lugar, decidiu-se que a avaliao de cursos de graduao em Filosoa deve tomar como eixo central o currculo mnimo composto pelas cinco matrias bsicas: Histria da Filosoa, Teoria do Conhecimento, tica, Lgica e Filosoa Geral: Problemas Metafsicos. Enfatizando o papel da histria da losoa e das demais disciplinas bsicas, a comisso indicou os pontos centrais da avaliao do prossional que ir atuar com a citada disciplina. Com isso, concorda-se com a posio expressa nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduao em Filosoa de que o elenco de tais disciplinas tem permitido aos melhores cursos do pas um ensino exvel e adequado. Ao lado disso, tomam corpo em todo o pas as discusses acerca da formao do professor de Filosoa no ensino mdio, especialmente em funo dos impactos causados nos cursos de graduao pela nova legislao para as licenciaturas (CNE. Resoluo CNE/CP 2/2002. Dirio Ocial da Unio, Braslia, 4 de maro de 2002. Seo 1, p. 9). A nova legislao estabelece, em seu Artigo 1o, 400 horas de prtica como componente curricular e 400 horas de estgio curricular supervisionado. Tendo em conta as diculdades de se integralizar tal carga horria sem perder de vista a formao bsica em contedo e a qualidade da formao do prossional da rea (formao que no deve diferenciar, substancialmente, sob esse aspecto, o bacharel e o licenciado), possvel armar que a preparao especca de atividades e a seleo de material didtico para o ensino mdio podem e devem ser consideradas quando da integralizao curricular, orientando as atividades prticas previstas tanto em ocinas de pesquisa e produo de material didtico como em sua aplicao durante o estgio supervisionado. Portanto, o presente documento busca sistematizar os resultados de uma ampla discusso em curso na rea de Filosoa, desde a caracterizao da disciplina at a preparao do prossional que ir atuar com ela, oferecendo subsdios para a denio de temas e contedos a serem trabalhados, bem como do material didtico a ser confeccionado. Ao evitar estabelecer de antemo os contedos ou uma linha a ser seguida e enfatizar ainda a especicidade da Filosoa em relao s outras disciplinas, bem como a necessidade de um ensino de qualidade no ensino mdio, destaca-se o respeito tanto ao prossional da rea com as peculia-

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ridades de sua formao quanto ao carter plural e diverso da Filosoa. Tem-se aqui como pressuposto que no existe uma Filosoa, mas Filosoas, e que a liberdade de opo dentro de seu universo no restringe seu papel formador.

1 IDENTIDADE DA FILOSOFIAA pergunta acerca da natureza da losoa um primeiro e permanente problema losco. No podendo ser solucionado aqui mais que parcialmente (nem devendo ser solucionado integralmente em nenhum lugar), cabe-nos, porm, a tarefa de delinear alguns elementos para uma contextualizao mais adequada dos conhecimentos loscos no ensino mdio. Tomando-se como ponto de partida o j mencionado Inciso III do 1o do Artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei n 9.394 de 20/12/1996), no qual se arma que o educando ao nal do ensino mdio deve demonstrar o domnio dos conhecimentos de Filosoa e de Sociologia necessrios ao exerccio da cidadania, faz-se necessria alguma compreenso, mesmo provisria e descritiva, do que se pode entender por Filosoa, de modo que, em seguida, a possamos tambm relacionar com uma possvel compreenso do termo cidadania e seu importante exerccio. O termo Filosoa recobre muitos sentidos, mesmo em sua prtica prossional. Em certa medida, contra uma ingnua cobrana lgica de univocidade, ... a Filosoa costuma a ambigidade no , em seu caso, um quebrar a naturalidade malefcio, resultando de uma sua exigncom que usamos as cia ntima. Se a questo o que Fsica? palavras, tornando-se no exatamente um problema fsico, a reexo. questo o que Filosoa? talvez um primeiro e recorrente problema losco, e a ela cada lsofo sempre procurar responder baseado nos conceitos pelos quais elabora seu pensamento. No h ento como controlar universalmente tal ambigidade seja por decreto ou por alguma definio restritiva. No obstante, vale observar que no interior de cada pensamento a exigncia de univocidade volta a impor-se. comum o embarao que sentimos diante da pergunta sobre o sentido da Filosoa. De certa forma, como se nos indagassem acerca de algo que no est nem pode estar bem resolvido. No fugimos aqui a uma resposta. Ao contrrio, indicamos explicitamente, em primeiro lugar, que nenhuma pode ser ingnua, uma vez que cada resposta est comprometida com pontos de vista eles prprios loscos. Assim, responder pergunta j losofar, sendo perigosa e engana-

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dora a inocncia. Uma resposta aparentemente universal se situa logo em um campo particular (no aristotelismo, no platonismo, no marxismo, etc.), sendo a trama que lhe confere sentido um misto de autonomia do pensador e de instalao em um contexto histrico. Ademais, se descrevemos alguns procedimentos caractersticos do losofar, no importando o tema a que se volta nem a matriz terica em que se realiza, podemos localizar o que caracteriza o losofar. Anal, sempre distintivo do trabalho dos lsofos sopesar os conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-comuns que aceitaramos sem reexo (por exemplo, o mundo existe?) ou de questes bem mais intrincadas, como a que ope o determinismo de nossas aes ao livre arbtrio. Com isso, a Filosoa costuma quebrar a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reexo. Pretende decerto ser um discurso consciente das coisas, como a cincia; entretanto, diferencia-se dessa por pretender ainda ser um discurso consciente de si mesmo, um discurso sobre o discurso, um conhecimento do conhecimento. No pergunta simplesmente se isso ou aquilo verdadeiro; antes indaga: o que pode ser verdadeiro? Ou ainda, o que a verdade? Por isso, a Filosoa corrosiva mesmo se reverente, pois at a covardia ou a servido que porventura algum lsofo defenda exigir considerandos e passar pelo crivo da linguagem.3 Se a Filosoa no uma cincia (ao menos no no sentido em que se usa essa palavra para designar tradies empricas de pesquisa voltadas para a construo de modelos abstratos dos fenmenos) e tampouco uma das belas-artes (no sentido potico de ser uma atividade voltada especicamente para a criao de objetos concretos), ela sempre teve conexes ntimas e duradouras com os resultados das cincias e das artes. Ao dirigir o olhar para fora de si, no entanto, a Filosoa tem a necessidade, ao mesmo tempo, de se denir no interior do losofar como tal, isto , naquilo que tem de prprio e diferente de todos os outros saberes. Antes de qualquer coisa, diante da grande variedade e da diversidade dos modos e das correntes de pensamento, no se pode perder de vista que possvel falar em Filosoa e no apenas em Filosoas, nem se pode esquecer que uma maneira de losofar se relaciona com todas as outras de um modo peculiar. Algum acaso escolhe uma maneira de losofar porque a considera correta e heuristicamente proveitosa do ponto de vista da sua fertilidade conceptual? Nesse sentido, quando os primeiros pensadores apontaram na direo da verdade e da razo de ser das coisas, uma concepo losca dene parmetros, possibilidades de pensar que supostamente trariam verdade razo ou, se preferirmos, fariam a razo desvelar a essncia por trs da aparncia. E embora hoje ningum parea ter o

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Cf. SALLES, Joo Carlos, Escovando o tempo a contrapelo, in Ideao Magazine, n 1, p. 5-6.

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privilgio particular de indicar qual o critrio correto e adequado para a razo ou a verdade, tambm correto que nenhuma Filosoa pode signicativamente abandonar a pretenso de razo com que veio ao mundo sem contradizer exatamente sua procura por enxergar para alm das aparncias. Caso nos coloquemos numa perspectiva externa (digamos, a de um observador das atividades culturais)4, podemos considerar que tudo o que h so losoas. Entretanto, ao examinarmos a questo de um ponto de vista interno (a saber, a perspectiva do prprio agente social que se sente convocado para a empresa ... a atividade losca da investigao losca), ento h losoa. privilegia um certo Existe ademais um critrio geral para disvoltar atrs, um tinguir, por exemplo, uma crena de uma reetir por que a Filosoa, porquanto a losoa, ao contrrio prpria possibilidade da mera crena, apresenta-se fundamentada e a natureza do em boas razes e argumentos. E a prtica daimediatamente dado quele agente social poder ser considerada se tornam alvo de losca quando justicada. multiplicidainterrogao. de real de linhas e orientaes loscas e ao grande nmero de problemas herdados da grande tradio cultural losca, somamse temas e problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo-se em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posies loscas. No entanto, tambm verdade que essa disperso discreta de um losofar no nos pode impedir de reconhecer o que h de comum em nosso trabalho: a especicidade da atividade losca enquanto expressa, sobretudo, em sua natureza reexiva. Independentemente de como determinada orientao losca estiver congurada, ela sempre resulta no tanto de uma investigao que tematiza diretamente este ou aquele objeto, mas, sobretudo, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como eles se nos tornam acessveis. Mais do que o disposto viso, a atividade losca privilegia um certo voltar atrs, um reetir por que a prpria possibilidade e a natureza do imediatamente dado se tornam alvo de interrogao. Observadas assim as diferenas de inteno nas vrias abordagens loscas, o conceito de reexo, em geral, abarca duas dimenses distintas que freqentemente se confundem. Primeira: a reconstruo racional, quando

4 Neste ponto, como em vrios outros, mantivemos em parte o texto dos PCN de 1999, endossando, assim, seu contedo. O mesmo no se aplica aos PCN+, de 2002, que pouco contriburam para esta discusso.

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o exame analtico se volta para as condies de possibilidade de competncias cognitivas, lingsticas e de ao. nesse sentido que podem ser entendidas as lgicas, as teorias do conhecimento, as epistemologias e todas as elaboraes loscas que se esforam para explicar teoreticamente um saber pr-terico que adquirimos medida que nos exercitamos num dado sistema de regras. Segunda: a crtica, quando a reexo se volta para os modelos de percepo e de ao compulsivamente restritos pelos quais, em nossos processos de formao individual ou coletiva, nos iludimos a ns mesmos, de sorte que, por um esforo de anlise, a reexo consegue agr-los em sua parcialidade, vale dizer, em seu carter propriamente ilusrio. nesse sentido que podemos compreender as tradies de pesquisa do tipo da crtica da ideologia, das genealogias, da psicanlise, da crtica social e todas as elaboraes tericas motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de uma falsa conscincia e de extrair disso conseqncias prticas. Em suma, a resposta de cada professor de Filosoa do ensino mdio pergunta que losoa? sempre depender da opo por um modo determinado de losofar que considere justicado. Alis, relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiolgica a partir da qual l o mundo, pensa e ensina. Isso s tende a reforar sua credibilidade como professor de Filosoa, uma vez que no lhe falta um padro, um fundamento a partir do qual pode dar incio a qualquer esboo de crtica. Por certo, h talvez Filosoas mais ou menos crticas sem que isso diminua a importncia formadora e sempre algo corrosiva de todo losofar. No entanto, independentemente da posio adotada (sendo pressuposto que o professor se responsabilize por ela), ele s pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha losca um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formao cultural de cada um e deve ser de todo diverso de uma doutrinao. Compreendendo a noo de Filosoa desse modo, a um s tempo lbil e rigoroso, devemos convir que a noo de cidadania no escapa de opes loscas, no sendo assim um conceito unvoco, nem um mero ponto de partida xo e de todo estabelecido. Em verdade, tal noo aparece como um resultado de um processo losco, sendo ele mesmo travado por nossa reexo. Em todo caso, conservando uma ampla margem para produtivas redenies loscas, o termo torna-se mais um desao para uma disciplina formadora e menos um conjunto de informaes doutrinrias que decoraramos como a um hino patritico. Tendo em conta a necessidade de se esboar alguma correlao entre conhecimentos de Filosoa e uma concepo de cidadania presente na legislao vigente, podemos tomar como ponto de partida o explicitado como cidadania

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nos documentos das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio. Assim, o Artigo 2o da Resoluo CEB n 3, de 26 de junho de 1998, reporta-nos aos valores apresentados na Lei n 9.394, a saber: I. os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidados, de respeito ao bem comum e ordem democrtica; II. os que fortaleam os vnculos de famlia, os laos de solidariedade humana e de tolerncia recproca. Tendo em vista a observncia de tais valores, o Artigo 3o da mesma Resoluo exorta-nos coerncia entre a prtica escolar e princpios estticos, polticos e ticos, a saber: I. a Esttica da Sensibilidade, que dever substituir a da repetio e padronizao, estimulando a criatividade, o esprito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade, bem como facilitar a constituio de identidades capazes de suportar a inquietao, conviver com o incerto e o imprevisvel, acolher e conviver com a diversidade, valorizar a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as formas ldicas e alegricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da sexualidade e da imaginao um exerccio de liberdade responsvel; II. a Poltica da Igualdade, tendo como ponto de partida o reconhecimento dos direitos humanos e dos deveres e direitos da cidadania, visando constituio de identidades que busquem e pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o respeito ao bem comum, o protagonismo e a responsabilidade no mbito pblico e privado, o combate a todas as formas discriminatrias e o respeito aos princpios do Estado de Direito na forma do sistema federativo e do regime democrtico e republicano; III. a tica da Identidade, buscando superar dicotomias entre o mundo da moral e o mundo da matria, o pblico e o privado, para constituir identidades sensveis e igualitrias no testemunho de valores de seu tempo, praticando um humanismo contemporneo, pelo reconhecimento, pelo respeito e pelo acolhimento da identidade do outro e pela incorporao da solidariedade, da responsabilidade e da reciprocidade como orientadoras de seus atos na vida prossional, social, civil e pessoal. Independentemente, neste momento, de qualquer avaliao acerca da concepo que se apresenta na legislao, cabe ressaltar, em primeiro lugar, que seria criticvel tentar justicar a Filosoa apenas por sua contribuio como um instrumental para a cidadania. Mesmo que pudesse faz-lo, ela nunca deveria ser limitada a isso. Muito

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mais amplo , por exemplo, seu papel no processo de formao geral dos jovens. Em segundo lugar, deve-se ter presente, em funo da prpria legislao, que a formao para a cidadania, alm da preparao bsica para o trabalho, a nalidade sntese da educao bsica como um todo (LDB, Artigo 32) e do ensino mdio em especial (LDB, ... qual a contribuio artigo 36). No se trata, portanto, de um paespecca da Filosoa pel particular da disciplina Filosoa, nesse em relao ao exerccio conjunto, oferecer um tipo de formao que da cidadania para essa tenha por pressuposto, por exemplo, incutir etapa da formao? nos jovens os valores e os princpios menA resposta a essa cionados, nem mesmo assumir a responsaquesto destaca o papel bilidade pela formao para a solidariedapeculiar da losoa no de ou para a tolerncia. Tampouco caberia a ela, isoladamente, o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico (LDB, artigo 35, inciso III). Uma vez que possvel formar cidados sem a contribuio formal da Filosoa, seria certamente um erro pensar que a ela, exclusivamente, caberia tal papel, como se fosse a nica disciplina capaz de faz-lo, como se s outras disciplinas coubesse o ensinamento de conhecimentos tcnicos e a ela o papel de formar para uma leitura crtica da realidade. Esse na verdade um papel do conjunto das disciplinas e da poltica pblica voltada para essa etapa da formao. No se trata, portanto, de a Filosoa vir a ocupar um espao crtico que se teria perdido sem ela, permitindo-se mesmo um questionamento acerca de sua competncia em conferir tal capacidade ao aluno. Da mesma maneira, no se pode esperar da Filosoa o cumprimento de papis anteriormente desempenhados por disciplinas como Educao Moral e Cvica, assim como no papel da Filosoa suprir eventual carncia de um lado humanstico na formao dos estudantes. A pergunta que se coloca : qual a contribuio especca da Filosoa em relao ao exerccio da cidadania para essa etapa da formao? A resposta a essa questo destaca o papel peculiar da losoa no desenvolvimento da competncia geral de fala, leitura e escrita competncia aqui compreendida de um modo bastante especial e ligada natureza argumentativa da Filosoa e sua tradio histrica. Cabe, ento, especicamente Filosoa a capacidade de anlise, de reconstruo racional e de crtica, a partir da compreenso de que tomar posies diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos loscos quanto textos no loscos e formaes discursivas no explicitadas em textos) e emitir opinies acerca deles um pressuposto indispensvel para o exerccio da cidadania.

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Neste ponto, em que se procura a conuncia entre a especicidade da Filosoa e seu papel formador no ensino mdio, cabe enfatizar um aspecto peculiar que a diferencia de outras reas do saber: a relao singular que a Filosoa mantm com sua histria, sempre retornando a seus textos clssicos para descobrir sua identidade, mas tambm sua atualidade e sentido. Com efeito, se estudamos a obra terica de um socilogo como Weber ou Durkheim, dizemos estar fazendo teoria sociolgica. To ntima, porm, a relao entre a Filosoa e sua histria que seria absurdo dizer que estudando Kant ou Descartes estejamos fazendo algo como uma teoria losca, pois na leitura de textos loscos que se constituem problemas, vocabulrios e estilos de fazer simplesmente Filosoa. E isso se aplica tanto para a pesquisa em Filosoa quanto para seu ensino. Mais ainda, [...] no possvel fazer Filosoa sem recorrer a sua prpria histria. Dizer que se pode ensinar losoa apenas pedindo que os alunos pensem e reitam sobre os problemas que os aigem ou que mais preocupam o homem moderno sem oferecer-lhes a base terica para o aprofundamento e a compreenso de tais problemas e sem recorrer base histrica da reexo em tais questes o mesmo que numa aula de Fsica pedir que os alunos descubram por si mesmos a frmula da lei da gravitao sem estudar Fsica, esquecendo-se de todas as conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforo e do trabalho monumental de Newton.5 salutar, portanto, para o ensino da Filosoa que nunca se desconsidere a sua histria, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competncia e tambm elementos que despertam nossa vocao para o trabalho losco. Mais que isso, recomendvel que a histria da Filosoa e o texto losco tenham papel central no ensino da Filosoa, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temtica, no sendo excessivo reforar a importncia de se trabalhar com os textos propriamente loscos e primrios, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literrios e jornalsticos, por exemplo o que pode ser bastante til e instigante nessa fase de formao do aluno. Porm, a partir de seu legado prprio, com uma tradio que se apresenta na forma amplamente conhecida como Histria da Filosoa, que a Filosoa pode proporse ao dilogo com outras reas do conhecimento e oferecer uma contribuio peculiar na formao do educando.

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NASCIMENTO, Milton, apud SILVEIRA, Ren, Um sentido para o ensino de Filosoa no ensino mdio, p. 142.

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2 OBJETIVOS DA FILOSOFIA NO ENSINO MDIOA Filosoa deve compor, com as demais disciplinas do ensino mdio, o papel proposto para essa fase da formao. Nesse sentido, alm da tarefa geral de pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualicao para o trabalho (Artigo 2 da Lei n 9.394/96), destaca-se a proposio A Filosoa cumpre, de um tipo de formao que no uma mera anal, um papel oferta de conhecimentos a serem assimilaformador, uma vez dos pelo estudante, mas sim o aprendizado que articula noes de uma relao com o conhecimento que lhe de modo bem mais permita adaptar-se com exibilidade a novas duradouro que condies de ocupao ou aperfeioamento outros saberes... posteriores (Artigo 36, Inciso II) o que signica, mais que dominar um contedo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos de forma signicativa. A educao deve centrar-se mais na idia de fornecer instrumentos e de apresentar perspectivas, enquanto caber ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um conhecimento til no corresponde a um saber prtico e restrito, quem sabe habilidade para desenvolver certas tarefas. H, com isso, uma importante mudana no foco da educao para o aluno, que, tomando como ponto de partida a sua formao ou em termos mais amplos a constituio de si, deve posicionar-se diante dos conhecimentos que lhe so apresentados, estabelecendo uma ativa relao com eles e no somente apreendendo contedos. A Filosoa cumpre, anal, um papel formador, uma vez que articula noes de modo bem mais duradouro que outros saberes, mais suscetveis de serem afetados pela volatilidade das informaes. Por conseguinte, ela no pode ser um conjunto sem sentido de opinies, um sem-nmero de sistemas desconexos a serem guardados na cabea do aluno que acabe por desencoraj-lo de ter idias prprias. Os conhecimentos de Filosoa devem ser para ele vivos e adquiridos como apoio para a vida, pois do contrrio dicilmente teriam sentido para um jovem nessa fase de formao. Outro objetivo geral do ensino mdio constante na legislao e de interesse para os objetivos dessa disciplina a proposio de aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico (Lei n 9.394/96, Artigo 36, Inciso III). Embora se trate de uma idia vaga, o aprimoramento como pessoa humana

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indica a inteno de uma formao que no corresponda apenas necessidade tcnica voltada a atender a interesses imediatos, como por exemplo do mercado de trabalho. Tratar-se-ia antes de um tipo de formao que inclua a constituio do sujeito como produto de um processo, e esse processo como um instrumento para o aprimoramento do jovem aluno. O objetivo da disciplina Filosoa no apenas propiciar ao aluno um mero enriquecimento intelectual. Ela parte de uma proposta de ensino que pretende desenvolver no aluno a capacidade para responder, lanando mo dos conhecimentos adquiridos, as questes advindas das mais variadas situaes. Essa capacidade de resposta deve ultrapassar a mera repetio de informaes adquiridas, mas, ao mesmo tempo, apoiar-se em conhecimentos prvios. Por exemplo, caberia no apenas compreender cincias, letras e artes, mas, de modo mais preciso, seu signicado, alm de desenvolver competncias comunicativas intimamente associadas argumentao. Ademais, sendo a formao geral o objetivo e a condio anterior at mesmo ao ensino prossionalizante, o ensino mdio deve tornar-se a etapa nal de uma educao de carter geral, na qual antes se desenvolvem competncias do que se memorizam contedos.

3 COMPETNCIAS E HABILIDADES EM FILOSOFIASob essa perspectiva formadora e de superao de um ensino meramente enciclopdico, desenvolveu-se a idia de um ensino por competncias. Tal concepo, no entanto, no pode ser admitida sem a denncia da coincidncia agrante entre o perl do educando esboado e, por exemplo, certos documentos do Banco Mundial. A exibilizao aparece, ento, sob outra luz, como competncias que podem ser aplicadas a uma grande variedade de empregos e permitir s pessoas adquirirem habilidades e conhecimentos especcos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho.3 Nesse sentido, no se pode perder de vista que a mesma lgica que introduz o conhecimento losco por ser til no distinta da que o suprimiria por ser inconveniente. Em ambas as situaes, o estudante considerado instrumento, ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um instrumento. Deixaremos de lado, no entanto, neste momento, a armao sobre a coincidncia entre o desenvolvimento de competncias cognitivas e culturais e o

6 BANCO MUNDIAL, 1995, p. 63, apud SANTIAGO, Anna, Poltica educacional, diversidade e cultura: a racionalidade dos PCN posta em questo, p. 503.

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que se busca na esfera da produo. Medir-se pelo que se espera sempre delicado. Anal, em uma sociedade desigual, pode esperar-se tambm o desigual, ameaando um processo global de formao que deveria servir correo da desigualdade. Afastado, porm, esse aspecto, a noo de competncia parece vir ao encontro do labor losco. Com efeito, ela sempre interior a cada disciplina, no havendo uma noo universal. Sendo da ordem das disposies, s pode ser lida e reconhecida luz de matrizes conceituais especcas. Em certos casos, a competncia mostra-se na elaborao de hipteses, visando soluo de problemas. Em outros casos, porm, uma vez que as competncias no se desenvolvem sem contedos nem sem o apoio da tradio, a competncia pode signicar a recusa de solues aparentes por recurso ao aprofundamento sistemtico dos problemas. A pergunta que se faz, portanto, : de que capacidades se est falando quando se trata de ensinar Filosofia no ensino mdio? Da capacidade de abstrao, do desenvolvimento do pensamento sistmico ou, ao contrrio, da compreenso parcial e fragmentada dos fenmenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar mltiplas alternativas para a soluo de um ... a contribuio problema, ou seja, do desenvolvimento do mais importante pensamento crtico, da capacidade de trabada Filosoa: fazer o lhar em equipe, da disposio para procurar e estudante aceder a aceitar crticas, da disposio para o risco, de uma competncia saber comunicar-se, da capacidade de buscar discursivo-losca. conhecimentos. De forma um tanto sumria, pode-se afirmar que se trata tanto de competncias comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir contedos lgicos prprios da Filosofia, quanto de competncias, digamos, cvicas, que podem fixar-se igualmente luz de contedos filosficos. Podemos constatar, novamente, uma convergncia entre o papel educador da Filosofia e a educao para a cidadania que se postulou anteriormente. Os conhecimentos necessrios cidadania, medida que se traduzem em competncias, no coincidem, necessariamente, com contedos, digamos, de tica e de filosofia poltica. Ao contrrio, destacam o que, sem dvida, a contribuio mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competncia discursivo-filosfica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o desenvolvimento geral de competncias comunicativas, o que implica um tipo de leitura, envolvendo capacidade de anlise, de inter-

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pretao, de reconstruo racional e de crtica. Com isso, a possibilidade de tomar posio por sim ou por no, de concordar ou no com os propsitos do texto um pressuposto necessrio e decisivo para o exerccio da autonomia e, por conseguinte, da cidadania. Considerando-se em especial a competncia para a leitura, a pergunta que se impe , afinal, que competncia de leitura no poderia ser desenvolvida, por exemplo, por um profissional da rea de Letras? O que seria um olhar especificamente filosfico? No basta dizer que especificamente filosfico o olhar analtico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreenso mais profunda da produo textual especfica que tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desenvolva um tal olhar. O fundamental aparece a seguir, conferindo a marca de contedo e de mtodo filosfico: imprescindvel que ele tenha interiorizado um quadro mnimo de referncias a partir da tradio filosfica, o que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos prprios textos dessa tradio, mesmo que no exclusivamente neles. Assim, quer como centro quer como referncia, para recuperar uma distino do professor Franklin Leopoldo e Silva, a histria da Filosofia (no como um saber enciclopdico ou ecltico) torna-se pedra de toque de nossa especificidade. Uma indicao clara do que se espera do professor de Filosofia no ensino mdio pode ser encontrada nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduao em Filosoa e pela Portaria INEP n 171, de 24 de agosto de 2005, que instituiu o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de Filosoa, que tambm apresenta as habilidades e as competncias esperadas do prossional responsvel pela implementao das diretrizes para o ensino mdio: a) capacitao para um modo especicamente losco de formular e propor solues a problemas, nos diversos campos do conhecimento; b) capacidade de desenvolver uma conscincia crtica sobre conhecimento, razo e realidade scio-histrico-poltica; c) capacidade para anlise, interpretao e comentrio de textos tericos, segundo os mais rigorosos procedimentos de tcnica hermenutica; d) compreenso da importncia das questes acerca do sentido e da signicao da prpria existncia e das produes culturais; e) percepo da integrao necessria entre a Filosoa e a produo cientca, artstica, bem como com o agir pessoal e poltico; f) capacidade de relacionar o exerccio da crtica losca com a promoo integral da cidadania e com o respeito pessoa, dentro da tradio de defesa dos direitos humanos.

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Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso de Filosoa, seja ele licenciado ou bacharel, deve apresentar uma slida formao em Histria da Filosoa, que o capacite a: a) compreender os principais temas, problemas e sistemas loscos; b) servir-se do legado das tradies loscas para dialogar com as cincias e as artes, e reetir sobre a realidade; c) transmitir o legado da tradio e o gosto pelo pensamento inovador, crtico e independente. Tendo presente, pois, a grande harmonia, ao menos nominal, entre os dois nveis de ensino, que se complementam e se solicitam, de se esperar que um prossional assim formado possa desenvolver no aluno do ensino mdio competncias e habilidades similares. Essas competncias, que tero importante papel formador no ensino mdio, remetem novamente quilo que torna o exerccio da losoa diferente do exerccio das prosses das demais reas do conhecimento, por mais que se assemelhem: o recurso tradio losca. Caso se tome, por exemplo, a primeira competncia, a preparao para a capacitao para um modo losco de formular e propor solues de problemas implica que o professor de Filosoa tenha, em sua formao, familiaridade com a Histria da Filosoa em especial, com os textos clssicos. Esse deve ser seu diferencial, sua especicidade. Essa a formao que se tem nos cursos de Filosoa no pas. Tanto na graduao quanto na ps-graduao, o ponto de partida para a leitura da realidade uma slida formao em Histria da Filosoa, mesmo que no seja esse o ponto de chegada. importante registrar que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a ausncia de formao em vus de suspeita competncia argumentativa de pretensos livres-pensadores. H de se concordar, nesse ponto, com Slvio Gallo: Filosofia processo e produto ao mesmo tempo; s se pode filosofar pela Histria da Filosofia, e s se faz histria filosfica da Filosofia, que no mera reproduo. A idia importante, pois deixa de opor o contedo forma, a capacidade para filosofar e o trato constante com o contedo filosfico, tal como se expressa em sua matria precpua o texto filosfico. Aceitando essa tensa relao entre contedo e forma, pode-se perceber a importncia estratgica em se preservar a correlao entre as competncias propostas para a graduao e aquelas que se esperam em relao ao estudante de ensino mdio.

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O texto das diretrizes para os Cursos de Graduao em Filosoa cuidadoso defende um pensamento crtico, aponta para o exerccio da cidadania e para a importncia de uma tcnica exegtica que permita um aprofundamento da reexo. Entretanto, no antecipa o resultado desse aprofundamento (no que ... a tarefa do professor, ao se inclinaria de modo tendencioso) nem desenvolver habilidades, o descola da tradio losca em que no incutir valores, pode lograr sua especicidade. De fato, doutrinar, mas sim no esprito desse documento, a tarefa do despertar os jovens para professor, ao desenvolver habilidades, a reexo losca ... no incutir valores, doutrinar, mas sim despertar os jovens para a reexo losca, bem como transmitir aos alunos do ensino mdio o legado da tradio e o gosto pelo pensamento inovador, crtico e independente. O desao , ento, manter a especicidade de disciplina, ou seja, o recurso ao texto, sem objetiv-lo. O prossional bem formado em licenciatura no reproduzir em sala a tcnica de leitura que o formou, transformando o ensino mdio em uma verso apressada da sua graduao. Ao contrrio, tendo sido bem preparado na leitura dos textos loscos, poder, por exemplo, associar adequadamente temas a textos, cumprindo satisfatoriamente a difcil tarefa de despertar o interesse do aluno para a reexo losca e de articular conceitualmente os diversos aspectos culturais que ento se apresentam. Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competncias e das habilidades a serem desenvolvidas em Filosoa em trs grupos: 1) Representao e comunicao: ler textos loscos de modo signicativo; ler de modo losco textos de diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reexivo; debater, tomando uma posio, defendendo-a argumentativamente e mudando de posio em face de argumentos mais consistentes. 2) Investigao e compreenso: articular conhecimentos loscos e diferentes contedos e modos discursivos nas cincias naturais e humanas, nas artes e em outras produes culturais.

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GALLO, Slvio, A especicidade do ensino de losoa: em torno dos conceitos, p. 198.

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3) Contextualizao sociocultural: contextualizar conhecimentos loscos, tanto no plano de sua origem especca quanto em outros planos: o pessoal-biogrco; o entorno scio-poltico, histrico e cultural; o horizonte da sociedade cientco-tecnolgica.

4 CONTEDOS DE FILOSOFIAMais do que fornecer um roteiro de trabalho, este item apresenta sugestes de contedos para aqueles que futuramente venham a preparar um currculo ou material didtico para a disciplina Filosoa no ensino mdio. A lista que se segue tem por referncia os temas trabalhados no currculo mnimo dos cursos de graduao em Filosoa e cobrados como itens de avaliao dos egressos desses cursos, ou seja, os professores de Filosoa para o ensino mdio. Trata-se de referncias, de pontos de apoio para a montagem de propostas curriculares, e no de uma proposta curricular propriamente dita. Dessa forma, no precisam todos ser trabalhados, nem devem ser trabalhados de maneira idntica que costumam ser tratados nos cursos de graduao, embora devam valer-se de textos loscos clssicos, cuidadosamente selecionados, mesmo quando complementados por outras leituras e atividades. Os temas podem ensejar a produo de materiais e do um quadro da formao mnima dos professores, a partir da qual podemos esperar um dilogo competente com os alunos. Outros temas de feio assemelhada tambm podem propiciar a mesma ligao entre uma questo atual e uma formulao clssica, um tema instigante e o vocabulrio e o modo de argumentar prprios da Filosoa, alm de ligarem a formao especca do prossional que pode garantir a disciplinaridade da Filosoa com a formao pretendida do aluno: 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) 11) Filosoa e conhecimento; Filosoa e cincia; denio de Filosoa; validade e verdade; proposio e argumento; falcias no formais; reconhecimento de argumentos; contedo e forma; quadro de oposies entre proposies categricas; inferncias imediatas em contexto categrico; contedo existencial e proposies categricas; tabelas de verdade; clculo proposicional; losoa pr-socrtica; uno e mltiplo; movimento e realidade; teoria das idias em Plato; conhecimento e opinio; aparncia e realidade; a poltica antiga; a Repblica de Plato; a Poltica de Aristteles; a tica antiga; Plato, Aristteles e lsofos helenistas; conceitos centrais da metafsica aristotlica; a teoria da cincia aristotlica; verdade, justicao e ceticismo;

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12) 13) 14) 15) 16) 17) 18) 19) 20) 21) 22) 23) 24) 25) 26) 27) 28) 29) 30)

o problema dos universais; os transcendentais; tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimento divino; teoria do conhecimento e do juzo em Toms de Aquino; a teoria das virtudes no perodo medieval; provas da existncia de Deus; argumentos ontolgico, cosmolgico, teleolgico; teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidncia; idias; causalidade; induo; mtodo; vontade divina e liberdade humana; teorias do sujeito na losoa moderna; o contratualismo; razo e entendimento; razo e sensibilidade; intuio e conceito; ticas do dever; fundamentaes da moral; autonomia do sujeito; idealismo alemo; losoas da histria; razo e vontade; o belo e o sublime na Filosoa alem; crtica metafsica na contemporaneidade; Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger; fenomenologia; existencialismo; Filosoa analtica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Crculo de Viena; marxismo e Escola de Frankfurt; epistemologias contemporneas; Filosoa da cincia; o problema da demarcao entre cincia e metafsica; Filosoa francesa contempornea; Foucault; Deleuze.

A seqncia de temas acima perpassa a Histria da Filosoa. Desse conjunto, o professor pode selecionar alguns tpicos para o trabalho em sala de aula. importante ter em mente que tal elenco propicia uma unidade entre o quadro da formao e o quadro do ensino, desenhando possveis recortes formadores, agora bem amparaA Filosoa teoria, viso dos em um novo arranjo institucional. crtica, trabalho do conceito, A Filosoa teoria, viso crtica, tradevendo ser preservada balho do conceito, devendo ser preservada como tal e no como um como tal e no como um somatrio de somatrio de idias que o idias que o estudante deva decorar. Um estudante deva decorar. tal somatrio manualesco e sem vida seria dogmtico e antilosco, seria doutrinao e nunca dilogo. Isto , tornar-se-ia uma soma de preconceitos, recusando Filosoa esse trao que julgamos caracterstico e essencial. Desse modo, cabe ensinar Filosoa acompanhando ou, pelo menos, respeitando o movimento do pensar luz de grandes obras, independentemente do autor ou da teoria escolhida.

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5 METODOLOGIAPara que o aluno desenvolva as competncias esperadas ao nal do ensino mdio, no pode haver uma separao entre contedo, metodologia e formas de avaliao. Assim, uma metodologia para o ensino da Filosoa deve considerar igualmente aquilo que peculiar a ela e o contedo especco que estar sendo trabalhado. Seguem, ento, algumas consideraes sobre procedimentos metodolgicos que podem ser teis na prtica acadmica. Como se sabe, a metodologia mais utilizada nas aulas de Filosoa , de longe, a aula expositiva, muitas vezes com o apoio do debate ou de trabalhos em grupo. A grande maioria dos professores adota os livros didticos (manuais) ou compe apostilas com formato semelhante ao do livro didtico; mesmo assim, valem-se da aula expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos e de textos adequados. Muitas vezes, o trabalho limita-se interpretao e contextualizao de fragmentos de alguns lsofos ou ao debate sobre temas atuais, confrontando-os com pequenos textos loscos. H, ainda, o uso de seminrios realizados pelos alunos, pesquisas bibliogrcas e, mais ocasionalmente, o uso de msica, poesia, literatura e lmes em vdeo para sensibilizao quanto ao tema a ser desenvolvido. Em funo de alguns elementos preponderantes, como o uso do manual e a aula expositiva, possvel dizer que a metodologia mais empregada no ensino de Filosoa destoa da concepo de ensino de Filosoa que se pretende. Em primeiro lugar, boa parte dos professores tem formao em outras reas (embora existam hoje bons cursos de graduao em Filosoa em nmero suciente para a formao de prossionais devidamente qualicados para atuar em Filosoa no ensino mdio), ou, sendo em Filosoa, no tem a oportunidade de promover a desejvel formao contnua (sem a qual a simples incluso da Filosoa no ensino mdio pode ser ilusria e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado de material didtico, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto losco , ento, interpretado luz da formao do historiador, do pedagogo, do gegrafo, de modo que a falta de formao especca pode reduzir o tratamento dos temas loscos a um arsenal de lugares-comuns, a um pretenso aprendizado direto do losofar que encobre, em verdade, bem intencionadas ou meramente demaggicas prticas de ensino espontanestas e muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo descaracterizao tanto da Filosoa quanto da educao.8

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SILVEIRA, Ren, Um sentido para o ensino de Filosoa no ensino mdio, p. 139.

CONHECIMENTOS DE FILOSOFIA

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Para a realizao de competncias especcas, que se tm sobretudo mediante a referncia consistente Histria da Filosoa, deve-se manter a centralidade do texto losco (primrios de preferncia), pois a Filosoa comporta um acervo prprio de questes, uma histria que a destaca sucientemente das outras produes culturais, mtodos peculiares de investigao e conceitos sedimentados historicamente.9 Certamente, no desenvolvimento do modo especicamente losco de apresentar e propor solues de problemas, o exerccio de busca e reconhecimento de problemas loscos em textos de outra natureza, literrios e jornalsticos, por exemplo, no deixa de ser salutar, contanto que no se desloque, com isso, o primado do texto losco. Essa centralidade da Histria da Filosoa pode matizar um ponto que, ao contrrio, se agura bastante controverso, qual seja, a assuno de uma perspectiva losca pelo professor. Certamente ningum trabalha uma questo losca se situando fora de suas prprias referncias intelectuais, sendo inevitvel Na estruturao do que o professor d seu assentimento a currculo e mesmo no uma perspectiva. Essa adeso, entretandesenho das prticas to, tem alguma medida de controle na pedaggicas da disciplina, referncia Histria da Filosoa, sem a a centralidade da Histria qual seu labor tornar-se-ia mera doutrida Filosoa tem ainda nao. Alm disso, tendo esse pano de mritos adicionais ... fundo, mais que incutir valores o professor deve convidar os alunos prtica da reexo. A Filosoa, anal, ao contrrio do que se faria em qualquer tipo de doutrinao, deveria instaurar procedimentos, como o de nunca dar sua adeso a uma opinio sem antes submet-la crtica. Na estruturao do currculo e mesmo no desenho das prticas pedaggicas da disciplina, a centralidade da Histria da Filosoa tem ainda mritos adicionais: (i) solicita uma competncia prossional especca, de sorte que os temas prprios da Filosoa devam ser determinados por uma tradio de leitura consolidada em cursos de licenciaturas prprios; (ii) solicita do prossional j formado continuidade de pesquisa e formao especicamente loscas; (iii) evita a gratuidade da opinio, com a qual imperariam docentes malformados, embora mais informados que seus alunos, suprimindo o lugar da reexo e da autntica crtica; e (iv) determina ainda o sentido da utilizao de recursos didticos e de quem pode usar bem esses recursos, de modo que sejam loscas as habilidades

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LEOPOLDO E SILVA, Frankin apud SILVEIRA, Ren, op cit., p. 139.

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de leitura adquiridas. Com efeito, sendo formado em Filosoa e tendo a Histria da Filosoa como referencial, essa maior riqueza de recursos didticos pode tornar as aulas do docente mais atraentes, e mais fcil a veiculao de questes loscas. Garantidas as condies tericas j citadas, desejvel e prazerosa a utilizao de dinmicas de grupo, recursos audiovisuais, dramatizaes, apresentao de lmes, trabalhos sobre outras ordens de texto, etc., com o cuidado de no substituir com tais recursos os textos especcos de Filosoa que abordem os temas estudados, incluindo-se aqui, sempre que possvel, textos ou excertos dos prprios lsofos, pois neles que os alunos encontraro o suporte terico necessrio para que sua reexo seja, de fato, losca. 10 Pensar a especicidade em termos de um ensino anterior graduao remete-nos novamente questo de como deve ocorrer o ensino da Filosoa nesse universo especco que o do ensino mdio. Nesse ponto, o amadurecimento das reexes acerca do que genuinamente prprio da Filosoa tambm em termos de metodologia implica, por um lado, buscar um equilbrio entre a complexidade de algumas questes de Filosoa e as condies de ensino encontradas, e, por outro, evitar posies extremadas, que, por exemplo, (i) nos fariam transpor para aquele nvel de ensino uma verso reduzida do currculo da graduao e a mesma metodologia que se adota nos cursos de graduao e ps-graduao em Filosoa ou (ii), ao contrrio, procurando torn-la acessvel, nos levariam a false-la pela banalizao do pensamento losco. A diferena em relao graduao, no entanto, no pode signicar uma espcie de ecletismo11 no ensino da Filosoa. O que corresponderia a uma espcie de sada de emergncia para professores sem formao devida, como se fora um recurso de pleno bom senso, residindo a seu maior perigo. Em verso mais generosa, o ecletismo armaria apenas a parte positiva das doutrinas, suprimindo qualquer negatividade. Assim, por exemplo, diante da divergncia entre intelectualistas e empiristas, concederia razo a ambas as correntes. Entretanto, sob qual perspectiva pode algum separar o positivo do negativo? Ocultadas por aparente bom senso, seriam urdidas snteses loscas precrias. No tendo valores precisos, nem sendo bem formado e, mais ainda, usando expedientes para ocultar-se no debate, um professor de Filosoa cumpriria, assim, limitado papel formador. Supe-se, portanto, que o professor com honestidade intelectual deva situar-se em uma perspectiva prpria, o que indica maturidade e boa formao. Assim, em

SILVEIRA, Ren, op. cit., p. 143. Uma espcie de sada de emergncia para professores sem formao devida, como se fora um recurso de pleno bom senso, residindo a seu maior perigo.11

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vez de uma posio soberana que pretenda suprimir o prprio debate losco, parece necessrio retornar, tambm com perspectivas prprias, ao debate e a textos selecionados que sirvam de fundamento reexo. Tomando-se como ponto de partida as mesmas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduao em Filosoa que norteiam a formao dos professores para o ensino de Filosoa no nvel mdio, tem-se a seguinte caracterizao do licenciado em Filosoa: O licenciado dever estar habilitado para enfrentar com sucesso os desaos e as diculdades inerentes tarefa de despertar os jovens para a reexo losca, bem como transmitir aos alunos do ensino mdio o legado da tradio e o gosto pelo pensamento inovador, crtico e independente. Nesse universo de jovens e adolescentes, imprescindvel despertar o estudante para os temas clssicos da Filosoa e orient-lo a buscar na disciplina um recurso para pensar sobre seus problemas. Em todos esses nveis, no entanto, no se pode perder de vista a especicidade da Filosoa, sob pena de se ter uma estranha concorrncia do prossional de Filosoa com o de Letras, Antropologia, Sociologia ou Psicologia, entre outros. Diferentemente, ciente do que lhe prprio, o prossional de Filosoa poder desenvolver projetos em conjunto, inclusive com temas transversais e interdisciplinares, enriquecendo o ensino e estimulando a criatividade, o esprito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade. Participao ativa na formao do jovem e capacidade para o dilogo com outras reas do conhecimento pressupem, como j foi visto aqui, que o professor de Filosoa no perca de vista a especicidade de sua prpria rea. Por outro lado, para bem cumprir sua tarefa, no bastar ter em conta seu prprio talento, pois inserir seu trabalho em um novo contexto para a Filosoa no pas, em que se ligam esforos os mais diversos, inclusive para sanar o dano histrico resultante da ausncia da Filosoa. Com isso, devemos reconhecer que est se abrindo para o ensino de Filosoa um novo tempo, no qual no se frustraro nossos esforos na medida em que reconhecermos a importncia da formao contnua dos docentes de Filosoa no ensino mdio, bem como o esforo coletivo de reexo e de produo de novos materiais. preciso, assim, estarmos altura da elevada qualidade que deve caracterizar o trabalho de prossionais da Filosoa, quando j se pode armar, alterando uma antiga diretriz, que as propostas pedaggicas das escolas devero, obrigatoriamente, assegurar tratamento disciplinar e contextualizado para os conhecimentos de Filosoa.

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICASGALLO, Slvio & KOHAN, Walter (Orgs.). Filosoa no Ensino Mdio, Petrpolis, Vozes, Vol. VI, 2000. GALLO, Slvio. A especicidade do ensino de losoa: em torno dos conceitos. In: PIOVESAN, Amrico et al. (orgs.). Filosoa e Ensino em Debate. Iju: Editora Uniju, 2002. MEC. Conselho Nacional de Educao. Cmara de Educao Superior. Parecer CNE/CES n 492/2001, aprovado em 3 de abril de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Filosoa, Histria, Geograa, Servio Social, Comunicao Social, Cincias Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Dirio Ocial da Unio, Braslia, DF, 9 de julho de 2001. Seo 1, p. 50. MEC. Portaria INEP n. 171, de 24 de agosto de 2005. Publicada no Dirio Ocial de 26 de agosto de 2005, Seo 1, pg. 60. Filosoa. SALLES, Joo Carlos. Escovando o tempo a contrapelo, in Ideao Magazine, n 1, Feira de Santana, NEF/UEFS, 2003. SANTIAGO, Anna, Poltica educacional, diversidade e cultura: a racionalidade dos PCN posta em questo. In: PIOVESAN, Amrico et al. (orgs.). Filosoa e Ensino em Debate. Iju: Editora Uniju, 2002. SILVEIRA, Ren. Um sentido para o ensino de Filosoa no ensino mdio. In: GALLO, Slvio & KOHAN, Walter (orgs.). Filosoa no Ensino Mdio. Petrpolis: Vozes, Vol. VI, 2000.

CONHECIMENTOS DE GEOGRAFIA

Consultores Celene Cunha Monteiro Antunes Barreira Eliseu Savrio Sposito Helena Coppetti Callai Lana de Souza Cavalcanti Sonia Maria Vanzella Castellar Vanda Ueda Leitores Crticos Arthur Magon Whitacker Dirce Maria Antunes Suertegaray Elvio Rodrigues Martins Marcio Antonio Teixeira Paulo Roberto Rodrigues Soares Pedro Tomaz de Oliveira Neto Ricardo Alvarez

Captulo

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Cincias Humanas e suas TecnologiasCONHECIMENTOS DE GEOGRAFIA

INTRODUOA Geograa compe o currculo do ensino fundamental e mdio e deve preparar o aluno para: localizar, compreender e atuar no mundo complexo, problematizar a realidade, formular proposies, reconhecer as dinmicas existentes no espao geogrco, pensar e atuar criticamente em sua realidade tendo em vista a sua transformao. A partir dessas premissas, o professor dever proporcionar prticas e reexes que levem o aluno compreenso da realidade. Portanto, para que os objetivos sejam alcanados, o ensino da Geograa deve fundamentar-se em um corpo terico-metodolgico baseado nos conceitos de natureza, paisagem, espao, territrio, regio, rede, lugar e ambiente, incorporando tambm dimenses de anlise que contemplam tempo, cultura, sociedade, poder e relaes econmicas e sociais e tendo como referncia os pressupostos da Geograa como cincia que estuda as formas, os processos, as dinmicas dos fenmenos que se desenvolvem por meio das relaes entre a sociedade e a natureza, constituindo o espao geogrco. Seu objetivo compreender a dinmica social e espacial, que produz, reproduz e transforma o espao geogrco nas diversas escalas (local, regional, nacional e mundial). As relaes temporais devem ser consideradas tendo em vista a historicidade do espao, no como enumerao ou descrio de fatos que se esgotam em si mesmos, mas como processo de construo social. A Geograa no uma disciplina descritiva e emprica, em que os dados sobre a natureza, a economia e a populao so apresentados a partir de uma seqncia linear, como se fossem produtos de uma ordem natural. Com as novas tecnologias de informao, com os avanos nas pesquisas cienticas e com as transformaes no territrio, o ensino de Geograa torna-se fundamental para a percepo do mundo atual. Os professores devem, portanto, reetir e repensar sua prtica e vivncias em sala de aula, com a mudana e a incorporao de novos temas no cotidiano escolar.

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Este documento tem como objetivo ampliar e avanar nas discusses oferecendo elementos sobre os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino mdio no mbito da Geograa, servindo de estmulo e apoio reexo da prtica diria do professor.

1 SABERES E EXPERINCIAS DO ENSINO DE GEOGRAFIANos ltimos anos, muitos so os documentos ociais e acadmicos que se referem a como se ensina Geograa nos ensinos fundamental e mdio. Esses, em geral, buscam entender como e por que determinados fenmenos se produzem no espao e suas relaes com os processos econmicos, sociais, culturais e polticos. Portanto, ao analisar as transformaes presentes no espao, devemos entender que essas no se produzem de forma aleatria, mas foram construdas ao longo do tempo. O que implica considerar o processo histrico e a singularidade dos lugares. Um contexto desejvel, e j existente, ampliou a participao e o debate de professores e alunos em discusses e o professor deixou de ser mero transmissor de conhecimento, pensando o mundo de forma dialtica. Esse processo abriu a possibilidade de efetiva integrao metodolgica entre as diferentes reas do conhecimento e a Geograa , numa perspectiva interdisciplinar.

1.1 Objetivos da Geograa no Ensino MdioA importncia da Geograa no ensino mdio est relacionada com as mltiplas possibilidades de ampliao dos conceitos da cincia geogrca, alm de orientar a formao de um cidado no sentido de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, reconhecendo as contradies e os conitos existentes no mundo. Nesse sentido, um dos objetivos da Geograa no ensino mdio a organizao de contedos que permitam ao aluno realizar aprendizagens signicativas. Essa uma concepo contida em teorias de aprendizagem que enfatizam a necessidade de considerar os conhecimentos prvios do aluno e o meio geogrco no qual ele est inserido. A escola e o professor devem, a partir do objetivo geral da proposta pedaggica adotada pela instituio e dos parmetros que norteiam a Geograa enquanto cincia e enquanto disciplina escolar, denir os objetivos especcos que, a ttulo de referncia, podem ser assim detalhados: compreender e interpretar os fenmenos considerando as dimenses local, regional, nacional e mundial;

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dominar as linguagens grca, cartogrca, corporal e iconogrca; reconhecer as referncias e os conjuntos espaciais, ter uma compreenso do mundo articulada ao lugar de vivncia do aluno e ao seu cotidiano.

No processo de aprendizagem necessrio desenvolver competncias e habilidades, para que tanto professores como alunos possam comparar, analisar, relacionar os conceitos e/ou fatos como um processo necessrio para a construo do conhecimento. As competncias e habilidades, relacionadas s atividades da disciplina, so descritas no quadro 1, dispostas em uma seqncia que vai dos conceitos bsicos para o entendimento do espao geogrco como objeto da Geograa, chegando s linguagens e s dimenses do espao mundial, permitindo ao professor e ao aluno articular a capacidade de compreender e utilizar os contedos propostos.Quadro 1: Competncias e habilidades para a Geograa no Ensino MdioCOMPETNCIAS Capacidade de operar com os conceitos bsicos da Geograa para anlise e representao do espao em suas mltiplas escalas. Capacidade de articulao dos conceitos. Capacidade de compreender o espao geogrco a partir das mltiplas interaes entre sociedade e natureza. HABILIDADES Articular os conceitos da Geograa com a observao, descrio, organizao de dados e informaes do espao geogrco considerando as escalas de anlise. Reconhecer as dimenses de tempo e espao na anlise geogrca. Analisar os espaos considerando a inuncia dos eventos da natureza e da sociedade. Observar a possibilidade de predomnio de um ou de outro tipo de origem do evento. Vericar a inter-relao dos processos sociais e naturais na produo e organizao do espao geogrco em suas diversas escalas. Identicar os fenmenos geogrcos expressos em diferentes linguagens. Utilizar mapas e grcos resultantes de diferentes tecnologias. Reconhecer variadas formas de representao do espao: cartogrca e tratamentos grcos, matemticos, estatsticos e iconogrcos. Compreender o papel das sociedades no processo de produo do espao, do territrio, da paisagem e do lugar. Compreender a importncia do elemento cultural, respeitar a diversidade tnica e desenvolver a solidariedade. Capacidade de diagnosticar e interpretar os problemas sociais e ambientais da sociedade contempornea. Capacidade de identicar as contradies que se manifestam espacialmente, decorrentes dos processos produtivos e de consumo.

Domnio de linguagens prprias anlise geogrca.

Capacidade de compreender os fenmenos locais, regionais e mundiais expressos por suas territorialidades, considerando as dimenses de espao e tempo.

Estimular o desenvolvimento do esprito crtico

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Alm das competncias e habilidades, fundamental ter como ponto de partida a reexo sobre o objeto da Geograa, que a realidade territorial criada a partir da apropriao do meio geogrco pela sociedade.

1.2 O papel do professor de Geograa no contexto do mundo atualO que ser professor de Geograa nos dias atuais? Essa pergunta nos faz reetir sobre as rpidas transformaes que ocorrem no mundo e, portanto, um dos grandes desaos de um professor de Geograa selecionar os contedos e criar estratgias de como proceder nas escolhas dos temas a serem abordados em sala de aula, ou seja, como articular a teoria com a prtica. Nesse sentido o professor tem papel importante no cotidiano escolar e insubstituvel no processo de ensino-aprendizagem, pois o especialista do componente curricular, cabendo-lhe o estabelecimento de estratgias de aprendizagem que criem condies para que o aluno adquira a capacidade para analisar sua realidade sob o ponto de vista geogrco. A necessidade de o professor pensar autonomamente, de organizar seus saberes e de poder conduzir seu trabalho tem muito a ver com a formao que tem e com a postura pedaggica que adote, uma vez que ele o agente principal de ... fundamental a seu prprio fazer pedaggico. Cavalparticipao do professor canti (2002:21) destaca que o procesno debate tericoso de formao de professores visa ao metodolgico, o que desenvolvimento de uma competnlhe possibilita pensar e cia crtico-reexiva, que lhes fornea planejar a sua prtica ... meios de pensamento autnomo, que facilite as dinmicas de autoformao, que permita a articulao teoria e prtica do ensino [...] deve ser uma formao consistente, contnua, que procure desenvolver uma relao dialtica ensino-pesquisa, teoria-prtica. Trata-se de uma formao crtica e aberta possibilidade da discusso sobre o papel da Geograa na formao geral dos cidados, sobre as diferentes concepes da cincia geogrca, sobre o papel pedaggico da Geograa escolar. oportuno lembrar que a prtica docente adquire qualidade quando existe a produo do saber. Castellar (2003:113) assinala que o professor deve atuar no sentido de se apropriar de sua experincia, do conhecimento que tem para investir em sua emancipao e em seu desenvolvimento prossional, atuando efetivamente no desenvolvimento curricular.

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Essa mudana requer muitas vezes a organizao dos professores em suas escolas e no contexto escolar em que atuam, uma vez que o professor deixa de dar os conceitos prontos para os alunos para, junto com eles, participar de um processo de construo de conceitos e saberes, levando em considerao o conhecimento prvio. Nesse processo, fundamental a participao do professor no debate terico-metodolgico, o que lhe possibilita pensar e planejar a sua prtica, quer seja individual, quer seja coletiva. Essa participao faz com que o professor tenha acesso ao material produzido pela comunidade cientca da Geograa, o que lhe permitir discusses atualizadas que vo muito alm da abordagem existente nos livros didticos. Lembramos que, longe de ser a nica possibilidade de trabalho, o livro didtico um instrumento que, utilizado como complemento do projeto poltico-pedaggico da escola, certamente contribui para promover a reexo e a autonomia dos educandos, assegurando-lhes aprendizagem efetiva e contribuindo para fazer deles cidados participativos (EDITAL PNLEM/2007) e, para que isso ocorra, no deve ser utilizado como um m em si mesmo, mas como um meio. A mudana exige do professor discusso e reexo sobre os temas que desejam trabalhar. Portanto, o que se espera que haja parmetros para que os docentes possam ter como referncia conceitos e categorias que estruturem o conhecimento geogrco, propiciem o repensar de sua ao didtica e de sua realidade, destacando de forma crtica as diferenas regionais, culturais, econmicas e ambientais. Tais parmetros e referncias devem ajudar o professor a entender a importncia da transposio didtica do conhecimento cientco, para que o aluno possa dele se apropriar respeitando a realidade e o modo de aprender de cada um e a reetir sobre sua prtica, criando oportunidades e desenvolvendo atividades de interao entre seu conhecimento e o dos alunos. Alm disso, deve promover mudanas concretas que resultem em novos padres de aprendizagem, a partir de uma rede de signicados, isto , utilizando estratgias diversicadas ao abordar os contedos, dialogando e ampliando os conhecimentos j adquiridos e propondo novas situaes de aprendizagem que se referencie em resolues de problemas em perspectiva interdisciplinar. Nessa perspectiva, preciso esforo maior, por parte de todos os agentes envolvidos no processo d