observaÇÕes sobre o corpo como categoria de anÁlise …
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OBSERVAÇÕES SOBRE O CORPO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE
E PENSAMENTO
Yasmim Nóbrega de Alencar1
Universidade de São Paulo (USP)
1 Socióloga, mestranda em Estudos Culturais pela EACH/USP, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Régia Oliveira.
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Sumário
1. Introdução.................................................................................................. 3
2. Desenvolvimento........................................................................................ 4
3. Reflexões finais........................................................................................... 11
4. Referências bibliográficas........................................................................... 13
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1. Introdução
Este trabalho analisa a temática do corpo e da corporeidade à luz das Sociologia e
Antropologia do corpo, somadas aos elementos a serem agregados de informações em
processo de coleta no Trabalho de campo com ex-integrantes dos grupos de dança
contemporânea CEM e Pélagos. Trata-se de análises que também são influenciadas pelos dois
grupos em questão, como objetos de pesquisa que consistem, enquanto realidades simbólicas,
sujeitos identitários, sensíveis e pensantes, no contexto das relações sociais em experiências
culturais que vivenciaram e promoveram também produtores de arte e ciência, em contextos
dinâmicos e, inclusive, utilizando-se de aparatos educativos no desenvolvimento de suas artes
(per)formativas (formando artistas e permitindo-lhes o exercício potente das performances
artístico-político que criaram).
A pesquisa de mestrado, em andamento, na qual está imerso este trabalho, chama-
se Corpo e mente: experiências de dança em periferias brasileiras. Ela tem possibilitado a
experiência de pesquisa científica e produção desse trabalho com a finalidade de realizar
observações analítico-reflexivas mais profundas sobre corporeidades, símbolos, afetos e
dança. Estas, por sua vez, baseadas nas aproximações com os conceitos de Corpo,
Simbolismos e Corpo-rascunho apresentados por David Le Breton, em algumas de suas obras.
Também recorremos aos amparos do resgate histórico-crítico de Teorias do corpo
feito pela Prof.ª Dr.ª Christine Greiner, para compreender melhor a trajetória complexa do
conceito Corpo como categoria de pensamento. Bem como, valeu-se de discussões
compartilhadas em sala de aula, durante a disciplina cursada de Sociologia do Corpo, da
Saúde e da Doença, com a docente Profª. Drª. Régia Oliveira, no Programa de Pós-Graduação em
Estudos Culturais, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Universidade de São
Paulo (USP).
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Aqui, nosso horizonte metodológico aponta para o desenvolvimento breve de
reflexões sobre o corpo como categoria de análise sociológica e antropológica, nas
relações que estabelece a partir de suas construções sociais, culturais e histórico-
políticas.
Destrinçaremos a conceituação a fim de pensar que relações de afetos e
sentimentos acontecem no entremeio das construções corporais simbólicas que impregnam
nossas experiências humanas atravessadas da, na e com a corporeidade. Nossa busca não está
circunscrita em seu conteúdo analítico-reflexivo alicerçado para em leituras acadêmicas sobre
Corpo, mas também busca incluir reflexões compartilhadas sobre o tema em conversas com
pessoas dos dois grupos de dança e discussões realizadas nas aulas da disciplina acadêmica já
mencionada.
Objetivo geral é pensar/ponderar a conceituação acerca da temática. A estas
ponderações, a posteriori, agregaremos elementos de informações que estão sendo colhidas
no Trabalho de campo com ex-integrantes dos grupos de dança contemporânea CEM e
Pélagos2; atuais objetos de pesquisa, enquanto realidades simbólicas, no contexto das relações
sociais em experiências culturais vivenciadas por estes, como sujeitos identitários, no
contexto da pesquisa de mestrado, em andamento, Corpo e mente: experiências de dança em
periferias brasileiras. Isto para que esse trabalho contribua para a pesquisa e reflexões que ela
venha a empreender.
Adiante, seguimos na motivação do desejo de tentar encontrar respostas ou mais
perguntas às questões que envolvem o corpo e seus simbolismos.
2. Desenvolvimento
2 Estamos realizando Trabalho de campo para colher informações sobre as trajetórias de vida e efeitos das
experiências que ex-integrantes destes dois grupos vivenciaram/vivenciam. O CEM – Centro de
Experimentações em Movimento, foi criado pela atriz, bailarina e coreógrafa Silvia Moura. Começou com mais
de 100 participantes em aulas livres da dança em espaço público cedido e existiu na cidade de Fortaleza/CE.
Desenvolveu trabalhos artísticos e de formação com jovens que, em parte, eram de periferias da cidade.
Extinguiu-se há cerca de 2 ou mais anos atrás. O Núcleo de Dança Pélagos foi um grupo atuante na cena da
dança contemporânea de São Paulo capital até 2015; estando atualmente em “manutenção”, segundo ex-
coreógrafo. Nasceu na Região do Campo Limpo, com a iniciativa do bailarino e coreógrafo Rubens Oliveira, da
periferia da Zona Sul paulistana.
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Estamos em nosso corpo “como numa encruzilhada habitada por todos”, escreve
raivosamente Artaud, que viveu, numa forma de despojamento e de alienação, a
fidelidade do seu corpo contra todo simbolismo exterior. Meu corpo é meu por
carregar traços de minha história pessoal, de uma sensibilidade que é a minha, mas
contém igualmente uma dimensão que em parte me escapa, remetendo aos
simbolismos que conferem substância ao elo social, sem os quais eu não seria. (LE
BRETON, 2009, p.37)
A disciplina Sociologia do corpo, da saúde e da doença possibilitou o amplo
contato com algumas das diversas teorias que emergem da categoria Corpo. Aprofundamos
discussões muito frutíferas acerca de leituras críticas de obras do campo de estudos que a
disciplina abrangeu. Aqui, dedicaremos nosso trabalho às maravilhosas leituras e conversas
sobre parte significativa da obra do David Le Breton associada à nossa pesquisa de mestrado.
Durante as discussões e observações que realizamos, pudemos pensar como o
Corpo se tornou uma categoria de pensamento importante, ao longo da História da
Humanidade e como suas percepções e abordagens foram mudando de tônica, de acordo com
as épocas, lugares, culturas, áreas de conhecimento que o refletiram e a maneira como autores
e a sociedade, em geral, o notavam e entendiam.
Passamos a reconhecer, de fato, que o corpo é atravessado de simbologias e o
quanto esse atravessamento influencia sua performance de vida e morte, de saúde e doença,
nas relações sociais cotidianas e nas apreensões sensitivas de foro íntimo que realiza.
Assim, restou-nos o precioso entendimento de que cada símbolo implica
profundamente nas experiências de significados e significações que acontecem nos corpos (de
um ponto de vista plural/diverso mesmo), através dele, nas suas expressões, gestos, afetos e
sentimentos comunicados na relação com o outro. Não há o que escapa às relações de sentidos
que estabelecemos, ainda que isto se dê no campo das sensações que, supostamente,
consideraríamos espontâneas e naturais.
Em sua obra A Sociologia do Corpo, o autor nos apresenta a abordagem do
referente Corpo constituindo a Sociologia do corpo como um campo de estudos dedicado “à
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compreensão da corporeidade humana como fenômeno social e cultural, motivo simbólico,
objeto de representações e imaginários.” (LE BRETON, 2012, p.7)
Neste sentido, leva-nos a pensar nos esquemas simbólicos que envolvem as
experiências que, inevitavelmente, são vivenciadas com o corpo. Segundo os quais estamos
todos e todas influenciados, influenciando e motivados. Também apresenta a realidade social
como mediada pelas relações simbólicas. Estas estabelecidas entre as pessoas e suas
corporeidades que desenvolvem atividades perceptivas diversas, permitindo-lhes ver, sentir,
ouvir, tocar... e, desta forma, realizar significações e lidar com situações de conflito, assim
como, sentimentos e afetos que envolvem o outro. Já que ambos se inserem em contextos
socioculturais.
As expressões corporais estariam, pois, submetidas às modulações sociais, apesar
das vivências particulares que cada uma estabelece, porque estão relacionadas ao conjunto de
simbologias dos grupos sociais ao quais fazem parte. Ou seja, gestos e sensações não são
naturais e sim construtos socioculturais para Le Breton. Desnaturalizar a expressão corporal
pode ser uma das sinalizações reflexivas do autor. Mas, ao fazê-lo, não teria a intenção de nos
levar a crer que a razão não é atravessada de emoções e esquemas simbólicos que também
passam pelas corporeidades, de maneiras inapreensíveis. Contudo, talvez esteja localizando o
corpo e trazendo à tona seu aspecto fixo, ainda que este não esteja essencializado.
No Capítulo II – Sobre algumas ambiguidades, da mesma obra já mencionada,
Le Breton traz-nos suas ponderações acerca da categoria de pensamento e análise Corpo. Para
ele, esta estaria, por sua vez, representada e objetificada com a exigência de ser construída
como tal neste campo de estudos; sem que fosse, a priori, considerada potencialmente viva,
pulsante e habitada por cada um(a) de nós, com nossas respectivas imprevisibilidades e
particularidades diversas humanas. Ou seja, o problema se encontraria nas ambiguidades que
surgem da noção de Corpo na Sociologia; de um determinado corpo que elucidamos como
objeto de investigações. Ele afirma que “O corpo não é uma natureza. Ele nem sequer existe.
Nunca se viu um corpo: o que se vê são homens e mulheres.”(LE BRETON, 2012, p.24)
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No âmbito da Introdução de sua obra As paixões ordinárias: antropologia das
emoções, o antropólogo e sociólogo do Corpo, apresenta-nos o universo das emoções como
não absolutamente referenciadas na irracionalidade e impulsividade, sobretudo, inter-
relacionadas ao simbolismo social, do ponto de vista antropológico. O autor fala de
sentimentos e emoções na perspectiva simbólica. Sendo assim, estão sujeitas às transposições
“de um indivíduo ou grupo a outro”.(LE BRETON, 2009, p.9) Por isso, podemos entender
que há uma “cultura afetiva” (nos termos do autor) e que é composta de fenômenos múltiplos
(fisiológicos, psicológicos, sociais, locais). Esta cultura se dá nas interações que envolvem
muito mais que sujeição ao meio social, já que a corporeidade é capaz de promover
adaptações e tensionamento, relacionados ao que cada ser humano tem de seu, a forma como
vê e é visto, em sociedade: “O olhar é, inicialmente, um comprometimento com o mundo”.
(LE BRETON, 2009, p.12)
Ainda nesta obra, o autor nos leva a refletir sobre o corpo na oposição entre a
razão e a paixão da Filosofia antiga que fora amplamente revista e encontrou nas Teorias do
corpo diversos questionamentos e intervenções.
Contudo, o corpo não é algo imutável e está mergulhado em culturas que agencia,
de acordo com conveniências e condições que vão determinar aspectos da forma como existe
no mundo, se relaciona e desenvolve na expressão corporal. Sua constituição pode ser
considerada fluida, na medida em que tem plasticidade suficiente que lhe permite se adaptar
socioculturalmente dentro de determinada ordem simbólica e, simultaneamente, resistir a ela,
preservando sua “história pessoal” (LE BRETON, 2009, p.29).
Neste sentido, a abordagem de Le Breton acerca do corpo e das simbologias que
ele implica, pondera a si mesma quando admite que algo escapa às permanências do
simbólico e emerge do “entre”(espaço de ambivalências e ambiguidades), das formas como os
corpos se apropriam de si mesmos e transcendem as normativas, ainda que estando
submetidos a elas. A isso podemos agregar a leitura do antropólogo Marcel Mauss, em seu
artigo “Técnicas do Corpo”, onde se referiu aos modos diferentes de usos dos corpos
empreendidos por pessoas de sociedades distintas. Pois, apesar de haver suposta
universalidade nas formas de se comunicar, existir e, mesmo, expressar humanas, esta se
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desfaz quando reconhecemos que há interpretações individuais, ações e motivações que
fogem ao imaginário social e suas predeterminadas “normalidades”.
Aqui, falamos que o corpo-mente não pode mais ser lido dentro de uma dinâmica
dualista que opõe afetos e racionalidades. Ele é feito de hibridez3, na “chave” de Homi
Bhabha4, e está habitado por sujeitos intensos e políticos, vívidos na miscelânea cultural. Se
o corpo-mente está se produzindo o tempo todo, então, sua capacidade simbólica também está
imersa nessa produção, ainda que baseada em normativas predeterminadas,
socioculturalmente.
Portanto, a potência dos sujeitos (estamos ainda falando de corpos-mentes, mas,
aqui, reconhecendo que não/nunca se resumem aos nossos “objetos” de pesquisa passivos)
estaria nas suas “estratégias de subjetivação – singular e coletiva – que dão início a novos
signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a
própria ideia de sociedade.”(BHABHA, 2013, p. 20), das quais lança mão nos momentos de
interação e noutros de solitude.
Em O Corpo: pistas para estudos indisciplinares, Christine Greiner aborda, no
primeiro capítulo, várias ideias de Teorias do corpo e menciona o quando a História do corpo
não segue uma ordem de tempo linear, oscilando em abordagens consideradas avançadas e
retrógradas ao longo da História do corpo. A autora apresenta definições sobre o termo corpo,
sua origem remontada do latim “(...) corpus e corporis, que são da mesma família de
corpulência e incorporar.”(2005, p.17) e aponta para uma crítica interessante aos vários
nomes atribuídos ao corpo com a perceptível “necessidade de estabilizar algo em torno de
um objeto para que este represente o que resiste ao que poderia ser desfeito – a solidez como
espécie de solidariedade entre seus componentes, a coerência, a coesão e a figurabilidade ou
a face própria para cada entendimento de corpo.”(GREINER, 2005, p.17) A crítica da autora
3 Homi Bhabha, em sua obra O local da cultura, nos leva a ponderar acerca análises dicotômicas (Por exemplo:
Colonizador X Colonizado) e a entender a dinâmica das relações de poder a partir das forças sociais que agem
em relação, mas com tensão e afinidades, simultaneamente, expostas. 4 Homi K. Bhabha é indiano, ensina Teoria da Cultura e Teoria da Literatura na Universidade de Chicago. É
professor visitante de Ciências Humanas no University College, em Londres. Publicou vários livros e textos
sobre pós-colonialismo, pós-modernidade e identidade cultural. É um autor bastante lido em termos de Estudos
Culturais Pós-Colonialistas.
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nos faz pensar quão equívoca é a ideia de que o corpo é mais facilmente apreendido se o
consideramos estável. Isso se comprova nas próprias descontinuidades e impermanências dos
corpos em relação às identidades que performatizam e às experiências afetivas no seio de
culturas cada vez mais descontínuas, locais e temporais.
Para nós, definir corpo-mente é dizê-lo como o corpo humano negado pelo
Racionalismo Iluminista e defendido por Spinoza. Trata-se de um corpo entendido como
dotado da capacidade de vivenciar a experiência afetiva e sentimental sem desvincular-se da
racionalidade; ou, simultaneamente, estar se organizando entre emoções e imposições
racionais que se sobrepõem e se alternam às determinações de impulsos, desejos, vontades,
sentimentos e afetos, sempre envolvidos pelo local da cultura onde existe; estes que também
são motivadores de ações, comportamentos, expressões e ideias humanas nos diversos
contextos socioculturais.
No livro O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si, Thérèse
Bertherat e Carol Bernstein afirmam que
Nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de parecer é
nosso modo de ser. Mas não queremos admiti-lo. Não temos coragem de nos olhar.
Aliás não sabemos como fazer. Confundimos o visível com o superficial. Só nos
interessamos pelo que não podemos ver. Chegamos a desprezar o corpo e aqueles
que se interessam por seus corpos. Sem nos determos sobre nossa forma – nosso
corpo – apressamo-nos a interpretar nosso conteúdo, estruturas psicológicas,
sociológicas, históricas. Passamos a vida fazendo malabarismos com palavras, para
que elas nos revelem as razões de nosso comportamento. E que tal se, através de
nossas sensações, procurássemos as razões do próprio corpo? (2010, p.3)
Esse olhar sobre o corpo que leva em consideração processos subjetivos e
individuação consiste de um imaginário social ocidental. Podemos concordar com Le Breton,
no seu livro A Sociologia do corpo, e falar que se trata de um “corpo da modernidade”. O
autor nos alerta sobre as diversas formas com que uma sociedade pode ver, sentir, pensar,
relacionar-se com o corpo, ou melhor, com a ideia de corpo. Neste tocante, o autor afirma que
O isolamento do corpo nas sociedades ocidentais (eco longínquo das primeiras
dissecações e do desenvolvimento da filosofia mecanicista) comprova a existência
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de uma trama social na qual o homem é separado do cosmo, separado dos outros,
separado de si mesmo. Em outras palavras, o corpo da modernidade, aquele no qual
são aplicados os métodos da sociologia, é o resultado do recuo das tradições
populares e o advento do individualismo ocidental e traduz o aprisionamento do
homem em si mesmo. (LE BRETON, 2012, p.31)
Por sua vez, trata-se mesmo do corpo ocidentalizado que somos: esse é o corpo-
rascunho apreendido por David Le Breton. Já que está submetido às diversas intervenções da
coletividade, interdições das relações sociais; ao mesmo tempo, que se configura,
contraditoriamente, como acomodação e resistência, ele é a própria fonte de ambiguidades, na
imagem do corpo humano construído e construtor. Podemos identificar reflexão semelhante a
esta nas leituras filosóficas da obra Ética, do filósofo português Baruch Spinoza. Márcia
Patrizio dos Santos, no livro Corpo: um modo de ser divino. Uma introdução à metafísica de
Espinosa, explicita a crítica do filósofo ao pensamento dicotômico (Corpo Versus Mente). Ela
afirma que
Espinosa se posiciona piamente contra a superioridade do mundo espiritual sobre o
material e explica, com rigor e precisão pouco inigualáveis na História da Filosofia
Ocidental, o quanto nos enganamos em relação ao mundo físico. Utilizando-se de
vocabulário medieval, escolástico e cartesiano, Espinosa dá-lhes todo um novo
sentido, operando assim uma relação conceitual e abrindo as portas para uma nova
ciência através do estudo do corpo: “é preciso saber o que pode o corpo”.
(EIII.2,esc.). Espinosa não apenas valoriza o estudo do corpo, mas inverte a ordem
estabelecida por Descartes para a nova Ciência que ele se propôs
inaugurar. “Ninguém poderá compreender a Mente humana de
maneira adequada; ou seja, distinta, se não conhecer primeiramente de
maneira adequada a natureza de nosso Corpo.” (EIII.13:sc)
(SANTOS, 2009, p.29)
A conexão político-filosófica moderna e socioantropológica das nossas
observações nesse presente trabalho se dão, principalmente, no contexto da aproximação entre
estes dois autores: Le Breton e Spinoza. Nas fissuras e deslocamentos que estes dois
pensadores promoveram nas minúcias dos Estudos do Corpo; entrelaçando-se (cada qual em
seu tempo-espaço e ambos para além de seu tempo, transcendendo as fronteiras dos séculos)
no entendimento e abordagem do Corpo como consubstancializado à mente (ou seja, o Corpo-
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mente, uma coisa só, com maior complexidade devido aos sentimentos e à capacidade de
pensar coabitantes) como potência, imprevisibilidade e afetos.
Tal aproximação pode ser verificada, por exemplo, na Introdução da obra Adeus
ao corpo: antropologia e sociedade, de David Le Breton. Na qual, o sociólogo, filósofo e
psicanalista Daniel Lins aponta para a filiação, de certa forma, do autor às ideias espinosanas
e afirma que
David Le Breton, a sua maneira, recusa a dicotomia Alma/Corpo aproximando-se de
Espinosa: “Penso que o dualismo contemporâneo não opõe o corpo ao espírito ou à
alma, mas o homem a seu corpo”. Para Espinosa, a “Alma e o Corpo estão, pois,
simultaneamente presentes, e – é necessário supor – simultaneamente ausentes. Se a
Alma é a ideia do Corpo, não há mais ideia quando não há mais corpo.” (LE
BRETON, 2003, p.12)
O corpo-mente5 pode ser compreendido como sinônimo do corpo-rascunho,
uma vez que o consideramos no seu estado de vir a ser, fluido, impregnada das potências de
agir que mudam e transformam pessoas, lugares, relações e a maneira como acontecem.
Rascunhá-lo seria nos rascunhar, na vida cotidiana, como corpos-mentes diversos, em cada
canto e a cada afeto que sentimos e(ou não) compartilhamos, em sociedade. O rascunho é a
metáfora da finitude e, simultaneamente, significa possibilidades de mudança, de refazenda
no desenho que fazemos conosco, a cada movimento que promovemos, a cada pausa que
experimenta nossa inércia.
3. Reflexões finais
5 O corpo-mente trata-se de conceito que emerge das leituras de Baruch Espinosa sobre a sua concepção de
natureza da mente que estaria em relação e consubstancializada com o corpo, ou seja, compondo este corpo. O
hífen representa essa união conceitual dos termos corpo e mente, reconhecendo que coexistem. O filósofo
português defendeu a liberdade de pensamento contra o dogmatismo e a intolerância religiosas e foi expulso da
comunidade judaica devido a isso. Na sua obra Ética, ele afirma que “(...) a mente e o corpo são uma só e
mesma coisa a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão(...) que a ordem das
ações e das paixões do nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente.”
(2007, p. 167)
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O corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em relação aos
outros, a soberania da pessoa.
(LE BRETON, 2012, p.30)
Portando, movido pela emoção e a razão, o corpo aprende a estar dentro de
determinada ordem simbólica, conforme é educado pela sociedade e as relações que ela
implica. Essa educação ultrapassa limites institucionais e envolve as culturas locais como um
todo, estando diretamente relacionadas aos usos sociais do corpo, seus limites e transgressões
para cada indivíduo. Os efeitos simbólicos disto aparecem nas maneiras como habitamos
nossos corpos: Como você anda? Como move braços e mãos? Quais palavras usa? E como faz
esse uso? São usos iguais quando se trata de alguém desconhecido? Que emoções te são
permitidas? Até onde vai a sua liberdade de expressão no ambiente de trabalho, por exemplo?
Qual limite estabelecerá a fronteira entre gesto louco e gesto são? Trata-se de perguntas que
podem nos impelir a perceber o quanto estamos apreendidas (os) por um sistema simbólico.
Sobre simbolismo social, o autor afirma que
A educação dá forma ao corpo, modela os movimentos e o rosto, ensina as maneiras
físicas de enunciar um idioma, ela faz das atuações do homem o equivalente de um
criação de sentido perante os demais. Ela suscita a obviedade daquilo que é, no
entanto, socialmente construído. (LE BRETON, 2009, p.40)
Todavia, há a certeza de que o corpo não é um objeto passivo e que produz
(efeitos), produz-se e é produzido o tempo todo, ao se relacionar com o outro, o lugar, a
história, a memória. Ele muda à medida que percebe o mundo, que sente, que é sentido e essa
mudança pode escapar ao esquema simbólico. Como acontece, então, esse remanejamento dos
corpos-mentes que são sujeitos, em si, seria realmente possível fora da ordem simbólica?
Digamos que a produção social dos corpos seja a produção de sujeitos e que isto
aconteça segundo eles próprios, a partir de si mesmos e de formas imersas em relações de
poder. Como seria ainda pertinente dizer que o corpo é formado e não formador de sentidos,
opiniões, ideias e expressões, em si mesmo?
Partindo desse entendimento, o corpo é uma matéria ativa conectada com sua
mente: um corpo-mente em movimento e repouso, alternados, de acordo com a vida que se
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leva. Ele, por isso, estaria a inscrever-se no mundo com seus próprios mecanismos de
resistência, dando continuidade à vida em sociedade, na medida em que subverte
determinadas ordens e inventa seus modos de sentir, pensar e agir, ainda que dentro de uma
ordem simbólica estabelecida. Isso quer dizer que o corpo não é um substância fixa. Onde
estariam, então, as fronteiras entre resistências e sujeições dos corpos? Simplesmente, no
acaso, nas regras sociais e seus agentes coercitivos de plantão? O corpo resume-se a um lugar
de coisificação e ausência somente aos olhos infames de quem não nota sua potência de
sentir, pensar e agir.
Neste sentido, como se dá a constituição de corpos com identidades culturais no
imaginário social? De que forma ele estaria, então, delineando ou não trajetórias afetivas dos
sujeitos que desenvolveram (e/ou desenvolvem) relações com seus corpos-mentes? Como o
corpo-mente simboliza afetos no contexto das experiências em trajetórias individuais daqueles
e, simultaneamente, realiza deslocamentos e resistências às normativas sociais (legislações,
sistemas simbólicos, regras de convívio e comportamento em grupo, individualmente etc)?
Falamos, então, do corpo e seus simbolismos como elementos vivos que não só
compõem o imaginário social, mas o são (produzem-se com ele), de fato. Entendemos que o
corpo simboliza constantemente e isso se dá em meio às potenciais subjetividades de cada
indivíduo, movido por seus desejos e o tensionamento com a realidade de relações sociais
simbolizadas.
Concluímos, pois, que o corpo é também uma construção simbólica e, ao mesmo
tempo, escapa a essa construção, a promove, a subverte e interage de maneiras diversas, em si
mesmo, quando lhe convém e lhe é possível. O Corpo não se reduz a um objeto de estudo,
porque até mesmo quem estuda o corpo o faz com sua corporeidade inerente. O contrassenso
está posto: o corpo é potência e é morte, é dor e prazer, numa mesma pessoa, criando e dando
espaço para que se manifestem diferentes afetos, compartilhando-os e podendo deformá-los
em relações com o Outro.
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4. Referências bibliográficas
BERTHERAT, Thérèse. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: EdUFMG, 2013.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume,
2005.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009.
SANTOS, Márcia Patrízio dos. Corpo: um modo de ser divino. Introdução À metafísica
de Espinosa. São Paulo: Annablume, 2009.
SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.