obras completas, tomo i, de jorge luis borges

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Obras completas, tomo I, de Jor- ge Luis Borges. São Paulo: Edi- tora Globo, 1999. 707 pp. De 1998 a 1999, ano de centená- rio do nascimento Jorge Luis Borges, a Editora Globo publicou as Obras completas (que, como a maioria dos livros com este título, estão longe de ser completas) do escritor argentino, em quatro vo- lumes. Esta resenha cobre o Tomo I, onde estão reunidos os livros produzidos pelo autor entre 1923 (quando tinha 24 anos) e 1949 (quando cumpriu 50 anos). Estão fora as obras de aprendizado (que o próprio Borges expurgou da edi-

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mo, num trecho em que a elimi-nação não foi possível, virou“voodoo priest” (174), enquantoo cabelo tingido de acaju de Dadápassou a exibir um sofisticado“Titian hue” (162). A maior fei-tiçaria, porém, recaiu mesmo so-bre o cavaquinho tocado no ter-reiro, que adquiriu um somhavaiano ao se converter emukulele (170). Novamente a solu-ção estaria nas notas, mas é curio-so o quanto um cuidado maior coma diferença cultural soaria desca-bido ao baixo investimento de umaeditora no lançamento de novostalentos estrangeiros, por mais pro-missores que sejam. A mesma so-lução fica, pois, adiada para umalucrativa edição das obras comple-tas de Patrícia Melo em inglês, nocaso de um dia ela ser canonizada.

Luiz Felipe G. Soares

de Guber diz que uma mulher queperde um filho “pode tudo” (44),ele se refere a uma absoluta indul-gência trazida pelo sofrimento, nãoa uma nova capacidade, como em“[she] can face up to anything”(36).

O descaso mesmo surge quan-do a tradução explicitamente se es-quiva de lidar com a macumba. Aprópria palavra é traduzida por“witchcraft”, termo associado afeitiçaria européia. À exceção dotermo ‘terreiro’, reproduzido semalteração, apenas com uma breveexplicação do próprio Guber (“theworship site” — 161), as soluçõessão sempre apressadas. Lança-semão até da simples eliminação deum termo ‘problemático’: “Dadáera um pai-de-santo de confiança”(165) passa a “Dadá wastrustworthy” (161). O mesmo ter-

Obras completas, tomo I, de Jor-ge Luis Borges. São Paulo: Edi-tora Globo, 1999. 707 pp.

De 1998 a 1999, ano de centená-rio do nascimento Jorge LuisBorges, a Editora Globo publicou

as Obras completas (que, como amaioria dos livros com este título,estão longe de ser completas) doescritor argentino, em quatro vo-lumes. Esta resenha cobre o TomoI, onde estão reunidos os livrosproduzidos pelo autor entre 1923(quando tinha 24 anos) e 1949(quando cumpriu 50 anos). Estãofora as obras de aprendizado (queo próprio Borges expurgou da edi-

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ção original, mas que vêm sendoeditadas ultimamente pela pressãoconjunta dos estudiosos e do mer-cado), a obra escrita depois dos cin-qüenta anos (coligida nos outrostrês tomos) e a dispersa (reunidaem volumes avulsos, a maioria ain-da não disponível em português).Este tomo concentra, portanto, oessencial, o mais importante queesse importantíssimo homem deletras legou à humanidade.

Trata-se, é bom dizer de iní-cio, de um projeto de fôlego e quecustou longuísimas horas de tra-balho à equipe coordenada por Jor-ge Schwartz, professor de litera-tura hispano-americana da USP.

É também um projeto brasilei-ro, já que em Portugal foram edi-tados também os quatro tomos, emtradução lusitana. A primeira vir-tude deste projeto é que ele apre-senta, pela primeira vez no Bra-sil, toda a obra canônica de Borges,antes repartida em várias ediçõesde diferentes editoras, feitas compropósitos e critérios heterogêne-os. Algumas das edições antigasforam aproveitadas e revistas se-gundo os critérios do coordenador,expostos em um longo artigo narevista Cult de agosto de 1999. AliSchwartz, que é de origem argen-tina, expõe dificuldades e méritosda empreitada, assim como os

princípios que guiaram sua com-plexa implementação.

Um empecilho inicial foi queo contrato (ou seja, provavelmen-te a vontade da herdeira dos direi-tos autorais) exigia que os textosfossem apresentados sem notas ecom a mesma diagramação da edi-ção argentina. O coordenador daedição brasileira, fazendo talvez danecessidade uma virtude, pensaque essa limitação “acabou ironi-camente se convertendo no maiordesafio: uma edição sem notasexplicativas, deixando para o ta-lento individual de cada um dostradutores a possibilidade de fazerda obra de Borges um texto emportuguês digno do próprioBorges”. A verdade, contudo, éque o leitor de Borges parece sen-tir falta de notas explicativas e isso,que já se aplica ao leitor de línguaespanhola, inclusive o argentino,fica mais evidente no caso brasi-leiro, onde mesmo o leitor cultoterá problemas para penetrar nomundo enciclopédico de Borges.A melhor prova de que uma edi-ção anotada de Borges é mais útil,inclusive para o mais hedônico dosleitores, é a excelente edição, emdois tomos, que Jean Pierre Bernèspreparou para a coleção La Pléiadeda editora francesa Gallimard.Traduções recentes para o inglês e

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destinadas ao grande público,como as recém publicadasCollected Fictions, Selected Poemse Collected Non Fictions, pelaPenguin, mostram também queuma edição com notas, no caso deBorges, é melhor, não pior. Tan-to isso é certo que em alguns casoso coordenador permitiu que se vi-olassem as disposições contratuaispara esclarecer um ou outro ele-mento textual e também para cor-rigir erros nas citações presentesna edição original, por falha doseditores ou do próprio Borges. Umdos pontos positivos desta ediçãoé que, sendo dirigida por um aca-dêmico, acabou sendo mais rigo-rosa textualmente que a edição emespanhol. Contamos, portanto,agora com uma das mais cuidadasedições de Borges em nível inter-nacional.

Entre os critérios utilizados estáa escolha de poetas para traduzir apoesia e tradutores experientes paratraduzir a prosa, o conjunto tendopassado por um minucioso proces-so de revisão, sobretudo de aspec-tos lingüísticos e culturais tipica-mente argentinos. Jorge Schwarzdiz ainda ter se inspirado parcial-mente nos princípios defendidos porBorges em seus ensaios sobre tra-dução para resolver os muitos dile-mas enfrentados por sua equipe.

Garantida a honestidade funda-mental desta iniciativa, como ficaa sua qualidade literária? Ela meparece ligada justamente às opçõeseditoriais. Em geral, a poesia (quemuitos consideram a parte menosimperecível de Borges) apresentasoluções mais satisfatórias, embo-ra não se possa falar de nenhumaconjunção mágica entre poeta tra-dutor e poeta traduzido, comoocorreu, creio, com muitas das tra-duções de poemas borgianos aoinglês. Há, tanto nas traduções deGlauco Mattoso e Jorge Schwartz(Fervor de Buenos Aires) e JoselyVianna Baptista (Caderno SanMartín) literalismo constante, queàs vezes realça e outras vezes atra-palha ou torna meramente estra-nha a dicção poética borgiana.

Talvez o texto de tradução maisconvincente do volume seja o deEvaristo Carriego, uma biografia“menos documental que imagina-tiva”, como diz Borges em suanota introdutória. Essa biografiaum tanto confusa anuncia o futuroBorges grande prosador, mas man-tém ainda muitos dos traços “bar-rocos” que ele tentará combater emseus futuros escritos. Pois essamescla apresenta problemas espi-nhosos de tradução que foram re-solvidos acurada e elegantementepor um grupo de quatro traduto-

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res: Vera Mascarenhas, JorgeSchwartz, Maria Carolina de Ara-ujo e Victoria Rébori.

Previsivelmente, é nos ensaiose na narrativa, onde os tradutorestiveram momentos mais conturba-dos – nesses dois gêneros se con-centra o mais inovador de Borges esão os que mais exigem treino, des-treza e astúcia de leitores e traduto-res. Assim, Discussão, traduzidopor Josely Baptista Vianna, apre-senta um texto acurado mas que fazuso, com freqüência, de um exces-sivo literalismo. A tradutora, que re-alizou um trabalho atento, nunca ba-naliza a idiossincrasia verbal do au-tor, como ocorre em traduções paraoutras línguas e mostra dificuldade –embora se aproxime bastante - de che-gar a um tom argumentativo ao mes-mo tempo borgiano e brasileiro, tal-vez porque a tradição de ensaio nopaís é relativamente pobre e tambémporque não temos uma tradição detradução criativa de ensaio, como te-mos de poesia e, em parte, de fic-ção. Expressões como “digressãopinturesca” (p. 187), “taberna defronteira”, “sopé dos montes” (p.241), “lancei a sorte” (p. 248) ouseleções lexicais como “gaucharia”(p. 187) “delusória” (p. 211) talvezindiquem, mais que imperícia da tra-dutora, uma penúria nos meios ex-pressivos do ensaio nacional. Mais

problemático é o texto de Historiada Eternidade, onde há lusismos sur-preendentes, e até de difícil compre-ensão para um brasileiro, como“qualquer palavra que pronuncie po-derá ser invocada contra si” (p. 463);a presença da mesóclise, que dá uminapropriado ar purista ao textoborgiano e uma normalização de ter-mos tão típicos de Borges (por exem-plo “libros de invención” traduzidocomo “livros de ficção”, p. 465).

É, definitivamente, nos con-tos, onde esta edição mostra seuslimites, que são também os limi-tes da tradução de ficção no Bra-sil. E é no diálogo onde as deci-sões dos tradutores são maisquestionáveis, inclusive porquemesmo nossos melhores escrito-res (com a notável exceção deNelson Rodrigues) costumam tro-peçar na representação da conver-sa. Frases como “Foi a mulher queo matou” (de “Homem da Esqui-na Rosada”, p. 366), “Economi-zou-nos uma noite e um dia” (“AMorte e a Bússola, p. 563), “Jásabia eu que podia contar com osenhor” (p. 579) parecem poucoverossímeis no dia-a-dia brasilei-ro.

Para além desses pequenos re-paros, devemos saudar este primei-ro tomo das Obras Completascomo um acontecimento impor-

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Sonetos Luxuriosos, de PietroAretino. Tradução, Introdução eNotas de José Paulo Paes. São Paulo:Cia.das Letras, 2000, 112 pp.

No panorama literário italiano,Pietro Aretino (1492-l556) parecenão ter ocupado um lugar de muitoprestígio, pois não é difícil consta-tar que a figura desse escritorprovocativo e irônico é bem dife-rente da de seus contemporâneosAriosto, Bembo, Sannazaro e ou-tros. Se por muito tempo os seusSonetti Lussoriosi (1524) causaramescândalo e foram relegados à cen-sura, ao descaso e ao mistério porseu cunho marcadamente erótico/sexual/obsceno, nos tempos atuais,no entanto, encontram-se à dispo-sição de qualquer um em diferen-tes sites da Internet.

Não por acaso, lembra JoséPaulo Paes, na “Notícia biográfi-

ca” à sua tradução dos SonetosLuxuriosos, “toda época históricaprecisa, a posteriori, pelo menos,de um bode expiatório que lhe pos-sa purgar as culpas e os crimes. ARenascença italiana teve-o sob me-dida em Pietro Aretino” (p 11).Além disso, ainda observa J. P. P.“o fato de terem nascido sob o sig-no do escândalo e, em conseqüên-cia, de ficarem marcados com olabéu da obscenidade, que os rele-garia por quatro séculos ao enferdas pequenas edições clandestinas,explica a escassez de informaçõesseguras acerca dos SonettiLussuriosi” (p 30).

Para melhor entender a concep-ção deste escritor de versos satíri-cos e eróticos - que os admiradoreschamavam de “poeta favoloso”, osopositores de “mostro infame” edepois da publicação dos SonettiLussuoriosi, de “poeta maledetto”-, e o por quê de tantas críticas,vale a pena transcrever as palavras

tante na importação de Borges aoBrasil, pois reúne em um cômo-do volume, o principal da produ-ção de seus primeiros cinqüentaanos. À medida que estes textossejam lidos e usados, suas virtu-des e vícios aparecerão com maisclareza e darão, certamente, lu-

gar a novas traduções que corri-jam distrações e favoreçam outrasênfases. Porque Borges, comotodos os grandes escritores mun-diais, merecem e devem ser cons-tantemente relidos e retraduzidospara nosso maior benefício.

Walter Carlos Costa