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A significação original de “democracia”: Capacidade de fazer coisas, não regra majoritária*
Josiah Ober
Tradução: Luci Rodrigues de Figueiredoi e Marcelo Garcia Santanaii (Revisão: Theresa Calvet de Magalhãesiii )
Resumo: Que a significação original de democracia é “capacidade de fazer coisas” e não “regra majoritária”,isso emerge de um estudo do vocabulário grego do quinto e quarto séculos a.C. para tipos de regime. Umaatenção especial é dada aos termos com a raiz – kratos e aos termos com a raiz – arche.
Palavras-chave: Democracia, “poder”, tipos de regime, domínio público, capacidade de fazer coisas.
Abstract: That the original meaning of democracy is “capacity to do things” not “majority rule” emergesfrom a study of the fifth and fourth century B.C. Greek vocabulary for regime-types. Special attention is
given to – kratos root and – arche root terms.
Key-words: Democracy, “power”, regime-types, public realm, capacity to do things.
Democracia é uma palavra que passou a significar muitas coisas diferentes para
pessoas diferentes. Em sua origem, essa palavra, claro, é grega, um composto de demos e
kratos . Uma vez que demos pode ser traduzido como “o povo” (enquanto “homens adultos
residentes nativos de uma polis”) e kratos como “poder”, democracia tem uma significação
raiz de “o poder do povo.” Mas poder em que sentido? Na modernidade, a democracia émuitas vezes construída como se referindo, em primeira instância, a uma regra de voto para
determinar a vontade da maioria. O poder do povo é, assim, a autoridade de decidir
questões por regra majoritária. Essa definição redutora deixa a democracia vulnerável no
que diz respeito a dilemas, bem conhecidos, de escolha social, incluindo a ignorância
racional de Downs [1957] e o teorema da impossibilidade de Arrow [1963]1: se a
* Tradução do artigo “The Original Meaning of “Democracy”: Capacity to Do Things, not Majority Rule”,
Constellations , Vol. 15 , No. 1 (2008), pp. 3-9.i. Professora de Direito Civil e Introdução ao Estudo do Direito e Coordenadora do Curso de Direito na
Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pelaUniversidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Mestranda em Direito/Teoria do Direito na UniversidadePresidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora (MG).
ii.. Professor de Ciência Política, Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá(Rio de Janeiro) e professor convidado do Curso de Pós-graduação do Centro Universitário Celso Lisboa(Rio de Janeiro); Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro);Mestrando em Direito/Teoria do Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora(MG); Advogado e Consultor Jurídico.
iii. Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL ( Univerité Catholique de Louvain ) – Bélgica; Pós-doutorado emFilosofia Contemporânea ( Institut Supérieur de Philosophie – UCL); Professora aposentada da UFMG(FAFICH - Departamento de Filosofia); Professora do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNIPAC
em Juiz de Fora (MG). 1. A. Downs, An Economic Theory of Democracy. New York: Harper & Row, 1957; K. Arrow, Social Choice andIndividual Values . New Haven: Yale University Press, 1963.
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democracia como um sistema político pode ser reduzida a um mecanismo de decisão que
se apoia numa regra de voto, e se essa regra de voto é inerentemente falha como um
mecanismo de decisão, então (como os críticos têm dito há muito tempo) a democracia é
inerentemente falha como um sistema político. Se a democracia é, em seu cerne, algo de
outro que um mecanismo de decisão baseado numa regra de voto, os dilemas de escolha
social não podem provar ser falhas inerentes à democracia como um sistema.
Este texto trata da significação grega original de “democracia” no contexto da
terminologia clássica (quinto e quarto séculos a.C.) para tipos de regime. A conclusão é
que a democracia se referia, originalmente, a “poder” no sentido de “capacidade de fazer
coisas”. “Regra majoritária” era uma diminuição intencionalmente pejorativa, exortada
pelos críticos gregos da democracia (Raaflaub 1989, Ober 1998).2 Não estamos, é claro,
presos a nenhuma convenção do passado, e menos ainda à definição original dos
inventores: se podemos criar uma significação melhor para um termo político, ela deveria
ser preferida. Mas se usos comuns modernos não são particularmente bons, no sentido de
serem “descritivamente corretos” ou “normativamente bem escolhidos”, então pode haver
algum mérito em voltar à fonte. Reduzir a democracia a uma regra de voto elide,
argumentativamente, muito do valor e do potencial da democracia. A significação grega
original, embora não tendo nenhuma autoridade inerente para nós, sugere meios para
expandir a nossa concepção moderna de democracia e, desse modo (incidentalmente),torná-la menos vulnerável a problemas associados com agregar diversas preferências pelo
voto.
O vocabulário grego para regimes políticos tendia a focalizar, em primeira instância,
o corpo no poder ou corpo dirigente [ ruling body ], que podia ser uma única pessoa (um), ou
um número limitado de pessoas (os poucos), ou um largo e inclusivo corpo (os muitos).
Embora o vocabulário grego para tipos de regime seja extenso, os três termos chave para o
governo de um, poucos e muitos são: monarchia , oligarchia, e demokratia . Mesmo nesta
pequena amostra, duas coisas imediatamente se destacam: primeiro, diferentemente de
monarchia (do adjetivo monos : solitário) e oligarchia (de hoi oligoi : os poucos), demokratia não se
relaciona, em primeira instância, com “número”. O termo demos refere-se a um corpo
coletivo. Diferentemente de monarchia e oligarchia , demokratia não responde, portanto, à
questão: “quantos têm o poder?” O termo grego padrão para “os muitos” é hoi polloi e, no
entanto, não há nenhum regime grego com o nome pollokratia ou pollarchia . Segundo, os
2. J. Ober, Political Dissent in Democratic Athens: Intellectual Critics of Popular Rule . Princeton: Princeton UniversityPress, 1998; K. Raaflaub, “Democracy, Oligarchy, and the Concept of the ‘Free Citizen’ in Late Fifth -Century Athens”, Political Theory , Vol. 1, No. 4 (1983), pp. 517-544.
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nomes gregos de regimes dividem-se em termos com um sufixo -arche , e termos com um
sufixo -kratos . Aristokratia (de hoi aristoi : o excelente), isokratia (de isos : igual) e anarchia são
nomes clássicos de regime que se encontram fora do esquema um/poucos/muitos embora
caiam no agrupamento -arche /-kratos . Nem todos os nomes de regime usam as raízes arche
ou kratos ; ver a Tabela: coluna IV. No entanto (com a exceção de tyrannia - que no período
clássico teve, consistentemente, conotações pejorativas) as famílias -arche e -kratos tenderam
a dominar o panorama terminológico. Já na época de Platão e Aristóteles, um número de
novos termos de regime tinham sido criados por poetas cômicos, filósofos, e partidários
políticos engajados em debates intelectuais. Timokratia (de time : honra) e gynkaikokratia (de
gynaikos : mulher) foram inventados por filósofos clássicos e poetas cômicos para
descrever regimes imaginários. Ochlokratia (de to ochlos : a plebe), era uma variante pós-
clássica (aparecendo primeiro em Políbio: segundo século a.C.) e fortemente pejorativa
de Demokratia .3
3. Os termos gregos primários são os seguintes (com citações, como exemplo, em autores clássicos): Anarchia :Heródoto 9.23; Ésquilo, As Supliantes 906. Aristokratia : Tucídides 3.82. Demokratia (e formas verbais):Heródoto 6.43, Tucídides 2.37. Gynkaikokratia : Aristóteles, Política 1313b. Dunasteia (como a pior forma deoligarchia ): Aristóteles Política 1292b10, 1293a31. Isegoria : Heródoto 5.78, Demóstenes 21.124. Isokratia :Heródoto 5.92.a. Isomoiria : Sólon apud Aristóteles Athenaion Politeia . 12.3. Isonomia : Heródoto 3.80, 3.142(oposta a dunasteia : Tucídides 4.78). Isopsephia : Dionísio de Halicarnasso 7.64. Isopsephos : Tucídides 1.141. Monarchia: Alceu Fragmento 12; Heródoto 3.82. Oligarchia (e formas verbais ativas e passivas): Heródoto3.82.2, 5.92.b’, Tucídides 6.38, 8.9, (como personificação (na lápide de Crítias): scholion de Ésquines 1.39).Ochlokratia como forma pejorativa de governo dos muitos: Políbio 6.4.6, 6.57.9. Timokratia : Platão República
545b, Aristóteles Ética a Nicômaco 1160a. Listas mais completas de citações encontram-se em Henry GeorgeLiddell, Robert Scott, e Henry Stuart Jones, A Greek-English lexicon (Oxford: Clarendon Press, 1968);Thesaurus Lingaue Graecae : http://www.tlg.uci.edu/.
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I II III IV V
Corpo nopoder
raiz -kratos raiz -arche Outros termos denomes de regime
Termos políticosrelacionados: pessoas,abstrações
A. Um autocracia monarchia tyranniabasileia
Tyrannosbasileus (rei)
B. Poucos aristokratia oligarchia dynasteia hoi oligoi (poucos)
C. Muitos demokratiaisokratiaochlokratia(plebe)
poliarquia isonomia (lei) isegoria (fala)isopsephia (voto)
hoi polloi (muitos)to plethos (maioria)to ochlos (plebe)isopsephos (votante)
D. Outro
(exempligratia)
timokratia
(honra)gynaikokratia(mulheres)tecnocracia
anarchia isomoiria (partes)
eunomia (lei)politeia (misturade democracia eoligarquia: comousado por Aristóteles)
dynamis (poder)
ischus (força)bia (força vital)kurios (mestre)exousia (autoridade,licença)
Tabela: terminologia grega (e neo-grega) para tipos de regime. Formas mais antigas (atestadas noséculo quinto) em negrito, invenções posteriores (século quarto) em fonte normal, invenções pós-clássicas/modernas em itálico.
A Tabela apresenta um mapa aproximado do terreno terminológico. Eu foco em
primeira instância os seis termos em negrito nas segunda e terceira colunas da Tabela:
demokratia , isokratia e aristokratia entre [os termos que têm] as raízes – kratos , e monarchia ,
oligarchia , e anarchia entre [os que têm] as raízes – arche . Cada um destes termos é atestado no
século quinto, embora oligarchia e aristokratia são, provavelmente, um pouco posteriores a
demokratia , isokratia e monarchia . Dada a tendência grega para neologismo criativo, até
mesmo no domínio da política, é notável que alguns termos “faltam” - eu já notei a
ausência dos derivativos- polloi . Nem monokratia , oligokratia , ou anakratia é alguma vez
atestado. Demarchia refere-se não a um tipo de regime, mas a um cargo local relativamente
menor ( ho demarchos , significando algo como “o prefeito”).
Dado que grande parte do vocabulário grego para tipos de regime cai em dois
grupos de sufixos, e que há “lacunas” notáveis em cada grupo, é razoável pressupor que
kratos significava algo bastante diferente de arche e indicava uma concepção diferente de
poder. Poderíamos tentar explicar os grupos – arche e – kratos por referência à legitimidade
política – isto é, segundo a dicotomia familiar, de Max Weber, de Herrschaft [poder legítimo]
e Macht [poder]. O pensamento filosófico grego (a Política de Aristóteles é o locus classicus )preocupava-se, de fato, em distinguir entre regimes “corretos” e “incorretos/corruptos”- e
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isso poderia ser visto como se aproximando da categorização de Weber baseada na
legitimidade. Mas os termos que estamos principalmente focalizando não se encaixam
perfeitamente nos grupos “legítimo” ou “ilegítimo” na base das raízes de seus sufixos.
Pode-se concluir, portanto, que não há nenhum sentido [ rhyme ] ou razão para o vocabulário
grego de regimes, que kratos e arche eram termos abarcadores [ catchall ] para “poder” em
algum sentido mal definido. Christian Meier (1970, 1972), um renomado especialista da
Begriffsgeschichte [história conceitual], desesperou de colocar o vocabulário grego geral do
poder em qualquer ordem sistemática e portanto concluiu que os gregos nunca tiveram
uma ideia muito específica de poder.4 No entanto, isso me parece ser muito pessimista.
Alguns dos “outros” termos para regime (coluna IV) encaixam-se na concepção
weberiana de Macht [poder], como “poder sem legitimidade”: já no tempo de Aristóteles,
tyrannia e dunasteia eram usados para formas severamente corruptas, muito “incorretas”, do
governo de um e de poucos, respectivamente. Do mesmo modo, a confusa decisão de
Aristóteles, na Politica, de usar o termo politeia – usualmente “constituição” ou “cultura
política” – para um tipo de regime particular (variadamente definido em Aristóteles, mas
basicamente uma “boa” mistura de oligarchia e demokratia ) coloca “o regime chamado
politeia ” bem solidamente dentro da categoria weberiana de Herrschaft [poder legítimo].
Portanto, talvez uma categorização weberiana modificada ajudasse a explicar os
termos com as raizes – arche e – kratos . Cada um dos três termos com a raiz – arche (III)parece estar relacionado com o “monopólio do cargo”. A palavra arche , em grego, tem
várias significações correlacionadas: começo (ou origem), império (ou controle hegemônico
de um Estado por outro), e cargo ou autoridade do magistrado. Um magistrado grego era
um arche , os cargos públicos como um corpo constitucional eram (plural) archai . Um archon
era um magistrado sênior: o titular de um cargo particular com deveres específicos (na
Atenas clássica, por exemplo, havia nove archons escolhidos anualmente – juntamente com
centenas de outros magistrados5 ).
Cada um dos três nomes de regime com a raiz – arche responde à questão: “quantos
governantes?” O mais antigo desses nomes parece ser monarchia , que aparece na poesia
arcaica, e é fortemente associado a governantes orientais, não gregos. Eu sugeriria que a
significação primária de monarchia era “dominação do aparato oficial do governo por um
4. C. Meier, Entstehung des Begriffs Demokratie: Vier Prolegomena zu einer historischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp,1970; “Macht und Herrschaft in der Antike,” in Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch- sozialen Sprache in Deutschland , Otto Brunner e Reinhart Koselleck (eds.). Stuttgart: E. Klett, 1972, 3820 –
3830.5. M. H. Hansen, The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles and Ideology . Norman:
University of Oklahoma Press, 1999.
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homem”. Do mesmo modo, as descrições gregas clássicas de oligarchia se referem a uma
forma de governo definida em primeira instância pelo acesso a direitos de participação em
geral, e cargo de magistrado em particular. Uma oligarchia era um regime no qual o direito
de ocupar um cargo era estritamente limitado a “uns poucos” com base numa qualificação
de propriedade e muitas vezes, adicionalmente, com base na ocupação ou ancestralidade.
Do mesmo modo, anarchia descreve uma condição na qual os cargos de magistrado do
governo estão vagos, geralmente devido a contenda civil sobre quem deve ocupá-los.
Embora não tendo a força de legitimidade especificamente weberiana, os termos com raiz
– arche se referem a quantas pessoas podem ocupar posições oficiais de autoridade dentro de
uma ordem constitucional de algum tipo. Não é, portanto, surpreendente que regimes
oligárquicos eram muitas vezes denominados para um número fixo de potenciais titulares
de cargo: Os Trinta, Os Quatrocentos, Os Três Mil, Os Cinco Mil, e assim por diante.
Ao contrário, a terminologia – kratos não parece ser sobre cargos enquanto tais.
Diferentemente de arche , a palavra kratos nunca é usada para “cargo”. Kratos tem uma
significação raiz de “poder” – mas o uso linguístico grego do nome kratos e de suas formas
verbais variam amplamente ao longo do espectro poder, de “dominação” a “governo” a
“capacidade”. Podemos, no entanto, restringir a amplitude para – kratos como um sufixo.
Diferentemente do grupo com a raiz -arche , que, como vimos, é inteiramente composto de
“termos numéricos”, nenhum dos termos no grupo -kratos é um termo numérico. Oprimeiro dos nossos três termos primários com a raiz -kratos (II), aristokratia , não nos leva
muito longe. Mas é possível, por meio da analogia com oligarchia em que os hoi oligoi
monopolizam cargos, imaginar que aristokratia seja apropriado apenas quando hoi aristoi (o
excelente) tem um monopólio semelhante. Mas entre os outros prefixos com raiz no grupo
-kratos , apenas gynaikokratia pode ser um plural, e assim se referir a potenciais titulares de
cargos públicos.
Isokratia não se refere a um grupo de pessoas e sim a uma abstração, “igualdade”.
Isokratia partilha o prefixo do seu nome com raiz -kratos com dois outros termos usados
pelo historiador do século quinto a.C, Heródoto, como perífrases para a democracia:
isonomia e isegoria . Pela analogia de isonomia (“lei igual”), isegoria ( “igual liberdade pública de
falar”), e o termo evidentemente mais antigo isomoiria (“partes iguais”: atribuído ao
legislador ateniense pré-democrático, Solon), parece provável que o prefixo iso dos termos
que têm a raiz – kratos se refere à equidade distributiva no que diz respeito a acesso em um
sentido de “direito de fazer uso de”. O acesso igual em cada caso é um bem público (lei,
fala, “partes” ) que, quando distribuído equitativamente, conduz ao bem comum. Assim,
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isonomia é a distribuição equitativa de imunidades legais entre a população relevante e o
acesso igual a processos jurídicos. Isegoria significa acesso igual a fóruns deliberativos:
direito igual de falar sobre questões públicas e de estar presente e participar da fala de
outros. Por analogia, isokratia é o acesso igual ao bem comum do kratos – ao poder público
que conduz ao bem comum na medida em que permite que coisas boas aconteçam no
domínio público.
Portanto kratos , quando é usado como um sufixo num tipo de regime, se torna o
poder no sentido de força, habilitação, ou “a capacidade de fazer coisas”. Isso está bem
dentro da extensão de como a palavra kratos e suas formas verbais foram usadas no grego
clássico e arcaico. Sob esta interpretação para isokratia , cada pessoa que se encontra no
âmbito “daqueles que eram iguais” ( por exemplo, os cidadãos) desfrutaria de acesso ao
poder público neste sentido de “capacidade”. Isso poderia incluir acesso a cargos públicos,
mas não precisa se limitar a isso. Em suma, ao invés de imaginar o grupo – kratos como
partilhando o interesse primário do grupo – arche no controle de um aparato constitucional
(pré-existente), eu sugeriria que os termos com a raiz – kratos referiam-se originalmente a
uma capacidade política (nova) ativada. Isso explicaria porque não há monokratia ou
oligokratia : “o um” e “os poucos” eram considerados como inerentemente fortes e capazes,
através do controle de riqueza, educação especial, e origem nobre. Não estava, portanto,
em questão se o um ou os poucos possuiam uma capacidade de fazer coisas – a questão erase eles controlavam ou não controlavam o aparato do governo.
O que nos traz, finalmente, à demockratia . Demokratia não pode significar o “demos
monopoliza os cargos” já que o demos (diferentemente dos implícitos plurais hoi oligoi , hoi
aristoi ) tem de referir-se a um corpo coletivo [ corporate body ] – a um “público” – e esse
público não pode ser coletivamente um “detentor de cargo” no sentido ordinário. Mas se
extrapolarmos da definição que eu propus para isokratia , o termo tem sentido ao mesmo
tempo filológico e histórico: Demokratia , que emergiu como um tipo de governo com a
histórica auto-asserção de um demos em um momento de revolução, refere-se à capacidade
coletiva do demos de fazer coisas no domínio público, de fazer coisas acontecerem.6 Se isto é
correto, demokratia não se refere em primeira instância ao controle monopolístico do demos
da autoridade constitucional pré-existente. Demokratia não é apenas “o poder do demos ” no
sentido de “o poder superior ou monopolístico do demos no que diz respeito a outros
potenciais detentores do poder no Estado”. Antes significa, de forma mais abrangente, “o
demos com poder” - é o regime no qual o demos ganha uma capacidade coletiva de efetuar
6. J. Ober, The Athenian Revolution: Essays on Ancient Greek Democracy and Political Theory . Princeton: PrincetonUniversity Press, 1996, especialmente os capítulos 3, 4, e 7.
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mudanças no domínio público. E, assim, não se trata simplesmente de uma questão de
controle de um domínio público, mas da força e capacidade coletiva de agir nesse domínio e, na
verdade, de reconstituir o domínio público através da ação.
A capacidade do demos foi primeiro manifestada durante um levante popular que
desencadeou a revolução democrática de 508/7 a.C. Mas momentos revolucionários são
passageiros. Se o demos sustentasse uma capacidade coletiva de fazer coisas ao longo do
tempo – formar planos e executá-los em circunstâncias ordinárias – então a demokratia ,
como uma forma de auto-governo popular, exigiria formas institucionais ( pace Sheldon
Wolin7 ). Mais particularmente, as instituições da demokratia ateniense nunca foram
centradas em eleições. Votar sobre questões políticas era certamente importante – o
cidadão ateniense poderia ser descrito não somente como isonomos e isegoros , mas também
como isopsephos : um igual no que diz respeito ao seu voto. Mas ao contrário de isonomia eisegoria , isopsephia é um outro nome de regime grego clássico “ausente” : não é atestado até o
1º século a.C e nunca foi perífrase para demokratia .
O demos era composto de um corpo de indivíduos socialmente diverso, cada um
capaz de escolher livremente em seu próprio interesse. Seus membros não eram unificados
em seus desejos por uma ideologia “hegemónica” [“all the way down” ]. Muitos deles
necessitavam de alguma forma de subsídio se tivessem de participar em termos iguais.
Tudo isso significava que para o demos estar politicamente capacitado, de uma maneirasustentável e regular, alguma ação coletiva difícil e problemas de coordenação tinham de
ser atendidos. O regime ateniense não tentou abordar tais problemas apenas através de
regras de voto. Sorteios para cargos e corpos deliberativos para definições de pauta eram
formas institucionais democráticas atenienses primárias. Mas até mesmo essas formas
institucionais não captavam por completo a significação de demokratia enquanto capacidade
de fazer coisas. Um sentido mais completo de demokratia é oferecido na oração fúnebre de
Péricles em Tucídides (2.37), e em discursos preservados proferidos na assembleia e nos
tribunais atenienses.
Como a passagem da oração fúnebre é muito conhecida, não a retomo mas citarei
uma passagem tirada de um caso no tribunal em meados do século IV a.C (Demóstenes
discurso 21: Contra Midias ) Aqui, Demóstenes emprega um rico vocabulário de força,
controle, habilidade, e proteção ao resumir o relacionamento democrático entre lei, ação e
bens públicos:
7. S. S. Wolin, “Norm and Form: The Constitutionalizing of Democracy,” in Athenian Political Thought and theReconstruction of American Democracy. J. Peter Euben, John Wallach, e Josiah Ober (eds.). Ithaca: CornellUniversity Press, 1994, pp. 29 – 58.
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Pois de fato, se vocês [jurados] tivessem o cuidado de considerar e investigar a questãosobre o que é que dá poder e controle ( ischuroi kai kurioi ) sobre todas as questões na polis para aqueles de vocês que são jurados em qualquer ocasião ... então descobririamque a razão não é que, dos cidadãos, apenas vocês estão armados e mobilizados emclasses, nem que são, fisicamente, os melhores e mais fortes, nem que são mais jovens
em idade, nem nada desse tipo, mas entenderiam que são poderosos ( ischuein ) atravésdas leis ( nomoi ). E o que é o poder ( ischus ) das leis? É que, se algum de vocês foratacado e gritar, elas virão correndo para os ajudar? Não, elas são apenas letrasinscritas e não têm habilidade ( ouchi dunaint’ ) para fazer isso. Qual é, então, seu podermobilizador ( dunamis )? Vocês são, se as autorizarem a assim o fazer ( kurioi ) sempreque alguém pedir por ajuda. Assim as leis são poderosas ( ischuroi ) através de vocês e vocês são poderosos através das leis. Por isso vocês têm de protegê-las ( toutois boethein )do mesmo modo como qualquer indivíduo protege a si mesmo se for injustiçado, e deconsiderar as violações das leis como crimes que atingem a toda comunidade ( koina )...(21.223-225)
Portanto, se a significação original de democracia é a capacidade coletiva de umpovo de fazer coisas boas acontecer no domínio público, de onde vem a ideia da
democracia como definida em primeira instância por regras de voto e pelo monopólio de
cargos por parte dos muitos? Responder a esta questão está além do objetivo deste texto, e
basta então dizer que os críticos antigos do governo popular8 buscaram reformular
demokratia como o equivalente de uma tirânica “ polloi-archia ” – como a dominação
monopolista do aparato do governo pelos muitos que eram pobres: esta é a estratégia, por
exemplo, do assim chamado Velho Oligarca, um anônimo panfletário do quinto século.
Mas, do mesmo modo que kratos não é sinônimo de arche , assim também na Atenas clássica
demos significava originalmente “o todo da cidadania” ( enquanto população masculina livre
nativa de um território nacional) - não um fragmento sociologicamente delimitado da
cidadania. Colocar a democracia em pé de igualdade com a oligarquia, como pouco mais,
em princípio ou prática, do que o monopólio sobre cargos governamentais estabelecidos
por, respectivamente, os muitos (pobres) e os poucos (ricos), é aceitar as polêmicas
antidemocráticas do século quinto como uma descrição correta da realidade política. Se a
nossa meta ao retornar à Antiguidade grega é chegar a uma compreensão do poder político
que possa ter valor para nós, temos de aprender a atender aos que defendiam a antiga
democracia como também aos seus críticos.
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Thesaurus Lingaue Graecae [TLG] - http://www.tlg.uci.edu .