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  A significação or iginal de “de mocracia”: Capacidade  de fazer coisas, não regra majoritária*  Josiah Ober  Tradução: Luci Rodrigues de Figueiredo i  e Marcelo Garcia Santana ii  (Revisão: Theresa Calvet de Magalhães iii  ) Resumo: Que a significação original de democracia é “capacidade de fazer coisas” e não “ regra majoritária ”, isso emerge de um estudo do vocabulário grego do quinto e quarto séculos a.C. para tipos de regime. Uma atenção especial é dada aos termos com a raiz  kratos  e aos termos com a raiz  arche. Palavras-chave: Democracia, “poder” , tipos de regime, d omínio público, capacidade de fazer coisas.  Abstract: That the original meaning of democracy is “capacity to do things” not “majority rule”  emerges from a study of the fifth and fourth century B.C. Greek vocabulary for regime-types. Special attention is given to  kratos root and  arche root terms. Key-words: Democracy, “power”, regime -types, public realm, capacity to do things.  Democracia é uma palavra que passou a significar muitas coisas diferentes para pessoas diferentes. Em sua origem, essa palavra, claro, é grega, um composto de demos  e kratos . Uma vez que demos  pode ser traduzido como “o povo” (enquanto “homens adultos residentes nativos de uma polis”) e kratos  como “poder”, democracia tem uma significação raiz de “o poder do povo.” Mas poder em que sentido? Na modernidade, a democracia é muitas vezes construída como se referindo, em primeira instância, a uma regra de voto para determinar a vontade da maioria. O poder do povo é, assim, a autoridade de decidir questões por regra majoritária. Essa definição redutora deixa a democracia vulnerável no que diz respeito a dilemas, bem conhecidos, de escolha social, incluindo a ignorância racional de Downs [1957] e o teorema da impossibilidade de Arrow [1963] 1 : se a * Tradução do artigo “The Original Meaning of “Democracy”: Capacity to Do Things, not Majority Rule”, Constellations , Vol. 15 , No. 1 (2008), pp. 3-9. i. Professora de D ireito Civil e Introdução ao Estudo do Direito e Coordenadora do Curso de Direito na Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Mestranda em Direito/Teoria do Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora (MG). ii.. Professor de Ciência Política, Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e professor convidado do Curso de Pós-graduação do Centro Universitário Celso Lisboa (Rio de Janeiro); Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Mestrando em Direito/Teoria do Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora (MG); Advogado e Consultor Jurídico. iii. Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL ( Univerité Catholique de Louvain  )    Bélgica; Pós-doutorado em Filosofia Contemporânea ( Institut Supérieur de Philosophie    UCL); Professora aposentada da UFMG (FAFICH - Departamento de Filosofia); Professora do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNIPAC em Juiz de Fora (MG).  1. A. Downs,  An Economic Theory of Democracy. New York: Harper & Row, 1957; K. Arrow, Social Choice and Individual Values . New Haven: Yale University Press, 1963. 

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 A significação original de “democracia”: Capacidade de fazer coisas, não regra majoritária*

 Josiah Ober

 Tradução: Luci Rodrigues de Figueiredoi e Marcelo Garcia Santanaii (Revisão: Theresa Calvet de Magalhãesiii )

Resumo: Que a significação original de democracia é “capacidade de fazer coisas” e não “regra majoritária”,isso emerge de um estudo do vocabulário grego do quinto e quarto séculos a.C. para tipos de regime. Umaatenção especial é dada aos termos com a raiz – kratos  e aos termos com a raiz – arche. 

Palavras-chave: Democracia, “poder”, tipos de regime, domínio público, capacidade de fazer coisas.

 Abstract: That the original meaning of democracy is “capacity to do things” not “majority rule” emergesfrom a study of the fifth and fourth century B.C. Greek vocabulary for regime-types. Special attention is

given to – kratos root and – arche root terms.

Key-words: Democracy, “power”, regime-types, public realm, capacity to do things. 

Democracia é uma palavra que passou a significar muitas coisas diferentes para

pessoas diferentes. Em sua origem, essa palavra, claro, é grega, um composto de demos   e

kratos . Uma vez que demos  pode ser traduzido como “o povo” (enquanto “homens adultos

residentes nativos de uma polis”) e kratos  como “poder”, democracia tem uma significação

raiz de “o poder do povo.” Mas poder em que sentido? Na modernidade, a democracia émuitas vezes construída como se referindo, em primeira instância, a uma regra de voto para

determinar a vontade da maioria. O poder do povo é, assim, a autoridade de decidir

questões por regra majoritária. Essa definição redutora deixa a democracia vulnerável no

que diz respeito a dilemas, bem conhecidos, de escolha social, incluindo a ignorância

racional de Downs [1957] e o teorema da impossibilidade de Arrow [1963]1: se a

* Tradução do artigo “The Original Meaning of “Democracy”: Capacity to Do Things, not Majority Rule”,

Constellations , Vol. 15 , No. 1 (2008), pp. 3-9.i. Professora de Direito Civil e Introdução ao Estudo do Direito e Coordenadora do Curso de Direito na

Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pelaUniversidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro); Mestranda em Direito/Teoria do Direito na UniversidadePresidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora (MG).

ii.. Professor de Ciência Política, Direito Constitucional e Direito Internacional na Universidade Estácio de Sá(Rio de Janeiro) e professor convidado do Curso de Pós-graduação do Centro Universitário Celso Lisboa(Rio de Janeiro); Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro);Mestrando em Direito/Teoria do Direito na Universidade Presidente Antônio Carlos, em Juiz de Fora(MG); Advogado e Consultor Jurídico.

iii. Docteur em Sciences Politiques et Sociales pela UCL ( Univerité Catholique de Louvain  ) –  Bélgica; Pós-doutorado emFilosofia Contemporânea ( Institut Supérieur de Philosophie  –   UCL); Professora aposentada da UFMG(FAFICH - Departamento de Filosofia); Professora do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNIPAC

em Juiz de Fora (MG). 1. A. Downs,  An Economic Theory of Democracy. New York: Harper & Row, 1957; K. Arrow, Social Choice andIndividual Values . New Haven: Yale University Press, 1963. 

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democracia como um sistema político pode ser reduzida a um mecanismo de decisão que

se apoia numa regra de voto, e se essa regra de voto é inerentemente falha como um

mecanismo de decisão, então (como os críticos têm dito há muito tempo) a democracia é

inerentemente falha como um sistema político. Se a democracia é, em seu cerne, algo de

outro que um mecanismo de decisão baseado numa regra de voto, os dilemas de escolha

social não podem provar ser falhas inerentes à democracia como um sistema.

Este texto trata da significação grega original de “democracia” no contexto da

terminologia clássica (quinto e quarto séculos a.C.) para tipos de regime. A conclusão é

que a democracia se referia, originalmente, a “poder” no sentido de “capacidade de  fazer

coisas”. “Regra majoritária” era uma diminuição intencionalmente pejorativa, exortada

pelos críticos gregos da democracia (Raaflaub 1989, Ober 1998).2 Não estamos, é claro,

presos a nenhuma convenção do passado, e menos ainda à definição original dos

inventores: se podemos criar uma significação melhor para um termo político, ela deveria

ser preferida. Mas se usos comuns modernos não são particularmente bons, no sentido de

serem “descritivamente corretos” ou “normativamente bem escolhidos”, então pode haver

algum mérito em voltar à fonte. Reduzir a democracia a uma regra de voto elide,

argumentativamente, muito do valor e do potencial da democracia. A significação grega

original, embora não tendo nenhuma autoridade inerente para nós, sugere meios para

expandir a nossa concepção moderna de democracia e, desse modo (incidentalmente),torná-la menos vulnerável a problemas associados com agregar diversas preferências pelo

 voto.

O vocabulário grego para regimes políticos tendia a focalizar, em primeira instância,

o corpo no poder ou corpo dirigente [ ruling body  ], que podia ser uma única pessoa (um), ou

um número limitado de pessoas (os poucos), ou um largo e inclusivo corpo (os muitos).

Embora o vocabulário grego para tipos de regime seja extenso, os três termos chave para o

governo de um, poucos e muitos são: monarchia , oligarchia,  e demokratia . Mesmo nesta

pequena amostra, duas coisas imediatamente se destacam: primeiro, diferentemente de

monarchia  (do adjetivo monos : solitário) e oligarchia  (de hoi oligoi : os poucos), demokratia   não se

relaciona, em primeira instância, com “número”. O termo demos   refere-se a um corpo

coletivo. Diferentemente de monarchia   e oligarchia , demokratia   não responde, portanto, à

questão: “quantos têm o poder?” O termo grego padrão para “os muitos” é hoi polloi e, no

entanto, não há nenhum regime grego com o nome  pollokratia ou  pollarchia . Segundo, os

2. J. Ober, Political Dissent in Democratic Athens: Intellectual Critics of Popular Rule . Princeton: Princeton UniversityPress, 1998; K. Raaflaub, “Democracy, Oligarchy, and the Concept of the ‘Free Citizen’ in Late Fifth -Century Athens”, Political Theory , Vol. 1, No. 4 (1983), pp. 517-544.

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nomes gregos de regimes dividem-se em termos com um sufixo -arche , e termos com um

sufixo -kratos .  Aristokratia  (de hoi aristoi : o excelente), isokratia  (de isos : igual) e anarchia  são

nomes clássicos de regime que se encontram fora do esquema um/poucos/muitos embora

caiam no agrupamento -arche /-kratos . Nem todos os nomes de regime usam as raízes arche  

ou kratos ; ver a Tabela: coluna IV. No entanto (com a exceção de tyrannia - que no período 

clássico teve, consistentemente, conotações pejorativas) as famílias -arche  e -kratos  tenderam

a dominar o panorama terminológico. Já na época de Platão e Aristóteles, um número de

novos termos de regime tinham sido criados por poetas cômicos, filósofos, e partidários

políticos engajados em debates intelectuais. Timokratia (de time : honra) e  gynkaikokratia   (de

 gynaikos : mulher) foram inventados por filósofos clássicos e poetas cômicos para

descrever regimes imaginários. Ochlokratia (de to  ochlos : a plebe), era uma variante pós-

clássica (aparecendo primeiro em Políbio: segundo século a.C.) e fortemente pejorativa

de Demokratia .3 

3. Os termos gregos primários são os seguintes (com citações, como exemplo, em autores clássicos): Anarchia :Heródoto 9.23; Ésquilo,  As   Supliantes 906.  Aristokratia : Tucídides 3.82. Demokratia (e formas verbais):Heródoto 6.43, Tucídides 2.37. Gynkaikokratia : Aristóteles, Política 1313b. Dunasteia (como a pior forma deoligarchia  ): Aristóteles Política 1292b10, 1293a31. Isegoria : Heródoto 5.78, Demóstenes 21.124. Isokratia :Heródoto 5.92.a. Isomoiria : Sólon apud  Aristóteles  Athenaion Politeia . 12.3. Isonomia : Heródoto 3.80, 3.142(oposta a dunasteia : Tucídides 4.78). Isopsephia : Dionísio de Halicarnasso 7.64. Isopsephos : Tucídides 1.141. Monarchia:  Alceu Fragmento 12; Heródoto 3.82. Oligarchia (e formas verbais ativas e passivas): Heródoto3.82.2, 5.92.b’, Tucídides 6.38, 8.9, (como personificação (na lápide de Crítias): scholion de Ésquines 1.39).Ochlokratia como forma pejorativa de governo dos muitos: Políbio 6.4.6, 6.57.9. Timokratia : Platão República

545b, Aristóteles Ética a Nicômaco 1160a. Listas mais completas de citações encontram-se em Henry GeorgeLiddell, Robert Scott, e Henry Stuart Jones,  A Greek-English lexicon (Oxford: Clarendon Press, 1968);Thesaurus Lingaue Graecae : http://www.tlg.uci.edu/. 

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I II III IV V

Corpo nopoder

raiz -kratos raiz -arche Outros termos denomes de regime

 Termos políticosrelacionados: pessoas,abstrações

 A. Um autocracia   monarchia  tyranniabasileia 

Tyrannosbasileus (rei)

B. Poucos aristokratia  oligarchia dynasteia  hoi oligoi (poucos)

C. Muitos demokratiaisokratiaochlokratia(plebe)

 poliarquia isonomia (lei) isegoria (fala)isopsephia (voto)

hoi polloi (muitos)to plethos (maioria)to ochlos (plebe)isopsephos (votante)

D. Outro

(exempligratia)

timokratia

(honra)gynaikokratia(mulheres)tecnocracia  

anarchia  isomoiria (partes)

eunomia (lei)politeia (misturade democracia eoligarquia: comousado por Aristóteles)

dynamis (poder)

ischus (força)bia (força vital)kurios (mestre)exousia (autoridade,licença)

 Tabela: terminologia grega (e neo-grega) para tipos de regime. Formas mais antigas (atestadas noséculo quinto) em negrito, invenções posteriores (século quarto) em fonte normal, invenções pós-clássicas/modernas em itálico.

 A Tabela apresenta um mapa aproximado do terreno terminológico. Eu foco em

primeira instância os seis termos em negrito nas segunda e terceira colunas da Tabela:

demokratia , isokratia   e aristokratia   entre [os termos que têm] as raízes  – kratos , e monarchia ,

oligarchia , e anarchia  entre [os que têm] as raízes – arche . Cada um destes termos é atestado no

século quinto, embora oligarchia   e aristokratia  são, provavelmente, um pouco posteriores a

demokratia , isokratia   e monarchia . Dada a tendência grega para neologismo criativo, até

mesmo no domínio da política, é notável que alguns termos “faltam”  - eu já notei a

ausência dos derivativos- polloi . Nem monokratia , oligokratia , ou anakratia é alguma vez

atestado.  Demarchia  refere-se não a um tipo de regime, mas a um cargo local relativamente

menor ( ho demarchos , significando algo como “o prefeito”). 

Dado que grande parte do vocabulário grego para tipos de regime cai em dois

grupos de sufixos, e que há “lacunas” notáveis em cada grupo, é razoável pressupor que

kratos   significava algo bastante diferente de arche   e indicava uma concepção diferente de

poder. Poderíamos tentar explicar os grupos  – arche  e  – kratos  por referência à legitimidade

política –  isto é, segundo a dicotomia familiar, de Max Weber, de Herrschaft  [poder legítimo]

e  Macht  [poder]. O pensamento filosófico grego (a Política  de Aristóteles é o locus classicus  )preocupava-se, de fato, em distinguir entre regimes “corretos” e “incorretos/corruptos”- e

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isso poderia ser visto como se aproximando da categorização de Weber baseada na

legitimidade. Mas os termos que estamos principalmente focalizando não se encaixam

perfeitamente nos grupos “legítimo” ou “ilegítimo” na base das raízes de seus sufixos.

Pode-se concluir, portanto, que não há nenhum sentido [ rhyme  ] ou razão para o vocabulário

grego de regimes, que kratos   e arche   eram termos abarcadores [ catchall  ] para “poder” em

algum sentido mal definido. Christian Meier (1970, 1972), um renomado especialista da

Begriffsgeschichte [história conceitual], desesperou de colocar o vocabulário grego geral do

poder em qualquer ordem sistemática e portanto concluiu que os gregos nunca tiveram

uma ideia muito específica de poder.4 No entanto, isso me parece ser muito pessimista.

 Alguns dos “outros” termos para regime (coluna IV) encaixam-se na concepção

 weberiana de Macht   [poder], como “poder sem legitimidade”: já no tempo de Aristóteles,

tyrannia  e dunasteia  eram usados para formas severamente corruptas, muito “incorretas”, do

governo de um e de poucos, respectivamente. Do mesmo modo, a confusa decisão de

 Aristóteles, na Politica,  de usar o termo  politeia   –   usualmente “constituição” ou “cultura

política”  –   para um tipo de regime particular (variadamente definido em Aristóteles, mas

basicamente uma “boa” mistura  de oligarchia   e demokratia  ) coloca “o regime chamado

 politeia ” bem solidamente dentro da categoria weberiana de Herrschaft [poder legítimo].

Portanto, talvez uma categorização weberiana modificada ajudasse a explicar os

termos com as raizes  – arche   e  – kratos . Cada um dos três termos com a raiz  – arche   (III)parece estar relacionado com o “monopólio do cargo”. A palavra arche , em grego, tem

 várias significações correlacionadas: começo (ou origem), império (ou controle hegemônico

de um Estado por outro), e cargo ou autoridade do magistrado. Um magistrado grego era

um arche , os cargos públicos como um corpo constitucional eram (plural) archai . Um archon  

era um magistrado sênior: o titular de um cargo particular com deveres específicos (na

 Atenas clássica, por exemplo, havia nove archons  escolhidos anualmente –  juntamente com

centenas de outros magistrados5 ).

Cada um dos três nomes de regime com a raiz – arche  responde à questão: “quantos 

governantes?” O mais antigo desses nomes parece ser monarchia , que aparece na poesia

arcaica, e é fortemente associado a governantes orientais, não gregos. Eu sugeriria que a

significação primária de monarchia  era “dominação do aparato oficial do governo por um

4. C. Meier, Entstehung des Begriffs Demokratie: Vier Prolegomena zu einer historischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp,1970; “Macht und Herrschaft in der Antike,” in Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch- sozialen Sprache in Deutschland , Otto Brunner e Reinhart Koselleck (eds.). Stuttgart: E. Klett, 1972, 3820 – 

3830.5. M. H. Hansen, The Athenian Democracy in the Age of Demosthenes: Structure, Principles and Ideology . Norman:

University of Oklahoma Press, 1999.

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homem”. Do mesmo modo, as descrições gregas clássicas de oligarchia   se referem a uma

forma de governo definida em primeira instância pelo acesso a direitos de participação em

geral, e cargo de magistrado em particular. Uma oligarchia  era um regime no qual o direito

de ocupar um cargo era estritamente limitado a “uns poucos” com base numa qualificação

de propriedade e muitas vezes, adicionalmente, com base na ocupação ou ancestralidade.

Do mesmo modo, anarchia   descreve uma condição na qual os cargos de magistrado do

governo estão vagos, geralmente devido a contenda civil sobre quem deve ocupá-los.

Embora não tendo a força de legitimidade especificamente weberiana, os termos com raiz

 – arche  se referem a quantas pessoas podem ocupar posições oficiais de autoridade dentro de

uma ordem constitucional de algum tipo. Não é, portanto, surpreendente que regimes

oligárquicos eram muitas vezes denominados para um número fixo de potenciais titulares

de cargo: Os Trinta, Os Quatrocentos, Os Três Mil, Os Cinco Mil, e assim por diante.

 Ao contrário, a terminologia  – kratos   não parece ser sobre cargos enquanto tais.

Diferentemente de arche , a palavra kratos   nunca é usada para “cargo”. Kratos   tem uma

significação raiz de “poder” –  mas o uso linguístico grego do nome kratos  e de suas formas

 verbais variam amplamente ao longo do espectro poder, de “dominação” a “governo” a

“capacidade”. Podemos, no entanto, restringir a amplitude para  – kratos  como um sufixo.

Diferentemente do grupo com a raiz -arche , que, como vimos, é inteiramente composto de

“termos numéricos”, nenhum dos termos no grupo -kratos   é um termo numérico. Oprimeiro dos nossos três termos primários com a raiz -kratos  (II), aristokratia , não nos leva

muito longe. Mas é possível, por meio da analogia com oligarchia   em que os hoi oligoi  

monopolizam cargos, imaginar que aristokratia  seja apropriado apenas quando hoi aristoi  (o

excelente) tem um monopólio semelhante. Mas entre os outros prefixos com raiz no grupo

-kratos , apenas  gynaikokratia  pode ser um plural, e assim se referir a potenciais titulares de

cargos públicos.

Isokratia  não se refere a um grupo de pessoas e sim a uma abstração, “igualdade”.

Isokratia  partilha o prefixo do seu nome com raiz -kratos com dois outros termos usados

pelo historiador do século quinto a.C, Heródoto, como perífrases para a democracia:

isonomia  e isegoria . Pela analogia de isonomia  (“lei igual”), isegoria   ( “igual liberdade pública de

falar”), e o termo evidentemente mais antigo isomoiria   (“partes iguais”: atribuído ao

legislador ateniense pré-democrático, Solon), parece provável que o prefixo iso dos termos

que têm a raiz – kratos se refere à equidade distributiva no que diz respeito a acesso em um

sentido de “direito de fazer uso de”. O acesso igual em cada caso é um bem público (lei,

fala, “partes” ) que, quando distribuído equitativamente, conduz ao bem comum. Assim,

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isonomia   é a distribuição equitativa de imunidades legais entre a população relevante e o

acesso igual a processos jurídicos. Isegoria   significa acesso igual a fóruns deliberativos:

direito igual de falar sobre questões públicas e de estar presente e participar da fala de

outros. Por analogia, isokratia  é o acesso igual ao bem comum do kratos   –  ao poder público

que conduz ao bem comum na medida em que permite que coisas boas aconteçam no

domínio público.

Portanto kratos , quando é usado como um sufixo num tipo de regime, se torna o

poder no sentido de força, habilitação, ou “a capacidade de fazer coisas”. Isso está bem

dentro da extensão de como a palavra kratos  e suas formas verbais foram usadas no grego

clássico e arcaico. Sob esta interpretação para isokratia , cada pessoa que se encontra no

âmbito “daqueles que eram iguais” ( por exemplo, os cidadãos) desfrutaria de acesso ao

poder público neste sentido de “capacidade”. Isso poderia incluir acesso a cargos públicos,

mas não precisa se limitar a isso. Em suma, ao invés de imaginar o grupo – kratos como

partilhando o interesse primário do grupo  – arche  no controle de um aparato constitucional

(pré-existente), eu sugeriria que os termos com a raiz  – kratos  referiam-se originalmente a

uma capacidade política (nova) ativada. Isso explicaria porque não há monokratia   ou

oligokratia : “o um” e “os poucos” eram considerados como inerentemente   fortes e capazes,

através do controle de riqueza, educação especial, e origem nobre. Não estava, portanto,

em questão se o um ou os poucos possuiam uma capacidade de fazer coisas –  a questão erase eles controlavam ou não controlavam o aparato do governo.

O que nos traz, finalmente, à demockratia . Demokratia  não pode significar o “demos

monopoliza os cargos” já que o demos  (diferentemente dos implícitos plurais hoi oligoi , hoi

aristoi  ) tem de referir-se a um corpo coletivo [ corporate body  ]  –   a um “público” –   e esse

público não pode ser coletivamente um “detentor de cargo” no sentido ordinário. Mas se

extrapolarmos da definição que eu propus para isokratia , o termo tem sentido ao mesmo

tempo filológico e histórico: Demokratia , que emergiu como um tipo de governo com a

histórica auto-asserção de um demos  em um momento de revolução, refere-se à capacidade

coletiva do demos de fazer coisas no domínio público, de fazer coisas acontecerem.6 Se isto é

correto, demokratia não se refere em primeira instância ao controle monopolístico do demos

da autoridade constitucional pré-existente. Demokratia  não é apenas “o poder do demos ” no

sentido de “o poder superior ou monopolístico do demos no que diz respeito a outros

potenciais detentores do poder no Estado”. Antes significa, de forma mais abrangente, “o

demos  com poder” - é o regime no qual o demos  ganha uma capacidade coletiva de efetuar

6. J. Ober, The Athenian Revolution: Essays on Ancient Greek Democracy and Political Theory . Princeton: PrincetonUniversity Press, 1996, especialmente os capítulos 3, 4, e 7.

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mudanças no domínio público. E, assim, não se trata simplesmente de uma questão de

controle  de um domínio público, mas da força  e capacidade  coletiva de agir nesse domínio e, na

 verdade, de reconstituir o domínio público através da ação.

 A capacidade do demos   foi primeiro manifestada durante um levante popular que

desencadeou a revolução democrática de 508/7 a.C. Mas momentos revolucionários são

passageiros. Se o demos sustentasse uma capacidade coletiva de fazer coisas ao longo do

tempo  –   formar planos e executá-los em circunstâncias ordinárias  –   então a demokratia ,

como uma forma de auto-governo popular, exigiria formas institucionais (  pace   Sheldon

 Wolin7 ). Mais particularmente, as instituições da demokratia ateniense nunca foram

centradas em eleições. Votar sobre questões políticas era certamente importante  –   o

cidadão ateniense poderia ser descrito não somente como isonomos  e isegoros , mas também

como isopsephos : um igual no que diz respeito ao seu voto. Mas ao contrário de isonomia  eisegoria , isopsephia  é um outro nome de regime grego clássico “ausente” : não é atestado até o

1º século a.C e nunca foi perífrase para demokratia .

O demos   era composto de um corpo de indivíduos socialmente diverso, cada um

capaz de escolher livremente em seu próprio interesse. Seus membros não eram unificados

em seus desejos por uma ideologia “hegemónica” [“all the way down” ]. Muitos deles

necessitavam de alguma forma de subsídio se tivessem de participar em termos iguais.

 Tudo isso significava que para o demos estar politicamente capacitado, de uma maneirasustentável e regular, alguma ação coletiva difícil e problemas de coordenação tinham de

ser atendidos. O regime ateniense não tentou abordar tais problemas apenas através de

regras de voto. Sorteios para cargos e corpos deliberativos para definições de pauta eram

formas institucionais democráticas atenienses primárias. Mas até mesmo essas formas

institucionais não captavam por completo a significação de demokratia  enquanto capacidade

de fazer coisas. Um sentido mais completo de demokratia  é oferecido na oração fúnebre de

Péricles em Tucídides (2.37), e em discursos preservados proferidos na assembleia e nos

tribunais atenienses.

Como a passagem da oração fúnebre é muito conhecida, não a retomo mas citarei

uma passagem tirada de um caso no tribunal em meados do século IV a.C (Demóstenes

discurso 21: Contra Midias  ) Aqui, Demóstenes emprega um rico vocabulário de força,

controle, habilidade, e proteção ao resumir o relacionamento democrático entre lei, ação e

bens públicos:

7. S. S. Wolin, “Norm and Form: The Constitutionalizing of Democracy,” in  Athenian Political Thought and theReconstruction of American Democracy.  J. Peter Euben, John Wallach, e Josiah Ober (eds.). Ithaca: CornellUniversity Press, 1994, pp. 29 – 58.

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Pois de fato, se vocês [jurados] tivessem o cuidado de considerar e investigar a questãosobre o que é que dá poder e controle ( ischuroi kai kurioi  ) sobre todas as questões na polis  para aqueles de vocês que são jurados em qualquer ocasião ... então descobririamque a razão não é que, dos cidadãos, apenas vocês estão armados e mobilizados emclasses, nem que são, fisicamente, os melhores e mais fortes, nem que são mais jovens

em idade, nem nada desse tipo, mas entenderiam que são poderosos ( ischuein  ) atravésdas leis ( nomoi  ). E o que é o poder ( ischus  ) das leis? É que, se algum de vocês foratacado e gritar, elas virão correndo para os ajudar? Não, elas são apenas letrasinscritas e não têm habilidade ( ouchi dunaint’  ) para fazer isso. Qual é, então, seu podermobilizador ( dunamis  )? Vocês são, se as autorizarem a assim o fazer ( kurioi  ) sempreque alguém pedir por ajuda. Assim as leis são poderosas ( ischuroi  ) através de vocês e vocês são poderosos através das leis. Por isso vocês têm de protegê-las ( toutois boethein  )do mesmo modo como qualquer indivíduo protege a si mesmo se for injustiçado, e deconsiderar as violações das leis como crimes que atingem a toda comunidade ( koina  )...(21.223-225)

Portanto, se a significação original de democracia é a capacidade coletiva de umpovo de fazer coisas boas acontecer no domínio público, de onde vem a ideia da

democracia como definida em primeira instância por regras de voto e pelo monopólio de

cargos por parte dos muitos? Responder a esta questão está além do objetivo deste texto, e

basta então dizer que os críticos antigos do governo popular8  buscaram reformular

demokratia   como o equivalente de uma tirânica “ polloi-archia ” –   como a dominação

monopolista do aparato do governo pelos muitos que eram pobres: esta é a estratégia, por

exemplo, do assim chamado Velho Oligarca, um anônimo panfletário do quinto século.

Mas, do mesmo modo que kratos  não é sinônimo de arche , assim também na Atenas clássica

demos  significava originalmente “o todo da cidadania” ( enquanto população masculina livre

nativa de um território nacional) - não um fragmento sociologicamente delimitado da

cidadania. Colocar a democracia em pé de igualdade com a oligarquia, como pouco mais,

em princípio ou prática, do que o monopólio sobre cargos governamentais estabelecidos

por, respectivamente, os muitos (pobres) e os poucos (ricos), é aceitar as polêmicas

antidemocráticas do século quinto como uma descrição correta da realidade política. Se a

nossa meta ao retornar à Antiguidade grega é chegar a uma compreensão do poder político

que possa ter valor para nós, temos de aprender a atender aos que defendiam a antiga

democracia como também aos seus críticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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8. J. Ober, Political Dissent in Democratic Athens [1998].

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 W OLIN, Sheldon S. “Norm and Form: The Constitutionalizing of Democracy,” in Athenian PoliticalThought and the Reconstruction of American Democracy .  J. Peter Euben, John Wallach, e JosiahOber (eds.). Ithaca: Cornell University Press, 1994, pp. 29 – 58.

Thesaurus Lingaue Graecae [TLG] -  http://www.tlg.uci.edu .