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A OBEDIÊNCIA Raniero Cantalamessa Uma renovação da obediência “no Espírito” O capítulo 13 da carta aos Romanos começa com um célebre texto sobre a obediência: Estejam todos — afirma — sujeitos ao poder da autoridade, porque não existe autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem se opõe à autoridade, opõe-se â ordem de Deus (Rm 13.1ss). Procura orientar os cristãos sobre a maneira mais correta de sua inserção no mundo secular em que foram chamados a viver sua vocação. Existem traduções modernas e bastante abalizadas dá Bíblia (como a última tradução alemã, feita em conjunto pelas Igrejas católica e luterana) que acentuam adequadamente este sentido do texto, traduzindo: "Todos prestem a devida obediência aos representantes do poder público, pois não há poder público que não venha de Deus". Há, de fato, uma obediência que se refere a todos — superiores e súditos, religiosos e leigos — que é a mais importante de todas, que rege e vivifica todas as outras, e que não é uma obediência "do homem ao homem", mas a obediência do homem a Deus. A obediência a Deus é como "o fio do alto" que sustenta a esplêndida teia de aranha suspensa em uma sebe. Subindo por aquele fio que ele mesmo produz, o animalzinho foi tecendo a sua teia que agora está perfeita e tramada em todos os ângulos. Todavia, aquele fio do alto que serviu para a formação da teia não é eliminado uma vez completada a obra, mas permanece. Antes, é ele que, do centro, sustenta todo o entrelaçado; sem ele tudo se afrouxa. A aranha trata de reparar rapidamente a sua teia quando ela é atingida em qualquer de seus pontos laterais, mas basta que o fio do alto seja cortado para se afastar como se não houvesse mais coisa alguma a fazer. Acontece algo semelhante com a trama da autoridade e da obediência numa sociedade, numa ordem religiosa, na Igreja. A obediência a Deus é o fio do alto: tudo é feito a partir dela; mas ela não pode ser esquecida nem mesmo depois de terminada a obra. Do contrário, tudo se dobra sobre si mesmo e se desprende. É oportuno, a propósito da obediência, fazer uma recapitulação, isto é, — segundo o sentido clássico dado a esta palavra por Irineu — "retomar as coisas na sua origem e reconduzi-las à unidade”. Irineu ser-nos-á de grande auxílio nessa tentativa. Ele demonstra uma particular sensibilidade pelo tema da obediência e, ao mesmo tempo, tem a vantagem de pôr-se diante da Escritura com um olhar, por assim dizer, virgem, sem o filtro das interpretações ou deduções particulares sobre a obediência que consideraremos a seguir. Ele representa o estágio mais antigo da Tradição acerca da obediência, o mais próximo da fonte. De fato, são variadíssimas as formas e características assumidas pela obediência ao longo da vida da Igreja. Houve uma obediência eclesiástica e uma obediência monástica, que, por sua vez, abrigou uma obediência de

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A OBEDIÊNCIARaniero Cantalamessa

Uma renovação da obediência “no Espírito”

O capítulo 13 da carta aos Romanos começa com um célebre texto sobre a obediência: Estejam todos — afirma — sujeitos ao poder da autoridade, porque não existe autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram estabelecidas por Deus. Por isso, quem se opõe à autoridade, opõe-se â ordem de Deus (Rm 13.1ss). Procura orientar os cristãos sobre a maneira mais correta de sua inserção no mundo secular em que foram chamados a viver sua vocação. Existem traduções modernas e bastante abalizadas dá Bíblia (como a última tradução alemã, feita em conjunto pelas Igrejas católica e luterana) que acentuam adequadamente este sentido do texto, traduzindo: "Todos prestem a devida obediência aos representantes do poder público, pois não há poder público que não venha de Deus".

Há, de fato, uma obediência que se refere a todos — superiores e súditos, religiosos e leigos — que é a mais importante de todas, que rege e vivifica todas as outras, e que não é uma obediência "do homem ao homem", mas a obediência do homem a Deus. A obediência a Deus é como "o fio do alto" que sustenta a esplêndida teia de aranha suspensa em uma sebe. Subindo por aquele fio que ele mesmo produz, o animalzinho foi tecendo a sua teia que agora está perfeita e tramada em todos os ângulos. Todavia, aquele fio do alto que serviu para a formação da teia não é eliminado uma vez completada a obra, mas permanece. Antes, é ele que, do centro, sustenta todo o entrelaçado; sem ele tudo se afrouxa. A aranha trata de reparar rapidamente a sua teia quando ela é atingida em qualquer de seus pontos laterais, mas basta que o fio do alto seja cortado para se afastar como se não houvesse mais coisa alguma a fazer. Acontece algo semelhante com a trama da autoridade e da obediência numa sociedade, numa ordem religiosa, na Igreja. A obediência a Deus é o fio do alto: tudo é feito a partir dela; mas ela não pode ser esquecida nem mesmo depois de terminada a obra. Do contrário, tudo se dobra sobre si mesmo e se desprende.

É oportuno, a propósito da obediência, fazer uma recapitulação, isto é, — segundo o sentido clássico dado a esta palavra por Irineu — "retomar as coisas na sua origem e reconduzi-las à unidade”. Irineu ser-nos-á de grande auxílio nessa tentativa. Ele demonstra uma particular sensibilidade pelo tema da obediência e, ao mesmo tempo, tem a vantagem de pôr-se diante da Escritura com um olhar, por assim dizer, virgem, sem o filtro das interpretações ou deduções particulares sobre a obediência que consideraremos a seguir. Ele representa o estágio mais antigo da Tradição acerca da obediência, o mais próximo da fonte.

De fato, são variadíssimas as formas e características assumidas pela obediência ao longo da vida da Igreja. Houve uma obediência eclesiástica e uma obediência monástica, que, por sua vez, abrigou uma obediência de tipo basiliano, uma de tipo pacomiano, beneditino... Na Idade Média distinguem-se uma obediência franciscana, ligada à pobreza, que insiste na renúncia da própria vontade; e uma obediência dominicana, mais aberta ao apostolado, que acentua "o bem comum'" a ser alcançado pela união das vontades. Na época moderna, com Santo Inácio de Loyola, acentuou-se o radicalismo da obediência ("cega, como cadáver"). Atualmente, fala-se de preferência em obediência responsável, dialogante, ou caritativa. Todas elas, no seu ambiente e no seu tempo, foram autênticas expressões da vitalidade da Igreja e produziram uma maravilhosa florescência de obras e de santidade. Mas, assim como em julho-agosto as árvores frutíferas são podadas dos galhos da estação anterior, embora bons, e reduzidas ao tronco ou pouco mais — para que a seiva se concentre e a árvore se prepare para uma nova floração na primavera —, assim também em toda

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a "virada" na vida da Igreja é preciso pôr às claras a Palavra de Deus, para tornar possível uma nova primavera e uma nova sazão de frutos.

Esse princípio vale também para a renovação da obediência. Alguém escreveu que "se hoje existe um problema de obediência, não é o da docilidade direta ao Espírito Santo — ao qual cada um diz submeter-se de boa vontade —, mas mais o da submissão a uma hierarquia, a uma lei e a uma autoridade humana". Eu mesmo estou convencido disso. Mas é exatamente para tornar possível e mais uma vez florescente esta obediência concreta à lei e à autoridade visível que devemos retornar à obediência a Deus e ao seu Espírito.

Entende-se de uma verdadeira obediência ao Espírito, não de uma somente presumível obediência, que deixaria, efetivamente, as coisas como antes. De fato, não se restaura a obediência com a lei, mas com a graça; não com a letra, mas com o Espírito. Vindo ao mundo, Jesus não renovou a obediência humana restaurando ou aperfeiçoando as leis já existentes — embora também tenha feito isso —, mas dando, no dia de Pentecostes, uma lei nova e interior, realizando assim a profecia que diz: Infundir-vos-ei o meu Espírito, e farei que procedais segundo os meus preceitos, observeis e ponhais em pratica os meus mandamentos, as minhas leis (Ez 36,27). É o Espírito, portanto — isto é, a graça —, o único que tem poder para dar ao homem, juntamente com o mandamento, a capacidade de obedecer "aos preceitos e às leis". Por isso, é ao Espírito que nos confiamos para que nos conduza pela mão no caminho que estamos para empreender, a fim de redescobrir o grande segredo da obediência.

A obediência de Cristo

É relativamente simples descobrir a natureza e a origem da obediência cristã; basta considerar com que concepção de obediência a Escritura define Jesus como "o obediente". Assim descobrimos logo que o verdadeiro fundamento da obediência cristã não é uma idéia de obediência, mas é um ato de obediência; não é um princípio ("o inferior deve estar sujeito ao superior"), mas um acontecimento; não está baseado numa "ordem natural constituída", mas fundamenta e constitui, ele mesmo, uma nova ordem; não se encontra na razão (a recta ratio), mas no kerigma, e tal fundamento é que Cristo se fez obediente até a morte (Fl 2,8); que Cristo aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu; e, consumado em perfeição, tornou-se a causa da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (Hb 5,8-9).

O foco que ilumina todo o discurso sobre a obediência na epístola aos Romanos está no capítulo 5, versículo 19: Pela obediência de um só todos virão a ser justos. A obediência de Cristo é a fonte imediata e histórica da justificação: as duas coisas estão estreitamente unidas. Quem conhece o lugar que a justificação ocupa na epístola aos Romanos pode conhecer por este texto o lugar que aí ocupa a obediência! Para o Novo Testamento, a obediência de Cristo não é só o mais sublime exemplo de obediência, mas é o seu fundamento. Ela é a "constituição" do reino de Deus!

Procuremos conhecer a natureza daquele "ato" de obediência sobre o qual está fundamentada a nova ordem. Procuremos conhecer, por outras palavras, em que está fundamentada a obediência de Cristo. Jesus, menino, obedeceu a seus pais; depois, já adulto, submeteu-se à lei mosaica, ao Sinédrio, a Pilatos... Mas São Paulo não pensa em nenhuma dessas obediências; pensa, sim, na obediência de Cristo ao Pai. De fato, a obediência de Cristo é considerada como a antítese exata da desobediência de Adão: Assim como pela desobediência de um só homem, todos se tomaram pecadores, assim pela obediência de um só todos virão a ser justos (Rm 5,19; cf. ICor 15,22). Também o hino da epístola aos Filipenses tacitamente contrapõe a obediência de Cristo "até a morte, e morte de cruz" à desobediência de Adão que quis ser "igual a Deus" (cf. Fl 2,6ss.). Mas a quem desobedeceu Adão? Certamente não a seus pais, às autoridades, às leis... Desobedeceu a Deus.

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Na origem de todas as desobediências está uma desobediência a Deus, e na origem de todas as obediências está a obediência a Deus. São Francisco diz que a desobediência de Adão consistiu no apropriar-se de sua vontade: "Come da árvore da ciência do bem e do mal quem se apropria de sua vontade". Compreende-se, por oposição, em que consistiu a obediência do novo Adão. Ele desapropriou-se de sua vontade, esvaziou--se, aniquilou-se (ekenosen): Não se faça a minha vontade, mas a tua, orou ao Pai (Lc 22,42); e ainda: Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (Jo 6,38).

Irineu interpreta a obediência de Jesus à luz dos cânticos do Servo, como uma interior e absoluta submissão a Deus, cumprida numa situação de extrema dificuldade: "Aquele pecado — escreve — que surgiu por causa da árvore veio a ser abolido por causa da obediência da árvore, já que, obedecendo a Deus, o Filho do homem foi cravado na árvore da cruz, destruindo a ciência do mal e introduzindo e fazendo penetrar no mundo a ciência do bem. O mal é desobedecer a Deus, assim como o obedecer a Deus é o bem. Por isso, diz o Verbo pela boca do profeta Isaías: Não resisti nem recuei para trás. Entreguei minhas costas aos que me batiam, as faces aos que me arrancavam a barba. Não desviei minha face dos que me injuriavam e cuspiam (Is 50, 5-6). Por conseguinte, em virtude da obediência que prestou até a morte, pendente da árvore da cruz, anulou a antiga desobediência provinda da árvore". A contraposição "desobediência-obediência" é, para o Irineu — como se vê —, de tal maneira radical e universal que equivale à mesma contraposição entre bem e mal: o mal, diz, é desobedecer a Deus, e obedecer a Deus é o bem.

A obediência abrange toda a vida de Jesus. Enquanto São Paulo e a epístola aos Hebreus põem em evidência o lugar da obediência na morte de Jesus (cf. Fl 2,8; Hb 5,8), São João e os Sinóticos completam o quadro pondo em evidência o lugar que a obediência teve na vida de Jesus, no seu dia-a-dia. A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e: Eu faço sempre aquilo que é do seu agrado (Jo 4,34; 8,29).

A obediência de Jesus ao Pai manifesta-se, sobretudo, pela obediência à palavra escrita. No episódio das tentações no deserto, a obediência de Jesus consiste em relembrar as palavras de Deus e ater-se a elas: "Está escrito!". As palavras de Deus, sob a ação atual do Espírito, tornam-se veículos da vontade viva de Deus e revelam o seu caráter "vinculante" de ordens de Deus. Eis em que está baseada a famosa obediência do novo Adão no deserto. Após o último "Está escrito" de Jesus, Lucas continua o relato dizendo que "o demônio se afastou dele" (Lc 4,12) e que Jesus voltou para a Galiléia "pelo poder do Espírito" (Lc 4,14). O Espírito Santo é concedido àqueles que "estão sujeitos a Deus" (cf. At 5,32). São Tiago diz: Sede sujeitos a Deus, e resisti ao demônio, ele fugira de vós (Tg 4,7); assim aconteceu nas tentações de Jesus.

A obediência de Jesus manifesta-se, de modo especial, através das palavras escritas dele e para ele "na lei, nos profetas e nos salmos", e que Ele, como homem, foi desvendando pouco a pouco enquanto avançava na compreensão e no cumprimento da sua missão. A perfeita concordância entre as profecias do Antigo Testamento e as obras de Jesus, que se percebe na leitura do Novo Testamento, não se explica dizendo que as profecias dependem das obras (isto é, que elas são interpretações feitas depois de terem sido realizadas por Jesus), mas dizendo que as obras dependem das profecias. Jesus "atuou", com perfeita obediência, as coisas escritas a seu respeito pelo Pai. Quando querem opor-se à sua prisão, Jesus diz: Mas como então se cumpririam as Escrituras, segundo as quais é necessário que tudo isto aconteça? (Mt 26,54). A vida de Jesus é como que orientada por uma esteira luminosa que os outros não vêem, e que é formada pelas palavras escritas a seu respeito. Ele deduz das Escrituras o "se deve" (dei) que rege toda sua vida.

Objetivamente, a excelência da obediência de Jesus mede--se "pelas coisas que sofreu", e subjetivamente pelo amor e pela liberdade com que obedeceu. São Basílio distingue três disposições com que alguém pode obedecer: primeira, por temor do castigo, e é a disposição dos servos; segunda, pelo desejo do

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prêmio, e é a disposição dos mercenários; terceira, por amor, e é a disposição dos filhos. Em Jesus refulge em grau supremo e infinito a obediência filial. Mesmo nos momentos mais extremos, como quando o Pai lhe apresenta o cálice da paixão para beber, nos seu lábios jamais se extingue o grito filial: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?, exclamou na cruz (Mt 27,46); mas logo acrescentou, conforme Lucas: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46). Na cruz, Jesus "abandonou-se a Deus que o abandonava"! Esta é a obediência até a morte; esta é "a rocha da nossa salvação",

Na obediência de Jesus, como no-la apresenta o Novo Testamento, podemos encontrar o mais pleno e profundo significado dessa virtude. Ela não é uma virtude apenas moral, mas também teologal. Na visão escolástica — cujo esquema das vir-tudes se baseava em Aristóteles e no estoicismo — a obediência está unida à justiça; como tal faz parte das virtudes morais que têm por objeto os meios, não o fim, e é claramente distinta das virtudes teologais — fé, esperança, caridade —, pelas quais aderimos diretamente a Deus em si mesmo. Mas para a Bíblia, e o Novo Testamento em particular, a obediência, principalmente enquanto é obediência a Deus, está unida sobretudo a fé, chegando mesmo muitas vezes a confundir-se com ela. Refere-se, por isso, não só aos meios, mas também ao fim; leva à adesão ao mesmo Deus e não só aos bens intermediário mesmo que seja "o bem comum". Está escrito: Pela fé Abraão obedeceu ao chamado de Deus (Hb 11,8).

A obediência é uma espécie de fé necessária quando a palavra revelada contém não tanto uma verdade de Deus a ser admitida, quanto uma vontade de Deus a ser cumprida. A fé, num outro sentido, é obediência mesmo quando se nos apresenta como verdade a ser admitida, porque a razão não a aceita por sua evidência, mas por sua autoridade. A expressão "obediência à fé", que aparece muitas vezes em São Paulo, não significa somente obedecer às coisas que se crêem, mas também obedecer crendo, pelo fato mesmo de se acreditar nelas. Irineu exprime isso tudo de maneira concisa dizendo que "crer é fazer a sua vontade". Os mesmos termos com os quais se exprime a obediência são estreitamente relacionados com os usados para exprimir a fé: de fato, um (hypakuo, ob-au-diré) significa estar à escuta, e um outro (peithomai, da mesma raiz de pistis!) significa deixar-se persuadir, confiar ou fiar-se.

Além disso, pela Palavra de Deus descobrimos que a obediência é uma virtude mais positiva que negativa. Também aqui, com o passar do tempo e com o prevalecer dos interesses ascéticos sobre os mistéricos e querigmáticos, a obediência acabou por ser considerada sobretudo como virtude negativa ou renegativa. Sua excelência entre as virtudes deriva da excelência do bem a que com ela se renuncia, que é o bem da própria vontade; bem este mais elevado que os bens exteriores, aos quais se renuncia pela pobreza, e que os bens do próprio corpo aos quais se "renuncia" pela castidade. Mas, na visão bíblica, o elemento positivo — fazer a vontade de Deus — é mais importante que o negativo — não fazer a própria vontade. Jesus disse: "Não se faça a minha vontade, mas a tua" (em que é acentuada a segunda parte); "Minha comida é fazer a vontade do Pai"; "Eis-me que venho para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hb 10,9). A salvação, na realidade, vem de fazer a vontade de Deus, não de fazer a própria vontade. No "pai-nosso" pedimos que "seja feita a vossa vontade"; pedimos a coisa positiva, não a negativa. Na Escritura lemos que Deus quer a obediência, não o sacrifício (cf. ISm 15,22; Hb 10,5-7). Sabemos, contudo, que no caso de Cristo ele quer também o sacrifício e que o quer também de nós... Isso porque, das duas coisas, uma é o meio, a outra é o fim; uma — a obediência — , Deus a quer por si mesma; a outra — o sacrifício —, ele a quer só indiretamente, em vista da primeira. O significado da frase é, portanto, este: o que Deus busca no sacrifício é a obediência. O sacrifício da própria vontade é o meio para chegar à conformidade com a vontade divina. A quem se escandalizava com que o Pai pudesse comprazer-se com o sacrifício do seu Filho Jesus, São Bernardo respondia muito acertadamente: "Não foi a morte que lhe agradou, mas a vontade daquele que espontaneamente morria". Por conseguinte, não é tanto a morte de Cristo que nos salvou quanto a sua obediência até à morte.

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É certo que as duas coisas — o "não fazer a própria vontade" e "o fazer a vontade de Deus" — são estreitamente interdependentes; mas não são idênticas nem coextensivas. Não fazer a própria vontade não é, por si mesmo e sempre, uma ação salvífica, como o é fazer a vontade de Deus. O motivo positivo da obediência estende-se muito além do que o negativo. Deus pode pedir coisas cuja finalidade não é levar à renúncia da própria vontade, mas sim provar e aumentar a fé e a caridade. A Bíblia chama "obediência" aquela que levou Abraão a imolar o próprio filho (cf. Gn 22,18), mesmo que não se tratasse de levar Abraão a renunciar à sua vontade, mas de pôr sua fidelidade à prova. A finalidade de tudo, na verdade, é conseguir que a liberdade humana adira livremente a Deus, de tal modo que um só querer volte a reinar no universo, como antes do pecado, o de Deus. Pela obediência acontece já, de algum modo, o "retorno das criaturas para Deus". Acima de todas as motivações bíblicas da obediência, mais alto que a própria fé, está o amor. A obediência é o "sim" nupcial da criatura a seu Criador, pelo qual se estabelece, desde agora, se bem que de maneira imperfeita, a união final das vontades que constitui a essência da bem-aventurança eterna.

"Na obediência — dizia um Padre do deserto — realiza-se a semelhança com Deus e não só o ser a imagem de Deus”. Pelo fato de existir, somos a imagem de Deus, mas, pelo fato de obedecer, somos também sua semelhança, no sentido de que, obedecendo, nos conformamos à sua vontade; tornamo-nos, por livre escolha, o que ele é por natureza. Assemelhamo-nos a Deus porque queremos as mesmas coisas que Deus quer.