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O VENDEDOR DE PASSADOS JOSÉ EDUARDO AGUALUSA O_Vendedor_Passados.indd 3 03/07/18 15:07 Trecho antecipado para divulgação. Venda proibida.

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  • O VENDEDOR DE PASSADOSJOSÉ EDUARDO AGUALUSA

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    Trecho antecipado para divulgação. Venda proibida.

  • SUMÁRIO

    09 Um pequeno deus noturno

    15 A casa

    21 O estrangeiro

    29 Um barco cheio de vozes

    35 Sonho no 1

    39 Alba

    43 O nascimento de José Buchmann

    53 Sonho no 2

    57 Um esplendório

    63 A filosofia de uma osga

    69 Ilusões

    73 Na minha primeira morte eu não morri

    77 Sonho no 3

    83 Espanta-espíritos

    89 Sonho no 4

    93 Eu, Eulálio

    97 A chuva sobre a infância

    105 Entre a vida e os livros

    109 O mundo pequeno

    117 O lacrau

    121 O Ministro

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  • 127 Um fruto dos anos difíceis

    133 Sonho no 5

    141 Personagens reais

    147 Anticlímax

    155 As vidas irrelevantes

    159 Edmundo Barata dos Reis

    167 O amor, um crime

    181 O grito da buganvília

    185 O mascarado

    189 Sonho no 6

    197 Félix Ventura começa a escrever um diário

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  • UM PEQUENO DEUS NOTURNO

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    Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer en-

    costo o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu.

    Gosto de ver as labaredas altas, as nu vens a galope, e sobre

    elas os anjos, legiões deles, sacudin do as fagulhas dos cabelos,

    agitando as largas asas em cha mas. É um espetáculo sempre

    idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e

    comovo-me como se o visse pela primeira vez. A semana pas-

    sada Félix Ven tura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir

    enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria

    em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe

    abrasava a cauda.

    — Ai, não posso crer! Tu ris?!

    Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo, mas não

    movi um músculo. O albino tirou os óculos escuros, guardou-

    -os no bolso interior do casaco, despiu o casaco, lentamente,

    melancolicamente, e pendurou-o com cuida do nas costas de

    uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato

    do velho gira-discos. Acalanto para um rio, de Dora, a Cigarra,

    cantora brasileira que, supo nho, conheceu alguma notorieda-

    de nos anos setenta. Su ponho isto a julgar pela capa do disco.

    É o desenho de uma mulher em biquíni, negra, bonita, com

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    umas largas asas de borboleta presas às costas. “Dora, a Cigar-

    ra – Acalanto para um Rio – O Grande Sucesso do Momento.”

    A voz dela arde no ar. Nas últimas semanas, tem sido essa a

    banda sonora do crepúsculo. Sei a letra de cor.

    Nada passa, nada expira

    O passado é

    um rio que dorme

    e a memória, uma mentira

    multiforme.

    Dormem do rio as águas

    e em meu regaço dormem os dias

    dormem

    dormem as mágoas

    as agonias

    dormem.

    Nada passa, nada expira

    O passado é

    um rio adormecido

    parece morto, mal respira

    acorda-o e saltará

    num alarido.

    Félix esperou que, com a luz, se apagassem tam bém as úl-

    timas notas do piano. A seguir, girou um dos sofás, quase sem

    fazer ruído, de forma a ficar voltado para a janela. Por fim, sen-

    tou-se. Esticou as pernas num suspiro:

    — Pópilas! Pois vossa baixeza ri-se?! Extraordinária novi-

    dade...

    Pareceu-me abatido. Aproximou o rosto e vi-lhe as pupilas

    raiadas de sangue. O bafo dele envolveu-me o cor po. Um calor

    azedo.

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    — Péssima pele, a sua. Devemos ser da mesma família.

    Estava à espera daquilo. Se conseguisse falar, teria sido

    rude. O meu aparelho vocal, porém, apenas me permite rir.

    Assim, tentei atirar-lhe à cara uma gargalhada feroz, al gum

    som capaz de assustá-lo, de afastá-lo dali, mas conse gui ape-

    nas um frouxo gargarejo. Até à semana passada, o albino sem-

    pre me ignorou. Desde essa altura, depois de me ter ouvido rir,

    chega mais cedo. Vai à cozinha, retorna com um copo de sumo

    de papaia, senta-se no sofá e parti lha comigo a festa do poen-

    te. Conversamos. Ou melhor, ele fala, e eu escuto. Às vezes,

    rio-me e isso basta-lhe. Já nos liga, suspeito, um fio de amiza-

    de. Nas noites de sábado, não em todas, o albino chega com

    uma rapariga pela mão. São moças esguias, altas e elásticas,

    de finas pernas de gar ça. Algumas entram a medo, sentam-se

    na extremidade das cadeiras, evitando encará-lo, incapazes

    de disfarçar a repul sa. Bebem um refrigerante, golo a golo, e

    a seguir despem- se em silêncio, esperam-no estendidas de

    costas, os braços cruzados sobre os seios. Outras, mais afoi-

    tas, aventuram-se sozinhas pela casa, avaliando o brilho das

    pratas, a nobreza dos móveis, mas depressa regressam à sala,

    assustadas com as pilhas de livros nos quartos e nos corredo-

    res, e sobretu do com o olhar severo dos cavalheiros de chapéu

    alto e monóculo, o olhar trocista das bessanganas de Luan-

    da e de Benguela, o olhar pasmado dos oficiais da Marinha

    portu guesa nos seus uniformes de gala, o olhar alucinado de

    um príncipe congolês do século XIX, o olhar desafiador de um

    famoso escritor negro norte-americano, todos posan do para a

    eternidade entre molduras douradas. Procuram nas estantes

    algum disco,

    — Não tens cuduro, tio?,

    e como o albino não tem cuduro, não tem quizomba, não

    tem nem a Banda Maravilha nem o Paulo Flores, os grandes

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    sucessos do momento, acabam por escolher os de capa mais

    garrida, invariavelmente ritmos cubanos. Dan çam, bordando

    curtos passos no soalho de madeira, en quanto soltam um a

    um os botões da camisa. A pele perfei ta, muito negra, úmida

    e luminosa, contrasta com a do albino, seca e áspera, cor-de-

    -rosa. Eu vejo tudo. Dentro desta casa, sou como um pequeno

    deus noturno. Durante o dia, durmo.

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  • A CASA

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    A casa vive. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. As lar-

    gas paredes de adobe e madeira estão sempre frescas, mesmo

    quando, em pleno meio-dia, o sol silencia os pássa ros, açoi-

    ta as árvores, derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como

    um ácaro na pele do hospedeiro. Sinto, se as abraço, um co-

    ração a pulsar. Será o meu. Será o da casa. Pouco importa.

    Faz-me bem. Transmite-me segurança. A Velha Esperança

    traz às vezes um dos netos mais peque nos. Transporta-os

    às costas, bem presos com um pano, segundo o uso secular

    da terra. Faz assim todo o seu traba lho. Varre o chão, limpa o

    pó aos livros, cozinha, lava a roupa, passa-a a ferro. O bebê,

    a cabeça colada às suas cos tas, sente-lhe o coração e o ca-

    lor, julga-se de novo no útero da mãe, e dorme. Tenho com a

    casa uma relação semelhan te. Ao entardecer, já o disse, fico

    na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o sol. De-

    pois que a noite cai, vagueio pelas diferentes divisões. A sala

    de visitas comuni ca com o jardim, estreito e maltratado, cujo

    único encanto são duas gloriosas palmeiras imperiais, muito

    altas, muito altivas, que se erguem uma em cada extremo, vi-

    giando a casa. A sala está ligada à biblioteca. Passa-se desta

    para o corredor através de uma porta larga. O corredor é um

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    tú nel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quar-

    to de dormir, à sala de jantar e à cozinha. Esta parte da casa

    está voltada para o quintal. A luz da manhã afaga as pare des,

    verde, branda, filtrada pela ramagem alta do abacateiro. Ao

    fundo do corredor, do lado esquerdo de quem entra, vindo da

    sala, ergue-se com esforço uma pequena escada em três lan-

    ces quebrados. Subindo-a, chega-se a uma espé cie de man-

    sarda, que o albino pouco frequenta. Está cheia de caixotes

    com livros. Eu também não vou lá muitas ve zes. Morcegos

    dormem nas paredes, de cabeça para baixo, embrulhados nas

    suas capas negras. Ignoro se as osgas* fazem parte da dieta

    dos morcegos. Prefiro continuar sem saber. O mesmo motivo

    – o terror! – impede-me de explo rar o quintal. Vejo, das ja-

    nelas da cozinha, da sala de jantar ou do quarto de Félix, o

    capim crescer bravio por entre os roseirais. Um imenso aba-

    cateiro levanta-se, frondoso, pre cisamente ao centro do quin-

    tal. Há ainda duas nespereiras, altas, carregadas de nêsperas,

    e uma boa dezena de papaieiras. Félix acredita no poder re-

    generador das papaias. Um muro alto fecha o jardim. O topo

    do muro está coberto por ca cos de vidro, em cores variadas,

    presos com cimento. Da qui de onde  os vejo, lembram-me

    dentes. Este feroz artifí cio não impede que, vez por outra, me-

    ninos saltem o muro e roubem abacates, nêsperas e papaias.

    Colocam uma tá bua sobre o muro e depois alçam o corpo.

    Parece-me uma tarefa demasiado arriscada para tão escasso

    proveito. Tal vez não o façam para provar as frutas. Creio que o

    fazem para provar o risco. Amanhã o risco há de, talvez, saber -

    -lhes a nêsperas maduras. Imaginemos que um deles venha a

    tornar-se sapador. Neste país, não falta trabalho aos sapado-

    res. Ainda ontem, vi, na televisão, uma reportagem sobre o

    * Osga: lagartixa.

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  • 19

    processo de desminagem. Um dirigente de uma organização

    não governamental lamentou a incerteza dos números. Nin-

    guém sabe, ao certo, quantas minas foram enterradas no chão

    de Angola. Entre dez a vinte milhões. Provavelmente, haverá

    mais minas do que angolanos. Su ponhamos, pois, que um

    desses meninos venha a tornar-se sapador. Sempre que ras-

    tejar através de um campo de mi nas, há de vir-lhe à boca o

    remoto sabor de uma nêspera. Um dia, enfrentará a inevitável

    questão, lançada, com um misto de curiosidade e horror, por

    um jornalista estrangeiro:

    — Em que pensa enquanto desarma uma mina?

    E o menino que ainda houver nele responderá sorrindo:

    — Em nêsperas, meu pai.

    A Velha Esperança, essa, acha que são os muros que fazem

    os ladrões. Ouvi-a dizer isso a Félix. O albino enca rou-a, di-

    vertido:

    — Querem lá ver que tenho uma anarquista em casa?! Da-

    qui a pouco descubro que anda a ler Bakunin.

    Disse isso e não lhe prestou mais atenção. Ela nunca leu

    Bakunin, claro; aliás, nunca leu livro nenhum, mal sabe ler. To-

    davia, venho aprendendo muita coisa sobre a vida, no geral, ou

    sobre a vida neste país, que é a vida em estado de embriaguez,

    ouvindo-a falar sozinha, ora num murmú rio doce, como quem

    canta, ora em voz alta, como quem ralha, enquanto arruma a

    casa. A Velha Esperança está convencida de que não morrerá

    nunca. Em 1992 sobreviveu a um massacre. Tinha ido a casa de

    um dirigente da oposição buscar uma carta do filho mais novo,

    em serviço no Huambo, quando irrompeu (vin do de toda a

    parte) um forte tiroteio. Insistiu em sair dali, queria regressar

    ao seu musseque, mas não a deixaram.

    — É loucura, velha, faça de conta que está a chover. Daqui

    a pouco passa.

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  • 20

    Não passou. O tiroteio, como um temporal, foi fican do

    mais forte, mais cerrado, foi crescendo na direção da casa. Fé-

    lix contou-me o que aconteceu naquela tarde:

    — Veio uma tropa fandanga, uma malta de arruaceiros

    bem armados, muito bebidos, entraram pela casa à força e

    espancaram toda a gente. O comandante quis saber como

    se chamava a velha. Ela disse-lhe: Esperança Job Sapalalo,

    patrão, e ele riu-se. Troçou: a Esperança é a última a mor-

    rer. Ali nharam o dirigente e a família no quintal da casa e

    fuzila ram-nos. Quando chegou a vez da Velha Esperança, não

    havia mais balas. O que te salvou, gritou-lhe o comandante,

    foi a logística. O nosso problema há de ser sempre a logística.

    Depois, mandou-a embora. Agora, ela julga-se imune à morte.

    Talvez seja.

    Não me parece impossível. Esperança Job Sapalalo tem

    uma fina teia de rugas no rosto, o cabelo todo branco, mas as

    carnes mantêm-se rijas, e os gestos são firmes e precisos. Na

    minha opinião, é a coluna que sustenta esta casa.

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