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1 O VELHO: DERROTISMO E RESISTÊNCIA EM UMA CINEBIOGRAFIA DE LUIZ CARLOS PRESTES Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Professor de História da UEPB e da Rede Pública Estadual-PB 1. INTRODUÇÃO O objetivo do presente artigo é compreender a construção da imagem pública do líder revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes (1898-1990) a partir de uma análise do documentário O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes, dirigido pelo cineasta Toni Ventura. O filme, construído a partir de uma rede de depoimentos que intercalam o presente e o passado do personagem, se apropria de diversas fontes como periódicos, vídeos e fotografias, possibilitando uma discussão sobre as memórias biográficas do personagem ali inseridas, em especial aquelas ligadas às noções de derrotismo e resistência, com destaque para a primeira acepção, presente inclusive na semântica do próprio título da obra cinematográfica, como veremos ao longo do trabalho. O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes é uma produção fílmica documental lançada no ano de 1997, dirigida por Toni Ventura e roteirizado por Di Moretti, com fotografia de Cleumo Segond, produzida pelas produtoras Olhar Imaginário Filmes e Casa de Produção Filme e Vídeo, contou com apoio da Fundação Padre Anchieta (responsável pela TV Cultura) e da Secretária de Cultura do Estado de São Paulo. O documentário ganhou o prêmio no concurso Prêmio Resgate em 1993. No ano posterior a produção foi iniciada, com as entrevistas feitas em 1995 e a montagem do documentário em 1996. Ganhou o II Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade e o prêmio de melhor documentário no V Festival de Cinema e vídeo realizado em Cuiabá e foi premiado com o prêmio de resgate histórico da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). (FONSECA, 2008). Percebe-se a partir da descrição acima que mesmo antes do seu lançamento em 1997 é possível observar uma boa recepção através das premiações concedidas à obra. Porém, mesmo premiada, houve uma série de críticas e polêmicas que envolveram a produção, como veremos a posteriori.

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1

“O VELHO”: DERROTISMO E RESISTÊNCIA EM UMA CINEBIOGRAFIA

DE LUIZ CARLOS PRESTES

Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP)

Professor de História da UEPB e da Rede Pública Estadual-PB

1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é compreender a construção da imagem pública do

líder revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes (1898-1990) a partir de uma análise

do documentário O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes, dirigido pelo cineasta Toni

Ventura. O filme, construído a partir de uma rede de depoimentos que intercalam o

presente e o passado do personagem, se apropria de diversas fontes como periódicos,

vídeos e fotografias, possibilitando uma discussão sobre as memórias biográficas do

personagem ali inseridas, em especial aquelas ligadas às noções de derrotismo e

resistência, com destaque para a primeira acepção, presente inclusive na semântica do

próprio título da obra cinematográfica, como veremos ao longo do trabalho.

O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes é uma produção fílmica documental

lançada no ano de 1997, dirigida por Toni Ventura e roteirizado por Di Moretti, com

fotografia de Cleumo Segond, produzida pelas produtoras Olhar Imaginário Filmes e

Casa de Produção Filme e Vídeo, contou com apoio da Fundação Padre Anchieta

(responsável pela TV Cultura) e da Secretária de Cultura do Estado de São Paulo. O

documentário ganhou o prêmio no concurso Prêmio Resgate em 1993. No ano posterior

a produção foi iniciada, com as entrevistas feitas em 1995 e a montagem do

documentário em 1996. Ganhou o II Festival Internacional de Documentários É Tudo

Verdade e o prêmio de melhor documentário no V Festival de Cinema e vídeo realizado

em Cuiabá e foi premiado com o prêmio de resgate histórico da Associação Paulista de

Críticos de Arte (APCA). (FONSECA, 2008). Percebe-se a partir da descrição acima

que mesmo antes do seu lançamento em 1997 é possível observar uma boa recepção

através das premiações concedidas à obra. Porém, mesmo premiada, houve uma série de

críticas e polêmicas que envolveram a produção, como veremos a posteriori.

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Muitos pesquisadores já analisaram o filme O Velho a partir de diversos olhares

e perspectivas, sejam elas cinematográficas, sociológicas ou historiográficas. Destaque

para a historiadora Vitória Azevedo Fonseca (2008, 2009), que analisou o filme em

questão observando as noções de história presentes na obra; os historiadores Edilza

Joana Oliveira Fontes e Davison Hugo Rocha Alves (2013), que procuraram

compreender os potenciais caminhos de uso do filme no ensino de história para

compreender o período do Brasil Republicano; e a socióloga Carolina Gomes Leme

(2013), que dentro de uma pesquisa ampla sobre o cinema brasileiro sobre o período da

ditadura militar, procurou em um trecho de sua dissertação avaliar as memórias dos ex-

guerrilheiros presentes no filme.

Procuramos, mesmo discorrendo com os textos acima, um caminho próprio, a

partir de um diálogo entre os campos epistemológicas da história, da memória, do

cinema e da biografia, investigando as dimensões políticas e pessoais que atuaram em

processos de afirmação, construção e desconstrução da memória e do esquecimento do

personagem Luiz Carlos Prestes, bem como uma breve análise de sua recepção na época

de seu lançamento, por parte de familiares e amigos.

Para cumprir com nossos propósitos, traçamos um roteiro de reflexões de acordo

com diferentes autores e áreas de conhecimento, a exemplo de Marc Ferro (1992),

Michéle Lagny (2009) e Robert Rosenstone (2010), em um diálogo com o cinema;

Maurice Halbawachs (2012) e Michel Pollak (1989) nas dimensões do debate entre

memória e história; Sérgio Vilas Boas (2008) e Wilton Silva (2016), no que se refere à

discussão no campo biográfico, do qual este trabalho se insere de maneira mais densa e

aproximada.

2. CONCEITUANDO UMA CINEBIOGRAFIA: O BIOGRAFISMO E O

“CINEMA DE NÃO FICÇÃO”

Sob a rubrica de narrativa biográfica, encontramos um variado número de

gêneros que têm como tendência o uso da estrutura narrativa para reconstrução da

história de vida de alguém, a exemplo da autobiografia, biografia, romance biográfico e

perfil. Entre todos esses gêneros entendemos que há uma diferença substancial entre o

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que chamamos de escritas de si e escritas do outro, sendo a primeira uma produção

escrita que prioriza um olhar sobre si mesmo e a segunda uma predominância de um

olhar sobre o outro. Neste sentido, “a biografia difere de outras espécies ou demais

gêneros que compõem o espaço biográfico e a literatura biográfica porque seu narrador

não produz um discurso sobre ele próprio, mas acerca de outro, no qual também deixa

suas marcas” (XAVIER, 2012: 46).

Assim sendo, chegamos à noção de biografismo, que corresponde a um gênero

literário e historiográfico, que envolve a seleção, descrição e análise de uma trajetória

individual, a partir de diversos enfoques e metodologias, o que permite uma

incorporação, por exemplo, de diversos gêneros biográficos, como os livros de

memórias, os diários e as biografias tradicionais (SILVA, 2013: 23).

Se ampliarmos mais, perceberemos que o biografismo vai além dos livros,

agrupando outras linguagens ou tipos de narrativas biográficas, a exemplo, os

quadrinhos, os cordéis e do cinema (as chamadas cinebiografias). Neste último

exemplo encontramos o filme O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes, dirigido por

Toni Ventura. Dentro deste subgênero cinematográfico podemos encontrar os chamados

cinebiografias ficcionais e os não-ficcionais, ou chamados documentários de

personagens, do qual entendemos que filme em questão está inserido.

Robert Rosenstone (2010) em seu já clássico estudo sobre as relações entre

cinema e história, enfatizou a problemática de definir e teorizar sobre o chamado

cinema documental, principalmente o chamado documentário histórico. O problema,

segundo o autor começa no próprio termo. Uma alternativa seria o filme de não ficção,

porém o documentário também compartilha de muitos aspectos ficcionais. Rosenstone

(2010) a partir de uma reflexão de John Grierson chama os filmes documentais como

aqueles que possuem um tratamento criativo da realidade, que pode ser histórico ou

não.

Todo documentário, segundo Rosenstone (2010), refere-se a um mundo real do

passado a partir do posicionamento ideológico e partidário, quebrando com qualquer

possibilidade de neutralidade. “Um documentário nunca é uma “aula de história” neutra,

mas uma habilidosa obra que deve ser interpretada pelo espectador com o mesmo

cuidado dedicado à interpretação de um filme dramático” (2010:112)

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Citando Nichols, Rosenstone (2010) acredita ainda que existem várias tipologias

de documentários, a exemplo do expositivo, o observacional, o interativo, o reflexivo, o

poético e o performativo. Entendemos que filme O Velho, assim como boa parte dos

documentários históricos podem se enquadrar no chamado documentário expositivo,

filme geralmente feito de compilações de velhas filmagens de acontecimentos e uma

narração sobreposta, chamada de Voz de Deus. No filme aqui analisado o narrador foi o

ator Paulo José.

Marc Ferro (1992), pioneiro nos estudos sobre a relação história e cinema,

salienta que “a leitura cinematográfica da história coloca para o historiador o problema

de sua própria leitura do passado” (p.19). Na mesma linha encontramos Michéle Lagny

(2009), que compreende que existe uma problemática tradicional do cinema, que é ver

apenas o cinema como fonte da história e outra chamada por ele de abordagem não

tradicional, que seria a incursão de uma história que se faz sob a influência do cinema e

da imagem. Ambas as concepções compreendemos que o cinema é fonte para a história,

não apenas no sentido de construir representações da realidade, mas por fazer emergir

maneiras de ver, de pensar, de fazer e de sentir.

3. “O VELHO”: ENTRE O CONTEXTO

CINEMATOGRÁFIO/BIOGRÁFICO E O LUGAR SOCIAL DO

DIRETOR/ROTERISTA

O documentário O Velho: a história de Luiz Carlos Prestes surge em um

contexto brasileiro pujante de produção cinematográfica e biográfica, com os chamados

períodos de cinema de retomada brasileiro e do boom das publicações biográficas no

mercado editorial brasileiro.

Entende-se o Cinema da Retomada como um período iniciado em 1995, quando

cinema brasileiro retoma a sua produção cinematográfica depois de quatro ou cinco

anos de sucessivas crises, que foram além de um desajuste contínuo da economia (Era

Collor), chegando a desmembramento do setor cinematográfico no que se refere às

políticas públicas, com o fim do Ministério da Cultura e da Embrafilme, órgão

responsável pelo apoio à produção cinematográfica nacional. (BORGES, 2007)

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Já em referência ao boom das publicações biográficas no mercado editorial

brasileiro pesquisadores como Sérgio Vilas Boas (2004) evidenciam um crescimento

considerável de títulos ligados ao gênero biográfico no Brasil. Biógrafos como Ruy

Castro e Fernando Moraes, se destacaram com suas biografias de nomes como Nélson

Rodrigues e Assis Chateaubriand, por exemplo, bateram recordes de vendas nas listas

de não ficção nesta mesma década de 1990.

O primeiro filme em longa metragem da carreira de Toni Venturi O Velho: a

história de Luiz Carlos Prestes é um exemplo destas duas tendências culturais da

década de 1990, a retomada da produção de longas metragens e do impulso de

crescimento de publicações de títulos biográficos no mercado editorial brasileiro. Mas,

quem é o cineasta responsável pela autoria do filme aqui analisado neste artigo?

Toni Ventura nasceu em São Paulo (SP), no ano de 1955. Em 1976 mudou-se

para a cidade de Toronto, no Canadá, onde dirigiu, em 1984, seu primeiro curta-

metragem como aluno do curso de cinema da Universidade de Ryerson. De volta ao

Brasil, concluiu em 1987 o curso de Comunicação Social na Universidade de São Paulo

(USP). Durante a década de 1990, dirigiu programas televisivos e o documentário O

Velho: a História de Luis Carlos Prestes. Em 2000, dirigiu o longa-metragem Latitude

Zero, que obteve diversos prêmios em festivais nacionais e estrangeiros e em 2003,

dirigiu, juntamente com Renato Tapajós, o documentário De Olho no Furacão. Em

2005, lançou o longa-metragem Cabra Cega.

Já o roteirista Di Moretti, coautor desta produção, nasceu em São Paulo (SP) em

1961. Formado em Rádio & TV pela FAAP (Faculdade Armando Alvares Penteado) e

jornalismo pela PUC-SP, Di Moretti é roteirista, além de ter sido redator em revistas,

jornais e rádios. Seu primeiro roteiro foi justamente o documentário O Velho – A

História de Luiz Carlos Prestes (1997). Roteirizou diversos outros filmes, a exemplo de

Latitude Zero (2001), Cabra-Cega (2004), Filhas do Vento (2004), As Vidas de

Maria (2005), Nossa Vida Não Cabe Num Opala (2008), Dominguinhos (2014). Além

de atuar como roteirista, Di Moretti é professor de cursos de roteiro cinematográfico e

consultor de laboratórios como os do Sundance Institute e SESC Rio de Janeiro.

Também fundou e, atualmente, preside a AC, a Associação Autores de Cinema, que luta

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por melhor reconhecimento e proteção da atividade de roteirista no Brasil, assim como

sua profissionalização por aqui.

Percebe-se ao analisar a trajetória de ambos a parceria que se estabeleceu entre

Toni Ventura e Di Moretti constituída nas duas últimas décadas, com a direção/ roteiro,

iniciada justamente durante o projeto do documentário O Velho e depois os filmes

ficcionais como Latitude Zero e Cabra Cega.

4. “O VELHO”: ESTRUTURA E NARRATIVIDADE

O documentário O Velho apresenta um panorama da história do Brasil, a partir

da biografia do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Toma como recorte temporal, a

Revolução Russa em 1917 e a queda do Muro de Berlim em 1989, marcos do início e

do fim do comunismo, naquilo que Eric Hobsbawm chamou de Breve Século XX.

O filme foi dividido em blocos com abordagens de temas específicos

contemplando os diversos momentos da história do Brasil nos quais Prestes esteve

presente, a exemplo do Tenentismo, a Coluna Prestes, a “Intentona” Comunista, a

redemocratização, a ditadura militar, entre outros. Tais blocos são apresentados pelo

roteirista e o diretor por meio de uma narrativa linear e cronológica: a Inocência, a

Coragem, a Esperança, a Sombra, a Maturidade, o Resto dos Anos, que cobrem desde o

nascimento de Prestes até sua morte.

É perceptível o empenho da equipe em construir um filme com bases

documentais das mais variadas, principalmente fotografias e vídeos, mas também de

periódicos e depoimentos orais gravados, com destaque para o uso de uma variada gama

de imagens, de diferentes assuntos e temporalidades. Imagens estas obtidas de

arquivos, de filmes, imagens inéditas, depoentes e temas tratados, indicam que houve

pesquisa durante a sua realização.

Os levantamentos de pesquisa foram feitos em vários arquivos, em São Paulo e

Rio de Janeiro. Na primeira cidade houve pesquisas na Biblioteca Mário da Andrade, no

Arquivo Público do Estado de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo, o Departamento

cultural da TV cultura, a Cinemateca de São Paulo. No Rio de janeiro destaque para o

Arquivo Público do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Fundação Getúlio Vargas,

Centro de Documentação da Rede Globo. Além do ao acervo público de Maria Prestes e

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os Arquivos de Moscou, realizado pelo filho de Prestes, Yuri Prestes. (FONSECA,

2008).

Entre todas as fontes utilizadas fica clara ao longo da narrativa fílmica a

ausência de uma crítica documental, visto como bem afirmou o roteirista do filme, Di

Moretti, houve o procedimento de colagem das imagens ao texto do roteiro, do qual

cada parte foi sendo ilustrado com fotografias ou vídeos, para provocar uma efeito de

verdade. Houve, portanto, um processo de pesquisa com caráter de levantamento de

dados, porém sem crítica documental. Nas palavras de Fonseca (2009) “os documentos,

mais especificamente as imagens, não são tratadas como frutos de seleções, elaborações

e pontos de vistas, mas tomados como fontes de verdade que ilustram a fala do

narrador” (p.69/70).

Entre as diversas fontes usadas por Toni Ventura no filme, além das imagens,

destaque para os depoentes expostos de uma maneira de procuraram demostrar ideias

opostas, num jogo maniqueísta. Segundo o roteirista do filme Di Moretti procurou-se

pessoas que pudessem depor a favor ou contra com o objetivo de contrapor as ideias que

seriam abordadas. Alguns dos depoentes foram: Nélson Werneck Sodré (historiador),

Eliane Brum (jornalista), Marly Vianna (historiadora), Fernando Morais (jornalista),

Fernando Gabeira (jornalista e militante de esquerda na época da ditadura), William

Waack (jornalista), Ferreira Gullar (poeta e militante de esquerda na época da ditadura),

etc. A grande quantidade de informações funcionou como provas na linguagem

audiovisual, para criar efeitos de um discurso de verdade.

Segundo Moretti:

Na verdade esse roteiro teve várias fases. Como se trata de um documentário

histórico, a minha primeira obrigação era fazer um esqueleto com uma

escaleta histórica de setenta anos do qual o filme ia tratar (...) essa escaleta

tentou obedecer todos os momentos mais importantes da história brasileira.

Desde a revolução de 1930, a revolta do forte, o Estado Novo, o suicídio de

Getúlio Vargas, a ascensão de JK (MORETTI APUD FONSECA, 2009).

No mesmo depoimento o roteirista afirmou:

Feita essa parte, eu me dediquei, principalmente, a cobrir a história pessoal

de Prestes, ou seja, levantei informações através de livros, de biografias e da

própria família nos ajudou muito (...) e tentamos ilustrar essas lacunas onde a

história do Brasil cruzava com a história do Prestes usando depoimentos.

(IDEM)

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Moretti divide no mesmo depoimento o filme em duas camadas. Uma camada

histórica, ligada à política, a economia e a cultura brasileira ao longo do século XX e a

segunda camada direcionada a trajetória de Luiz Carlos Prestes no seu relacionamento

com estes acontecimentos.

Para Fonseca (2009) o filme “desconsidera a complexidade do processo de

construção de abordagens históricas, de construção de fatos, desconsiderando o próprio

processo de construção de interpretações históricas do qual o filme mesmo é parte”

(p.260). Aspecto da qual concordamos, visto que tal procedimento limita o debate e

colocar mesmo com depoimentos divergentes um olhar confuso sobre o personagem. A

mesma Fonseca (2009) desfere uma crítica direta a forma como o conteúdo histórico foi

apresentado:

O que vemos na tela, como resultado do procedimento de colagem da

imagem ao texto, é uma pesquisa com caráter de levantamento de dados sem

crítica documental. Nesse sentido, os documentos, mais especificamente as

imagens, não são tratados como frutos de seleções, elaborações e pontos de

vista, mas tomados como fontes de verdade que ilustram a fala do narrador.

(p.264)

As polêmicas que cercam o filme são muitas e não caberiam no espaço deste

artigo. Um dos mais latentes refere-se à memória das lutas armadas no período da

ditadura militar no Brasil. Leme (2013) ver no documentário um argumento bastante

crítico à luta armada, caracterizada como decisão de “jovens militantes” que cometeram

ações equivocadas, temerárias e prejudiciais. Quase na mesma linha tempos Fonseca

(2009), que chega a escrever que “Prestes aparece como a personificação dos erros do

Partido Comunista. A história do homem isolado da sociedade é a história de uma ideia

utópica que viveu descolada da realidade brasileira” (p. 254)

Uma dos discursos mais duros veio de Jacob Gorender, que no depoimento ao

filme afirmou: “Prestes em momentos cruciais fazia avaliações errôneos e tomava

decisões não raro desastrosas, para a causa a qual se dedicava e a seus seguidores. Em

resumo, era um episodio brasileiro do fenômeno mundial do stalinismo. Prestes foi um

stanilista empedernido” (VENTURA, 1997).

Segundo a já citada Fonseca (2013) o filme gerou polêmicas visto que para

alguns é a história oficial da esquerda que encontramos no longa-metragem, criando

uma imagem positiva dos personagens; para outros há uma crítica injusta a memória de

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Prestes. Opinião esta última, por exemplo, da filha do personagem Anita Leocádia

Prestes, como veremos no próximo tópico deste artigo.

5. UMA TENSÃO SILENCIADA: BATALHAS DE MEMÓRIAS

FAMILIARES

Halbawachs (2012) identificou que para além do indivíduo a memória formaria

uma estrutura social moldada pelas relações de força entre diferentes grupos sociais que

determinam o que deve ser lembrado ou esquecido. Neste processo histórico, de

memória/esquecimento, Pollak (1989) identifica a memória como um campo de disputa

entre uma memória oficial e as chamadas memórias subterrâneas. A memória oficial

teria geralmente um caráter destruidor, uniformizado e opressor. Já as memórias

subterrâneas, na contramão “(...) prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de

maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e

exacerbados” (p.40).

No caso de Prestes, entendemos que alguns partidos ditos esquerdistas e

direitistas e os seus familiares (a partir das duas alas já aqui mencionadas), podem ser

compreendidos como instituições ou agentes produtores de uma memória coletiva que

se tornou oficial ao longo de décadas. Ambos criaram, portanto, uma memória dividida,

como salienta Alessandro Portelli (2000), em diálogo com Giovanni Contini, ou uma

memória concorrente, como bem sinaliza Pollak (1989), através de conflitos e

competições, dentro desta memória oficial ou mesmo numa “zona de convergência” de

uma memória subterrânea.

Ao entendermos que em cada período histórico determinada memória exerceu

posição dominante, ocorrendo aquilo que Pollak (1989) chama de enquadramento da

memória, um conjunto de referências que foi ao longo das décadas “formulando”

diferentes Prestes. Assim, cada narrativa produzida sobre Luiz Carlos Prestes elaborou

um personagem político diferente, a partir de contextos específicos, com modelos de

escrita distintos, que remetem à sua temporalidade dentro de um regime de escrita de

história, no dizer de Guimarães (2008).

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A historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Prestes, desde o início da

produção do filme se colocou contra a realização. Segundo Moretti apud Fonsceca

(2009) a historiadora acreditava que os produtores do documentário eram incapazes de

colocar em um filme toda a importância de Luiz Carlos Prestes. Em carta publicada na

Folha de São Paulo, Anita Leocádia Prestes elencou as razões de ser contra o filme:

(...) consideramos que sua realização seria prejudicial à imagem de Luiz

Carlos Prestes, distorcendo e deturbando fatos históricos de maior

importância. Um dos argumentos que apresentamos na ocasião foi o de que

os principais depoimentos sobre a vida política de meu pai seriam por

inimigos ou adversários seus, como William Waack, João Amazonas,

Roberto Freire e Jacob Gorender, 1997, p.13.

Em artigo publicado na Revista Vozes acusou de desonestidade intelectual não

apenas o cineasta Toni Ventura (responsável pelo filme), mas outros biógrafos e

pesquisadores de Prestes, bem como seus irmãos e a viúva do líder comunista Maria

Prestes. Para Anita Prestes (1997) no contexto da globalização e do neoliberalismo, a

direita empreendeu uma estratégia de acabar com os mitos da esquerda, entre eles Luiz

Carlos Prestes. Tais estratégias vão desde o silenciamento, passando pela

descaraterização, chegando à deturpação da história. Desta forma, a historiadora filha de

Prestes acusa o diretor do filme Toni Ventura de representar um Prestes domesticado,

inofensivo e pausterizado, de uma “personalidade que merece muito mais compaixão

pelos sofrimentos por que passou do que admiração pelo seu heroísmo” (p.7). Além

disso, descreve os erros factuais da obra, chamado de grosseiros, contendo ainda

“graves deturpações em relação ao período histórico”, trazendo “calúnias e inverdades”.

Entre os problemas a historiadora seleciona:

O célebre Manifesto de Maio de 1930, lançado por Prestes em Buenos

Aires, foi parar no mês de julho. A foto de Clotilde Prestes é mostrada

como sendo de sua mãe, Leocádia Prestes. O filme mostra cenas da mãe de

Prestes recebendo cartas supostamente por ele enviadas durante a Marcha

da Coluna, algo totalmente impossível de ter acontecido, pois os rebeldes,

ao marcharem pelo interior do Brasil, careciam de qualquer meio de

comunicação com as grandes cidades e a capital do país. (PRESTES, 1997,

pp.8-9)

Esta missão de defesa de Anita Prestes em relação à memória do pai pode ser

observada em vários momentos da produção cultural e historiográfica sobre Luiz Carlos

Prestes. No próprio filme O Velho observar-se claramente a ausência da própria entre a

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lista dos entrevistados. Por outro lado, identificamos a participação efetiva dos outros

filhos de Luiz Carlos Prestes, todos eles frutos do seu relacionamento de Maria Prestes.

Uma memória familiar é apresentada na parte final da película, com dados sobre a vida

privada do revolucionário, com fotos, vídeos e depoimentos sobre seu lado pai, esposo,

avô.

Esta marca de tensão sobre a memória familiar fica mais claro quando Anita

Leocádia na mesma crítica ao filme afirma que em junho de 1991 o Ministério do

Exército declarou a anistia de Prestes, concedendo à sua família o direito de receber

pensão militar. Segundo a mesma houve “a lamentável colaboração de uma parte da

família de Prestes” (1997:7), ligada à viúva, Maria Prestes, colaborou para acabar com o

suposto mito da esquerda, visto que Prestes é visto como uma figura inofensiva e

captada pelo sistema dominante.

Tal situação revelada por Anita Prestes combina com os planos do filme em

representá-lo como

(...) um homem “puro e ingênuo”, indiscutivelmente honesto (é difícil

duvidar de sua honestidade), um bom pai de família, até mesmo um amante

das flores e cultivador de roseiras, mais um militar rígido (...), incapaz de

compreender as nuances da política. Sua vida política, portanto, não teria

passado de uma lamentável sucessão de erros e fracassos – um exemplo

desastroso, que não merece ser seguido pelos jovens de hoje. (PRESTES,

1997, p.7)

Tal crítica ao filme demostra bem que o diretor e o roteirista construíram uma

visão fracassada de Luiz Carlos Prestes. Mesmo sendo uma alcunha antiga, o nome O

Velho, dado ao filme enfatiza a questão do derrotismo político do personagem. O nome

segundo Motta (2004) foi criado pela imprensa conservadora carioca nos anos de

clandestinidade nos anos 1950, porém foi apropriado por seus familiares, algo

comprovado no próprio documentário, quando os filhos e a segunda esposa assim o

chamam.

O mesmo Motta (2004), depois de identificar uma série de charges humorística

na imprensa dos anos 1950 e 1960 pintando Prestes como um homem velho e derrotado

enfatiza que os ataques ao personagem soam paradoxais e talvez contraditórios: “Os

mesmos críticos que apontam para a decadência do “velho” denunciam os riscos

implicados em sua ação, exigindo das autoridades rigor com o comunismo” (p.34). Não

12

é o caso especificamente do documentário de Toni Ventura, porém é possível observar

certo temor do comunismo em várias das falas dos depoentes e uma necessidade

continua de descontruir o comunismo enquanto uma solução possível.

Segundo Pontes (2008) as imagens de Prestes na contemporaneidade são enfocadas

em dois ângulos: pelas agremiações de esquerda brasileiras e pela historiadora e filha

Anita Leocádia Prestes. No caso específico do filme O Velho, entendemos que ele segue

outro caminho. Não podemos chegar a conclusão que a imagem de Prestes presente no

documentário foi construído a partir dos partidos esquerdistas visto que as várias

memórias de Luiz Carlos Prestes foram confrontadas com a memória de ex-líderes

comunistas, como tenentes, presos políticos, ex-exilados, muitos deles opositores

políticos destas mesmas agremiações. Já evidenciamos anteriormente a ausência de

Anita Leocádia Prestes. Portanto, que imagem de Prestes podemos destacar na obra O

Velho?

A imagem de Prestes me parece seguir uma construção familiar aberta, fora das teias

dominadoras historiográficas e pessoais de Anita Leocádia Prestes, tendo Maria Prestes

como condutora indireta. Não dominando inteiramente a biografia do marido, a viúva de

Prestes abriu um lado íntimo do revolucionário, despolitizando em vários momentos.

Toni Ventura, acessível há vários caminhos, investe numa tentativa de um Prestes

dialético, porém não múltiplo, visto que o cineasta construiu uma narratividade linear e

que carrega as divergências do personagem.

Não é apenas o derrotismo de Prestes que é enfatizada no filme O Velho, como

também a resistência do personagem diante dos percalços de sua trajetória. As prisões, a

clandestinidade, o encanto e o destemor diante das lutas sociais e políticas ao longo do

século XX. Por diversas passagens os depoentes enfatizam que Prestes sempre se

manteve coerente com suas ideias e ações, mesmo que isso desembocasse em erros ou

vícios, demarcados pela teimosia e determinação.

Para Vilas Boas (2008) a analisar uma série de narrativas biográficas identificou

o que ele chama de principais limitações do gênero. São elas: a) Descendência (uma

tendência reducionista de muitos biógrafos apresentarem certas características e atitudes

de seus personagens como resultado direto da influência familiar); b) Fatalismo

(biografias que tendem a apresentar o biografado de uma maneira quase mítica, heroica,

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como um predestinado); c) Extraordinariedade (a apresentação do personagem como

um ser extraordinário, alguém que se destaca por sua genialidade); d) Verdade (quando

a narrativa biográfica canônica pretende ser a verdade absoluta e objetiva sobre a vida

de um determinado personagem, marcada por uma estruturação cronológica e pela

coerência e estabilidade do biografado. e) Transparência (uma tendência de ocultação

dos detalhes dos processos de investigação e análise realizados pelos biógrafos; f)

Tempo (quando o tempo seja visto por biógrafos de maneira simplista, apenas como

duração de determinados episódios acontecidos em espaços identificados).

Observando a narrativa fílmica O Velho, observamos que algumas destas

limitações são apresentadas, principalmente o tópico Verdade (quando o filme se coloca

como uma verdade objetiva sobre Luiz Carlos Prestes); a Transparência (quando em

nenhum momento há referências sobre o processo de elaboração da narrativa fílmica); e

principalmente o Tempo (quando diretor e roteirista construíram uma narrativa linear,

escatológica e cronológica).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta forma, ao analisarmos a construção da imagem pública do líder

revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes (1898-1990) presente no documentário O

Velho: a história de Luiz Carlos Prestes, dirigido pelo cineasta Toni Ventura,

perceberemos um jogo de imagens que realça a postura maniqueísta da obra, porém

dando ênfase ao derrotismo do personagem, destacando mais os dilemas, erros e

posturas inadequadas ao longo de sua trajetória. O Luiz Carlos Prestes é apresentado

como um derrotado, - um coerente e integro comunista que não conseguir implantar o

comunismo no Brasil, que foi de um mito durante a Coluna Prestes nos anos 1920 ao

velho revolucionário dos anos 1950 aos 1980, perdido em um passado de resistente.

O filme, portanto, se coloca a partir da grande quantidade de informações

utilizada como provas na linguagem audiovisual criando efeitos de um discurso de

verdade. Cercado um embate de uma batalha de memórias familiares e sociais, o filme

se insere num dilema de tensões existentes entre Anita Leocádia Prestes (crítica da obra)

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e Maria Prestes (colaboradora do documentário), e nos ressentimentos presentes dos

militares do PCB (Partido Comunista Brasileiro).

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