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O VALOR CULTURAL E SIMBÓLICO DO PASSEIO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO
ARAGÃO, SOLANGE DE (1); SANDEVILLE JR., EULER (2)
1. Universidade Nove de Julho. Departamento de Ciências Exatas
E-mail: [email protected]
2. Universidade de São Paulo. Departamento de Projeto E-mail: [email protected]
RESUMO
O Passeio Público do Rio de Janeiro corresponde a um dos primeiros espaços livres públicos urbanos do Brasil que receberam projeto paisagístico. Em um panorama de cidades coloniais com praças que não eram mais do que espaços abertos sem árvores, áreas ajardinadas, piso ou iluminação, e jardins botânicos que não eram mais do que jardins de plantas – como assim os denominavam os viajantes de princípios do século XIX, surge o Passeio Público com traçado elaborado por Mestre Valentim ainda em fins do setecentos. No projeto inicial, predominavam as linhas retas e diagonais, que definiam percursos lineares ladeados por grandes canteiros, denotando uma influência claramente iluminista e predecessora do neoclássico no Brasil, não obstante a presença de espécies tropicais e de algumas esculturas elaboradas pelo próprio Valentim. Em âmbito nacional, o Passeio corresponde também a uma das primeiras áreas que se tornaram objeto de requalificação urbana. Degradado já em meados do século XIX, recebe novo projeto paisagístico, de autoria de Auguste Glaziou, em 1862. Esse projeto, que permanece até os dias de hoje, altera seu traçado geral, apesar de preservar alguns de seus elementos – como espécies vegetais, as duas pirâmides e a escultura de jacarés junto à fonte. Estas duas observações bastariam para reputar o valor histórico, paisagístico e cultural do Passeio Público do Rio de Janeiro. Acrescente-se a isto, então, o fato de que por suas alamedas passaram figuras ilustres da Literatura Brasileira como Machado de Assis, José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo; e que, em 1817, um jovem pintor, chamado Thomas Ender, retratou suas paisagens em suas aquarelas. O Passeio Público do Rio de Janeiro aparece na literatura, na fotografia e na pintura do século XIX – o que revela a sua importância para o olhar do artista do oitocentos. Atualmente, quando se visita o Rio de Janeiro, observa-se que a maior parte das pessoas sequer sabe do que se trata o Passeio Público, sendo necessário explicar que é uma área ajardinada e arborizada situada nas proximidades do Aterro do Flamengo. E já não são escritores, pintores e fotógrafos que percorrem suas alamedas e sim algumas raras pessoas que simplesmente procuram um lugar para sentar à sombra de uma árvore na hora do almoço ou em meio a seus trajetos urbanos. Não se trata mais de um lugar onde se vai para ver e ser visto, para o flanar, para o encontro, mas de um espaço remanescente na paisagem em transformação. A partir dessa constatação, propõe-se, por meio deste trabalho, retomar, destacar e sublinhar o valor cultural e simbólico desse espaço livre público tão importante na História do Paisagismo do Brasil.
Palavras-chave: Passeio Público do Rio de Janeiro, Valor Cultural e Simbólico, Cidade.
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História do Passeio Público do Rio de Janeiro
A história do Passeio Público do Rio de Janeiro tem sido contada desde o século XIX por
escritores e jornalistas da categoria de Joaquim Manoel de Macedo e Max Fleiuss, e
especialmente a partir da segunda metade do século XX por historiadores da cidade, da
paisagem e do jardim, como Hugo Segawa, Murillo Marx e Nicolau Sevcenko. Recontamos
em parte essa história em artigo publicado em 2012 intitulado “O Passeio Público do Rio de
Janeiro na literatura, na pintura e na fotografia do século XIX” e iremos destacar aqui alguns
aspectos importantes para este outro viés de análise.
Segundo Nicolau Sevcenko, a história da construção do Passeio Público é nebulosa, estando
sua origem ligada à crise do império português na segunda metade do oitocentos, quando o
processo de exploração das minas de ouro entrou em declínio no Brasil (Sevcenko, 1996,
p.113). Assim, o Passeio Público teria surgido com as características de um “jardim
experimental” ou de um “jardim botânico”, onde era possível realizar tentativas de adaptação
ao solo brasileiro de algumas espécies de origem asiática (Sevcenko, 1996, p.114).
Esta hipótese parece bastante plausível, especialmente se considerarmos que durante o
período colonial – ao menos até a chegada da Corte em 1808 – praticamente não houve, por
parte da metrópole, uma preocupação no que concerne à qualificação dos espaços livres
públicos da cidade brasileira. As praças, quando existiam, correspondiam aos adros das
igrejas, sem pavimentação, ajardinamento, iluminação pública ou arborização. Meros vazios
urbanos que, no entanto, possuíam um papel importantíssimo como espaço de encontro e de
sociabilidade.
Nesse sentido, a criação do Passeio Público do Rio de Janeiro, em fins do século XVIII,
antecede um processo que se tornaria comum somente a partir da segunda década do século
seguinte, de constituição e execução de projetos paisagísticos nos espaços públicos das vilas
e cidades do Brasil.
Em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, Joaquim Manoel de Macedo enfatiza alguns
aspectos políticos possivelmente ligados à criação do Passeio Público do Rio de Janeiro,
como a substituição do marquês de Lavradio por Luís de Vasconcelos e Souza no
vice-reinado do Brasil em 1779 (Macedo, s.d., p.82). Escreve também sobre a epidemia que
se alastrou pela cidade nesse mesmo período, exigindo providências ligadas ao
abastecimento de água e medidas higiênicas.
Nesse contexto, o então vice-rei Luís de Vasconcelos solicitou ao arquiteto e escultor
Valentim da Fonseca e Silva, conhecido como Mestre Valentim, a elaboração do Passeio
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Público junto à lagoa do Boqueirão da Ajuda – lugar que “oferecia uma vista magnífica”, mas
cuja lagoa “formada pelas águas da chuva que ficavam estagnadas [...] às vezes exalava um
cheiro desagradável e, na opinião de muitos, passava por ser um foco de peste” (Macedo,
s.d., p.87).
A ideia de transformar a lagoa do Boqueirão em um jardim público ainda em fins do século
XVIII faz do Passeio Público um dos primeiros projetos urbanos do Brasil que aliaram à
questão da salubridade a questão do ajardinamento. Em 1783, ou seja, quatro anos depois
dos primeiros planos ou do primeiro traçado, era inaugurado o Passeio:
“O Passeio Público, no espaço que compreendia, representava um hexágono de lados
irregulares. [...] Uma rua principal nascia à entrada do Passeio e ia morrer entre duas
pirâmides e diante de uma pequena cascata [...]. Diversas outras ruas largas e bem
construídas concorriam com aquelas para dividir-se o Passeio em maciços de forma irregular,
[...] ostentando o tesouro de mimosos e floridos arbustos e a vegetação tropical [...]. Do jardim
podia-se subir para o terraço por quatro escadas de pedra [...]. O terraço era avarandado e
lajeado de mármore. Uma grossa parede o defendia dos ímpetos arrojados do mar. Um
parapeito o cercava todo, tendo vários alegretes com flores que entremeavam diferentes
bancos de pedra comum, e ornados com vasos de mármore.” (Macedo, s.d., p.104-7)
Ficava de frente para o mar. Abria-se para a paisagem de águas e de céu ao mesmo tempo
que passava a compor a paisagem urbana com espécies vegetais que não estavam atrás dos
muros das casas, mas em terras públicas destinadas ao passeio e ao flanar.
Murillo Marx e Hugo Segawa salientam ainda a relação entre o jardim público e o Iluminismo,
mencionando igualmente a questão da expansão urbana atrelada à criação do Passeio:
“O jardim público aparece então entre nós, como reflexo do Iluminismo e da expansão dos
maiores centros urbanos, no fim do período colonial. Instala-se, como nas antigas cidades
europeias e como quase todas as nossas áreas verdes posteriores, nas bordas da cidade e
em terras muito ruins para o arruamento ou a construção. O Passeio Público do Rio de Janeiro
foi o primeiro e o mais elaborado jardim de uma série de outros [...]. Na então capital do
Vice-Reino, uma lagoa junto à orla serviu de sítio para a implantação desse requinte de
civilização urbana que mereceu o trabalho de artistas como Mestre Valentim e, mais tarde,
Glaziou.” (Marx, 1980, p.61)
Hugo Segawa observa que o aterro da lagoa, em pleno século XVIII, no Brasil colonial, deve
ter representado, um desafio complexo (Segawa, 1996, p.81). Por outro lado, possibilitou o
desenvolvimento da cidade na direção sul ao estabelecer a comunicação com as terras onde
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seriam implantados futuramente os bairros de Flamengo e Botafogo (Segawa, 1996, p.81).
Nesse sentido, desempenhou de fato um papel importante no crescimento e na expansão da
cidade do Rio de Janeiro.
Apesar de constituir um “requinte de civilização urbana”, o Passeio Público do Rio de Janeiro
ainda nas primeiras décadas do século XIX não atraía tantos frequentadores como se poderia
imaginar (Denis apud Segawa, 1996, p.99) e logo entrou em decadência pela falta de
manutenção e de uso, e pela própria ação do mar que destruiu inclusive os dois pavilhões
originais do terraço (Segawa, 1996, p.99). Tornou-se, assim, uma área abandonada no
espaço urbano (Segawa, 1996, p.100). E por haver se tornado uma área abandonada e
degradada no espaço urbano, o Passeio Público do Rio de Janeiro correspondeu também a
um dos primeiros lugares a receber um projeto de requalificação urbana no Brasil. Em 1861, o
paisagista Auguste François Marie Glaziou implantava a sua proposta de remodelação para o
jardim, transformando o traçado linear e geometrizante de Valentim em um traçado orgânico
onde predominavam as linhas curvas inspiradas no jardim inglês. Este é o traçado que
permanece até os dias de hoje.
Figura 1: O Passeio Público do Rio de Janeiro segundo a proposta de Glaziou. Planta depois da reforma de 1862. Apesar da mudança no traçado, Glaziou preservou algumas espécies arbóreas, as duas pirâmides e a fonte dos jacarés do projeto anterior,
de autoria do Mestre Valentim. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.
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“A planta apresentada ao governo, e por este aprovada, representa um jardim no gênero
inglês, hoje admitido em todo o mundo como o mais natural, o mais livre, e que produz mais
agradáveis e completas ilusões. O antigo sistema de alamedas em linha reta e de maciços
regulares e uniformes é completamente abandonado. [...] Ruas em linhas curvas e de
extensões variadas se desenvolverão por todos os lados, e maciços multiplicados, diversos
no tamanho e na forma, darão o encanto da variedade, ostentando ainda grande riqueza de
árvores ora em grupos, ora isoladas. [...] Ainda do mesmo lado se mostrará um rochedo
artificial, do alto do qual se precipitará uma torrente d’água que alimentará um rio tortuoso, que
irá formar ao lado direito do jardim um lago com suas ilhotas habitadas por cisnes.” (Macedo,
s.d., p.128-9)
Figura 2: O Passeio Público do Rio de Janeiro através das lentes do fotógrafo Revert Klumb, já segundo o traçado sinuoso de Glaziou, com grandes maciços de vegetação. Tratava-se nesse momento de um espaço público pavimentado, ajardinado,
arborizado e com iluminação pública. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.
Visitantes Ilustres
Entre os visitantes ilustres que percorreram as alamedas lineares ou curvilíneas do Passeio
Público do Rio de Janeiro estão diversos viajantes que descreveram esse espaço público em
seus relatos de viagem, alguns pintores ou aquarelistas de princípios do século XIX,
fotógrafos da segunda metade do oitocentos e escritores que inseriram descrições de seus
percursos em suas obras.
Hugo Segawa (1996) menciona um número considerável de viajantes que estiveram no
Passeio Público em seu livro sobre os jardins do Brasil, como o inglês John Barrow, que
registra uma descrição do Passeio em 1792, John Luccock, que esteve no Rio de Janeiro
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entre 1808 e 1818, o português Luís Gonçalves dos Santos, que cita o Passeio Público em
livro de memórias datado de 1825, Thomas Ewbank, em 1846, Charles de Ribeyrolles, em
1858, Ernst Ebel, em 1824, Carl Seidler, entre 1820 e 1840, Theodor von Leithold, em 1819,
Ferdinand Denis, que esteve no Brasil entre 1816 e 1831, e Robert Walsh, entre 1828 e 1829.
A esses nomes poderíamos acrescentar outros como Spix e Martius, que percorreram as
terras brasileiras entre 1817 e 1820, e mencionam o Passeio Público entre as “praças abertas”
que dão prazer à vista (1938, p.47), ou mesmo Andrew Grant, que dedica várias páginas ao
Passeio Público em History of Brazil, publicado em Londres em 1809.
Figura 3: O Passeio Público do Rio de Janeiro em 1847, segundo a visão do pintor Alfredo Martinet, com uma das pirâmides ao centro, ruas de terra batida, a vegetação exuberante e alguns usuários desse espaço público.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.
Entre os pintores que precederam os fotógrafos no registro iconográfico do Passeio Público,
estão artistas como Alfredo Martinet e Thomas Ender. Martinet (1847) coloca uma das
pirâmides do centro de sua tela, na confluência de dois caminhos de terra batida, mostrando
alguns usuários no primeiro plano, um dos pavilhões à esquerda do observador –
parcialmente ocultado pela vegetação – e uma sequência de árvores de grande porte à direita,
revelando um lugar muito simples, com ruas de terra e canteiros delimitados por cercas de
madeira aparentemente improvisadas (ARAGÃO & SANDEVILLE, p.194). Thomas Ender
elabora duas aquarelas do Passeio em 1817. Na primeira, olhando para o mar, registra a fonte
dos jacarés elaborada por Valentim, com o Pão de Açúcar ao fundo, e árvores frondosas que
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sombreiam o caminho principal do jardim e ocultam as duas pirâmides. Na segunda, voltado
para a área urbana, enquadra as duas pirâmides na tela, trabalhando com tons amarelos que
dão a ideia do sol dos trópicos ao jardim (ARAGÃO & SANDEVILLE, p.194).
Revert Henrique Klumb (em 1860), Leuzinger (em 1860), Augusto Stahl (em 1865), Marc
Ferrez (em 1890), e Juan Guitierrez (em 1893) são alguns dos fotógrafos que estiveram no
Passeio Público ao longo do século XIX, mas diferentemente dos pintores, registram o
Passeio transformado pelo projeto de Glaziou (ARAGÃO & SANDEVILLE, p.196).
Figura 4: O Passeio Público do Rio de Janeiro em 1862, em fotografia de Rafael Castro y Ordoñez. Mesmo com a proposta de Glaziou, as pirâmides continuavam sendo um dos elementos enquadrados pelos fotógrafos como ícones na caracterização e
identificação desse espaço urbano. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.
Joaquim Manoel de Macedo, romancista muito apreciado ao longo do oitocentos, dedica um
capítulo inteiro ao Passeio Público em seu livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
(ARAGÃO & SANDEVILLE, p.190). A leitura de suas descrições minuciosas evidencia o
conhecimento aprofundado do lugar, de quem esteve lá e contemplou a paisagem
detidamente. Macedo transpõe também as imagens paisagísticas do jardim em alguns de
seus romances, como em O moço loiro, de 1845, e A luneta mágica, de 1869:
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“Entrei no Passeio Público, e com apressada curiosidade fui vendo e gozando os deleitosos
quadros da relva verdejante, dos grupos de arbustos graciosos, das árvores gigantes, das
correntes d’água, das pontes, do outeiro dos jacarés, do terraço que se torna admirável pela
vista das montanhas, dos rochedos e do mar, das fortalezas e das ilhas, das praias e da
cidade formosa, mas recreio da cidade ofuscadora, a que demora fronteira.” (MACEDO, s.d.,
p.44)
Outros escritores que estiveram no Passeio Público foram José de Alencar e Machado de
Assis, que retrataram seus jardins e alamedas como um lugar de encontro ou reencontro em
seus romances (v.ARAGÃO & SANDEVILLE, p.193).
Para quem é versado nas artes e na literatura do Brasil do século XIX, esses nomes
constituem personagens importantes no panorama brasileiro e no olhar estrangeiro sobre o
Brasil. É muito difícil, tendo esse conhecimento histórico, não pensar “Machado de Assis
andou por aqui” ou “Thomas Ender esteve aqui em 1817”, quando se percorre as alamedas do
Passeio Público do Rio de Janeiro. De fato, sobressai o valor histórico e cultural do jardim.
Atualidade
Figura 5: O Passeio Público do Rio de Janeiro nos dias de hoje. Permanece o traçado de Glaziou; permanecem as pirâmides do projeto de Valentim; permanecem as luminárias, a ponte com guarda-corpo de cimento imitando a madeira e as árvores de
grande porte. O Passeio, no entanto, continua sendo um espaço pouco frequentado. Fotografia da Autora. Rio de Janeiro, 2016.
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O que representa o Passeio Público na paisagem atual do Rio de Janeiro? Visto de longe,
corresponde a um expressivo maciço arbóreo em meio aos altos edifícios que o circundam.
Na visão do pedestre, compreende um espaço arborizado e cercado por muros implantado
em área de grande movimentação de pessoas, que no entanto não atrai um número
significativo de usuários. Mesmo por volta do meio dia, durante a semana, são poucos os que
atravessam seu portão de entrada para usufruir de seus espaços ajardinados e sombreados
pelas copas das árvores de grande porte remanescentes. Em Cidade brasileira, Murillo Marx
lembra que o Passeio Público foi separado do mar por um novo aterro, que originou uma área
de lazer de maiores proporções, atualmente mais conhecida pelos moradores do Rio:
“[...] Avançando sobre o mar, o Rio de Janeiro conquistou não apenas mais espaço, porém
uma grande área comum, voltada ao recreio e cristalizada em nova obra de arte de Burle
Marx. O Parque do Flamengo é, por todos os títulos, o resultado mais brilhante e ilustrativo do
esforço em prol dos jardins públicos nas aglomerações brasileiras contemporâneas. Liga-se,
histórica e geograficamente, ao Passeio Público que distanciou do mar. [...] é a revelação da
nossa magnífica flora, tratada sem chauvinismo pelo gênio de um de nossos maiores artistas
plásticos.” (MARX, 1980, p.63-4)
Ambos, Passeio Público e Parque do Flamengo, correspondem a áreas aterradas para
criação de espaços de lazer. Pertencem a períodos históricos e contextos sociais muito
distintos e apresentam proporções díspares relacionadas também aos aspectos urbanísticos
e sociais e ao contexto histórico de cada momento. Mas é preciso lembrar que a proximidade
do mar favorece o uso dos espaços públicos nas cidades litorâneas e que esse
distanciamento resultante do aterro do Flamengo, que de certa forma comprimiu o Passeio
entre o Parque e a cidade, deve ter contribuído para a redução de seu uso. Jane Santucci
assinala três momentos em relação a esse distanciamento:
“A condição privilegiada de jardim à beira mar se perdeu em três momentos distintos: o
primeiro ocorreu com a abertura da avenida Beira-Mar (1904-1906), quando foi aterrada a
praia do Boqueirão, fronteira ao Passeio Público, para construção do leito da via modificando
o caráter de belvedere marítimo de seu terraço, e passou, a partir de então, a se corresponder
diretamente com a nova avenida. O segundo momento foi com o desmonte do Morro do
Castelo para o aterramento da enseada da Glória (1920-1922), resultando num afastamento
maior do Passeio Público com o mar. E o terceiro e definitivo com o aterro do Flamengo na
década de 1950. A longitude em relação à linha litorânea representou para o Passeio Público
uma mudança na paisagem e a privação de uma condição consolidada.” (Santucci, 2006)
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Figura 6: O Passeio Público distanciado do mar. Atrás das grades do jardim, é possível observar carros e ônibus circulando pela avenida que separa, com o aterro do Flamengo, o Passeio do mar. Fotografia da autora. Rio de Janeiro, 2016.
Do ponto de vista histórico, o Passeio se tornou um lugar pouco frequentado nas primeiras
décadas do século XIX em função da falta de cuidado e de manutenção e da degradação de
seus espaços. Atualmente, trata-se de uma área que recebe os cuidados e a manutenção
devidos. Não obstante, tornou-se pouco frequentado novamente, mas em função das
transformações urbanas e de mudanças na sociedade, que hoje procura muito mais os
espaços protegidos para frequentar do que o espaço público.
Presente na paisagem urbana do Rio de Janeiro, o Passeio Público é cotidianamente
relegado ao esquecimento. Aberto a uma população que em sua grande maioria desconhece
seu valor histórico e cultural, o Passeio Público perde seu significado exatamente para
aqueles que mais deveriam valorizá-lo: o público. A discussão que se impõe nesse momento
é então como recuperar a memória e o significado do Passeio Público no imaginário social, ou
como resgatar a sua história na valoração dos territórios urbanos do cotidiano.
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Considerações Finais
“Evidentemente toda e qualquer coisa feita tem
um sentido para quem a fez; mas, julgando-a
possuidora de valor, afirmo que tem um sentido
para mim também, para os outros, para todos. [...]
O valor é, obviamente, um algo mais de
experiência da realidade ou da vida, pelo qual o
objeto transcende a própria instrumentalidade
imediata; [...] ele se situa além da esfera da
contingência, na esfera dos valores permanentes
da civilização, da história.” (Argan, 1992, p.17)
Na História do Paisagismo no Brasil, o Passeio Público do Rio de Janeiro corresponde a um
dos primeiros espaços públicos a receber um projeto paisagístico; na História do Urbanismo
Brasileiro, foi um dos primeiros aterros ligados à ideia (e à necessidade) de expansão urbana
que foi pensado como espaço ajardinado e permeável; foi também uma das primeiras áreas,
senão a primeira, a ser requalificada com a substituição de um traçado linear e geométrico por
um traçado orgânico e sinuoso – um dos primeiros processos de requalificação urbana em
território nacional. É indubitável, portanto, seu valor histórico.
Do ponto de vista da cultura, entendida como parte do cotidiano de um povo e de sua relação
com as artes e a literatura, foi um espaço percorrido por pintores e fotógrafos, por escritores e
poetas, que registraram em suas telas, fotografias e romances, o Passeio Público do Rio de
Janeiro como lugar de encontro e componente da paisagem.
Como lugar de encontro e de memória, adquiriu, ao longo de todo o século XIX, um valor
simbólico atrelado ao significado de seus espaços, de suas ruas e alamedas, de seus jardins,
de suas fontes, de suas árvores e flores, de seu terraço junto ao mar, tornando-se importante
não apenas em termos históricos e culturais, mas para todos aqueles que dele usufruíram em
sua existência.
O Passeio Público do Rio de Janeiro corresponde a uma paisagem que permanece, ou se
esforça por permanecer, em meio a outra paisagem, que se transforma continuamente. Um
lugar de memória na remanescência de seus percursos e de suas árvores, cujo valor histórico
e cultural é hoje desconhecido da maioria da população, que passa por essa área ajardinada
sem reconhecer sua importância em âmbito nacional.
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