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  • 7/25/2019 O Trauma Combo Inseguranca

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    4O Trauma como insegurana e as emoes nacontemporaneidade

    Existem momentos na vida onde a questo de saber sese pode pensar diferentemente do que se pensae perceber diferentemente do que se v

    indispensvel para continuar a olhar ou a refletir.Michel Foucault

    O estado emocional das populaes afetadas por conflitos tem se tornado

    uma das principais preocupaes tanto para os tomadores de deciso nos mais

    diversos mbitos da poltica internacional quanto para os acadmicos de

    segurana internacional. Diversos relatrios produzidos por agncias humanitrias

    internacionais nas ltimas duas dcadas se referem aos refugiados por exemplo -

    como permanentemente feridos em decorrncia de experincias tidas como

    traumticas. Em 1990, o trauma chegou a ser tratado com maior nfase do que a

    fome pelas diversas agncias de ajuda humanitria, segundo a prpria OMS.

    (OMS, 2001) Em decorrncia disso, as respostas humanitrias s guerras e

    desastres em todo o globo tm gradativamente assumido formas de interveno

    teraputica que desafiam significativamente as fronteiras entre a dimenso pblica

    e privada e trazem consigo fortes implicaes, como o caso da interveno na

    Bsnia bem demonstrou. A perspectiva teraputica foi adotada, segundo observa

    John Pender, at mesmo pelo Banco Mundial ao estabelecer seus objetivos de

    desenvolvimento. (2002)

    Dois tm sido os efeitos dessa nova onda teraputica, sendo um positivo e

    outro negativo. Em termos tericos, a considerao do trauma como uma

    ameaa/risco permitiu que novas leituras sobre as emoes pudessem fazer partedos debates de segurana internacional as quais ajudaram entre outras coisas- a

    questionar a concepo neurobiolgica prevalecente at ento e a apontar para sua

    dimenso socialmente construda. Esse movimento representa uma significativa

    renovao dos debates sobre as emoes em relaes internacionais e traz consigo

    importantes contribuies de outras disciplinas para uma compreenso mais

    ampliada do tema. Na prtica, no entanto, sua considerao tem promovido efeitos

    contraditrios, sobretudo por conta do modo segundo o qual as intervenesteraputicas tm sido desenvolvidas pelos atores internacionais em especial a

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    ONU e a OMS. Ambos, como demonstraremos nos captulo 5 e 6, tm

    desenvolvido aes que terminam por medicalizar o problema e, assim, acabam

    dificultando ainda mais o processo de recuperao da autonomia dos povos

    afetados pelos conflitos.

    No que concerne aos debates tericos, vale retomarmos o tratamento do trauma

    na psicologia para atravs dele buscarmos entender porque as concepes

    neurobiolgicas sobre as emoes tiveram tamanha repercusso dentro da

    literatura de relaes internacionais em termos gerais. Ainda, o resgate das

    diversas leituras e tratamentos conferidos ao trauma na psicologia, na psiquiatria e

    na sociologia importante na medida em que eles fornecem o contexto a partir do

    qual o movimento de securitizao do trauma pode ser elaborado. Em outras

    palavras, buscaremos investigar no presente captulo o contexto especfico que

    permitiu que leituras medicalizadas sobre o trauma se tornassem predominantes

    na contemporaneidade e fossem absorvidas e reproduzidas por instituies

    internacionais as quais enfatizam uma concepo etnopsicolgica ocidental sobre

    as emoes.

    Isto posto, observamos que a palavra trauma tem sua origem na medicina e

    seu primeiro significado remete a perturbaes derivadas de ferida fsica. Como

    observa Ruth Leys,

    Trauma was originally the term for a surgical wound, conceived on the model ofrupture of the skin or protective envelope of the body resulting in a catastrophicglobal reaction in the entire organism. Yet, as Laplanche has emphasized, it is not easyto retrace the transposition of this medicosurgical notion of a shock with a physicalbreak in and that of danger to life been the model for an allegedly psychicalsymptom that to this day psychical trauma is bound to the concept of surgical shock.(2000, p.19)

    Para a psicanlise, no entanto, o trauma se refere a algo que provm de fora

    do sujeito e que o atinge sem, no entanto, ser incorporado ou assimilado pelo seu

    psiquismo. Conforme L. A. Mees comenta o trauma

    (...) causa aturdimento e fica, na vida do sujeito, enquistado como um corpo estranho,sem sentido e sem elaborao. O trauma tem sua origem no incio da vida de cadasujeito, quando as relaes de linguagem que organizam o mundo do ser humano recepcionam o pequeno ser, o qual no tem bagagem para entender/responder quiloque lhe dito e pedido. Devido a este desamparo/despreparo, o que chega aopequeno sujeito no tem como ser incorporado por ele. Entretanto, algo fica marcado

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    em seu psiquismo, de forma que, em um momento posterior, este acontecimento convocado, constituindo, agora sim, um trauma. (2001, p. 11)

    Nesse campo, Freud foi o primeiro a elaborar as primeiras reflexes sobre o

    trauma tendo apresentado diferentes concepes sobre o tema ao longo de sua

    produo intelectual. Em um primeiro momento (1895-1920), todas as concepes

    de Freud sobre o trauma se desenvolveram de modo a relacionarem-se s fantasias

    inconscientes e realidade psquica. O ponto de partida das reflexes desse

    primeiro momento foram os estudos desenvolvidos em parceria com Jean-Martin

    Charcot em suas tentativas de entendimento da histeria, at ento muito ligada ao

    estudo da anatomia do sistema nervoso. Nesse perodo, a causa da histeria foi

    atribuda por Charcot a uma conseqncia de leses nos rgos sexuais femininos,

    algo que logo foi contestado pelas evidncias de que a histeria tambm acometia

    homens. (Freud, 1956) Com essas evidncias, as neuroses deixam de ser

    explicadas por Charcot somente por fatores orgnicos e fisiolgicos e passaram a

    envolver o psiquismo, sendo os afetos aflitivos (por exemplo, a angstia ou

    vergonha) como observa Freud - os elementos desencadeadores dos traumas

    psquicos, os quais tambm dependeriam da suscetibilidade da pessoa afetada para

    se desenvolverem. O trauma aqui passa a ter um importante papel na origem da

    histeria, apesar de tambm ser associada disposio congnita dos indivduos. A

    histeria seria, assim, uma dissociao da conscincia decorrente da lembrana de

    um acontecimento traumtico que se reproduz de forma alucinatria.

    Decorrente desses estudos surgiu, ento, a noo de trauma psquico de Freud

    segundo a qual transforma-se em trauma psquico toda impresso que o sistema

    nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da

    reao motora. (idem, p.222) A definio de trauma psquico de Freud implica,

    ento, a idia de um choque violento em relao ao qual o indivduo no

    desenvolve uma descarga emocional necessria para libert-lo do afeto ligado

    recordao de um acontecimento que torna ou preserva esse afeto como algo

    patognico. Nesse sentido, as memrias do trauma ficam carregadas de afeto

    retido e atuam como um elemento estranho no psiquismo.

    Ainda na dcada de 1890 Freud desenvolveu a teoria da neurtica segundo a

    qual o trauma seria essencialmente de natureza sexual e o evento traumtico

    estaria baseado em uma ao real de um adulto seduzindo uma criana. Freuddesenvolveu essa teoria com base em casos empricos de crianas que sofreram

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    abusos sexuais geralmente da figura paterna- e para as quais a lembrana do

    ocorrido seria to dolorosa que todos preferiam esquec-la. A ao traumtica se

    desenvolveria, no entanto, em dois tempos: um seria o do evento traumtico

    propriamente dito no qual a criana ainda no tem sua sexualidade desenvolvida

    para ser capaz de identificar o evento como excitao sexual. O segundo ocorreria

    na puberdade, evocando a primeira situao por algum trao associativo e

    imputando um novo significado a essa situao. Nesse momento, mais

    especificamente, ocorreriam os sintomas histricos. Ou seja, somente depois o

    primeiro momento recebe o peso traumtico e esse momento deixa de ser mais

    importante do que aquele em que se estabelece uma associao entre os dois

    momentos, constituindo-se no trauma. Assim, no so os acontecimentos que

    agem traumaticamente, mas sim sua lembrana, emergindo em um momento de

    maturidade sexual do sujeito no qual ele capaz de compreender o sentido dos

    eventos. (Freud, 1987)

    Em 1897, contudo, Freud substitui a teoria da neurtica pela teoria da

    fantasia traumtica e desse modo torna as fantasias e a realidade psquica mais

    importantes para a explicao das neuroses do que o evento traumtico. J no

    intervalo de 1915-1920, a ocorrncia de neuroses traumticas no ps-guerra

    levaram Freud a reconsiderar suas reflexes mais uma vez, dado que essas

    neuroses resultavam de acidentes dolorosos recentes e aparentemente no

    associados de nenhuma maneira aos objetos sexuais. Com a ocorrncia da

    Primeira Guerra Mundial (1914-1918) os debates em torno da origem traumtica

    nas neuroses se intensificam, levando Freud a abordar a etiologia das neuroses de

    uma forma diferente. (Freud, 1976) Os casos atendidos no front de guerra

    indicavam que havia uma fixao no momento do episdio traumtico, ou seja,

    esse episdio se reeditava nos sonhos e ressurgia em ataques histricos os quaistransportavam repetidamente o sujeito para a situao do trauma, como se fosse

    impossvel super-la. Com freqncia, o sintoma se apresentava como uma

    experincia de flashback um reviver quase alucinatrio do acontecimento

    penoso. Nas palavras de Freud,

    como se esses pacientes no tivessem findado com a situao traumtica, como seainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda no executada (...) Assim,

    a neurose poderia equivaler a uma doena traumtica, e apareceria em virtude da

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    incapacidade de lidar com uma experincia cujo tom afetivo fosse excessivamenteintenso.( 1976,p.325)

    Nas neuroses traumticas de guerra o eu defende-se das ameaas externas

    incorporadas a novas formas assumidas pelo prprio eu. H, na verdade, um

    conflito entre o velho eu pacfico do soldado e o novo eu blico e esse conflito se

    torna agudo to logo o eu pacfico compreende que perigo corre ele de perder a

    vida devido temeridade do seu recm-formado e parastico duplo. (idem, 1976,

    p.261) Dessa forma, a precondio para o desenvolvimento de neuroses de guerra,

    segundo Freud, estaria no fato de um indivduo civil ter se tornado integrante de

    um exrcito nacional, algo para o qual ele no estava preparado. Esses indivduos

    sofreriam, assim, de conflitos mentais inconscientes os quais perturbariam suavida emocional, podendo causar doenas. Soldados profissionais e mercenrios,

    por outro lado, no adoeceriam, segundo Freud, da mesma maneira. Para os civis

    transformados em soldados a causa imediata de suas neuroses de guerra seria,

    portanto, uma inclinao inconsciente de afastar-se das exigncias, perigosas e

    ultrajantes para os seus sentimentos, feitas por ele pelo servio ativo. Ou seja,

    Medo de perder a prpria vida, oposio ordem de matar outras pessoas, rebeldiacontra a supresso implacvel da prpria personalidade pelos seus superiores eramestas as mais importantes fontes afetivas das quais se nutria a tendncia para seescapar da guerra. (ibidem, 1976, p. 267)

    Com o estudo das neuroses de guerra h uma mudana significativa no

    estudo do trauma na medida em que a repetio passou a ser compreendida como

    uma forma de elaborao do trauma e o trauma no necessariamente estaria ligado

    a uma experincia infantil de natureza sexual com reflexos na vida adulta do

    sujeito.Sndor Ferenczi, psicanalista contemporneo de Freud, tambm se dedicou

    pesquisa e ao estudo das neuroses de guerra e para ele esse tipo de neurose no

    se distinguiria da histeria de angstia. Em suas observaes de cinqenta

    pacientes afetados ou feridos em guerra, Ferenczi percebeu a repetio de alguns

    sintomas nas neuroses de guerra como distrbios de locomoo, maior

    sensibilidade visual ou auditiva, queimao, dormncia ou coceira na derme, bem

    como alteraes na libido e no sono, sendo esse ltimo caracterizado por sonhosrepetidos sobre as situaes de perigo e dor vividas nas frentes de batalha. (1993)

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    Aqui, o prprio psiquismo elabora para si uma representao capaz de promover

    afeto penoso e esse sintoma seria desenvolvido como forma de cura espontnea.

    Para Ferenczi, a soma de privaes sobre-humanas e a constante tenso do estar

    em guerra so os elementos que desencadeiam a neurose a qual, por sua vez,

    geraria uma leso no eu, i.e, uma ferida ou doena a qual acaba remetendo o

    indivduo a si mesmo, em um movimento chamado narcisismo traumtico. Toda

    neurose de guerra seria uma histeria de angstia porque se caracterizaria por

    freqentes tentativas de deslocamento vinculadas a uma angstia intensa que fora

    o paciente a evitar certos movimentos e a transformar todo o seu modo e vida

    nesse sentido. Como uma criana, esses pacientes, por angstia, regridem e se

    confinam ao leito, tentando retardar com a doena de forma relativamente

    inconsciente sua volta aos campos de batalha. Nas palavras de Ferenczi,

    A personalidade da maioria dos traumatizados corresponde, portanto, de umacriana que, em conseqncia de um susto, ficou angustiada, mimada, sem inibies emalvola. Um elemento que completa perfeitamente esse quadro a importnciadesmedida que a maior parte dos traumatizados atribui alimentao. Quando oservio deixa a desejar, reagem com violentas exploses afetivas, podendo culminarem crises. A maioria deles recusa-se a trabalhar e gostaria de ser cuidada e alimentadacomo crianas. (1993, p.27)

    Ainda, o autor argumentava que esses indivduos teriam - como ganhos

    secundrios da condio de traumatizados, os benefcios materiais decorrentes do

    afastamento por doena como permanecer isento do servio ativo, penso e ou

    indenizaes por perdas e danos, entre outras.71O fato que as observaes de

    Ferenczi ajudaram a afastar o trauma de um tratamento puramente fisiolgico,

    pois at aquele momento os casos traumticos eram classificados com freqncia

    pelos mdicos como doenas orgnicas, a partir da suposio da existncia degraves danos nervosos72. Ferenczi que se prope a defender fortemente a idia

    de que o fator psquico era o principal responsvel por essas ocorrncias73, embora

    71Esse argumento em si bastante controverso e a ele voltaremos em um momento posterior dotrabalho.72Hermann Oppenheim (1858-1919) foi um neurologista alemo que criou a terminologia neurosetraumtica e que atribua a ela um significado absolutamente organicista, tendo assim contribudopara a prevalncia dessa interpretao.73

    Max Nonne (1861-1959)- outro neurologista alemo- tambm reforou a idia de que asneuroses traumticas tinham sua origem no psiquismo. Atravs do uso da hipnose e da sugesto,Nonne conseguiu provar que no havia leso orgnica em pacientes que apresentavam sintomas de

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    Adolf Stmpell neurologista alemo tambm tenha se contraposto aos

    entendimentos organicistas do trauma. (idem) Contudo, embora Stmpell tenha

    contribudo para inverter a equao organismo > psiquismo para psiquismo >

    organismo na interpretao da neurose traumtica, ele acaba desenvolvendo uma

    teoria controversa sobre o trauma ao introduzir a idia de histeria com intenes

    pensionistas. Essa neurose poderia ocorrer, segundo o neurologista, em tempos

    de guerra e de paz e ganhou fundamento a partir das experincias observacionais

    realizadas por ele com indivduos que haviam sofrido graves acidentes

    ferrovirios. De acordo com Stmpell, os indivduos que desenvolviam neuroses

    graves em razo de acidentes ferrovirios eram aqueles que aufeririam algum

    ganho econmico secundrio em decorrncia das leses. (apud Ferenczi, 1993)

    A comparao se fazia com outros indivduos que tinham enfrentado

    traumas to ou ainda mais violentos, mas que no tinham perspectiva antecipada

    de recebimento de indenizaes e no desenvolviam nenhum tipo de neurose. A

    partir da Stmpell concluiu que as neuroses traumticas decorriam do desejo dos

    indivduos de permanecer doentes para obter privilgios e, por isso, ele

    recomendava que as queixas desses pacientes fossem desqualificadas e suas

    penses fossem canceladas, para que os mesmos retornassem ao trabalho. (idem,

    1993) O que contribua para reforar o entendimento desses indivduos como

    simuladores era o fato de que os prisioneiros de guerra observados no

    desenvolviam neuroses traumticas. Isso porque segundo o neurologista - os

    prisioneiros de guerra no tinham nenhum interesse em ficarem doentes por muito

    tempo dado que em pas estrangeiro e em cativeiro o prisioneiro no poderia

    contar com compaixo, indenizao ou penses. (ibidem) Observa-se aqui que

    tanto Ferenczi quanto Stmpell so referncias paradoxais no que concerne ao

    tratamento do trauma, pois ao mesmo tempo em que apresentam contribuiespositivas ao valorizarem a dimenso psquica do trauma, comprometem seus

    estudos com avaliaes controversas sobre a relao dos indivduos com o trauma.

    Apesar dessas contribuies em favor da dimenso psquica das neuroses

    traumticas, a idia de predisposio gentica acatada por Freud permaneceu

    constante na psicanlise e foi retomada por Karl Abraham em sua obra

    Contribution la psychanalyse des nvroses de guerrede 1918. Esse autor, no

    neurose traumtica, podendo esses sintomas aparecer e desaparecer instantaneamente o quecorroborava sua natureza psquica.

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    entanto, apresentou outro fator desencadeador de patologias neurticas o

    narcisismo. Em um ambiente de guerra o indivduo teoricamente abriria mo de

    seus privilgios narcsicos em favor do bem da nao. A situao do ambiente de

    guerra bastante complexa dado que confronta os indivduos com exigncias as

    quais eles no esto necessariamente preparados psicologicamente para enfrentar,

    pois alm de demandar dos indivduos que se disponham a suportar perigos e o

    risco da morte, ela tambm convoca os soldados a matar. Essas imposies da

    guerra, para Abraham, abalariam o psiquismo dos soldados com disposio

    narcsica e passiva74ao serem forados a assumir uma postura agressiva de com-

    bate. (1918) O efeito freqente do trauma sobre a sexualidade desses indivduos

    desencadearia uma modificao regressiva ao narcisismo, para o qual o convvio

    com uma comunidade quase exclusivamente masculina tambm contribuiria para

    desestabilizar a sexualidade desses indivduos. Abraham, assim, no s retoma a

    idia de predisposio gentica como tambm recupera a questo da sexualidade

    na anlise do trauma, agora aplicada ao estudo do trauma de guerra.

    Comparando casos de soldados sem ferimentos fsicos e que apresentavam

    neurose grave decorrente do enfrentamento de situaes de perigo em combate

    com outros sem danos psicolgicos ou fsicos significativos, Abraham concluiu

    que havia uma predisposio passiva que demonstrava uma fixao parcial da

    libido na fase narcsica do desenvolvimento. Por isso, soldados com essa

    predisposio seriam pessoas de pouca iniciativa, de baixa atividade sexual e com

    dificuldades de cumprir as obrigaes da vida prtica. Para Abraham, portanto, o

    trauma apenas um dos fatores que desencadeiam as neuroses de guerra e que -

    ao se apresentar - pode ocasionar delrios com contedo sexual manifesto como

    sndromes paranides de cimes e perseguio homossexual de outros soldados.

    (Abraham, 1918) Essa contribuio se nos apresenta como bastante problemticauma vez que associa o passivo ao feminino reificando interpretaes

    marcadamente hierarquizantes em gnero e inferiorizadoras.

    Ernst Simmel, ao tratar casos de neurose de guerra durante a Segunda

    Guerra Mundial constatou que a sintomatologia das neuroses continuava a mesma

    daquela apresentada durante a Primeira Guerra, malgrado os avanos tecnolgicos

    ocorridos entre ambas. Para esse mdico do exrcito alemo, as neuroses de-

    74Para Abraham, o passivo se relaciona ao feminino e o ativo ao masculino.

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    senvolvidas pelos soldados estavam relacionadas s dificuldades que suportavam

    em se deslocar do seu eu da paz para o eu da guerra, por conta das demandas

    do ambiente conflituoso. (apud Alexander, 1958) Os conflitos mentais entre os

    impulsos do eu e o cenrio conturbado de guerra poderiam provocar a

    deteriorao do eu, levando-o a perder a segurana que ele depositava at ento na

    civilizao. Embora Simmel em geral no trate de forma diferente as neuroses de

    guerra das neuroses de paz uma vez que o eu busca em todos os conflitos

    sempre se auto-preservar ele aponta um trao caracterstico e especfico

    neurose de guerra ao observar que nela o indivduo teme um inimigo interior, i.e,

    o eu de guerra. Em outras palavras, na neurose de guerra a luta entre o indivduo e

    o nacional se transforma em uma luta interna do eu para preservar sua prpria

    integridade psquica. (idem)

    A angstia neurtica decorrente do medo da morte leva o eu da guerra a

    terminar por adotar mecanismos mentais que o defendam e preservem sua

    coerncia interna. Simmel observou que em grande parte dos casos os soldados

    adoeciam em decorrncia do acmulo de experincias traumticas e no em

    decorrncia de apenas um nico ataque catastrfico, e que o colapso mental do

    soldado resultava do esgotamento fsico e mental. O diferencial analtico de

    Simmel est, no entanto, em considerar que o soldado um eu que sofreu uma

    alterao significativa decorrente do treinamento militar e que, atravs de um

    processo educativo de disciplina, capacitou o soldado a funcionar como parte de

    uma unidade militar levando-o a obedecer cegamente ordens superiores sem que

    isso lhe cause angstia. Para Simmel, contudo, os efeitos psicolgicos desse

    treinamento nem sempre contribuiriam para ajudar o soldado a lidar com estados

    mentais contraditrios i.e, ao mesmo tempo sociais e anti-sociais como a

    camaradagem entre os parceiros de corporao e a agressividade no combate aoinimigo. Ainda, embora o treinamento militar fosse capaz de afastar tem-

    porariamente o medo da morte, ele no eliminaria completamente a possibilidade

    de o soldado desenvolver sintomas que lhe permitissem sentir segurana e de

    assim se refugiar da realidade insuportvel por ele vivenciada nos campos de

    batalha. Esse seria um ganho secundrio da neurose. (ibidem)

    Com o decorrer do tempo, Freud ainda desenvolveu novas reflexes sobre o

    trauma. Em Moiss e o Monotesmo de 1939 ele detecta efeitos no s positivosno trauma, mas tambm negativos. (1939) Os efeitos positivos at ento apon-

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    tados por ele eram o da fixao e da compulso repetio como tentativas do

    sujeito de tentar assimilar o fluxo intenso de emoes ao seu psiquismo. As

    repeties se fariam via narrativas insistentes pelas quais o indivduo buscaria

    tornar reais determinadas experincias traumticas e o trauma seria assimilado ao

    eu na medida em que sua origem histrica permanecesse esquecida (ou seja, o

    primeiro momento). Por outro lado, os efeitos negativos seriam a negao, com a

    no recordao ou a no repetio do trauma esquecido. Nesse caso, o indivduo

    desenvolveria reaes defensivas que poderiam desembocar em inibies e at em

    fobias. 75

    J na obra Reflexes para os Tempos de Guerra, escrita em 1915, Freud

    mostrava como o homem pulsionalmente destrutivo com base nos modos de

    vida de povos primitivos os quais matavam por gosto e o faziam com

    naturalidade. Os tempos de guerra, ento, representariam para ele momentos em

    que os laos civilizatrios que funcionavam como freio pulso de destruio

    humana se enfraqueceriam, abrindo espao para que a distino entre civis e

    militares, o respeito propriedade privada e os direitos dos feridos ao atendimento

    mdico fossem ignorados. (Freud, 1974, p.315) Nessa mesma obra, Freud ar-

    gumenta que o medo da morte resulta de um sentimento de culpa: Nosso

    inconsciente to inacessvel idia de nossa prpria morte, to inclinado ao

    assassinato em relao a estranhos, to dividido (isto , ambivalente) em relao

    aos que amamos, como era o homem primevo. (idem, p.338)

    Em 1932, Freud, em troca de correspondncias com Albert Einstein, busca

    responder indagao desse ltimo sobre o que poderia ser feito para proteger a

    sociedade de ameaas de guerra e em sua resposta o autor associa a violncia

    agressividade pulsional. Em outras palavras, para Freud, embora os homens

    desenvolvam argumentos racionais para justificar perante sua conscincia aprtica da destruio, o motivo para os mesmos se lanarem s guerras seria sua

    inclinao pulsional agresso e destruio. A violncia poderia at ser

    derrotada pela unio de diversos indivduos fracos atravs da constituio de leis,

    75A tendncia das pessoas traumatizadas de repetir em seus sonhos experincias traumticas levouFreud a rever suas concepes sobre o principio do prazer como elemento orientador docomportamento humano. A pulso de morte surge, ento, como o fator que se coloca para alm doprazer e em contraposio a ele. Na obraBeyond the Pleasure PrincipleFreud desenvolve a idiade existncia de um escudo protetor ou uma barreira de estmulos em relao ao mundo externo

    o qual representaria uma forma de defesa contra eventos tidos como ameaas de destruio daorganizao psquica interna. (Freud, apud Leys, p.23)

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    mas essa nova forma de poder para Freud tambm era uma forma de violncia que

    est pronta para se voltar contra qualquer indivduo que se oponha a ela; ou seja,

    funciona a partir dos mesmos mtodos e persegue os mesmo objetivos que a

    violncia estabelecida pela fora superior de um s indivduo. No entanto, Freud

    argumenta que a postura de rebelio dos seres humanos contra as guerras tambm

    decorre de motivos orgnicos bsicos, sendo todos forados a serem pacificistas,

    mesmo que no saibam justificar essa maneira de agir. (ibidem, p.247)

    Antes que nos disponhamos a criticar as consideraes de Freud ainda nos

    cabe mencionar outros importantes desdobramentos dos estudos psicanalticos

    sobre o trauma. William Sargant foi um dos mais proeminentes psiquiatras

    ingleses a atender pacientes de traumas de guerra agudos ao longo da Segunda

    Guerra Mundial. Em seus atendimentos na emergncia de um hospital nos

    arredores de Londres, Sargant observou que os medicamentos utilizados para

    sedar os pacientes produziam duas conseqncias: a primeira era a recuperao

    das atividades motoras e de fala que haviam se perdido durante a fase do choque e

    a segunda era a recuperao das memrias dos eventos terrveis que haviam

    causado o trauma e que haviam sido suprimidas. Ao recuperar essas memrias os

    pacientes liberavam grande descarga emocional e, ao final, apresentavam segun-

    do o psiquiatra significativa melhora. (1967)

    O uso de drogas intravenosas, como barbitricos e sdio amital, permitiu a

    Sargant - que assumia uma postura claramente oposta via psicanaltica para o

    tratamento ou cura do trauma redescobrir o mtodo da ab-reao76ou catarse, j

    desenvolvido por Breuer e Freud nos anos 1890 ao tratarem a histeria, reforando

    a idia de que a via medicamentosa era mais rpida para o tratamento de neuroses

    traumticas do que a hipnose. Nesse perodo, como veremos logo em seguida, foi

    uma postura comum aos governos do ps Segunda Guerra Mundial apenasdiagnosticar como traumatizado os indivduos que apresentassem predisposio

    gentica anterior para reduzir o pagamento das penses e indenizaes e

    investir em medicamentos para o tratamento das neuroses traumticas, dados os

    reputados resultados mais rpidos e, portanto, menos custosos.

    76Ab-reao o termo usado na psicanlise para referir-se descarga emocional pela qual um

    indivduo se libera do afeto associado recordao de um evento traumtico. Essa descarga seriaresponsvel pela cura ou o fim dos efeitos patognicos dessas lembranas. (Laplanche ePontialis,1991)

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    Enquanto Sargant ajudou a reforar o uso de medicamentos como forma de

    tratamento do trauma, Abraham Kardiner em 1941 contribuiu para biologizar a

    resposta traumtica, ao desenvolver o termo fisioneurose a partir do qual ele

    conferiu uma caracterstica somtica s reaes traumticas. Em outras palavras,

    (c)haracterizing repetitive traumatic dreams as forms of memory disturbance typical oftraumatic neurosis, Kardiner described such dreams in ways that suggested they werealmost cinematic replays of the traumatic origin, devoid of fantasy or symbolicmeaning. (Leys, 2000, p.194)

    De fato, em sua obra The Traumatic Neuroses of War (1941), Kardiner

    avaliou negativamente a ab-reao hipntica como forma de tratamento

    teraputico aplicada durante a Segunda Guerra Mundial, pois acreditava que amesma s funcionava em casos agudos, sendo que mesmo nesses casos nenhum

    benefcio permanente poderia decorrer apenas da ab-reao, pois para ele ela

    deveria ser acompanhada de medidas analticas fornecidas ao paciente para que

    ele pudesse entender as relaes existentes entre o trauma e seus prprios

    mecanismos defensivos77. Ou seja, Kardiner acreditava que o principal objetivo da

    terapia era reeducar78o paciente, pois at a recuperao de um estado de amnsia

    deveria ser subordinado finalidade de adaptao do paciente ao mundo externo.

    (1941)

    Desses experimentos e concluses surgiram perguntas sobre como e se a ab-

    reao promovia cura do trauma as quais dividiram psicanalistas e psiquiatras

    daquele perodo. Para Roy Gringer e John Spiegel os barbitricos eram usados

    como forma de promoo de re-conexes emocionais com as cenas traumticas.

    Em casos mais difceis, os terapeutas desenvolviam performances hipnticas,

    imitando vrios papis de modo a ajudar o paciente sob efeito de narcticos a re-

    experimentar o evento traumtico em sua intensidade emocional original. (1945)

    Para esses terapeutas, contudo, o mais importante era que o paciente retivesse e

    integrasse a memria do evento reconectado mesmo depois que os efeitos das

    77 Observa-se aqui a possibilidade de interferncia do mdico ou terapeuta na interpretao dotrauma. No prximos captulo, quando tratarmos da medicalizao, apontaremos as implicaesdessa interferncia em termos de controle social.78

    No captulo 6 veremos como essa preocupao de reeducao na interpretao dos sentimentos edo trauma continua presente nos programas de psicoterapia social desenvolvidos pela OMS quantos situaes traumticas e de grande stress.

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    drogas79cessassem. Gringer e Spiegel desenvolveram a abordagem teraputica da

    narco-anlise e reforaram a centralidade da re-sntese mental em sua concepo

    de cura, embora reconhecessem que a reintegrao psquica no era uma tarefa

    fcil de se promover. Para eles, no entanto, a ab-reao no era um processo

    mecnico de liberao de emoes recalcadas, mas uma prtica confessional e

    interpretativa na qual o mdico/terapeuta exerceria um papel central80, pois a ele

    caberia a funo de manipular o processo de transferncia de modo a estimular o

    paciente a participar da cura remetendo-o memria e narrativa. (1945)

    Sargant, por outro lado, se posicionava de forma dbia em relao ao papel

    do terapeuta no que concerne ab-reao, pois s vezes reconhecia que a

    restaurao da memria e a narrativa do evento traumtico poderiam ser

    benficas. No entanto, ele reputava o uso dos barbitricos para sedar os pacientes

    um elemento fundamental e o consentimento do paciente quanto ao uso dos

    medicamentos no era entendido por ele como semelhante ao do paciente que

    concorda em colaborar com a prpria cura, mas sim ao de um paciente que

    concorda com uma cirurgia. ( idem)

    Victor Horsley na obra Narcoanalysis de 1943 apresenta o mtodo

    narcoanaltico em termos bioqumicos, ao promover a neurose profunda de um

    indivduo de modo a facilitar o conhecimento do mdico sobre o caso. Assim,

    para Horsley

    It was an aid in obtaining data from the patient as quickly and efficiently as possible inemergency conditions where rapid decisions were essential. Although he admitted thatthe drug-analytic method helped restore amnesias and relieve symptoms, Horsleydefined it as essentially a crude and primitive diagnostic measure that could be used byany inexperienced medical officer as an emergency measure in the field. (Horsley apudLeys, 2000, p.198)

    No entanto, Horsley tambm apresentava a narcoanlise como um tratamento

    sofisticado segundo o qual psicoterapeutas experientes buscariam trazer as causas

    escondidas ou reprimidas da doena para a conscincia do paciente. Horsley

    reputava a si mesmo a originalidade de ter combinado a abordagem qumica aos

    79 Como veremos tambm na segunda parte do prximo captulo, parte do processo demedicalizao se faz atravs do uso dos medicamentos como formas mais rpidas e para muitos mais eficazes de soluo de problemas psquicos.80

    Novamente, temos uma proposio que coloca o mdico em uma posio central quanto aoprocesso de interpretao do evento traumtico e na conexo entre as emoes do paciente e suasemoes e sentimentos.

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    conceitos psicodinmicos de conflito, represso e amnsia. Em seu ponto de vista,

    todas as fases da narcoanlise seriam importantes, no s a fase da anlise na qual

    o paciente seria questionado sob a influncia de medicamentos, mas tambm a

    fase de sntese, na qual procurava- se alcanar a reintegrao psquica do paciente

    a sua plena conscincia. Apesar de enfatizar a dimenso analtica do tratamento do

    trauma, Hoersley observava que a principal vantagem da ab-reao medicamen--

    tosa era a de no demandar especializao especfica ou experincia em tcnicas

    de anlise e hipnose81. (Hoersley, 1943)

    A interpretao cirrgica da ab-reao feita por Sargant reforou uma nfase

    crescente na centralidade da descarga emocional para o sucesso do mtodo por ele

    desenvolvido e dependente de medicamentos. Drogas como o ter seriam teis na

    medida em que eram baratas, rpidas e prticas para uso em condies de servio

    e seu uso, segundo Sargant, ajudaria a resolver o problema das suspeitas de

    simulao das catarses observadas em tratamentos hipnticos com pacientes no

    submetidos a efeitos de medicamentos. Nesse sentido, drogas como o ter

    ajudariam a imergir o paciente em seu papel o qual ficaria preso em sua

    performance na cena traumtica que foi trazida ao presente, permitindo que ele

    atuasse de forma emotiva na cena como se a mesma estivesse ocorrendo

    novamente. Sargant enfatizava a necessidade do mdico de penetrar na atuao da

    cena traumtica de modo a ajudar o paciente a conduz- la de forma correta.

    (1940) Em 1944 Sargant passa a entender que o excitamento emocional

    promovido pelos medicamentos na ab-reao era mais crucial do que a

    recuperao da memria do evento traumtico. Nesse sentido, Sargant acreditava

    que a forte descarga emocional era to importante que simplesmente no

    importava se a cena recuperada era fictcia ou sugerida, pois a cura decorreria da

    re-experimentao emocional do evento.

    In fact -(...) Sargant claimed that if the reliving of an actual incident did not bringabout relief, invented situations could be successfully employed to cure the patient:one can use fantasy to create excitement, invent false situations or distortions ofactual events when the uncovering of a true amnesia or the reliving of an actualexperience has not brought about sufficient emotional release to disrupt a deeplyingrained neurotic pattern.() In short, Sargant claimed that the abreaction of false

    81 Nessa perspectiva, os medicamentos novamente so tomados como uma via mais prtica,

    sobretudo em situaes de conflito, onde os atendimentos se fazem em carter de emergncia. aemergncia imposta pelo conflito que torna a psicologia e a psicanlise contraproducentes pordemandarem um tempo de tratamento do qual com freqncia no se dispe.

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    memories might be more effective than the abreaction of actual memories inachieving therapeutic success.(Leys, 2000, p.203)

    As consideraes de Sargant nesse sentido representaram uma grande

    controvrsia para os estudos do trauma at ento, dado que o entendimento das

    repeties traumticas como representaes verdicas do evento original era o

    pressuposto das ab-reaes para os mdicos e terapeutas at ento. Tanto era

    assim que Kardiner apresentava os pesadelos traumticos como virtualmente

    exatos ou re-apresentaes cinemticas do passado. Dentro da histria da

    mneumotcnica, Kardiner retomado de forma a contribuir para o entendimento

    de que o trauma envolveria o registro literal do evento traumtico em uma

    memria traumtica especfica que jamais poderia ser trazida lembrana ou

    auto-representao82.

    No entanto, no h consenso em torno dessa idia de literalidade da

    memria traumtica. Isso porque os significados dos pesadelos traumticos no

    so to simples e transparentes como Kardiner sugeria. Por outro lado, para os

    defensores da catarse medicamentosa, os medicamentos eram a garantia contra o

    problema da simulao e da falsificao das memrias, sendo mesmo entendidas

    como um soro da verdade, ou seja, uma forma eficiente para se distinguir entre a

    verdade e a mentira. Os opositores dessa perspectiva, por sua vez, avaliavam que

    as informaes obtidas via narcoanlise eram ambguas e de validade duvidosa

    para serem utilizadas como evidncia legal, por exemplo. Essas dvidas sobre

    esse tipo de informao ainda pairam sobre a literatura do trauma at os presentes

    dias, sobretudo porque muito dos estudos sobre stress ps traumtico se baseiam

    na busca de preciso histrica e literalidade das repeties traumticas. (Kolb,

    1988)Uma nova tentativa de estudar o trauma em termos fisiolgicos e corporais foi

    realizada ainda por Sargant em 1944, aps a leitura da obra Conditioned Reflexes

    and Psychiatry de Ivan Pavlov. Reforando sua abordagem anti-freudiana do

    trauma, Sargant estende os argumentos de Pavlov desenvolvidos sobre estudos

    relativos a ces para os humanos de modo a argumentar que as amnsias, parlises

    e outros sintomas histricos de neuroses de guerra agudas eram exemplos de

    82Sobre essa questo da representao, trataremos mais adiante.

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    estados pavlovianos de excitao e inibio do crtex cerebral, ou seja, estados

    nos quais os reflexos condicionados normais encontravam-se abolidos e

    substitudos por reflexos patolgicos. (1940) As drogas serviriam, ento, para

    liberar fortes descargas emocionais as quais seriam capazes de destruir os reflexos

    patolgicos e promover a cura do paciente. A ab-reao seria, assim, um estado

    artificialmente criado de excitao do crebro que repetiria o choque traumtico

    de modo a quebrar os reflexos patolgicos condicionados e a restaurar a

    normalidade. Nesse sentido, o choque era curado pelo choque atravs de um

    processo de descondicionamento iniciado pelo uso de medicamentos. (Sargant &

    Slater, 1944) Em outras palavras, novamente se estabelece um modelo que

    entende a cura do trauma em termos puramente mecnicos, na medida em que

    refora a crena de que a cura decorreria simplesmente da liberao automtica de

    emoes dissociadas ou reprimidas. Ainda, esse modelo retoma a idia da

    irrelevncia do paciente no prprio processo de cura, uma vez que o paciente fica

    totalmente submisso ao mdico e aos medicamentos.

    Uma dimenso importante das proposies de Sargant a considerao de

    que a ab-reao em termos pavlovianos seria capaz de limpar a mente do paciente

    das memrias traumticas, pois ela eliminaria das camadas corticais do crebro

    hbitos passados ali instalados. Nesse sentido, suas formulaes no s contrariam

    as observaes de outros mdicos e terapeutas renomados ( que afirmavam que o

    combate deixava uma impresso duradoura na mente humana a qual a

    transformaria de forma radical) - como tambm propunha uma teraputica que

    investia no esquecimento e no na lembrana83.

    O tema do esquecimento, por outro lado, no s apresenta obstculos para as

    terapias at ento desenvolvidas com base em estmulos medicamentosos como

    invoca questionamentos ao prprio processo de ab-reao como um mecanismocapaz de promover a cura de pacientes de neuroses traumticas. No que tange o

    processo de ab-reao medicamentosa, o problema era o de que ao final dos

    efeitos do medicamento, corria-se o risco de que o paciente no retivesse na

    conscincia a lembrana do que ele havia acabado de recobrar em sua memria.

    As solues para essa questo foram diversas: para os mdicos voltados para o

    uso da psicanlise, a sada era sugerir ao paciente ao final da hipnose que ele se

    83Essa uma proposio interessante e que representa um contraponto tica da memria queenvolve o tratamento do trauma na poltica contempornea.

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    lembrasse de tudo assim que a hipnose terminasse; para os voltados para as

    solues medicamentosas, as sadas variavam desde o uso de novos sedativos para

    tornar mais lenta a retomada da conscincia, o reforo do esquecimento como algo

    eficaz ou o uso de Coramine, um estimulante ministrado logo aps o fim da ab-

    reao para garantir uma rpida reviso da lembrana recuperada dos eventos.

    (Fabing,1947) No entanto, os resultados do uso dessas solues foram bastante

    irregulares e muitas vezes ineficazes.

    Quanto ab-reao enquanto mtodo de promoo da cura das neuroses

    traumticas, as avaliaes gerais indicam que se curas foram promovidas elas no

    decorreram pura e simplesmente do uso de medicamentos como forma de

    promoo. Ainda, por conta das prprias condies das guerras o levantamento de

    dados estatsticos sobre esse tema ficou bastante fragmentado e falho, alm do

    fato de que mesmo depois dos tratamentos muitos pacientes ainda apresentavam

    sensibilidades sonoras ou auditivas que os tornavam inabilitados para retomar o

    servio militar. Diante dessas constataes, os tratamentos das neuroses

    traumticas passaram a dividir espao com prticas preventivas, desenvolvidas em

    primeiro plano pelos ingleses com resgate de lies aprendidas ainda durante a I

    Guerra Mundial.

    Segundo Ruth Leys, um dos resultados do desenvolvimento de mtodos

    preventivos foi a normalizao das neuroses de guerra. Essas medidas

    preventivas implicavam no envio de psiquiatras para os cenrios de guerra e os

    mesmos eram orientados a tomar os sintomas que seriam entendidos como

    anormais para os cidados em vida civil como normais em tempos de stress de

    batalha84. Dessa forma, criou-se a chamada reao normal de batalha e ela

    passou a ser tomada como referncia em relao a qual as respostas patolgicas

    deveriam ser medidas ou avaliadas. Nesse sentido, a maioria das reaes debatalha era considerada transitria e reversvel se tratada em atendimentos de

    primeiros socorros e de maneira firme.(2000)

    Above all, physicians must avoid the mistake of evacuating soldiers with normalbattle stress to a hospital in the rear, for this allowed the symptoms to be associated

    with the gain of being removed from combat and hence to become elaborated andfixed. (Leyz, 2000, p. 220)

    84

    Essa outra faceta importante do processo de medicalizao que ser tratado na segunda partedo prximo captulo, em meio s discusses sobre a classificao mdica de comportamentosnormais e comportamentos desviantes.

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    A partir dessa nova proposta, at mesmo os mtodos baseados em ab-

    reaes medicamentosas foram colocados em segundo plano e o tratamento

    psiquitrico em campos de batalha passou a se resumir ao fornecimento dedescanso, comida quente, banhos, sedativos, exortao do moral e sugesto. Os

    medicamentos passaram a ser interpretados como um risco de transformar o

    soldado em um paciente confinado em uma cama de hospital, um resultado pouco

    produtivo e custoso. Os casos mais graves eram tratados em centros hospitalares

    com base em ab-reaes medicamentosas. No entanto, verificou-se que poucos

    eram os soldados que tratados dessa forma se sentiam capazes de retornar aos

    campos de batalha e suas reaes emocionais eram consideradas excessivas. Esses

    resultados indicavam, portanto, a existncia de claras dvidas sobre a capacidade

    de promoo de cura das ab-reaes em geral.

    Albert Glass, um defensor da psiquiatria preventiva afirmava que os

    princpios da preveno eram o atendimento imediato, a proximidade e a

    expectativa, ou seja, o soldado devia ser tratado o mais imediatamente possvel, o

    mais prximo possvel de sua unidade e segundo a expectativa de que o soldado

    responderia favoravelmente ao tratamento e retornaria ao campo de batalha. Essas

    diretrizes tambm refletiam no psiquiatra uma vez que a preveno significava

    que ele deveria colocar o bem estar do grupo/exrcito acima do bem estar do

    indivduo, em reconhecimento de uma obrigao maior de defesa contra o

    inimigo. (1954)

    Para Glass, diferentemente do que ocorreu nas I e II Guerras Mundiais, o

    psiquiatra deveria estar imerso no cenrio de guerra para que ele pudesse avaliar

    melhor a conduo dos tratamentos e as peculiaridades do cenrio. No entanto, o

    maior valor da psiquiatria oferecida in loco seria o de que a experincia de

    combate endureceria o terapeuta e reafirmaria seu dever de ajudar o soldado a

    voltar para a guerra. Por essa razo, Glass rechaava o procedimento de

    encenaes nos processos de ab-reao porque eles demandavam que o terapeuta

    integrasse a performance dramtica o que o encorajaria a se identificar com o

    sofrimento do soldado. Ele ia ainda mais alm, pois se opunha s anlises mais

    profundas que inclussem a recuperao de memrias reprimidas para favorecer

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    mtodos mais autoritrios que constrangessem os pacientes a esquecer as

    experincias traumticas. Dessa forma,

    (...) it became clear that the goal of the treatment for the purpose of return to combat

    duty was the restoration of previous defenses instead of attempts to alter orreorganize the personality.() (F)or Glass, good suggestion was to be used to counterbad suggestion by inducing the patient to erase or forget his sorrows. (idem, p.222)

    A psiquiatria preventiva foi adotada durante as guerras da Coria e do

    Vietn e em ambos os casos estudos de longo prazo demonstraram que muitos de

    seus veteranos tratados durante as guerras ainda apresentavam sintomas de

    neuroses traumticas mesmo quinze ou vinte anos depois dos eventos que lhes

    deram origem. Esses estudos se desenvolveram no final da dcada de 50 e aolongo da dcada de 60 e foram acompanhados de outros os quais comearam a

    trabalhar em sintomas retardados e crnicos a partir da analise da sndrome dos

    campos de concentrao.

    O tratamento psiquitrico dos sobreviventes dos campos foi iniciado apenas

    na primeira metade dos anos 1950 e como resultado dos esforos de retribuio

    internacional da Repblica Federal da Alemanha. Segundo Wulf Kansteiner,

    poucos foram aqueles que se preocuparam com as experincias ou as angstias

    dos sobreviventes. Mesmo depois do comeo do pagamento das indenizaes em

    1953, os sobreviventes enfrentaram uma burocracia alem pouco emptica e

    recalcitrante, que permitia que os arquivos dos requerentes dos pedidos de

    indenizao fossem acessados pelos mesmos mdicos que os haviam torturado

    nos campos poucos anos atrs. Como observa Kansteiner,

    (...) the tendency of the courts and their experts to assume a direct causal link between

    physical and psychological damages proved even more detrimental. Like the Germanpsychiatric establishment during and after the First World War, their successors triedto protect the coffers of the state by adhering to an extremely narrow definition ofpsychological trauma. In their opinion the conditions in the camps caused long-termpsychological damages only for the relatively few survivors who had suffered seriousneurological damage or had already been prone to psychological complications beforetheir imprisonment. (2004, p.99)

    Essa postura da burocracia alem no imediato ps - guerra ainda refletia as

    dificuldades desse Estado de se desapegar da racionalidade do mal, ou seja, da

    racionalidade inimiga da moralidade e inibidora de sentimentos de vergonha earrependimento pelo genocdio promovido contra os judeus e ciganos. Mais do

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    que isso: ela representava as dificuldades da burocracia alem de superar a busca

    em argumentos fisiolgicos85 para o estabelecimento ou implantao de suas

    racionalidades86.

    O desenvolvimento da perspectiva da psiquiatria preventiva acabou

    provocando um profundo questionamento do papel do psiquiatra e seu

    compromisso para com os pacientes no meio militar. Durante a Guerra do Vietn

    desenvolveu-se uma concepo generalizada de que a psiquiatria preventiva

    acabava tornando o trauma um problema crnico pelo fato de ela implicar a

    desconsiderao das necessidades e experincias subjetivas dos indivduos,

    sobretudo no que concerne aos efeitos retardados e o papel do ambiente externo

    na construo do trauma87.

    Foram preocupaes norte-americanas com seus soldados na Guerra do

    Vietn que contriburam para o desenvolvimento do conceito de stress ps-

    traumtico e promoveram novos questionamentos sobre o trauma e os seus modos

    de tratamento. A codificao do stress ps-traumtico ocorreu em 1980 com a

    insero da seguinte definio no Diagnostic and Statistical Manual of Mental

    Disorder da Associao Psiquitrica Americana:

    The essential feature of Postraumatic Stress Disorder is the development ofcharacteristic symptoms following exposure to an extreme traumatic stressorinvolving direct personal experience of an event that involves actual or threateneddeath or serious injury, or other threat to ones physical integrity; or witnessing anevent that involves death, injury, or a threat to the physical integrity of anotherperson; or learning about unexpected or violent death, serious harm, or threat of

    85 Nesse contexto, o desenvolvimento de discursos medicalizantes adquire tonalidades mais fortesno que concerne ao tratamento do indivduo objeto da medicalizao como inferior. Essesargumentos atendiam a determinados interesses polticos e serviram, como sabemos, para aconstruo de justificativas de medidas de eliminao da populao judaica e cigana naquele

    perodo.86 Como observa Zigmund Bauman, a linguagem desenvolvida por Hitler era carregada deimagens de doena, infeco, putrefao, pestilncia. (1989) O cristianismo e o bolchevismo eramcomparados a doenas como a sfilis ou a peste e os judeus eram caracterizados como vermes.Himmler em 1942 afirmou que a batalha na qual a burocracia alem estava inserida era semelhantea que havia sido travada por Louis Pasteur e Robert Koch no sculo XIX. Em um artigo de 1941Goebbels saudou a adoo da estrela de Davi como smbolo para marcar os judeus como umamedida higinica profiltica. Para Goebbels, isolar os judeus de uma comunidade racialmentepura era regra elementar de higiene, racial, nacional e social. Ainda, como observa Bauman,Havia pessoas boas e pessoas ms, argumentava Goebbels, assim como h bons e maus animais.O fato de que o judeu ainda vive entre ns no significa que ele pertence ao meio, assim comouma mosca no vira animal domstico pelo fato de viver na casa.(Goebbels apud Bauman, p.94,1989) (...) A questo judaica, nas palavras do assessor de imprensa do Ministrio do Exterior, era

    eine Frage der politischen Hygiene [uma questo de higiene poltica] (Bauman, idem)87Essa uma dimenso que pretendemos enfatizar na prxima seo do presente captulo.

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    death or injury experienced by a family member or other close associate. (AmericanPsychiatric Association, 200, p.463)

    Como observa Wulf Kansteiner, h boas razes para se questionar a

    definio psiquitrica do trauma. Em primeiro lugar, a Associao Psiquitrica

    Americana no uma instituio isenta e by administering the flow of patients

    and experts and constructing a compelling, efficient, and affordable description of

    the populations mental health, the organization exerts control over a significant

    cultural and economic infrastructure. (2004, p.102)

    Ainda, () the APA classificatory scheme for mental disorders appears

    highly arbitrary and open to a wide range of alternative explanations and

    emplotments. (Young, 1995, p.96) Em outras palavras, a crtica dos autores est

    no fato de que a definio do stress ps- traumtico restrita ao considerar que as

    vtimas sobreviventes de tortura, combate, estupro, aprisionamento e genocdio

    so grupos apenas tendentes ao desenvolvimento dos sintomas decorrentes do

    trauma. Para eles, the strategic deployment of medical, psychiatric, legal and

    theoretical expertise often contradicts and competes with the interests of trauma

    survivors and their families who can find support and retribution only after their

    claims have been legitimized by experts88. (Kansteiner, 2004, p.102)

    Vale lembrar que a definio do stress ps-traumtico tem sido controversa

    desde sua criao. Inicialmente, ela sustentava que o stress representava uma

    reao humana normal a eventos estressantes extraordinrios os quais causariam

    problemas mentais a quase todos os que a eles fossem expostos. No entanto, esse

    pressuposto acabou sendo abandonado com o tempo e por duas razes: em

    primeiro lugar, grupos especficos de indivduos que experimentaram traumas

    severos no apresentaram sintomas de stress ps-traumtico mesmo depois de

    muitos anos89; e em segundo lugar, muitos indivduos que no contavam com

    fatoresobjetivos para o desenvolvimento de problemas mentais severos passaram

    a sofrer de SPT90. Como conseqncia, muitos pesquisadores do trauma acabaram

    abandonando a busca por critrios objetivos que possam definir os eventos

    88Um das mais fortes implicaes da medicalizao, como veremos, o controle exercido pelosprofissionais da sade no que concerne ao estabelecimento de diagnsticos e confirmao ou node doenas.89

    Os sintomas listados no manual incluem medo intenso, re-experincia persistente do eventotraumtico, apatia, isolamento social. (APA, 2000)90Usaremos a abreviao SPT para o stress ps- traumtico daqui em diante.

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    traumticos e passaram a se concentrar em fatores subjetivos que possam

    desempenhar um importante papel no desenvolvimento do SPT.

    Em uma avaliao geral, observamos que o desenvolvimento de reflexes

    psicanalticas representou um ponto importante nos esforos de discernimento da

    relao organismo x psiquismo na composio do trauma, sobretudo quando

    contriburam para minimizar as explicaes puramente fisiolgicas e abriram

    espao para a dimenso psquica em suas explicaes para os sintomas das

    neuroses dele decorrentes. Contudo, conforme pontuamos ao longo do texto,

    embora elas tenham colaborado significativamente para enfraquecer

    interpretaes que colocam em oposio o corpo e a mente ou que consideram

    dimenses puramente fisiolgicas, suas contribuies - no que concerne aos

    traumas decorrentes de conflitos, sobretudo - foram, como observamos, repe-

    tidamente ofuscadas por interpretaes e propostas de tratamento que

    medicalizavam o problema de diversas maneiras. Essas interpretaes no s

    colocavam os mdicos em condio privilegiada na definio dos diagnsticos (ou

    seja, na definio do que normal ou no) como enfatizavam com freqncia a

    utilidade dos medicamentos como vias teraputicas mais rpidas para auxiliar o

    indivduo traumatizado a superar suas experincias de sofrimento.

    Ainda, importante salientarmos que tanto psiclogos quanto psiquiatras

    concentraram seus esforos no entendimento dos fatores causadores dos sintomas

    decorrentes do trauma a partir de dentro, ou seja, do indivduo e de sua capacidade

    de integrao e superao de experincias violentas. Nenhum dos dois campos de

    estudos, no entanto, realmente voltou ateno para a dimenso externa ao

    indivduo nesses cenrios e para os contextos culturais nos quais eles estavam

    inseridos. No caso do envio dos psiquiatras para os cenrios de guerra, embora

    eles tenham sido inseridos no prprio contexto de violncia, a atuao dosmesmos foi pautada pelas diretrizes e interesses polticos de seus pases naqueles

    perodos e em relao queles conflitos, sem uma real preocupao com os

    indivduos vitimados. O que poderia ter ajudado a produzir uma compreenso

    mais holstica do processo de composio do trauma terminou por comprometer

    ainda mais o desenvolvimento do entendimento dos fatores sociais que ajudam a

    construir o trauma e os seus sintomas.

    Por outro lado, como observamos mais acima, os estudos revisionistas sobreo trauma - decorrentes dos trabalhos de pesquisadores que se dispuseram a

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    questionar as pressuposies do SPT - abriram espaos para a considerao dessas

    dimenses at ento marginalizadas. Entre outras coisas, esses estudos permitiram

    a constatao de que o discurso predominante do trauma dentro da psicologia e da

    psiquiatria no permitiu que probabilidades delineadas a partir de contextos

    especficos pudessem ser desenvolvidas de modo a demonstrar como

    componentes simblicos- culturais so importantes para se determinar como os

    indivduos percebem ou expressam suas dores e seus sentimentos. Nesse sentido,

    C.M. Obermeyer observa que mesmo cientistas ocidentais esto hoje convencidos,

    por exemplo, de que mulheres as quais foram submetidas ao corte genital em

    vrios pases africanos no so tendentes a desenvolver sintomas ps- traumticos.

    Nesses casos, o ritual popular est inserido em um contexto social e cultural que

    exclui interpretaes dessa prtica como compatveis com a noo ocidental de

    trauma. (1999) E questes como essa nos remetem ao importante debate sobre a

    sociologia das emoes.

    4.1 A sociologia das emoes e o trauma como um processo de

    construo social.

    Enquanto sub-rea a sociologia das emoes existe h apenas 35 anos e arazo para isso o fato de que as emoes - embora estivessem presentes nas

    preocupaes de estudiosos como George Herbert Mead, Karl Marx, mile

    Durkheim, Vilfredo Pareto ou Charles Horton Cooley - elas foram tratadas, assim

    como nas relaes internacionais, de forma secundria, implcita ou sub-teorizada.

    Somente a partir dos anos 70 um conjunto de estudiosos buscou conceituar as

    emoes de uma forma mais explcita e a desenvolver teorias e programas de

    pesquisa sobre esse tema. (Collins, 1975; Heise, 1979; Hochschild, 1975, 1979;Kemper, 1978; Scheff, 1979; Schott, 1979) Nas dcadas subseqentes, o estudo

    das emoes na sociologia expandiu-se de modo a representar um importante

    marco tanto na sociologia macro quanto na micro. Por outro lado, embora esse

    campo de estudos tenha se desenvolvido de forma considervel, ele ainda mantm

    alguns elementos controversos ou questes no resolvidas que so elementos

    importantes a serem mencionados aqui.

    Um dos elementos controversos dentro dessa sub-rea de estudos a prpriadefinio de emoo. Muito do problema de se desenvolver uma definio de

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    emoo est ligado a sua complexidade uma vez que ela opera em diversos nveis

    como o biolgico, o neurolgico, o comportamental, o cultural, o estrutural e o

    situacional. Por essa razo, cada pesquisador acaba desenvolvendo uma definio

    de emoo segundo o nvel que prioriza em seus estudos. Em geral, no entanto, h

    na sociologia um estigma em torno das teorias evolucionistas na medida em que

    socilogos tendem a interpretar como reducionismo qualquer esforo explicativo

    de um processo social atravs da biologia. (Turner, 2009) Para essas teorias

    evolucionistas, as emoes so parte da dinmica dos processos biolgicos que

    organizam o funcionamento do organismo de um indivduo os quais ocorrem

    antesde atingir a conscincia. Alguns tericos que deram base a essa perspectiva

    chegaram mesmo a negar que as emoes fossem reguladas por centros cerebrais

    especializados. Como observa Ronald de Sousa (1997), William James foi um dos

    formuladores iniciais dessa perspectiva e para ele a conscincia emocional

    consistia em um tipo de percepo de nossos prprios estados corporais a qual

    seria capaz de discernir entre diferentes emoes. Segundo James, no havia no

    crebro humano centros especializados nas emoes e para ele os sentimentos

    eram causados por mudanas corporais, tanto que sua proposio se traduzia pela

    frase we do not weep because we are sad, but rather we are sad because we

    weep. (James apud Sousa, 1997, p.51). Os avanos nos estudos da neurobiologia

    ao longo do tempo provaram, no entanto, que James estava errado em suas

    proposies. As novas descobertas demonstraram que as emoes so geradas

    atravs de sistemas neurolgicos abaixo do grande crtex e

    (t)hus, emotions are activated in those neurological systems that evolved before thegrowth of the hominin and human neocortex that allows for complex culture.Moreover, these subcortical systems are not directly controlled by the neocortex, and

    hence, they operate independently of culture. (Turner, 2009, p. 342)

    Embora essas novas descobertas tenham ajudado a entender a dimenso

    biolgica das emoes elas, no entanto, tendem a valorizar apenas essa dimenso,

    sem considerar que h como os socilogos e antroplogos apontam - um

    contexto social que ajuda a construir significados para as emoes. A prevalncia

    de leituras puramente fisiolgicas ou neurolgicas para as emoes foi em grande

    medida responsvel por duas dicotomizaes que socilogos e antroplogos em

    geral buscam combater: a oposio entre corpo e mente e a oposio entre emoo

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    e razo. No primeiro caso, embora estejam articuladas conjuntamente em cada

    indivduo, essas duas dimenses so pensadas separadamente, tendo gerado

    inclusive campos de conhecimento distintos para tratar ora do corpo, ora da

    mente. No caso da mente, ela tambm foi dividida em duas instncias a razo e

    a emoo. Esta segunda dicotomizao est relacionada com a primeira na medida

    em que as emoes so geralmente associadas ao corpo enquanto que a razo

    associada mente.

    Segundo essa tica, assim, as emoes so pensadas como tendo, com

    freqncia, origem no funcionamento do prprio corpo. Por exemplo, os hor-

    mnios masculino e feminino explicariam nessa viso muitos atributos

    emotivos dos gneros, ao argumentar que os homens so mais agressivos que as

    mulheres por possurem mais testosterona em seu organismo. Por outro lado, as

    mulheres seriam emotivamente mais instveis por causa do ciclo menstrual e das

    alteraes hormonais a ele relacionados e o maior volume de estrognio. No caso

    do crebro, as reaes qumicas que nele ocorrem so outros fatores entendidos

    como responsveis por algumas manifestaes emotivas como o amor e a

    ansiedade ou os estados emotivos que compem quadros depressivos. Essas

    emoes seriam o resultado de reaes qumicas em desequilbrio as quais so

    freqentemente tratadas com medicamentos. (na medida em que so interpretadas

    como algo ruim ou uma doena) Nessa mesma linha de pensamento, tambm se

    considera que os sentimentos possam causar reaes corporais, como, por

    exemplo, as palpitaes cardacas em situaes de medo, a falta de ar em

    situaes de ansiedade e as lgrimas em momentos de tristeza ou felicidade.

    Dentro dessa perspectiva, est embutida tambm a idia de que as emoes

    possuem vrios atributos comuns aos fenmenos corporais e, por isso, so

    expresses espontneas que se manifestam independentemente da vontade dosujeito. Como observa de Sousa, porque as emoes so vista dessa forma

    (t)he love potion is an ancient fantasy: emotional control by direct chemicalmeans.() The hope of control seems the more urgent because emotions aretraditionally blamed- or sought after for the loss of the mastery of mind overbody. It is an old trope: emotion as madness, as the defeat of the Real Self by something alien to itdepression as ecstasy, manic delight or psychopathic rage. In an age of engineering it isnatural to assume that if we can get to the mechanisms underlying our emotionalstates, we will thereby gain better control over our emotional lives. (1997, p. 49)

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    Ainda, como depreendemos desse trecho citado acima, em muitos

    contextos a mente considerada como superior ao corpo e a razo associada

    mente - como superior emoo. Caberia razo como caracterstica da mente o

    conhecimento, o planejamento e o domnio do mundo natural, do qual o prprio

    corpo e as emoes fazem parte. Desse modo, decorre desse pensamento o

    entendimento de que enquanto a razo e a mente colocariam o ser humano em um

    plano hierarquicamente superior aos outros animais, as emoes e as necessidades

    corporais os colocariam em um mesmo patamar. Essa viso sobre as emoes as

    faz acompanhar de adjetivaes pejorativas que desqualificam os indivduos que

    se dispem a expressar mais abertamente suas emoes sendo os mesmos

    interpretados como instveis, vulnerveis, sem controle, imprevisveis ou at

    mesmo perigosos.

    Durante sculos o pensamento filosfico ocidental tem justaposto as emoes

    racionalidade. No entanto, a ironia, como observa Jonathan H. Turner, est no fato

    de a prpria neurologia e os estudos dessa rea terem se tornado os responsveis

    pelas principais descobertas que ajudam a contestar essa oposio. Nas palavras

    do autor,

    (w)hen the neuronets connecting the prefrontal crtex ( the center of thought anddeliberation in the neocortex) with the amygdala are severed, individuals have greatdifficulty in engaging in rational thought and decision making. Economist who have

    ventured into brain imaging of decision-making also document the active role of thatemotion centers play in rationality. A moment of reflection reveals how flawed theolder philosophical dichotomy between rationality and emotionality was: the only wayto make rational decisions is to tag cognitions denoting options with emotions thatgive the person sense for their utility. One cannot maximize utility without the abilityto load options with affect; and this loading can only occur by connecting theprefrontal cortex with the subcortical areas of the brain generating emotions.(2009, p.343)

    Essas descobertas trazem implicaes no s para as consideraes

    prevalecentes sobre racionalidade como tambm questionam os defensores de

    abordagens construtivistas sociais extremadas que entendem as emoes como

    puramente cognitivas ou culturais. Isso porque segundo essas novas descobertas

    toda cognio est matizada pelas emoes, tanto ao avaliar estmulos recebidos

    como ao invocar smbolos culturais relevantes. Ainda, essa matizao das

    cognies no pode ocorrer a menos que a pessoa tenha redes neurais normais

    conectando os centros neo-corticais e sub-corticais do crebro.

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    As novas descobertas da neurologia, embora no resolvam as controvrsias

    sobre a importncia da biologia nas emoes, ajudam a relativizar as proposies

    extremadas tanto no eixo da biologia quanto no da construo social apontando

    para uma imagem mais holstica das emoes e de suas funes. Para os

    construtivistas sociais mais extremados, as emoes so atitudes culturalmente

    determinadas porque so aprendidas como parte da introduo do agente aos

    valores, cultura, normas e expectativas da cultura no qual ele est inserido. Nas

    palavras de Claire Armon- Jones,

    According to constructionism, there is a prescriptive implication embedded in thecultural situations in which emotions feature in that an emotion is not merely

    warranted by the situation as culturally construed but is deemed by members of acommunity to be a response which ought to feature in that situation because itspresence would demonstrate the agents commitment to the cultural valuesexemplified in that situation. This prescriptive relation between the emotion and the

    values it reflects is alleged by constructionists to have a crucial role in contributing tothe acquisition of culturally appropriate emotions and to the subsequent regulation ofthe agents responses to emotion-warranting situations. (Armon-Jones in Harr, 1986,p.33)

    Essa perspectiva construtivista social das emoes tende a favorecer

    argumentos da psicologia que enfatizam que as emoes no se formam at que

    uma avaliao dos objetos ou eventos seja feita; ou seja, ela pressupe que as

    emoes sucedem a cognio. H, ento, uma inverso da equao proposta pelos

    que reforam as explicaes biolgicas e, nesse sentido, se um objeto ou evento

    for visto como benfico para o alcance de determinados objetivos emoes

    positivas sucedero; por outro lado, se eles forem vistos como malficos, emoes

    negativas sero o resultado. Construtivistas sociais tendem a simpatizar com esse

    argumento porque ele permite enfatizar que a interpretao das emoes decorrer

    de rtulos culturais, vocabulrios emocionais e regras sobre as emoes a suscitare canalizar a base fisiolgica das emoes. No entanto, como observa Turner,

    existem evidncias empricas de que os indivduos no esto sempre conscientes

    de suas emoes expressas em seus comportamentos e que com freqncia essas

    emoes s so percebidas quando apontadas por outras pessoas. Ainda,

    (...) all sensory inputs to the brain are routed through the thalamus to both subcorticalemotions centers before they reach the appropriate lobe in the neocortex. (Le Doux,

    1996); thus, the process of physiological activation is underway before individuals can

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    take full cognizance of the events or objects causing emotional mobilization.(p.342,2009)

    Essas consideraes no invalidam os argumentos construtivistas no que

    concerne a importncia do processo de construo dos significados das emoes,

    mas matizam, no entanto, os argumentos dos que dentro da sociologia tendem a

    tomar uma postura extremada e rechaar as novas descobertas que apontam uma

    mais complexa interao entre as dimenses biolgicas, neurolgicas, culturais e

    situacionais das emoes. De fato, como Turner continua a argumentar,

    There can be a simultaneity in (the) process, with emotions initially activated, followedby appraisal, which may arouse new emotions or channel those already activated inparticular directions. Indeed, there is no reason to take an extreme stand on the placeof cognitive forces. At times, under particular conditions, cognitive awareness of someevent may precede emotional arousal, whereas under other conditions, the reverse istrue. Once emotions are aroused and are attended to cognitively, the flow of emotionsmay chance as individuals become aware of others reactions to their actions, as theybring to bear relevant social structural conditions, or as they invoke relevant cultural

    vocabularies and normative codes. (idem, 2009)

    A interao entre cognio e as emoes o segundo ponto de controvrsia

    nas discusses sobre as emoes na sociologia. E por conta da complexidade

    mencionada acima, uma terceira controvrsia se desenrola, marcando no s os

    debates de sociologia e antropologia, como os de psicologia e neurobiologia e que

    remete discusso sobre se existem emoes primrias que podem ser entendidas

    como universais. Muitos so os autores que apontam a raiva, o medo, a tristeza e a

    alegria como emoes primrias e comuns a todos os seres humanos. As con-

    trovrsias nesse sentido so de todos os tipos, com alguns argumentando que a

    lista de emoes primitivas restrita e tentando ampli-la; com outros apontando

    variaes de intensidade nessas emoes primrias ou entendendo que as mesmas

    possuem bases fisiolgicas universais, pois seriam expressas pela face e pelo

    corpo por todos os seres humanos. Outros ainda desenvolvem a idia das

    chamadas emoes secundrias que seriam o resultado da combinao de

    emoes primrias, embora no haja evidncias de que essas emoes outras

    sejam resultado de combinaes.

    De todo esse conjunto de proposies o fato controverso est justamente na

    afirmao de que existem emoes primrias universais que so comuns a todos

    os seres humanos. E nesse sentido, as argumentaes dos construtivistas sociais

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    so bastante significativas para os propsitos da presente tese. Isso porque a

    questo principal aqui, como observam Claudia Barcellos Rezende e Maria

    Claudia Coelho (2010) percebermos que o modo como entendemos o corpo e o

    vivenciamos est sempre mediado por formas de pensar cultural e historicamente

    construdas. Embora no possamos negar que a espcie humana possui um corpo

    de estrutura orgnica, a percepo que se tem sobre sua constituio e seu modo

    de funcionamento variam muito. E uma vez que as idias sobre como o corpo

    funciona variam, assim tambm variam as formas de relacion-lo com as

    emoes. Nesse sentido,

    (...) o modo como explicamos as emoes tendo origem em certos processoscorporais torna-se parte de uma viso culturalmente especfica sobre o corpo, mas no uma associao universalmente aceita. Faz parte de nossa etnopsicologia, mas no deoutras. Isso implica problematizar a qualidade da universalidade das emoes emfuno de uma unidade biolgica e psquica dos seres humanos. Novamente, se esseaparato biolgico e psquico uniforme, as percepes sobre ele no o so, oque conduz tambm a experincias corporais e psicolgicas muito variadas,posto que so sempre mediadas pela linguagem que um elemento dacultura.91(...) Fajans(2006) defende que, embora as emoes possam surgirinicialmente em um beb como reaes biolgicas a estmulos externos, elas solembradas desde cedo como parte de um contexto de interao social, e no sopensadas de forma isolada. As emoes tornam-se ento parte de esquemas oupadres de ao apreendidos em interao com o ambiente social e cultural, que sointernalizados no incio da infncia e acionados de acordo com cada contexto. Assim,

    (...) o aprendizado de como, quando e por quem certo sentimento deve sermanifestado inclui a aquisio tambm de um conjunto de tcnicas corporais queincluem expresses faciais, gestos e posturas. ( p. 30/31, 2010)

    Um dos questionamentos mais relevantes decorrentes dessas consideraes

    a idia de que as emoes so reaes dotadas de impulsividade que fogem ao

    controle dos indivduos, como os fenmenos corporais. No entanto, como vimos

    acima, se as emoes so integradas em padres de ao apreendidos em interao

    com o ambiente social e cultural desde a infncia, o argumento de existncia deum estado inicial no qual as emoes seriam vivenciadas em formato puro, de

    maneira espontnea ou sem controle de nenhum tipo no se sustenta. Em outras

    palavras, o que se percebe o desenvolvimento de um aprendizado emocional

    cuja internalizao nas primeiras fases da vida dos indivduos esquecida de

    modo a permitir o entendimento de que existe na vida dos indivduos uma forma

    no controlada de viver os sentimentos. Essa sensao de espontaneidade mais

    91nfase nossa.

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    freqente em situaes em que as normas sobre como, quando e para quem

    expressar as emoes so menos evidentes.

    A questo do controle sobre as emoes um tema especialmente

    importante para os estudos da antropologia na atualidade. Nesse campo de

    estudos, os termos de compreenso da constituio das emoes permaneceram

    por muito tempo igualmente marcados por representaes de natureza psicolgica

    e /ou biolgica. Segundo Rezende & Coelho, os estudos das emoes deixaram de

    ocupar um papel marginal dentro da antropologia apenas na dcada de 70 com o

    desenvolvimento da abordagem interpretativa, nos Estados Unidos. (2010) Essa

    abordagem permitiu uma reavaliao da noo de cultura de modo a promover sua

    redefinio em termos de teias de significados, transmitidas por smbolos e

    interpretadas de maneira especfica ou contextualizada em cada sociedade. Como

    resultado dessas novas proposies, diversas esferas da vida social passaram a ser

    pensadas a partir dos processos de construo cultural dos significados, inclusive

    a esfera dos indivduos e de suas emoes, abrindo espao para a elaborao de

    conexes entre a emoo e concepes de pessoa com esferas da moralidade, da

    estruturao social e das relaes de poder.

    Especificamente nos Estados Unidos, houve a prevalncia ao longo dos anos

    80 de uma perspectiva relativista que tomava os sentimentos como conceitos

    culturais que negociam e produzem a experincia afetiva. Desse modo, a

    separao antes elaborada entre estados subjetivos e sentimentos sociais foi

    problematizada, dado que as prprias idias de pessoa e de subjetividade passaram

    a ser entendidas como construes culturais. Catherine Lutz uma das

    propositoras mais eminentes dentro desses estudos e de acordo com ela os

    conceitos de emoo implicam negociaes sobre a definio da situao e sobre

    diversos aspectos da vida social, devendo os mesmos serem vistos comoelementos de prticas ideolgicas locais. Dessa forma, as emoes so por ela

    entendidas como um idioma que define e negocia as relaes sociais entre uma

    pessoa e outras. (idem, 2010)

    Lutz juntamente com Lila Abu-Lughod acabaram desenvolvendo uma

    perspectiva alternativa s principais vertentes tericas que se desenvolveram em

    torno do tema das emoes dentro do campo da antropologia. s perspectivas

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    tericas essencialistas, historicistas e relativistas92, as autoras propem o

    contextualismo que tem por fonte inspiradora a noo de discurso de Michel

    Foucault. Essa noo entende o discurso como uma fala que sustenta com a

    realidade uma relao no de referncia, mas de formao. Em outras palavras, as

    emoes para essas autoras no seriam apenas uma construo histrico cultural,

    mas algo que existiria somente em contexto, emergindo da relao entre os

    interlocutores e a ela sempre referida. Desse modo,

    () nesse sentido que se pode falar de uma micropoltica da emoo, ou seja de suacapacidade para dramatizar, reforar ou alterar as macro-relaes sociais queemolduram as relaes interpessoais nas quais emerge a experincia emocionalindividual. , assim, ento, que as emoes surgem perpassadas por relaes de poder,

    estruturas hierrquicas ou igualitrias, concepes de moralidade e demarcaes defronteiras entre grupos sociais (...). (Rezende e Coelho, 2010, p.78)

    Esses debates esto intimamente relacionados, por outro lado, ao modo

    como o indivduo visto dentro do que as autoras chamam de etnopsicologia

    ocidental moderna. Nessa perspectiva, a pessoa possui uma dimenso interna e

    privada e outra externa elaborada para apresentao pblica as quais se fazem

    acompanhar de uma valorao especfica que toma o que sentido e pensando no

    privado como verdadeiro enquanto que o que apresentado em pblico poderiaser falso. Com a distino entre o pblico e o privado ao longo do sculo XVIII, a

    dimenso pblica passou a ser interpretada como a dimenso com demandas de

    civilidade enquanto a dimenso privada passou a ser aquela reservada s

    demandas da natureza sustentadas pela famlia e pelos amigos. Assim, a

    capacidade para estar com a famlia e os amigos era vista como uma

    potencialidade natural, ao mesmo tempo em que o universo pblico era

    compreendido como uma questo de cultivo social, de aprendizado de regras deconvvio.

    92O essencialismo definido pelas autoras como o argumento predominante nos estudos da psicologia e dapsicanlise os quais se orientam pela premissa de que a se emoes teriam um substrato universal e naturalque as fariam ser as mesmas em qualquer parte. Lutz e Abu-Lughod incluem nessa abordagem a psicanlisefreudiana na medida em que ele trata as energias pulsionais como algo a ser modelado pelas forascivilizatrias. Para as autoras, o problema aqui estaria na reificao das emoes como preexistentes aosocial. Em contrapartida, o historicismo e o relativismo rumariam em sentido oposto ao do essencialismo,compartilhando entre si a crena na construo cultural das emoes e distinguindo-se apenas quanto ao eixo

    de anlise de cada um: enquanto o historicismo se dedica comparao de contextos socioculturais distintosno tempo para questionar a suposio de que as emoes possuiriam substratos universais, o relativismo fariao mesmo movimento de comparao voltado, no entanto, para culturas contemporneas entre si. (1990)

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    Ainda, paralelamente a essa diviso entre o pblico e privado se

    desenvolveu a idia de que o sujeito deveria ter um autocontrole sobre suas

    emoes. Essa noo de um equilbrio das emoes como um ideal a ser

    alcanado deriva de antigas preocupaes com o controle do corpo em termos

    gerais, percebidas nos processos civilizatrios. Norbert Elias examina em sua obra

    O Processo Civilizador (1993) as mudanas nas regras em relao ao corpo e s

    emoes a partir da leitura de manuais de etiqueta e bons costumes do final da

    Idade Mdia at o perodo inicial do sculo XX. Essas mudanas foram

    responsveis por aos poucos promover uma padronizao do aparato psicolgico

    de modo a articul-las a transformaes mais amplas no processo de organizao

    social. Segundo o autor, nas primeiras dcadas do sculo XX duas foram as foras

    que atuaram na elaborao da configurao social: a distino progressiva das

    funes sociais e o monoplio do Estado sobre o controle da violncia. No

    primeiro caso, a crescente diferenciao das funes gerou maior

    interdependncia entre as pessoas e, por conseqncia, cada indivduo passou a se

    ajustar aos outros, gerando uma necessidade de um controle mais amplo e

    uniforme sobre si. Embora esse processo afete os indivduos de formas diferentes,

    aos poucos ele acaba se disseminando por todos os setores da sociedade gerando

    um mecanismo de autocontrole internalizado e automatizado. (Elias, 1993)

    Contudo, foi o monoplio dos meios legtimos do uso da fora pelo Estado e

    sua preocupao em promover a estabilidade de suas instituies centrais que

    contribuiu de forma significativa para a valorizao da conteno emocional como

    uma caracterstica psicolgica central.93Isso porque se somente ao Estado cabe a

    primazia de uso dos aparatos de fora, cabe ao indivduo a tarefa de reprimir seus

    impulsos de agresso do outro94. Por conseqncia, gerou-se uma moderao de

    93Veremos no captulo 6, no entanto, que as organizaes internacionais governamentais e nogovernamentais tambm reproduzem o entendimento sobre a necessidade de controle das emoese valorao de emoes interpretadas como positivas.94O conceito de biopoder (e biopoltica) foi proposto por Michel Foucault, no primeiro volume doseu Histria da Sexualidade. A idia de biopoder veio se juntar s reflexes sobre as prticasdisciplinares, ambas tcnicas de exerccio de poder, particularmente a partir do sculo XVIII eXIX. As disciplinas se voltavam para o indivduo, e para o seu corpo, para a sua normalizao eadestramento atravs das diversas instituies modernas que esse indivduo atravessava durante asua vida (a escola, a caserna, a fbrica, o hospital, a priso, e etc.). Eram instituies quedocilizavam os corpos e os tornavam aptos produo industrial, vigente enquanto produo

    central nessa fase do capitalismo. Segundo Foucault (1988, p.151), as disciplinas centravam-se nocorpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na extorso de suasforas, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas de

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    afetos que colaborou para a compreenso da diviso da estrutura psicolgica em

    uma parte consciente e controladora e uma parte inconsciente e impulsiva.

    Ao mesmo tempo, a moderao afetiva reforou a percepo das pessoas e

    das coisas de modo menos afetiv