o tratamento das vespas

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  • 8/3/2019 o Tratamento Das Vespas

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    O TRATAMENTO DAS VESPAS

    O inverno passou e deixou atrs de si as dores reumticas. Um leve sol matinal vinhaalegrar os dias, e Marcovaldo passava umas horas a ver desabrochar as folhas, sentado num bancodo jardim espera da hora de voltar ao trabalho. Ao p dele vinha sentar-se um velhote, todoamarrecado dentro do sobretudo remendado: era um tal senhor Rizieri, reformado e sozinho nomundo, tambm assduo frequentador dos bancos soalheiros. De vez em quando este senhor Rizieriestremecia e gritava - Ai! - e encurvava-se ainda mais debaixo do sobretudo. Estava cheio de

    reumatismo, de artrite, de lumbago, que apanhava no inverno frio e hmido e que continuavam aacompanh-lo todo o ano. Para o consolar, Marcovaldo explicava-lhe as vrias fases do seureumatismo, bem como do da mulher e da filha mais velha Isolina, coitada, que no crescia l muitos.

    Marcovaldo trazia todos os dias o almoo num embrulho de papel de jornal; sentado nobanco, abria-o e dava as folhas amarrotadas ao senhor Rizieri que estendia a mo impaciente,dizendo:

    - Vejamos que notcias h hoje - e as lia sempre com igual interesse, mesmo se fosse de hdois anos.

    Assim um dia descobriu um artigo sobre o sistema de curar o reumatismo com o veneno deabelha.

    - Deve ser com mel - disse Marcovaldo, sempre propenso ao otimismo.- No - contraps Rizieri. - com veneno, diz aqui, com o do ferro - e leu-lhe algumas

    passagens. Discutiram muito tempo sobre abelhas e as suas virtudes, e sobre quanto podia custaraquele tratamento.

    A partir dessa altura, ao caminhar pelas avenidas, Marcovaldo ia de ouvido escuta dequalquer zumbido, e seguia com os olhos todos os insetos que voavam em seu redor. Assim, aoobservar as voltas que dava uma vespa de grande abdmen s riscas pretas e amarelas, viu que semetia no buraco de uma rvore de que saam outras vespas: um zumbir, um vaivm queanunciavam a presena de todo um vespeiro dentro do tronco. Marcovaldo ps-se logo caa.Trazia um frasco de vidro, em cujo fundo ainda havia dois dedos de marmelada. Pousou-o aberto

    junto da rvore. Logo uma vespa zumbiu volta dele e entrou, atrada pelo cheiro aucarado;Marcovaldo rapidssimo tapou o frasco com um papel.

    E pde dizer ao senhor Rizieri, assim que o viu:- V, v, dou-lhe j uma injeo! mostrando-lhe o frasco que continha prisioneira a vespa

    furiosa.O velhote estava hesitante mas, custasse o que custasse, Marcovaldo no queria adiar a

    experincia, e insistia em faz-la ali mesmo no banco: nem era preciso o paciente despir-se. Comtemor mas ao mesmo tempo com uma certa esperana, o senhor Rizieri levantou uma ponta dosobretudo do casaco e da camisa. e abrindo uma passagem por entre as malhas rotas da camisoladescobriu uma ponta dos lombos onde lhe doa. Marcovaldo aplicou no stio a boca do frasco e tirouo papel que fazia de tampa. Ao principio no aconteceu nada; a vespa no se mexia: teriaadormecido? Para a acordar Marcovaldo deu uma pancada no fundo do frasco. Era precisamente apancada que convinha: o insecto lanou-se_ em frente como uma seta e espetou o ferro no lombodo senhor Rizieri. O velhote deu um berro. ps-se de p num salto e comeou a marchar como umsoldado em passo de parada, esfregando a zona picada e soltando uma srie de confusasimprecaes.

    Marcovaldo ficou todo satisfeito, o velho nunca tinha andado assim to direito e marcial.Mas um polcia que passava por ali parou e ficou a observar a cena de olhos arregalados;Marcovaldo pegou no brao de Rizieri e afastou-se a assobiar.

    Tornou a casa com outra vespa no frasco. Convencer a mulher a levar a picada no foitarefa muito fcil, mas por fim l conseguiu. Por algum tempo, pelo menos, Domitilla s se queixoudo ardor da vespa.

    Marcovaldo dedicou-se a apanhar vespas a toda a brida. Deu uma injeco a Isolina, e uma

    Segunda a Domitilla, porque s um tratamento sistemtico podia dar bons resultados. Depoisdecidiu-se a deixar-se injectar a si prprio. Os midos, j se sabe como so, diziam: - A mimtambm! A mim tambm! - mas Marcovaldo preferiu muni-los de frascos e mand-los captura demais vespas, para suprir ao consumo dirio.

    O senhor Rizieri veio procur-lo a casa; trazia consigo outro velhote, o comendador Ulrico,que arrastava uma perna e queria comear logo o tratamento.

    A notcia espalhou-se; agora trabalhava em srie: tinha sempre meia dzia de vespas dereserva, ca uma no seu frasco de vidro, postas em fila numa prateleira. Aplicava ofrasco ao flancodos pacientes como se fosse uma seringa, tirava a tampa de papel, e depois de a vespa ter picado,esfregava com algodo embebido em lcool, com a mo desembaraada de mdico experiente. Asua casa consistia numa nica assoalhada, em que dormia toda a famlia; dividiram-na com umimprovisado biombo, de um lado a sala de espera, do outro o consultrio. Na sala de espera a mu-

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    lher de Marcovaldo atendia os clientes e recebia os honorrios. Os garotos pegavam nos frascosvazios e corriam ao vespeiro tratar do refornecimento. De vez em quando picava-os uma vespa,mas j quase no choravam porque sabiam que fazia bem sade.

    Naquele ano o reumatismo serpenteava por entre a populao como os tentculos de umpolvo; o tratamento de Marcovaldo ganhou grande fama; e no sbado tarde ele viu a sua pobremansarda invadida por uma pequena multido de homens e mulheres que sofriam, queixando-sedas costas ou dos flancos, alguns com o aspecto andrajoso de mendigos, outros com ar de pessoasremediadas, atradas pela novidade daquele remdio.

    - Depressa! - disse Marcovaldo aos seus trs rapazes. - Peguem em frascos e vo apanhartodas as vespas que puderem.

    Os rapazes foram.Estava um dia de sol, e zumbiam muitas vespas na avenida. Os rapazes costumavam dar-

    lhes caa a uma certa distncia da rvore onde estava o vespeiro, apontando sobretudo aosinsectos isolados. Mas nesse dia Michelino, para se despachar e apanhar mais, ps-se a ca-losmesmo ao p da entrada do vespeiro.

    - assim que se faz - disse aos irmos, tentando apanhar uma vespa, pondo-lhe por cima ofrasco assim que ela pousava. Mas aquela fugia sempre e voltava. a pousar cada vez mais prximodo vespeiro. Agora estava mesmo beira da cavidade do tronco, e Michelino ia pr-lhe o frasco emcima quando deu por outras duas vespas enormes que avanavam para ele como se quisessempicar-lhe a cabea. Ps-se em guarda, mas ao sentir as ferroadas, gritando de dor, deixou cair ofrasco. E logo a apreenso pelo que tinha feito lhe fez passar as dores: o frasco cara dentro daboca do vespeiro. J no se ouvia nenhum zumbido, j no saa mais nenhuma vespa; Michelino jsem foras sequer para gritar, recuou um passo quando do vespeiro saiu uma nuvem negra eespessa, com um zunido ensurdecedor: eram as vespas todas que avanavam em enxameenfurecido!

    Os irmos ouviram Michelino soltar um guincho e lanar-se numa corrida como nunca fizerana vida. Parecia que ia a vapor, de tal modo a nuvem que levava atrs de si se parecia com o fumode uma chamin.

    Para onde foge uma criana perseguida? Para casa! E assim fez Michelino.Os transeuntes nem tiveram tempo de compreender o que era aquela apario metade

    nuvem metade ser humano voando que nem uma seta pelas ruas com um estrondo misturado comzumbidos.

    Marcovaldo estava a dizer aos seus pacientes:- Tenham pacincia, as vespas esto mesmo a chegar - quando a porta se abriu e o

    enxame invadiu a sala. Nem sequer viram Michelino que foi enfiar a cabea num alguidar de gua:toda a sala ficou num instante cheia de vespas e os pacientes abraavam-se na intil tentativa de asafastar, e os reumticos faziam prodgios de agilidade e as articulaes ancilosadas soltavam-se emmovimentos furiosos.

    Vieram os bombeiros e depois a Cruz Vermelha. Deitado na sua cama do hospital, inchadoe irreconhecvel por causa das picadas, Marcovaldo nem se atrevia a reagir s pragas que dasoutras camas da enfermaria lhe rogavam os seus clientes.

    CALVINO, talo. O tratamento com vespas. In._. Marcava/do e as estaes na cidade. Trad.Jos C. Barreiros. Lisboa: Teorema, 1990, p. 33.38.