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O TRABALHO E TRABALHADORES NA PECUÁRIA: UMA

EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL DO CEARÁ NO PERÍODO COLONIAL1

Cristiane Fernandes Silva Borges2 Francisca Leyla da Silva Morais3

Kézia Kelly Oliveira4 Vivian Matias dos Santos5

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar as condições e relações de trabalho e trabalhadores na criação de gado como expressão da questão social do Ceará Colônia no século XVIII. Os dados foram coletados através de pesquisa bibliográfica, consultas a documentos que relatam fatos da história local e visitas a museus. Essa pesquisa nos forneceu subsídios que permitiram conhecer a ocupação primária do sertão do Ceará que se deu com a criação de gado, inicialmente para o aproveitamento do couro, passando a ser posteriormente vendida a carne nos mercados locais. Surgiram mais tarde as fábricas de beneficiar carne, chamadas oficinas de charque ou Feitorias. É neste cenário que foram desenvolvidas as relações de trabalho dos trabalhadores da pecuária, em que teve destaque a figura do vaqueiro como personagem da cultura cearense até os dias atuais.

Palavras-chave: Trabalho e trabalhadores. Criação de Gado. Questão social. Vaqueiro.

ABSTRACT

This article aims to address the conditions and labor relations and workers in livestock as an expression of the social question of Ceará Colony in the eighteenth century. Data were collected through literature research, consultation papers which report the facts of local history and museum visits. This research has provided grants that allowed us to know the primary occupation of the interior of Ceará, which occurred with the cattle, initially to the use of leather, later becoming the meat sold in local markets. Later appeared to benefit from meat factories, called workshops or factories jerky. This scenario is the relationships that were developed for workers on livestock, which has stood the figure of the cowboy culture and character of Ceará to the present day.

Keywords: Work and Workers. Livestock. Social Issues. Cowherd.

1 Este trabalho foi resultado da disciplina Questão Social no Ceará do Curso de Serviço Social ministrada pela professora Vivian Matias dos Santos 2 Acadêmica do Curso de Serviço Social da Faculdade Cearense 3 Acadêmica do Curso de Serviço Social da Faculdade Cearense 4 Acadêmica do Curso de Serviço Social da Faculdade Cearense 5 Docente do curso de Serviço Social da FAC - Faculdade Cearense. Mestra em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), doutoranda em Sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC).

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SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Pecuária no Ceará Colônia; 2.1 Trabalho e Trabalhadores na Criação de Gado; 2.2 Trabalho e Trabalhadores nas Oficinas de Charque; 3 Considerações Finais; 4 Referências Bibliográficas

1 INTRODUÇÃO

Na primeira década do século XVI, as Terras do Ceará, que era conhecido como

Siará Grande, não chamava a atenção dos povos Europeus. O gado trazido de capitanias

vizinhas, por colonizadores que vinham ocupar as sesmarias interioranas, logo se expandiu

com o regime de posse de terras. As fazendas aumentavam e a produção bovina crescia a cada

dia. A ocupação do Ceará Colonial se deu através do avanço da pecuária, dando origem às

vilas.

Aracati, por causa da sua localização com o mar acessível, teve um grande

destaque na pecuária; isso fez com que o número de forasteiros aumentasse na busca por

trabalho na criação de gado e na produção de couro salgado. E, em pouco tempo, Aracati se

tornou uma Capitania e, com o desenvolvimento do comércio, passou a ser Vila.

Acaraú e Sobral tiveram um grande desenvolvimento na pecuária. As boiadas

vinham de Sobral para o Porto de Acaraú, e o crescimento da pecuária fez com que Sobral

fosse considerada a princesa da Região Norte.

As condições geofísicas do Ceará favoreceram o surgimento das fábricas de

charques, instaladas nas regiões do rio Jaguaribe, Acaráu e Coreaú. Aracati, Granja,

Camocim e Acaraú possuíam condições necessárias para essa atividade; ainda hoje estas

cidades possuem as marcas desse passado que foi glorioso, visto em seus palácios e casarões

dos barões de Gado.

De acordo com o texto As Charqueadas, da autora Valdelice Carneiro Girão

(1984), o comércio na Capitania consistia na venda de gado de corte e no aproveitamento do

couro no artesanato. Essas produções favoreceram um elemento novo na organização

produtiva na Colônia onde o charque se torna a atividade principal.

Neste contexto, o trabalho pecuário é reconhecido como peça fundante do

exercício econômico na fase colonial do Ceará, conforme diz Neto:

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A pecuária, com atividade econômica responsável pelo povoamento do interior do nordeste da colônia, criando as condições para o surgimento das primeiras aglomerações e marcando definitivamente o espaço construído e o movimento de centralização político-administrativa portuguesa, principalmente no século XVIII, que se apropriando do espaço do boi, pensando o caso específico do Ceará, procurou estabelecer uma rede de domínio sobre o interior da capitania através de uma série de medidas que apontava para o fortalecimento do poder real sobre a mesma (NETO, 2000, p. 1).

Devido às dificuldades encontradas no decorrer das migrações em virtude das

mudanças climáticas da época, que deu origem às secas, e pelo fato dos boiadeiros não serem

donos de sesmarias, conforme o autor, o gado começou a ser explorado de diversas maneiras,

do uso da carne seca ao couro, dando início ao comércio das charqueadas. “A conquista do

território não foi fácil e inicialmente se deu de uma forma desorganizada. Os primeiros

colonizadores do sertão, guiados por suas boiadas, passaram por dificuldades, pois não eram

donos de sesmarias” (NETO, 2000, p. 1).

Conforme escreveu o historiador Capistrano de Abreu (1907), “Civilização do

Couro”, toda a vida rural girava em torno do boi, seja no desenvolvimento de sua carne, seu

chifre ou couro. O curral, lugar onde os bois ficavam, era a organização central da pecuária,

com a presença do gado e da moradia dos vaqueiros, pessoas responsáveis pela criação do

gado. Leonardo Cândido Rolim (1748-1793) vai falar da figura do vaqueiro que ficou

destacada como a imagem do sertanejo, o homem forte e lutador, informações essas

construídas pela historiografia tradicional, e que, nos dias de hoje, é lembrado em

comemorações do Dia do Vaqueiro em festas tradicionais, como a “vaquejada”.

É nesse espaço de construção histórica da economia cearense voltada à pecuária,

através de pequenos recortes, que pretendemos fazer uma abordagem das condições e relações

de trabalho na criação de gado como expressão da questão social vivenciada no espaço de

construção histórica da economia cearense no período colonial.

Vamos encontrar nesse cenário sofrimento e miséria, devido à seca que abatia

constantemente o Ceará. Também podemos identificar as condições de trabalho em que se

encontravam os trabalhadores da atividade pecuarista e como era realizada a divisão social

técnica do trabalho.

Para o desenvolvimento do tema, apropriamo-nos de alguns recursos

metodológicos como pesquisa bibliográfica e documental como ferramentas que irão

subsidiar toda a compreensão dos fatos relativos àquela época, como também foram

realizadas visitas aos museus.

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2 A PECUÁRIA NO CEARÁ COLÔNIA

Situando histórica e socialmente a atividade pecuarista e seus respectivos

trabalhadores, a primeira ocupação do sertão cearense se deu com o gado trazido das

capitanias vizinhas no século XVII (com o desenvolvimento do pastoreio que quebra o

exclusivismo econômico do açúcar), especificando Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do

Norte, por colonizadores das áreas dos rios Jaguaribe e Acaraú. A nova política portuguesa,

após 1650, tinha por objetivo colocar não apenas o litoral, mas todo o restante do território,

definitivamente inserido na lógica do mercantilismo europeu, principalmente após a

descoberta do ouro no sertão brasileiro. Ao descobrir uma forte fonte de riqueza no país, a

Coroa Portuguesa voltou todo seu interesse para a Colônia, explorando todo o potencial

pecuário nessa região, e fez uso da exploração da mão-de-obra para o enriquecimento da

Metrópole. Observamos durante toda a nossa pesquisa uma forte manifestação da Questão

Social apresentada na exploração do trabalho nas charqueadas cearenses.

O interesse europeu, desde a primeira década do século XVI, pelas terras

nordestinas cresceu gradativamente, pois era visto um grande potencial econômico nessa

região, que mostrava um considerável desenvolvimento em sua pecuária com uma matéria-

prima abundante, que era a criação de gado. Mesmo com o surgimento de um mercado

interno, antes inexistente na região nordestina, uma grande parcela da população continuava

sem condições de consumir a própria carne e o couro que produziam, que, em sua maioria,

eram exportados ou comercializados com outros centros urbanos da região. Uma parcela da

população enriquecia e prosperava e a outra trabalhava excessiva e precariamente para

alimentar com a carne e o couro do gado os interesses econômicos da metrópole.

Uma das razões para a rapidez na qual ocorreu a instalação das fazendas no sertão

nordestino, diz-nos Caio Prado Júnior (1942), foi a motivação pelo consumo crescente na área

litorânea, que era a região onde se desenvolvia a produção açucareira e o povoamento.

Como a população dessas regiões era de baixo poder aquisitivo, o que era

produzido excedia as necessidades. Produzia-se muito, mas a população local não tinha

condições de usufruir da produção, pois a maior parte do lucro era repassada ao dono da

sesmaria e a renda se centralizava nesses grandes proprietários, que enriqueciam e

colaboravam com a prosperidade da Coroa Portuguesa. Por tal motivo, a comercialização do

gado foi feita em pé nas feiras pernambucanas. Iniciou em Olinda, depois em Igaraçú e

Goiana e no Recôncavo Baiano. Para Pernambuco, o negócio não era lucrativo, pois o gado

emagrecia bastante em decorrência de vários dias de longas caminhadas e, quando ia ser

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abatido, já estava bastante debilitado. Andrade ressalta ainda que nesses “pontos de repouso”

onde se fazia a recuperação do gado formaram-se núcleos urbanos ainda hoje existentes. Pela necessidade do pouso, pela necessidade de agregados para a lida doméstica, com uma ainda insipiente agricultura de subsistência, através das trocas de favores, com a manufatura de elementos do couro para os utensílios caseiros, eventualmente com a construção de uma igreja, a população via-se atraída pelo núcleo em formação que a atividade criatória terminava por propiciar (NETO, 2000, p. 4).

A impossibilidade de concorrer comercialmente com os rebanhos vindos dos

sertões da capitania e de suas vizinhas levou os fazendeiros da área litorânea (primeira metade

do século XVIII) a exportarem seu gado abatido já transformado em carne-seca salgada e em

couro. Surgem assim, no Ceará, as oficinas de beneficiamento da carne, instaladas nos

estuários dos rios Jaguaribe, Acaraú e Coreaú. Tais oficinas se estenderam posteriormente

para Parnaíba, Piauí, Açu, Mossoró e Rio Grande do Norte. As condições geofísicas do litoral

(matéria prima abundante, ventos constantes, baixa umidade relativa do ar, existência de sal,

vegetação pouco densa possibilitando a ocupação sem grandes dificuldades, relevo plano,

presença de “lambedouros” para o gado, falta de pastagens abundantes e de água que

impuseram a necessidade do pouso em regiões estratégicas onde as boiadas pudessem se

recuperar das longas caminhadas) favoreceram o surgimento dessa indústria de charque, bem

como o seu povoamento.

Começa-se a fabricar um tipo de carne-seca, prensada, moderadamente salgada e

desidratada ao sol e ao vento, é a chamada carne do sol. Tal técnica foi aperfeiçoada pelo

vaqueiro, mas foi inicialmente empregada pelo índio. Não existem documentos que indiquem

o nome do idealizador da técnica, bem como o ano específico de instalação das primeiras

salgadeiras na Capitania do Siará Grande, mas a salga da carne, as charqueadas, foi

desenvolvida, no século XVIII, pelos comerciantes da região litorânea como uma maneira

possível de competir com os produtores do sertão.

A unidade de terra utilizada para a pecuária no sertão era a sesmaria, cabendo ao

sesmeiro sua exploração.

Segundo as Ordenações Filipinas, “sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais [casas de campo ou granjearias] ou pardieiros [casas velhas, ameaçando ruínas, ou já arruinadas ou desabitadas] que foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora não o são” (FARIA, 2001, p. 529).

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Os primeiros colonizadores do sertão, guiando suas boiadas, passaram por

dificuldades, pois não eram donos de sesmarias, que eram cedidas a famílias de forte

influência e renome para a Metrópole. Começava-se a hierarquização e a estratificação da

sociedade nordestina em torno da pecuária. A pecuária se tornou a atividade econômica

responsável pelo povoamento do interior do nordeste da Colônia. No século XVIII, a

produção de charque pôs em destaque as vilas de Aracati e Sobral, concorrendo com

Fortaleza. Tais centros eram, estrategicamente, elevados à condição de Vila pela Coroa

Portuguesa, pois essa queria estabelecer uma rede de domínio sobre o interior da Capitania.

A Metrópole se aproveitou do fato de as famílias se fixaram nos pontos propícios

para a atividade criatória, estabelecendo-se em pequenas fazendas, criando os locais de pouso

para as boiadas; assim, inconscientemente, tais famílias criavam o cenário propício para que a

Coroa desenvolvesse e firmasse seus pólos e centros urbanos e econômicos. Essas famílias

recebiam pequenas porções de terra, como favor, e criavam o gado e desenvolviam as

charqueadas; e a parte do lucro que recebiam acabava indo para as mãos do dono da fazenda,

como pagamento de suas dívidas pelo uso da terra. A charqueada se apresenta aqui como o

símbolo da Questão Social na vida dessas famílias. Durante esse século, o comércio no Ceará

girou em torno das charqueadas e da comercialização da carne-seca. Tal produção teve sua

extinção na última década do século XVIII, desencadeada pelas crises climáticas nos anos

1777-1778 e 1790-1793, e seus efeitos foram calamitosos, tanto econômicos como humanos. A pecuária, enquanto economia subsidiária da atividade açucareira criou as condições necessárias para uma efetiva ocupação do interior do nordeste. Na medida em que o gado era expulso do litoral em decorrência da necessidade cada vez maior de terra para o cultivo da cana e para a produção do açúcar exigida pelo mercantilismo europeu, as boiadas penetravam no sertão nordestino, seguindo as margens dos rios, em busca de novas pastagens (NETO, 2000, p. 1).

Raimundo Girão (1947, p. 47) afirma que o funcionamento das oficinas ou

charqueadas do Ceará “datam da época anterior a 1740 e surgiram primeiramente no pequeno

arraial de São José do Porto dos Barcos, depois elevada à categoria de vila com o nome de

Santa Cruz do Aracati, hoje cidade do Aracati”. A capitania subalterna de Pernambuco

ganhava importância no contexto regional, acabando por se enquadrar como economia

colonialista da época, em decorrência do couro destinado à exportação. Foi proposta por

comerciantes pernambucanos, em 1757, ao governador Luís Diogo a criação de uma

Companhia de Carne-de-Sol e Couros do Sertão, mas essa proposta não foi atendida.

Os donos das charqueadas da Vila de Aracati prosperaram bastante em atividade

por volta de 1750 e eram realmente pessoas de destaque na esfera econômica, política e social

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da Colônia. Tudo girava em função daquelas fábricas. Surge a civilização do couro, formada a

partir das novas relações de produção ligadas à pecuária. Com a fixação dos boiadeiros às

margens dos rios e com o desenvolvimento da pecuária, desenvolve-se o comércio e os

primeiros núcleos populacionais. Mas temos que observar, já desde tal época, a contraditória

reprodução social, em que uns poucos viviam às margens da sociedade, explorados, famintos

e miseráveis, pela quase inexistente participação nos lucros das charqueadas, e outros que

cresciam e faziam crescer suas vilas e sua riqueza à custa de boiadeiros e vaqueiros. Era

confusa a idéia de quem era mais abatido naquela época: se era o boi, para a produção da

carne e do couro, ou se era o trabalhador da pecuária e das charqueadas, também diariamente

sacrificado por ter de se submeter às precárias condições climáticas, de moradia, alimentação

e trabalho.

2.1 TRABALHO E TRABALHADORES NA CRIAÇÃO DE GADO

Ao contrário de outras atividades econômicas, a pecuária não exigia muito capital

para o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, tornava-se área de atração para as pessoas

pobres e marginalizadas da região, que viam na pecuária uma possibilidade de melhorar sua

condição de vida. Os trabalhadores eram livres e dificilmente se encontrava um escravo em

uma fazenda. Os vaqueiros eram brancos, mestiços, poucos negros livres e alguns índios.

As relações políticas e sociais eram articuladas em torno do fazendeiro, donos da

terra e do gado. A disputa pelo poder de territórios manifestava-se muitas vezes em disputas

sangrentas e conflituosas entre vizinhos e famílias rivais. A violência no sertão se fazia

presente e era moralmente legitimada por conta da predominância do poder voltado ao

coronelismo e aos grandes proprietários de terra e da ausência da representação do poder do

Estado. Grunspan (2006, p.14) diz que “o poder de um indivíduo se mede pelo número de

homens que dependem dele. É por isso que as relações sociais se inscrevem num esforço

contínuo para manter relações de dominação, de dependência e de trocas mútuas”.

Os trabalhadores, por sua vez, são ligados ao fazendeiro por um contrato verbal,

em que o vaqueiro oferece seus serviços na lida com o gado e o fazendeiro assume

compromisso de alimentá-lo durante o período da seca e garantir proteção, haja vista que

nesse período predominava o modelo patriarcal. Família e propriedade eram ramos da mesma

organização social, a primeira representando o patriarcalismo quase feudal da vida familiar,

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cuja ação dos fazendeiros consistia em sedimentar a servidão, o afilhadismo, o compadrio, e a

segunda, o esteio da vida econômica.

Além de um pequeno salário, o vaqueiro era pago com um quarto das crias,

apontado como um grande estímulo para o vaqueiro que sonhava em ser fazendeiro. Alguns

vaqueiros conseguiram se instalar por conta própria em terras adquiridas ou arrendadas aos

grandes senhores de sesmarias do sertão e, assim, formavam seu curral. Os vaqueiros criavam

também cavalos, indispensáveis para ajudar a percorrer grandes distâncias para tomar conta

do gado que vivia solto.

Porém, sabe-se que raramente essa ascensão social acontecia. Segundo Darcy

Ribeiro (1995, p. 339), “computando o rancho e a alimentação, pouco saldo asseguravam ao

trabalhador”, tendo em vista que os débitos do vaqueiro com o fazendeiro somavam valores

altíssimos. Mesmo combinada com lavouras de subsistência, era fornecida uma renda mínima

que apenas permite sobreviver, mantendo-o em contínua relação de subordinação.

Mais tarde, as terras mais pobres, onde o gado não podia crescer, foram dedicadas

à criação de bodes, cujos couros encontraram amplo mercado. Com o gado e os bodes, crescia

também o número de trabalhadores, tornando lucrativamente inviável ao fazendeiro absorver

tanta gente na lida pastoril. Darcy Ribeiro (1995, p. 338) conclui que “foi assim que os currais

se fizeram criatórios de gado, de bode e de gente: os bois para vender, os bodes para

consumir, os homens para emigrar”.

Contando com essa força de trabalho excedente, as fazendas deixaram de pagar

aos vaqueiros em reses, estabelecendo sistemas de salários em dinheiro. Assim, “os sertões se

fizeram, desse modo, um vasto reservatório de força de trabalho barata, passando a viver, em

parte, das contribuições remetidas pelos sertanejos emigrados para sustento de suas famílias”

(RIBEIRO, 1995, p. 345).

2.2 TRABALHO E TRABALHADORES NAS OFICINAS DE CHARQUE

Durante o século XVIII, o sertão do Ceará, principalmente na cidade de Aracati,

foi ocupado por várias propriedades imobiliárias que desenvolviam a criação extensiva do

gado, atividade extremamente relevante para a situação sócio-econômica da época. Apesar de

toda a importância dada à pecuária, não podemos esquecer a situação vivenciada pelos

trabalhadores durante essa atividade, haja vista que as condições dentro das oficinas de

charque não eram das melhores.

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De acordo com Nobre (1997, p.84), as oficinas de charque ou charqueadas eram

locais onde se preparava o gado e sua estrutura física era bem precária, “herão huas cazas, ou

idifícios insignificante em forma de telheiros formados de paus e telha vaã que em pouco

tempo podem mudar, e construir de novo com os mesmos paus, e telha.”

Como percebemos, esse espaço constituía-se de construções toscas, grosseiras e

apressadas, que serviam tanto para abrigar os trabalhadores como para estender no telhado a

carne do gado para a secagem, não ofereciam as mínimas condições de segurança e de

salubridade, eram destituídas de equipamentos ou máquinas.

Além das más condições de trabalho, as oficinas de charque traziam ainda

prejuízos relacionados à saúde pública e à higienização tanto para a população que morava

nas proximidades como para os próprios trabalhadores das oficinas, pois jogavam os dejetos

do gado muitas vezes dentro do local de trabalho, quando não jogavam bem próximos aos

currais, onde se localizavam as moradias dos vaqueiros, seus funcionários e familiares.

Diante do exposto, entendemos que todas essas condições vivenciadas pelos

trabalhadores da pecuária são vistas como expressões da questão social, provocadas pelas

desigualdades sociais da época, resultado das disparidades econômicas, políticas e culturais

como diz Iamamoto: A Questão Social pode ser definida como: O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que têm uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos se mantém privada, monopolizada por uma parte da sociedade (IAMAMOTO, 1999, p. 27).

A força de trabalho empregada nas oficinas era a mão de obra livre e escrava, e o

trabalho se dava de forma fragmentada e especializada, em que existia o proprietário ou dono

das terras, o vaqueiro que gerenciava as atividades econômicas da criação de gado, chamado

também de capataz do dono da fazenda, os cabras, responsáveis pelo serviço dentro dos

currais, os tangedores, que levavam o gado para as feiras, e os passadores responsáveis pela

venda do gado, bem como trabalhadores responsáveis em matar o boi, extrair seu couro,

cortá-lo em posta, lavar a carne, salgá-la, funcionários para transportar o sal até a oficina, para

buscar lenha, e vigias para resguardar a carne que secava durante a noite.

Essa forma fragmentada alienava cada vez mais o trabalhador, pois o mesmo não

se reconhecia no que fazia, não reconhecia o produto de seu trabalho e não percebia a

exploração a qual eram submetidos, fazendo apenas uma parte do processo, não possuía uma

visão de conjunto, o que gera uma divisão social. Havia uma relação hierárquica, pois os

trabalhadores eram submetidos ao poder do dono da terra que determinava como, quando e

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onde deveria ser realizado todo o processo de trabalho. Conforme Marx (2003, p. 14), o

“trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si

mesmo, de martírio”.

Portanto compreendemos que os trabalhadores das oficinas de charque, assim

como no atual modelo de produção capitalista, já trabalhavam em um ritmo intenso de

exploração, não possuindo os meios de produção, apenas sua força de trabalho que vendiam

por quantias irrisórias.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, é importante salientar que, nesse período de sofrimento

e miséria, devido à seca que abatia constantemente no Ceará, surge, além da figura do

vaqueiro, homens livres, não-proprietários de terras, que se encarregavam de cuidar do curral,

das boiadas e da produção do charque, recebendo certo número de reses como pagamento

pelo serviço prestado aos donos do rebanho e das oficinas de charque. Esses trabalhadores

foram os verdadeiros conquistadores do sertão, abrindo caminhos, fundando povoações e

ocupando áreas antes totalmente virgens da presença dos colonizadores. Esses trabalhadores

sofreram tanto pelas condições de trabalho que eram totalmente precárias quanto pela

remuneração recebida por seus serviços, remuneração essa que dificilmente os levaria a ser

um proprietário de terras e/ou ter uma ascensão social.

De acordo com o que pesquisamos, a precariedade das condições e as relações de

trabalho e trabalhadores da pecuária no Ceará neste período foram marcadas por uma situação

de exploração, de alienação e de informalidade imposta pelo sistema de produção vigente e

muitas vezes por uma condição de sobrevivência, até mesmo como uma atividade forçada, já

que não havia muitas opções de trabalho. Compreendemos toda essa realidade como

condições que expressam a Questão Social da época.

Desse modo, não podemos deixar de ressaltar que o aprofundamento da questão

social expressava-se em múltiplas refrações, tais como o trabalho infantil; a pobreza

generalizada e as desigualdades sociais difundidas como distúrbios individuais, pressupondo

que os pobres são suspeitos até que se prove o contrário; a violência urbana que se desdobra

na drogadição; enfim, “[...] uma acumulação da miséria relativa à acumulação do capital,

encontrando-se aí a razão da produção/reprodução da questão social na sociedade capitalista”

(IAMAMOTO, 2001, p. 15).

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Se formos analisar e comparar essas relações de trabalho e trabalhadores/as do

período colonial com os dias atuais, vamos perceber que ainda existem muitos desses

trabalhadores vivendo em condições desumanas não só no meio rural, mas também nos

grandes centros urbanos.

Essa pesquisa nos forneceu subsídios que permitiram conhecer a ocupação

primária do sertão do Ceará que se deu com a criação de gado, a priori, cujas atividades

tinham a finalidade de aproveitar o couro do boi, passando posteriormente a ser vendida a

carne nos mercados locais.

Surgindo mais tarde as fábricas de beneficiar carne, chamadas oficinas de charque

ou feitorias, neste cenário foram desenvolvidas as relações de trabalho dos trabalhadores da

pecuária, em que teve destaque a figura do vaqueiro como personagem da cultura cearense até

os dias atuais.

As relações que aconteciam e, ainda acontecem, na pecuária no Ceará é reflexo de

um modo de produção cruel e desumano, o sistema capitalista, que transforma as relações

sociais e as pessoas em meras mercadorias, que podem ser trocadas por dinheiro, deixando de

lado o que o homem tem de mais bonito, a sociabilidade humana.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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