o trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

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CLÁUDIO GONÇALVES DE MATTOS O TRABALHO DOS CANTEIROS DE SANTA LUZ E AS SUAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO Trabalho de conclusão de curso em Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia, sob orientação da professora Cláudia Vasconcelos. Conceição do Coité Dezembro de 2009

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Page 1: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

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CLÁUDIO GONÇALVES DE MATTOS

O TRABALHO DOS CANTEIROS DE SANTA LUZ E AS SUAS

FORMAS DE ORGANIZAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso em

Licenciatura em História pela

Universidade do Estado da Bahia, sob

orientação da professora Cláudia

Vasconcelos.

Conceição do Coité

Dezembro de 2009

Page 2: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

2

“Mesmo das pedras podemos extrair coisas bonitas”.

(Boaventura Abreu)

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O trabalho dos canteiros de Santa Luz

e as suas formas de organização

Cláudio Gonçalves de Mattos*

Resumo

Neste artigo abordo o trabalho dos canteiros na exploração de pedras de granito em Santa

Luz, interior do estado da Bahia, procurando evidenciar os pontos positivos e as dificuldades

que esta classe de trabalhadores encontra no seu cotidiano com relação às suas formas de

organização. Relato os progressos já existentes neste sentido e discuto questões que se

apresentam como obstáculos nesse processo.

Palavras-chave: Canteiros, classe trabalhadora, organização.

Abstract

In this paper I present the work of the beds in the operation of granite stones in Santa Luz,

interior of Bahia state, seeking to highlight the strengths and difficulties that this class of

workers is in their daily lives in relation to their forms of organization. Reporting the progress

already in this direction and discuss issues that present themselves as obstacles in the process.

Keywords: flowerbeds, working-class, organization.

1. Introdução

Santa Luz é um município do interior do estado da Bahia, localizado à

aproximadamente 258 km da capital Salvador, situado na região sisaleira, no semi-árido

brasileiro1. Sua população, estimada em 2004, era de 31120 habitantes, segundo o IBGE

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A cidade é conhecida no estado como uma

das maiores produtoras de pedra. A pedra de granito extraída em Santa Luz ainda é totalmente

trabalhada no local de extração, nas chamadas pedreiras, onde é transformada em laje, meio-

fio, paralelepípedos, principal produto vendido para calçamentos de várias cidades,

especialmente do interior da Bahia. Também é extraída a chamada pedra-bruta, usada para

fazer alicerce de construções. A brita, produzida tanto em britadores quanto manualmente, é

*Estudante do 9º Semestre de Licenciatura em História da UNEB – CAMPUS XIV, professor de Matemática em

Escola Estadual há 17 anos. ([email protected]). 1 http://www.febraban.org.br

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2

outro produto muito procurado. (Ver fotos 01 a 04). O artesanato na pedra, trabalho realizado

por moradores da cidade, como a família Boaventura, é reconhecido internacionalmente. A

exploração e transformação da pedra de granito constituem-se em uma importante fonte de

renda da população luzense.

FOTO 01 – PEDRA BRUTA USADA EM ALICERCE FOTO 02 – PARALELEPÍPEDOS USADOS EM

CALÇAMENTO DE RUAS

FOTO 03 – LAJES USADAS EM CALÇADAS FOTO 04 – BRITA USADA EM CONSTRUÇÃO

Apesar de ser uma das principais fontes de renda da população, a maioria dos

trabalhadores da pedra encontra-se na informalidade, ou seja, não tem carteira assinada nem

estão associados a nenhum sindicato ou associação. O que tem ocorrido, segundo Ricardo

Antunes (1998), é “uma metamorfose no universo do trabalho”. Alguns setores se qualificam,

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3

enquanto outros permanecem estagnados. Ainda ocorrem muitos acidentes, inclusive com

mutilações e até mesmo morte. As famílias dos trabalhadores das pedreiras não têm nenhuma

segurança e vivem à mercê da sorte. Há relatos surpreendentes que nos dá a idéia da situação

de risco e desamparo em que vivem os trabalhadores nas pedreiras de Santa Luz, a exemplo

do Sr. Paulo Ponciano em entrevista concedida ao MOC (Movimento de Organização

Comunitária): “Sobrevivo da ajuda da minha esposa e dos meus filhos. No tempo de frio sinto

muitas dores na mão que fora mutilada. Tenho que conviver com essa dor pelo resto da

vida”.2

Vários fatores são prejudiciais à saúde dos trabalhadores (ODDONE, 1986 apud

NUNES, 2002, p. 10). As más condições de trabalho, os problemas sérios de saúde causados

pelo serviço insalubre, a baixa remuneração, a degradação do meio ambiente e outras mazelas

dessa classe de trabalhadores merecem atenção, porém, o que pretendo analisar no presente

artigo são os motivos que dificultam equacionar estes problemas. Para analisar tais questões

parto do pressuposto que a organização, não necessariamente a associação em sindicato, mas

a organização da classe seria uma possível solução, contudo são os sujeitos envolvidos nesse

cenário que darão respostas para estas perguntas. Nesse intuito foram realizadas visitas aos

locais de trabalho e entrevistas com os trabalhadores da pedra, associados ou não ao sindicato,

membros do sindicato, profissionais de outras áreas, poder público, políticos, empresários e

representantes da sociedade civil organizada.

Sabemos que no município de Santa Luz existe o Sindicato dos Trabalhadores da

Pedra de Santa Luz, que conta com menos de dez por cento dos trabalhadores, o que nos leva

a acreditar que existam motivos importantes para que essa classe não se organize de outras

formas, já que, aparentemente, há uma resistência em relação ao sindicato. Se existe

problemas com o Sindicato, quais seriam? Se realmente esses problemas existem, quais as

alternativas? Quais os motivos que emperram a organização dessa classe?

“A história de qualquer classe não pode ser escrita se a isolarmos de outras classes,

dos Estados, instituições e idéias que fornecem sua estrutura”. Hobsbawn, (1987, p 11). Dessa

forma, a atuação do poder público nesse contexto vai ser discutida. A influência político-

partidária, a questão previdenciária, a burocratização e a capitalização dos sindicatos, outros

fatores de ordem econômica, política e social também serão tratados, não isoladamente, mas

fazendo parte desse contexto complexo que é a atual situação dos trabalhadores da pedra em

2 Canteiro Paulo Ponciano, em entrevista publicada no site do MOC www.moc.org.br em 03/11/2005.

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4

Santa Luz, levantando os motivos que dificultam a organização dessa classe, cuja maioria,

não tem nenhuma representação legal para defender seus interesses.

Segundo o memorialista Nelci Lima da Cruz3, a exploração de pedra na região de

Santa Luz teve início antes mesmo da emancipação do município. No final do século XIX e

início do século XX, a exploração de pedra para fazer paralelepípedos já era realizada no

município e o transporte era feito em carroças com tração animal até a estação ferroviária, de

onde os paralelepípedos eram transportados de trem para outras cidades da Bahia.

Curiosamente, nesse período, alguns trabalhadores da pedra tinham carteira assinada,

conforme relato de Nelci Lima da Cruz, em entrevista concedida no dia 10 de novembro de

2009. Atualmente não se tem conhecimento de nenhum canteiro, operário que lavra pedras,

que trabalhe com carteira assinada ou que pague a previdência como autônomo. Será que essa

prática de se trabalhar sem carteira assinada consolidou-se naturalmente ou foi uma estratégia

pensada pelos empregadores?

Justamente buscando entender esta situação dos canteiros que se dizem autônomos e

ao mesmo tempo falam em “patrão”, quando se referem aos comerciantes que compram sua

produção de pedra, é que surgiu a idéia de explorar este tema. Se estamos falando de uma

classe de trabalhadores que já existe a mais de um século, porque as conquistas desta classe

nos parecem tão tímidas?. A visão que temos do trabalho nas pedreiras e o que foi escrito até

hoje sobre esses trabalhadores condizem com a visão dos mesmos? Quais as experiências bem

sucedidas dentro desta classe? Qual papel tem desenvolvido o Sindicato dos Trabalhadores da

Pedra de Santa Luz? Qual tem sido a atuação do Poder Público? Levantaremos estas questões

no decorrer desse artigo.

2 A exploração da pedra de granito em Santa Luz:

Segundo Diagnóstico Setorial sobre a exploração de pedras em Santa Luz, realizado

em 1999 pelo SEBRAE (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Bahia), as

limitações do clima e as dificuldades de acesso à terra, levaram muitos trabalhadores rurais a

se dedicarem à extração de granito na região de Santa Luz. O grande potencial das jazidas

desse minério deixaram Santa Luz na condição de maior produtora de pedra de granito da

Bahia no ano de 1999, conforme Diagnóstico Setorial, porém, não foi o suficiente para

melhorar as condições de vida e trabalho dos canteiros.

3 Nelci Lima da Cruz é professor e memorialista de Santa Luz e tem alguns livros publicados como Memórias

Históricas de Santa Luz.

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5

A exploração de pedra em Santa Luz, ao longo dos anos, tem se configurado em um

comércio instável para os canteiros. O período em que a demanda aumenta corresponde às

vésperas das eleições municipais e estaduais, quando as prefeituras injetam verbas nos setores

de construção civil e pavimentação. Passado este período, o preço da pedra cai e a situação

volta a ficar crítica. Essa é uma postura de grande parte dos municípios brasileiros no trato das

verbas públicas e uma prática comum de se trabalhar mais no período de campanha eleitoral.

Interpretando o clientelismo como uma estratégia eleitoral, Mariana Borges Martins da Silva4

lembra que, independente do partido político, conforme a conjuntura pode-se esperar que este

lance mão deste tipo de estratégia. Com essa prática, a maior parte do lucro fica nas mãos dos

atravessadores e empresários que entram em cena, principalmente quando aumenta a

demanda.

É neste contexto histórico, social, político e econômico que tem se formado a classe

dos trabalhadores da pedra em Santa Luz. De acordo com Nelci Lima da Cruz, as atividades

de exploração de pedra de granito em Santa Luz datam de mais de cem anos de existência. O

que se pode perceber é que o trabalho dos canteiros continua artesanal praticamente em sua

totalidade. Para se ter uma idéia do tímido avanço tecnológico nesse setor, segundo dados

coletados com os próprios canteiros, o que estes aprenderam com pais e avós continuam

passando para seus filhos, não acontecendo nenhuma mudança considerável no processo de

extração e beneficiamento da pedra. Segundo SIVIERI, 1996 apud NUNES, 2002, p.18, os

canteiros trabalham em constante situação de risco.

O processo de extração e beneficiamento da pedra de granito pode começar a ser

entendido, em todas as suas etapas, nas palavras de Gilberto Lopes da Silva, canteiro que

trabalha há mais de vinte anos nas pedreiras de Santa Luz:

“... a pessoa tem que ver o tipo da pedra, escolher uma pedra que não teja enterrada,

apesar de hoje as pedra descoberta que não tão sendo trabalhada tá em lugar que o

caminhão não pode subir, tá mais difícil encontrar pedra boa, tem pedra que não dá

pra tirar material. Tem de ver o tipo da pedra, tem uma que não tem corte, não tem

natureza, tem que ver aquelas que tem uma face mais... umas lateral mais certa que é

as mais que...ela já tendo uma lateral certa, uma face certa, já é um corte ali...já

aproveita e vai procurar mais dois corte ali, porque a pedra tem três corte: corrida,

segundo e trincante.5

Essa linguagem é bastante comum entre os canteiros: “corte”, “trincante”, “corrida”,

“segunda”. Para melhor entendimento entre nós, leigos, pedi para que Gilberto nos falasse

4 Mestranda em Ciência Política, IUPERJ. Artigo Porque voltar ao clientelismo? Considerações sobre o

governismo no Brasil. 5 Entrevista com o canteiro Gilberto Lopes da Silva, realizada em 16/10/2009.

Page 8: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

6

mais sobre esse conhecimento valioso e decisivo na escolha de uma pedra a ser trabalhada.

Vale salientar que estamos falando de um morro de pedra que varia de formatos e tamanhos,

(Ver foto 05). A escolha é fundamental e os primeiros cortes, se não seguirem a “natureza” da

pedra, como relata Gilberto, “pode desandar todo trabalho e perder a pedra e o trabalho”.

Pra quadrar uma pedra você tem que dar três tipo de corte: a corrida é o veio da

pedra, é onde ela corta mais fácil, é o melhor corte, o corte da produção é a corrida.

Depois da corrida vem o “segundo corte”, que é o melhor corte depois da corrida,

não é tão bom como o primeiro e, por último vem o “trincante”, que é o mais ruim, é

o corte que a gente deixa por último, porque nesse você vai ter mais trabalho, ele

não corta certo como os outros, é mais duro, corta quebrando a pedra em lascas. Se

não tiver cuidado perde o bloco da pedra. É difícil você acertar os três cortes de

primeira. Sempre a gente acerta a corrida e os outros a gente descobre trabalhando.

Aqui na Serra o primeiro corte, a corrida, sempre dá de “alevante”.6

FOTO 05 – MORRO DOS LOPES (LOCALIZADO A 2 KM

DE SANTA LUZ) CITADO POR EUCLIDES DA CUNHA

NO LIVRO OS SERTÕES. SUAS PEDRAS COMEÇARAM

A SER CORTADAS E COMERCIALIZADAS. HOJE É

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ESTÁ PROTEGIDO POR

LEI. NAS REDONDEZAS DESTE MORRO VÁRIAS

PEDREIRAS ESTÃO INSTALADAS.

Como podemos perceber, cortar uma

pedra requer conhecimento do trabalho que

está sendo realizado. Quando o entrevistado

se refere à Serra, trata-se do seu local de

trabalho que é a Serra do Lajedo, distante

cerca de 12 Km de Santa Luz. Ele afirma que

lá a “corrida” sempre dá de “alevante”, ou

seja, a corrida que é o veio da pedra, o

sentido em que a pedra corta com mais

facilidade, na maioria das vezes se dá na

horizontal, que na linguagem dos canteiros é

“alevante”. Creio que devido à explosão que

6 Idem.

FOTO 06 – O CANTEIRO JOSÉ NASCIMENTO

FURANDO UMA MINA MANUALMENTE PARA

DETONAÇÃO.

Page 9: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

7

corta a pedra ao meio, na horizontal, impulsionando de forma premeditada o bloco cortado

para cima, tenha originado a expressão. O fato de a maioria das pedras cortarem mais

facilmente na horizontal, “alevante”, deve ter uma explicação geológica, o que não é o nosso

objetivo estudar esta questão.

Depois de explicar o processo de escolha da pedreira em função dos diferentes tipos de

corte que pode ser dado na pedra, Gilberto explica o processo de perfuração e detonação (Ver

foto 06), este último que eu considero o mais perigoso:

Pra começar tem que furar os fogo e detonar. Pra furar depende do tamanho da

pedra, pra vê se vai furar um metro ou dois metros ou um metro e meio ou oitenta,

depende... Pra furar a pedra a gente usa broca, começa com uma de 10cm, depois de

20cm, depende do tamanho da pedra... depende da posição do furo. Um fogo desse

por cima, um fogo de um metro e oitenta por cima, sendo duas pessoa trabalhando,

eu com o macaqueiro, como chama, fura ne um dia, pode não dá pra furar e detonar

ela no mesmo dia, mas dá pra furar ne um dia uma mina dessa... se for no

compressor fura em dez minutos7.

O processo de furar o fogo, como os canteiros se referem ao processo de abrir um

orifício na pedra de mais ou menos 5 cm de diâmetro para depois carregar com pólvora e

detonar, é feito com brocas, espécie de ponteiro de aço que é batido na pedra com duas

marretas. Em uma pedra podem ser dados de três a cinco furos deste tipo para iniciar o

trabalho. Conforme vai aprofundando o furo, são usadas brocas maiores. Nesta etapa trabalha

o canteiro e o “macaqueiro”, nome dado ao ajudante do canteiro, e é assim definida por

Gilberto: “Eu seguro a broca, bato com a marreta de um quilo e o outro bate com a marreta de

três quilos. Eu bato e quando tiro a minha ele bate também em cima”. Pode-se perceber o

risco que corre quem está segurando a broca para o ajudante bater com uma marreta de três

quilos, vale lembrar que nesse processo não se usa luvas ou qualquer outro equipamento de

segurança. Os furos podem chegar a mais de dois metros de profundidade na dura pedra de

granito. Muitos acidentes ocorrem nessa etapa da perfuração. O compressor, equipamento

usado para perfuração que tem custo de manutenção bastante elevado, substitui todo esse

processo. Porém muitos continuam a fazer o “fogo” manualmente em perfurações mais rasas,

deixando as mais profundas para o compressor. Segundo o geólogo A.M.L., da CBPM

(Companhia Baiana de Pesquisas Minerais):

A CBPM mantém uma relação de apoio à produção de paralelepípedos, através de

perfuração de rochas com compressor. A CBPM mantém em Santa Luz um veículo

7 Idem.

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8

Toyota com motorista, um compressor e duas perfuratrizes para dar apoio aos

canteiros. Hoje os custos giram em torno de nove mil reais por mês.8

O Tesoureiro da Cooperativa dos Trabalhadores da Extração de Pedras de Santa Luz,

Júlio Arilson, lembra que o compressor está acessível a todos os canteiros, independente de

serem sindicalizados ou não, até o final deste ano de 2009. A partir de 2010 a CBPM não vai

mais arcar com as despesas, deixando o compressor sob a guarda dos canteiros que assumirão

os custos. Esse processo ainda está em discussão, mas nos dá uma idéia de que o poder

público cada vez mais procura não se comprometer com essa classe de trabalhadores, outro

motivo que exige da mesma uma postura coletiva.

Depois de perfurado o orifício, chamado de “fogo” pelos canteiros, segue a etapa de

carregamento e detonação dos explosivos.

Depois do furo tem que riscar, que chama raiar. Com uma taiadeira mais larga do

que o furo faz um talho dos dois lados do furo, é para a pedra cortar no sentido que

você quiser. Carrega com pólvora e soca com barro e pedra podre. Vai botando aos

pouquinhos e vai batendo com um socador de ferro e com uma marreta. Não pode

botar o socador de ferro nos primeiros bolos de barro... quando já tiver uns cinco

centímetro pode socar com o socador de ferro. O estopinho é botado junto com a

pólvora e depois que bota o barro e soca tá carregado o fogo e é só queimar o

estopinho e sair de perto.9

O uso do “socador” de ferro não é uma prática de todos os canteiros. Muitos acham

perigoso e usam um instrumento de madeira para carregar o “fogo”, do início ao fim do

processo. Segundo o canteiro Gilberto, usar o socador de ferro depois que se coloca uma

camada de barro e bagaço de pedra sobre a camada de pólvora não representa perigo.

Segundo ele, a maioria dos acidentes ocorre quando o fogo “encrava”, ou seja quando a

detonação falha. O processo de desencravar o fogo é o que mais tem ocorrido acidentes,

inclusive com morte.

O objetivo do fogo é “quadrar” um bloco de pedra. Quadrar na linguagem dos

canteiros é cortar um bloco retangular, o que na maioria das vezes não é possível apenas com

o processo de detonação (Ver foto 07), exigindo um processo de acabamento posterior.

Retirado o bloco retangular começa o processo de corte sem explosivo. É a chamada retirada

das “foletas”, que devem seguir o veio natural da pedra. As foletas são fatias de 10 cm, para a

produção do paralelepípedo e meio-fio, usados em calçamentos de ruas, ainda podem ser

8 Entrevista realizada com o geólogo da CBPM, em 08/11/09.

9 Entrevista com o canteiro Gilberto Lopes da Silva, realizada em 16/10/2009.

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9

retiradas “foletas” de 5 cm de espessura na fabricação de lajotas usadas em calçadas (Ver

fotos 08 e 09). Esse processo de retirada das “foletas” é descrito por Gilberto:

Um bloco de 4x4 no caso, ele tendo um metro de altura o cara corta no pixote, não

precisa mais fogo. Risca primeiro com a taiadeira e faz os buracos pra botar os

pixotes... chama pixote, tipo uns prego. Os buraco dos pixote tem que ficar no risco

da taiadeira. Depende do tamanho da pedra... pode botar um pixote, dois, três... oito

e bate com o marrão e a pedra abre certinha.10

FOTO 07 –CORTE NA PEDRA ATRAVÉS FOTO 08 – CORTE SEM EXPLOSIVO PARA

DE EXPLOSIVO RETIRADA DAS “FOLETAS”

FOTO 09 – BLOCOS CHAMADOS PELOS CANTEIROS

DE “FOLETAS” PARA A PRODUÇÃO DE

PARALELEPÍPEDOS, MEIO-FIO E LAJOTAS.

10

Idem.

Page 12: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

10

Percebemos no relato de Gilberto sobre o processo de exploração e transformação da

pedra que várias ferramentas são usadas. Para um melhor entendimento segue algumas fotos

das ferramentas mencionadas até agora: Fotos 10 e 11.

FOTO 10 – PONTEIROS FOTO 11 – BROCAS E PIXOTES

As ferramentas são de aço e são fabricadas e cuidadas pelos próprios canteiros.

Utilizam peças de carro, como estabilizadores, no fabrico dessas ferramentas. Além de ter

conhecimento do trabalho com a pedra, o canteiro precisa desenvolver habilidades de ferreiro

(Ver foto 12). Segundo Gilberto:

As ferramentas a gente mesmo faz aqui, corta no fole. A gente usa fole, carvão,

banheira de botar a ferramenta quando aponta... pra poder ela ficar dura...ai tem uma

de água e uma de óleo queimado... óleo lubrificante. As banheira é de pedra. Tem

aço que é forte demais, se botar na água ele quebra e outro é mole, se botar no óleo

ele fica mole... na hora de trabalhar ele fica amassando, tem que botar na água. Só

descobre trabalhando.

Explorei as palavras do experiente canteiro

Gilberto Lopes da Silva, para dar uma noção geral

do trabalho de exploração de pedra de granito no

município de Santa Luz. As condições em que se

dá esta atividade, as dificuldades, as conquistas,

assim como as experiências bem sucedidas serão

tratadas a seguir.

FOTO 12 – FOLE USADO PARA APONTAR FERRAMENTAS

Page 13: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

11

3 Ouvindo a voz do sindicato

De acordo com Canêdo (1991), a palavra “sindicato” só passou a ser usada a partir de

1870 na Europa. Segundo Hobsbawn, citado pela referida autora, foi também nesse período

que apareceram as palavras “indústria”, “socialismo” e “capitalismo”. Todas estas palavras

foram descendentes das associações profissionais de trabalhadores que surgiam,

especificamente na Inglaterra, entre o final do século XVIII e início do século XIX.

Para nós, brasileiros, a consolidação de uma classe trabalhadora, organizada sob o

ponto de vista político e social, surgiu apenas no final do século XIX e, de forma diferenciada

dos países europeus, não estava diretamente ligada à indústria, mas sim ao processo de

expansão da economia cafeeira. Na época as indústrias existentes encontravam-se dispersas,

dificultando a comunicação entre os trabalhadores. Para Canêdo:

Foram as necessidades da economia capitalista de exportação, baseada no café, que

propiciaram profundas modificações no sistema de transportes e nos serviços

portuários, criando diretamente as condições para a formação de um primeiro núcleo

de trabalhadores livres. Indiretamente, foi também esta mesma economia de

exportação que preencheu os requisitos necessários para o surgimento e

concentração do proletariado fabril na região sudeste, em cujas cidades as primeiras

organizações de trabalhadores tomaram impulso (1991, p. 25).

Percebemos que a formação da classe operária brasileira se deu de forma diferente da

européia e, se insistirmos na comparação, de forma tardia. Há de se considerar as diferenças

que permitiram tal disparidade, porém, independente do contexto, para que uma classe

operária possa se firmar como tal é necessário, segundo Canêdo (1991), que exista o mínimo

de comunicação entre seus membros e, principalmente, uma motivação. Passando a olhar os

canteiros de Santa Luz como classe operária, precisamos fazer algumas análises de suas

tentativas de organização.

No ano de 1985, conforme entrevista concedida em 29 de setembro de 2009, pelo

senhor Carlos Matos, Secretário da Cooperativa dos Extratores de Pedra de Santa Luz, foi

criada uma associação denominada Associação Profissional dos Trabalhadores na Indústria de

Extração de Mármores, Calcários, Pedreiras, Granitos de Santa Luz. Através desta Associação

os canteiros realizaram várias reivindicações em nome da classe. Em 1987 essa Associação

foi transformada no Sindicato dos Trabalhadores da Pedra de Santa Luz (Foto 13).

Page 14: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

12

Nos seus vinte e dois anos de existência,

segundo o Senhor Carlos Matos, uma das principais

lutas encampadas pela classe, nesse período, tem

sido a busca da aposentadoria especial para os

canteiros. Outras atividades têm sido realizadas em

parceria com o MOC (Movimento de Organização

Comunitária), a SETRAS (Secretaria do Trabalho e

Ação Social), o SEBRAE (Serviço de Apoio às

Micro e Pequenas Empresas da Bahia), entre outras

instituições.

Dentre as atividades desenvolvidas podemos destacar o trabalho de prevenção de

acidentes, que busca conscientizar os canteiros da importância do uso de materiais de

segurança no trabalho, palestras como a realizada por representantes do Exército brasileiro,

orientando os canteiros no manuseio de explosivos. Segundo Júlio Arilson, tesoureiro da

Cooperativa, a inclusão dos filhos dos trabalhadores da pedra no PETI ( Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil) foi uma vitória do Sindicato, uma vez que essas crianças

não eram contempladas neste programa. Atualmente o Sindicato tem um programa que vai ao

ar todas as segundas-feiras em uma rádio local, onde são veiculadas as notícias sobre os

canteiros e o trabalho nas pedreiras.

Também, ligada ao Sindicato, foi criada em 1997 a Cooperativa dos Trabalhadores

da Pedra de Santa Luz, esta com o objetivo de escoar a produção dos canteiros por um preço

melhor fugindo dos compradores intermediários chamados de “atravessadores”. Os sócios da

Cooperativa também são associados ao sindicato. O pagamento da pedra pela cooperativa é

feito por quinzena e, por iniciativa da cooperativa, foi extinto o “vale”, forma de pagamento

utilizado pelos compradores de pedra que consiste em uma ordem de compra a ser efetuada

em um determinado estabelecimento comercial. Retomaremos posteriormente a discussão

sobre essa forma de pagamento utilizada com grande freqüência nesse setor.

Aparentemente, pelo que foi exposto até aqui, a classe dos canteiros de Santa Luz é

forte no sentido de organização de classe e representação sindical, porém, o que se pode

verificar é que dos mais de mil trabalhadores da pedra, apenas trezentos são sindicalizados,

sendo que destes, menos de cinquenta estão em dias com sua situação no sindicato. Entre os

sindicalizados apenas cerca de trinta e cinco participam ativamente da Cooperativa, ou seja,

FOTO 13 – SEDE DO SINDICATO

Page 15: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

13

fornecem sua produção para o sindicato, os demais vendem sua pedra aos compradores

intermediários. Para Bernardo e Pereira (2008) a queda do percentual de sindicalizados no

Brasil está ligada à capacidade dos trabalhadores em gerir suas próprias lutas. Passemos a

analisar os motivos desta situação específica do Sindicato dos Trabalhadores da Pedra de

Santa Luz por dentro do sindicato.

Sabemos que a história do sindicato no Brasil aponta para um momento que não é dos

melhores. Na década de 90, Ricardo Antunes já alertava:

Os sindicatos estão aturdidos e exercitando uma prática que raramente foi tão

defensiva. Abandonam o sindicalismo de classe dos anos 60/70, aderindo ao acrítico

sindicalismo de participação e de negociação, que em geral aceita a ordem do capital

e do mercado, só questionando aspectos fenomênicos dessa mesma ordem.

Abandonam as perspectivas emancipatórias, da luta pelo socialismo e pela

emancipação do gênero humano, operando uma aceitação também acrítica da

“social-democratização”, ou o que é ainda mais perverso, debatendo no universo da

agenda e do ideário neoliberal (1999, p. 72).

A situação do Sindicato dos Trabalhadores da Pedra de Santa Luz tem suas

especificidades que devem ser consideradas. Não podemos falar de capitalização deste

sindicato considerado por Antunes (2008) “uma praga que vem avassalando sindicatos”, uma

vez que o mesmo não dispõe de capital devido ao número reduzido de associados que

impossibilita a acumulação de capital. A burocratização dos sindicatos, que segundo,

Bernardo e Pereira (2008), é outro motivo da decadência da organização sindical também não

se pode aplicar ao Sindicato dos canteiros de Santa Luz, que conta com um número reduzido

de dirigentes, tendo como presidente do sindicato um canteiro em atividade que não pode ser

considerado um burocrata sindical.

Outra situação atípica que dificulta a organização do movimento sindical dos canteiros

e deve ser considerada é a presença do inimigo oculto, ou seja, a classe dos canteiros se

confunde com o autônomo que tem um “patrão”, como alguns deles tratam os compradores de

pedra, e que na realidade não tem nenhum vínculo empregatício com este “patrão”. Uma das

principais características do sindicato é ser combativo, tendo como principal alvo o patrão, o

empresário. No caso dos canteiros há uma rede de exploração montada onde não existe um

inimigo visível, ou seja, combater e reivindicar nessas condições torna-se uma árdua tarefa

para o sindicato.

Segundo o Sr. Carlos Matos outra dificuldade em conseguir mobilizar a classe se trata

no fato de que:

Page 16: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

14

Cinquenta ou sessenta por cento dos trabalhadores da pedra tem uma roça. Trabalha

na pedra mas tem uma roça. Na época que chove vai fazer uma plantação de feijão,

milho, mandioca, certo? E aí ele vai pra outro sindicato que é o sindicato do

trabalhador rural que lhe dá direito a uma aposentadoria e ai dizem: “aquele

sindicato da pedra não presta não”. A gente tem visto muito isso e pra gente é uma

dificuldade muito grande para juntar mais pessoas, mas, por outro lado a gente fica

feliz porque eles têm outro lado.11

O fato de não ter uma garantia previdenciária realmente torna-se um complicador na

mobilização da classe. Por outro lado, não se pode deixar passar despercebido, a situação que

parecia favorável ao sindicato podendo contar no governo estadual e federal com um aliado,

que é justamente o Partido dos Trabalhadores. A representação política do sindicato não

mostrou nenhum avanço no sentido de cobrar de seus aliados a aposentadoria especial para os

canteiros, inclusive foi votada uma emenda referente a esta questão, em que vários segmentos

foram contemplados e os canteiros foram excluídos. Retomaremos esta discussão

posteriormente na voz dos canteiros. O Sr. Carlos Matos, reconhece que, de uma forma geral,

“depois que elegeu um governo de esquerda o sindicato retraiu-se muito”. Podemos perceber

na fala do Sr. Carlos Matos que as lideranças político-partidárias que representam o Sindicato

não têm demonstrado força ou interesse suficiente para defender a classe e que por outro lado

o sindicato não parece se sentir a vontade para manter uma postura combativa frente aos seus

aliados políticos. Outro elemento dificultador apontado pelas lideranças da Cooperativa dos

Trabalhadores da Pedra de Santa Luz é a falta de apoio do poder público local. Segundo

Alcides Alves Monteiro, presidente da Cooperativa:

Não existe apoio do poder público. Santa luz hoje é o maior produtor de pedra. Eu

costumo dizer que os trabalhadores da pedra são os embelezadores das cidades e

precisam ser olhados com outros olhos, ser mais valorizados, ter políticas voltadas

para esses trabalhadores. 12

Podemos perceber que o Sindicato dos Trabalhadores da Pedra de Santa Luz tem

agido dentro de suas possibilidades. O pouco número de associados contribui para o

enfraquecimento da organização. Um dos maiores motivos desse esvaziamento ainda é a falta

de seguridade junto à previdência, como já foi dito pelo Sr. Carlos Matos. O ex-canteiro

Justino, hoje funcionário público, fez parte do sindicato e testemunhou a luta da entidade pela

aposentadoria especial para os canteiros:

11

Carlos Matos em entrevista concedida em 29/09/2009. 12

Alcides Alves Monteiro em entrevista concedida em 29/09/2009.

Page 17: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

15

Os trabalhadores da pedra, além de trabalharem numa atividade perigosa, uma

atividade de risco, uma atividade que requer o máximo de cuidado e atenção, ainda

tem que viver desamparado em relação à questão previdenciária. Quando um

companheiro se acidenta fica a ver navios, dependendo de ajuda dos amigos. Muitos

acidentes acontecem, companheiros que perderam braços, visão e outros que ficam

com seqüelas pro resto de suas vidas. Vendo essa situação o sindicato, junto com

entidades parceiras, lutaram pela seguridade especial para os canteiros, mas essa luta

está barrada na burocracia do país lá em Brasília. 13

Diante de tantos entraves, alguns canteiros passaram a se organizar criativamente por

conta própria. Vejamos o exemplo da família Abreu que se destacou como canteiros,

escultores e restauradores.

4. A arte na pedra: uma experiência de organização que deu certo

Pelo que vimos até aqui, a situação da classe dos canteiros de Santa Luz parece

insolúvel no que se diz respeito à organização da mesma. Para os mais pessimistas ou

interessados na manutenção dessa política capitalista ditada pelo mercado, em que a “mão

invisível” desse mercado move e controla a economia, a situação está definida. Se

analisarmos com mais atenção veremos, dentro desse mundo dos canteiros, algumas

experiências alternativas que deram e continuam dando resultados. Vimos que os poucos

associados ao sindicato contam com algumas vantagens se comparados com a grande maioria

dos outros canteiros. Passemos a analisar uma experiência bem sucedida no trabalho de

cantaria e escultura em pedra, realizada pela família Abreu, mais conhecida como família

Boaventura, em Santa Luz.

O Senhor Boa Ventura Abreu, mais conhecido como Ventura, mudou a história da

família Abreu de Santa Luz, que passou a ser conhecida na Bahia e no Brasil como família

Boaventura, pelos seus trabalhos realizados nas pedras de granito de Santa Luz que se

espalharam pela Bahia e pelo Brasil, chegando a serem utilizadas como artefatos para

presente até mesmo no exterior, como por exemplo, uma encomenda de um bispo para

presentear o então papa João Paulo II. O famoso jogador de futebol Zico também foi

presenteado com uma peça esculpida em granito pelas mãos da família Boaventura. Esses são

apenas alguns exemplos da propagação da arte na pedra de granito citados por Laécio Abreu,

filho do Sr. Boaventura, em entrevista concedida em 09/11/2009.

13

Ex-canteiro Justino em entrevista concedida em 12/11/2009

Page 18: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

16

Tudo começou em 1968 com o trabalho do Sr. Boaventura, que aprendeu a arte da

cantaria com o Mestre Aurino Lopes, conforme reportagem veiculada na revista Panorama da

Bahia em 29 de agosto de 1986. Naquela ocasião Boaventura afirmava que “mesmo das

pedras podemos extrair coisas bonitas”. Hoje o Mestre Boaventura, assiste com orgulho os

filhos Laécio, Everaldo e Paulo, que dão continuidade na arte de esculpir em pedra que

começou há quarenta e um anos.

Everaldo Matos Abreu, nascido em Santa Luz, iniciou seu trabalho de cantaria ainda

criança, seguindo os passos de seu pai. Em momento algum Everaldo deixou de freqüentar a

escola, segundo Everaldo, uma das principais exigências de seu pai. Seu primeiro trabalho em

restauração foi no ano de 1994 no Liceu de Artes e Ofício da Bahia, conforme entrevista

concedida em 08/11/2009. No ano seguinte foi convidado pela Faculdade de Arquitetura da

Universidade Federal da Bahia (UFBA) a ministrar um curso de Cantaria, onde os alunos

eram operários de prefeituras e empresas de construção civil.

Em março de 1997, foi convidado novamente pela Faculdade de Arquitetura da

Universidade Federal da Bahia (UFBA), através do professor e arquiteto Luiz Botas Dourado,

a participar de um projeto de profissionalização de jovens carentes, onde trabalhou como

instrutor de cantaria na antiga Faculdade de Medicina da Bahia. Em 2001, participou de uma

seleção para um projeto do Ministério da Cultura, chamado Monumenta, que o levou à Itália

para aperfeiçoar sua técnica em restauração no Centro Europeo di Venezia per i mestieri della

conservazione del patrimônio architettonico, na cidade de Veneza, com duração de três

meses. (Foto 14)

Ao retornar ao Brasil em dezembro de

2001, participou do Projeto de Educação

Profissional para o Restauro e Conservação, em

Ouro Preto – Minas

Gerais, promovido

pelo Programa

Monumenta. Através

deste, foi indicado

para diagnosticar

possíveis restauros em alguns monumentos das cidades de Ouro

Preto e Mariana, que durou até julho do mesmo ano. (Foto 15)

Após esta jornada, com retorno a Bahia, atuou em várias FOTO 15 – EVERALDO EM

OURO PRETO – MG

FOTO 14 – EVERALDO (O SEGUNDO DA

ESQUERDA PARA A DIREITA) EM VENEZA –

ITÁLIA

Page 19: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

17

restaurações e outras atividades de cantaria junto com seus irmãos Laécio e Paulo. Entre elas:

o Monumento em homenagem a Independência da Bahia, na Praça do Campo Grande; o

Mosteiro de São Bento, Escadaria da Santa Casa de Misericórdia, piso do Convento de Santo

Antonio do Carmo, Igreja da Barroquinha, Porto da Barra, entre outros. Seu irmão Laécio

Abreu também cita algumas obras realizadas para fora do estado da Bahia, como, Búzios e

Cabo Frio, no Rio de Janeiro. “Algumas peças foram trabalhadas para artistas famosos como

Daniela Mercury e Bel do Chiclete”, afirma Laécio.

Segundo depoimento de Everaldo, veiculado no Jornal A Tarde no dia 02 de

dezembro de 2001, “esculpir a pedra é uma arte”. Atualmente Everaldo é funcionário público

municipal, mas, exerce sua atividade de canteiro e restaurador junto com seus irmãos e alguns

funcionários no ateliê da família em Santa Luz. Estes funcionários também aprenderam a arte

de trabalhar na cantaria com a família Boaventura.

A arte de trabalhar com pedra é motivo de orgulho para toda família, relata Laécio,

irmão de Everaldo e exímio canteiro, segundo o mesmo:

Feliz do pai de família que souber trabalhar na pedreira e tiver o seu filho

trabalhando lá. Ruim é como a gente vê tanto jovem envolvido com droga. As

dificuldades existem para todo mundo, às vezes tem período que a pedreira está

ruim, mas ninguém fica sem comer. Que diferença faz um médico pra um canteiro?

Que diferença faz um engenheiro pra um canteiro? Nenhuma! A diferença de

dinheiro que é grande? Quantos médicos têm ai que são irresponsáveis, que não

valoriza o seu trabalho? Então cada um tem que agradecer a Deus pela profissão que

tem. Ninguém é melhor do que ninguém.14

Segundo Laécio, trabalhar na pedra não é fácil. Requer conhecimento e técnica. O

canteiro que trabalha na extração da pedra, na fase inicial desse processo já necessita de um

conhecimento prévio do que vai fazer:

Quem corta o paralelo é um artista, tem que saber o veio da pedra, não é só chegar lá

furar e bater não. Eles conhecem o veio da pedra no olhar. Eu fico triste quando

alguém diz que tem vergonha de trabalhar em pedra, pois eu tenho o orgulho maior

do mundo.15

A família Boaventura, como é mais conhecida, é um exemplo de organização familiar

que obteve sucesso na cantaria, inclusive com um de seus membros, Everaldo Abreu, tendo a

oportunidade de participar de um treinamento no exterior na área de restauração e trabalhando

14

Laécio Abreu, em entrevista concedida em 09/11/2009. 15

Idem.

Page 20: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

18

como educador em Salvador e Minas Gerais no ofício de cantaria e restauração. Não é difícil

encontrar canteiros que trabalham no sistema de organização familiar e que vivem

dignamente do trabalho desenvolvido, o que prova, apesar das dificuldades, que esta arte

secular pode ser valorizada, de forma a evitar que os canteiros tenham que se deslocar para

outros estados até mesmo para trabalhar em pedreiras, onde a estrutura permite uma maior

renda. Em entrevista concedida a Revista Panorama em 29 de agosto de 1986, o Sr.

Boaventura já demonstrava essa preocupação ao afirmar que tinha o sonho de “... sair da

pequena casa para viver em outra cidade. Qualquer lugar que sua arte fosse valorizada”. Hoje

o Sr. Boaventura tem uma família estruturada, com filhos e netos na arte da cantaria. Vale

salientar que, assim como a família Boaventura e outras famílias que vivem da cantaria, a

profissão dos canteiros ainda está longe de ser reconhecida pela importância que representa

para o município e para o Estado.

O descaso do poder público, tanto estadual e, principalmente, municipal, ameaça

deixar registrado apenas na memória a arte de esculpir na pedra da nossa região. Essa arte

deveria ser valorizada e repassada a outros jovens através de projetos de oficinas e núcleos de

ensino com o apoio do poder público. Essa iniciativa foi tomada no passado, mas hoje só nos

resta admirar a arte da família Boaventura. (Fotos 16 e 17)

5. Ouvindo a voz dos canteiros

Os canteiros, até aqui avaliados sob várias óticas no que diz respeito ao seu trabalho, a

partir de agora serão vistos a partir de dentro da própria classe. Em visita a algumas pedreiras

FOTO 16 – RESTAURAÇÃO EM VENEZA (ITÁLIA) FOTO 17 – CONSTRUÇÃO DE

CHAFARIZ DO MOSTEIRO DE SÃO

BENTO (SALVADOR – BA)

Page 21: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

19

de Santa Luz, destaco a que fiz à Serra do Lajedo, localizada a 12 Km de Santa Luz,(foto 18)

onde estão concentradas a maioria das pedreiras da região. Ouvindo alguns canteiros, parte

deles preferiu que seus nomes não fossem divulgados. Perguntando a E.F.S. (com 52 anos de

idade e trabalhando na extração de pedras desde os 12 anos de idade) o que ele achava do

trabalho nas pedreiras, obtive a resposta: “O trabalho na pedreira não é fácil, mas criei meus

três filho assim... formei dois, um não quis estudar e trabalha na firma do sisal... o trabalho é

duro mas num tenho o que reclamá... cada um no seu cada qual”.

Podemos observar na

voz de E.F.S. uma mistura de

conformismo e orgulho.

Conformismo com a situação

que aparentemente não pode

ser mudada e orgulho de ter

criado a família como ele

mesmo fala “no bico do

ponteiro e na marreta”.

Indubitavelmente o trabalho

na pedreira exige muito do

canteiro. É um trabalho insalubre, com grande grau de periculosidade, realizado sobre a pedra

quente e sob o sol ardente. Estas condições parecem se agravar quando olhamos de fora. O

olhar de quem não está acostumado ao trabalho íngreme parece discordar dos próprios

canteiros, porém, fica claro que além do trabalho árduo, a falta de políticas públicas no âmbito

estadual e, municipal, que visem à valorização dessa classe de trabalhadores agravam a

situação.

Nas palavras do canteiro P.A.O. podemos perceber a indignação com o descaso do

poder público:

Até o ano que passou a gente tinha transporte pra ir pra pedreira. Passou a eleição

quem quiser ir agora tem que ir de pé. Quem tem transporte vai e volta todo dia,

quem não tem dorme na pedreira a semana toda e só vem na sexta ou no sábado.

Cadê o sindicato? Num resolve nada, por isso que eu sai do sindicato.

FOTO 18 – SERRA DO LAJEDO À 12 KM DE SANTA LUZ, ONDE ESTÃO

CONCENTRADAS A MAIORIA DAS PEDREIRAS

Page 22: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

20

A revolta expressa nas palavras do canteiro P.A.O. se refere ao deslocamento que ele

tem que fazer diariamente de Santa Luz até a pedreira onde trabalha, distante 12 Km da sede

do município. Até o ano de 2008 a Prefeitura Municipal fornecia transporte aos canteiros,

levando os mesmos até as pedreiras mais distantes e indo buscá-los no final da tarde.

Atualmente o prefeito suspendeu o transporte, alegando falta de verbas. Um fato também

interessante é a cobrança que o canteiro faz com relação à atuação do sindicato. Essa prática

entre os canteiros que não são sindicalizados, a maioria, é bastante comum. Segundo o Sr.

Carlito, secretário da Coopertaiva ligada ao Sindicato, “essa resistência é normal”. Segundo

Antunes (1998) um grande desafio do sindicato está na elaboração de um programa que

incorpore os trabalhadores que vivem na economia

informal.

O canteiro L.M.A., comentando a situação

da sua classe afirma: “Fundando uma associação

seria muito mais fácil arrumar alguma coisa junto

ao governo estadual e ao governo federal,

municipal já não digo, pois existe a „picuinha‟

política, mas mesmo assim acredito que arrumaria

alguma coisa”.

Pode-se perceber que o grande problema

dessa classe não está apenas no fato, como muitos

acreditam, das condições naturais do trabalho que

fazem do mesmo uma profissão árdua e rigorosa, mas principalmente, na falta de políticas

públicas voltadas para esse setor da economia, que culmina com o agravamento de problemas

como a falta de valorização dessa mão-de-obra, o risco de acidentes (Foto 19), problemas de

saúde, a informalização desse setor da economia que acaba por desvalorizar essa atividade e

dificultar a organização da classe. A crítica que o canteiro L.M.A. faz aos políticos procede,

até pelo fato de conhecermos a forma de se fazer política nas pequenas cidades do interior do

Brasil, porém não isenta a falta de iniciativa dos próprios trabalhadores.

A grande maioria dos entrevistados comunga com a idéia de que falta união à classe.

O canteiro A.C.S. comenta a sua experiência ao retornar de São Paulo e tentar investir o

dinheiro que tinha ganhado na compra de pedras:

Eu cheguei de São Paulo com um dinheirinho que eu ganhei lá trabalhando na pedra

também. Continuei trabalhando aqui na pedreira... aqui em Santa Luz. Avisei aos

meus colegas que eu tava comprando pedra com um preço melhor do que o da praça.

FOTO 19 – CANTEIRO FABRICANDO

PÓLVORA

Page 23: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

21

Eu mesmo tava querendo vender a minha produção direto sem atravessador. Sabe o

que foi que um colega comentou? “Não vou vender pedra a quem bate marreta como

eu”. Saí do ramo porque a turma preferia vender mais barato ao atravessador.

O canteiro L.M.A. volta a falar da dificuldade de organização da classe:

Eu olho muito dentro do pessoal que trabalha nas pedreiras a falta de união. Quando

você procura tentar organizar alguma coisa, você começa a receber o nome de

ladrão. Já é como se você quisesse roubar alguma coisa. Uma certa época eu tomei a

iniciativa de fazer uma reunião pra gente tentar abrir uma associação. A minha

participação era só pra tentar ajudar, eu não queria cargo nem nada, não queria pegar

em dinheiro. Na primeira reunião que a gente fez o comentário já saiu que a gente

tava querendo roubar. Foi essa a palavra usada. Ai eu pensei: eu estou tentando

ajudar, nem comecei já tô recebendo o nome de ladrão, então eles que se virem.

Essa desconfiança dos canteiros com relação às instituições e até mesmo, em relação

aos colegas, pode ser resultado da crise nacional que avassalou os sindicatos, segundo

(ANTUNES, 1998). A corrupção na política brasileira também contribuiu para que as pessoas

enxerguem com desconfiança toda e qualquer ação em nome do coletivo, seja ela do poder

público ou não. Essa atitude defensiva também está ligada à falta de segurança que vive o

trabalhador da pedra em Santa Luz. Uma vez que o Sindicato não resolve imediatamente os

problemas da classe, esta prefere se subordinar aos empresários que garantem, pelo menos, a

compra de parte de sua produção. Lembrando que, na grande maioria das vezes, é paga com o

chamado “vale”, ordem de compra que substitui o pagamento em espécie. Não podemos

também isentar a classe dos canteiros dos seus problemas internos que interferem no interesse

coletivo.

A produção semanal de paralelepípedos em Santa Luz, há seis meses, era de

aproximadamente cem mil paralelos por semana a um preço por milheiro de R$120,00. Hoje

essa produção triplicou para trezentos mil paralelos semanais, o que dá cerca um milhão e

duzentos mil paralelos por mês, o que deixa Santa Luz em posição de maior fornecedora deste

tipo de produto no Estado da Bahia. A

prefeitura comprava pedra e estocava

enquanto o preço estava baixo. Hoje

não compra mais. (Ver foto 20).

A média de produção semanal de um

canteiro é de 2500 a 3000 paralelos por

FOTO 20 – ESTOQUE DE PEDRAS COMPRADAS

PELA PREFEITURA

Page 24: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

22

semana. O preço de um milheiro de paralelos está variando entre R$130,00 e R$150,00.

Dificilmente o canteiro recebe sua produção à vista, ou seja, o “vale” é uma alternativa que os

compradores de pedra usam para pagar ao canteiro. Mesmo que estejam precisando do

dinheiro o canteiro é obrigado a aceitar o vale e, muitas vezes, trocá-lo com outros

comerciantes que cobram uma taxa de cinco a dez por cento sobre o valor do vale. Essa

prática diminui no período de maior demanda. Para garantir a fidelidade dos fornecedores,

que poderiam vender sua pedra a quem oferecesse mais por ela, os compradores tradicionais

passam a usar menos a prática do “vale” quando o mercado está aquecido.

É nesse mesmo período de muita procura que aparecem duas figuras emblemáticas no

mundo do trabalho dos canteiros, que por sinal funcionam como um complicador na

organização dessa classe. Essas figuras são chamadas pelos canteiros de “faisqueiros” e

“charlatões”. Os faisqueiros são compradores de pedra temporários que aparecem do nada

oferecendo maior preço e desestabilizando o mercado. Os charlatões são aproveitadores que

se beneficiam com a situação e se apresentam como canteiros e vendem pedra de estoques

inexistentes, recebendo o dinheiro adiantado e deixando a má fama para os canteiros.

Mais que um trabalho duro, como é considerado a profissão dos canteiros, é um

trabalho cheio de fatores complicadores que impedem a sua organização. Para os canteiros a

dureza da labuta é normal, difícil mesmo é lidar com tantas adversidades. Um caminho

evidente para equacionar o problema é a organização da classe de alguma forma. Percebam na

fala de Epifânio Balduíno, hoje com 52 anos de idade, que segundo o mesmo, se apresentava

resistente às questões referentes à organização de classe:

Eu comecei a trabalhar na pedreira eu tinha idade de 17 anos e eu sempre achei que

o serviço é bom. È um pouco duro, mas a gente acostuma... Aqui em Santa Luz não

tem outro recurso. Tem muito serviço, mas dos piores serviços a pedra é o melhor. O

serviço é duro mas você não depende de ninguém, às vez a gente não é

recompensado, mas... O sindicato anda na frente do atravessador, eu não sou

sindicalizado, eu vendo a minha produção a quem chegar com cinco conto a mais ou

dez. Se nós tudo se associasse no sindicato, a produção que nós tirasse toda aqui no

município, nós podia repassar pro sindicato e ai o preço podia ser muito melhor.

Mas um vende de um preço outro vende de outro. Eu vendo mais caro outro vende

mais barato...

O exemplo acima mostra que os canteiros têm consciência do potencial da classe e que

está faltando união. O Sr. Epifânio não é uma exceção. A grande maioria dos canteiros

concorda que precisam se organizar ou em sindicato ou associação. As dificuldades são ainda

mais acentuadas com a reprodução de um discurso de fora da classe. “A turma é

desorganizada”. Essa expressão sobre os canteiros tornou-se um jargão. Essa suposta

Page 25: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

23

desorganização interessa aos beneficiados da atual situação desses trabalhadores e que

fomentam essa “desorganização”.

Por outro lado, já que os canteiros esperam mais do Sindicato e desconfiam do poder

de ação do mesmo o que os impede de se organizarem de outra forma? O que falta aos

canteiros, que trabalham bem próximos uns dos outros nas pedreiras, é se aproximarem no

que diz respeito aos ideais de organização, uma vez que já demonstraram ter consciência de

classe. Estamos analisando um processo histórico e devemos compreender que as mudanças

são lentas, mas devemos considerar que se trata de uma classe de trabalhadores centenária e

que avançou pouco no sentido de organização. Se considerarmos a trajetória de vinte e poucos

anos de Sindicato podemos vislumbrar avanços, porém, se analisarmos o contexto como um

todo, percebemos que muito pode ser feito e que essas ações dependem exclusivamente da

organização dessa classe. Lutar contra as leis do mercado, cobrar políticas públicas, se impor

como classe só será possível pensando e agindo coletivamente. A falta de liderança que

convença a turma de seu potencial coletivo contribui de forma decisiva para a estagnação

desses trabalhadores enquanto classe.

6. Considerações Finais

No período estudado as reflexões sobre os canteiros como classe de trabalhadores

permitiram a desconstrução de alguns conceitos formados ao longo do tempo, assim como a

afirmação de outros. Ouvir as vozes dos sujeitos envolvidos nesse contexto foi de imensurável

importância para o entendimento de situações complexas que parecem óbvias para quem

lança um olhar de fora. Segundo Alves (1997), explicar a posteriori é fácil, problemático é

compreender as tendências de nosso tempo e se orientar, quando tudo a nosso redor está se

transformando. Analisar o papel de um sindicato dentro de uma classe que ainda está se

formando no sentido de organização e no momento que os sindicatos amargam uma crise

nacional de mais de duas décadas é preciso cuidado. Reproduzir o discurso de que a classe

dos canteiros é desorganizada também requer atenção, uma vez que essa suposta

desorganização tem sido bastante favorável para muitos. Colocar toda a culpa no poder

público e isentar a classe dos canteiros de qualquer responsabilidade é ignorar o papel dos

próprios canteiros na construção de sua história e da sua identidade coletiva.

Na perspectiva de evidenciar os progressos e as dificuldades que tem marcado a

história dessa classe de trabalhadores foi possível entender melhor o que chamei no início

desse artigo de contexto complexo que é o mundo do trabalho dos canteiros de Santa Luz. Um

Page 26: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

24

misto de liberdade e extrema dependência. Trabalhadores que se dizem autônomos e ao

mesmo tempo tem alguém a quem chamam de patrão. Um patrão cujo único vínculo

estabelecido é a compra da produção semanal que se configura como um favor. A aparente

autonomia na realidade engana e sufoca a voz desse trabalhador, impedindo-lhe de se arriscar

mais e mascarando uma realidade de trabalho duro, sem investimento do poder público e com

uma diversidade enorme de aproveitadores da situação. Podemos dizer que são as armadilhas

do capitalismo tão combatido por Marx.

A forma como se desenvolve a atividade interfere na saúde do trabalhador, conforme

defende Laurell e Noriega (1989). A situação insalubre enfrentada pelos canteiros tem que ser

pensada no âmbito social e não de forma isolada. Para que isso se torne possível, as decisões

devem ser tomadas de dentro da classe que está sendo prejudicada. A iniciativa e as cobranças

junto aos responsáveis pelo bem-estar e pela segurança dos trabalhadores têm que partir dos

mesmos. Lutar contra as relações exploradoras e opressivas intrínsecas ao capitalismo,

segundo Thompson (1987), é imprescindível para uma classe de trabalhadores.

No que se diz respeito às políticas públicas, percebe-se claramente que a preocupação

do Estado também está ligada à produção. Pouco ou nada se faz para tirar da informalidade e

garantir os direitos previdenciários dos trabalhadores avulsos, ficando estes reféns da sorte e

do tempo, como se fossem seres diferentes. O Estado precisa focar os setores mais

vulneráveis da economia. A formação profissional, como se tem comentado, não representa

política pública para os canteiros. Se assim fosse, melhor seria extinguir a classe, ou melhor,

formar profissionalmente esses trabalhadores em outras áreas. A política aqui seria a de

regulamentação dessa atividade, uma vez que o Estado e a Legislação Trabalhista estão

voltados para os setores mais modernos da economia.

Para Hobsbawm (2000), mesmo a ação coletiva requer estruturas e lideranças para que

sejam eficazes. Enfim, muito se fala em diferentes tipos de organização no mundo do

trabalho, contudo, pouco se discute a inserção das classes marginalizadas, como a dos

canteiros e outros extrativistas, nessas formas de organização. A modernização de um país vai

além do seu progresso tecnológico e torna-se necessário a iniciativa da própria classe dos

canteiros em organizar-se de alguma forma, já que são os únicos interessados e até agora

prejudicados com a situação atual. Trabalhar como canteiro é uma arte, viver dessa arte é um

desafio, enfrentar esse desafio de forma isolada é um sacrifício, portanto organizar-se é a

melhor forma de valorizar a arte e os artistas da cantaria.

Page 27: O trabalho dos canteiros de santa luz e suas formas de organização

25

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