o terceiro tira

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O terceiro tira, do irlandês Flann O’Brien (1911-1966), é um dos mais insólitos romances em língua inglesa, verdadeira alegoria do absurdo somente comparável a Alice no País das Maravilhas. Trata-se de uma genial e cômica história sobre a natureza do crime, da morte e da existência, contada por um narrador que cometeu um homicídio brutal. O romance acompanha esse insólito protagonista em suas aventuras em uma delegacia de polícia de duas dimensões e seu confronto com as mais disparatadas teorias, como a Teoria Atômica, a relação desta com bicicletas, a existência da eternidade e a opinião do filósofo-cientista De Selby de que a Terra não é esférica, mas do formato de uma salsicha.Com ajuda da sua recém-encontrada alma, chamada “Joe”, nosso anti-herói se debate com as charadas e enigmas que três excêntricos policiais lhe apresentam. Um vertiginoso e refinado livro que leitor algum poderá esquecer. Craig Wright, roteirista da série norte-americana "Lost", incluiu, no terceiro episódio da segunda temporada (que foi ao ar nos Estados Unidos em outubro de 2005 e que foi veiculado no Brasil pelo canal de TV a cabo AXN em março de 2006) um exemplar de O terceiro tira, de Flann O’Brien. E mais: declarou, em entrevista ao jornal Chicago Tribune, que o livro foi escolhido “muito especialmente por uma razão” e que quem o ler terá “mais munição” para especular sobre os enigmas da série. Em "Lost", os supostos sobreviventes de um acidente aéreo encontram-se em uma ilha aparentemente deserta que, no entanto, se mostra cada vez mais perigosa.

TRANSCRIPT

  • A existncia humana sendo uma alucinao contendo em si prpria as alucinaes secundrias do dia e da noite (estas ltimas uma condio insalubre daatmosfera devida aos acmulos de ar negro), seu mal consiste em todo homem de bom senso se preocupar com a aproximao ilusria da alucinaosuprema conhecida por morte.

    De Selby

    J que as questes humanas persistem ainda que incertas,Ponderemos sobre o pior que possa advir.

    Shakespeare

  • INem todos sabem como matei o velho Phillip Mathers, despedaando sua boca com a minha p; mas antes melhor falar daminha amizade com John Divney porque foi ele quem derrubou primeiro o velho Mathers dando-lhe uma tremenda cacetada nopescoo com uma bomba de bicicleta especial que ele prprio fabricou usando uma barra de ferro oca. Divney era um homemforte e corts mas preguioso e vagabundo. Ele foi pessoalmente responsvel pela ideia toda em primeiro lugar. Foi ele quemme disse para trazer a minha p. Foi ele quem deu as ordens na ocasio e tambm as explicaes quando elas foram exigidas.

    Nasci muito tempo atrs. Meu pai era um fazendeiro robusto e minha me era dona de uma taberna. Vivamos todos nataberna, mas no era uma casa prspera e ficava fechada a maior parte do dia porque meu pai estava fora na fazenda e minhame estava sempre na cozinha e por algum motivo os fregueses nunca vinham antes da hora de dormir; e bem depois disso napoca do Natal e nos outros dias especiais como aquele. Nunca vi minha me fora da cozinha em minha vida e nunca vi umfregus durante o dia, e mesmo noite nunca vi mais de dois ou trs juntos. Mas ento eu estava na cama parte do tempo e possvel que as coisas se passassem diferentemente com minha me e com os fregueses tarde da noite. Do meu pai eu no melembro bem, mas era um homem forte e no falava muito exceto aos sbados, quando citava Parnell[*] para os fregueses e diziaque a Irlanda era um pas singular. Da minha me consigo me lembrar perfeitamente. Seu rosto estava sempre vermelho eirritado por se curvar sobre o fogo; ela passou a vida fazendo ch para passar o tempo e cantando trechos de velhas canespara passar o meio tempo. Conheci-a bem, mas meu pai e eu ramos estranhos e no conversvamos muito; na verdade, comfrequncia, quando eu estava estudando na cozinha noite podia ouvi-lo atravs da fina porta que dava para a loja falando alide seu assento sob o lampio durante horas a fio com Mick, o co pastor. Era sempre a cantilena da voz dele que eu ouvia,nunca os fragmentos separados de palavras. Ele era um homem que entendia todos os ces inteiramente e os tratava comoseres humanos. Minha me tinha um gato, mas era um animal estranho e vadio e era raramente visto, e minha me nunca deumuita bola para ele. ramos todos bastante felizes de um modo estranho e independente.

    Ento um certo ano chegou a poca do Natal, e quando o ano se foi meu pai e minha me tambm se foram. Mick, o copastor, ficou muito cansado e triste depois que meu pai se foi e no dava conta das ovelhas de maneira nenhuma; tambm elese foi no ano seguinte. Eu era jovem e tolo na poca e no sabia exatamente por que estas pessoas tinham todas me deixado epor que no tinham dado explicaes de antemo. Minha me foi a primeira a partir e posso me lembrar de um homem gordocom o rosto rubro e um terno preto dizendo a meu pai que no havia dvida quanto a onde ela estava, que ele podia ter tantacerteza daquilo quanto podia ter de qualquer outra coisa neste vale de lgrimas. Mas ele no mencionou onde e, como eu acheique a coisa toda era muito privada e que ela poderia voltar na quarta-feira, no lhe perguntei. Depois, quando meu pai se foi,achei que ele tinha ido busc-la num cabriol, mas quando nenhum dos dois retornou na quarta-feira seguinte, fiquei triste edesapontado. O homem do temo preto estava de volta novamente. Ele ficou na casa por duas noites e estava continuamentelavando as mos no quarto e lendo livros. Havia outros dois homens, um deles pequeno e plido e o outro um negro alto deperneiras. Tinham os bolsos cheios de pennies e me davam um cada vez que eu lhes fazia perguntas. Posso me lembrar dohomem alto de perneiras dizendo para o outro homem:

    Pobrezinho do infeliz filho da puta.No entendi isto na hora e achei que estavam falando sobre o outro homem de roupa preta que estava sempre ocupado

    com o lavatrio no quarto. Mas entendi tudo claramente depois.Aps alguns dias eu prprio fui levado embora num cabriol e enviado para uma escola estranha. Era um internato cheio

    de pessoas que eu no conhecia, algumas jovens e algumas mais velhas. Logo vim a saber que era uma boa escola e muitocara, mas no paguei dinheiro nenhum s pessoas que cuidavam de mim porque no tinha nenhum. Tudo isso e muito mais eucompreendi claramente mais tarde.

    Minha vida nesse colgio no importa exceto por uma coisa. Foi aqui que primeiro vim a conhecer algo de De Selby. Umdia peguei indolentemente um velho livro esfarrapado no gabinete do professor de cincias e o pus dentro do bolso para ler nacama na manh seguinte, j que acabara de ganhar o privilgio de levantar tarde. Eu tinha uns dezesseis anos ento, e a dataera sete de maro. Ainda acho aquele dia o mais importante na minha vida e posso record-lo com mais presteza que o do meuaniversrio. O livro era uma primeira edio de Horas douradas com as duas ltimas pginas faltando. poca em que eutinha dezenove e chegara ao final da minha educao, sabia que o livro era valioso e que ao conserv-lo estava roubando-o.No obstante, meti-o em minha sacola sem o menor remorso e provavelmente faria o mesmo se tivesse a oportunidade denovo. Talvez seja importante na histria que irei contar lembrar que foi por De Selby que cometi meu primeiro pecado grave.Foi por ele que cometi o meu maior pecado.

    Havia muito que eu passara a saber como estava situado no mundo. Toda a minha gente estava morta e havia um homemchamado Divney tocando a fazenda e vivendo nela at que eu voltasse. Ele no era dono de nada dela e recebia semanalmentecheques de pagamento de um escritrio cheio de procuradores numa cidade distante. Eu nunca estivera com estes procuradorese nunca estivera com Divney, mas estavam todos na verdade trabalhando para mim e meu pai tinha pagado em dinheiro vivo

  • por estes acordos antes de morrer. Quando eu era mais jovem achava-o um homem generoso por fazer aquilo por um garotoque nem conhecia bem.

    No fui para casa diretamente do colgio. Passei alguns meses em outros lugares, alargando meus horizontes eaveriguando quanto uma edio completa das obras de De Selby me custaria e se alguns dos livros menos importantes dosseus comentadores poderiam ser obtidos a crdito. Num dos locais onde estava alargando meus horizontes sofri uma noite umacidente feio. Quebrei a minha perna esquerda (ou, se quiserem, ela me foi quebrada) em seis lugares, e quando eu estavasuficientemente bem de novo para prosseguir tinha uma perna de madeira, a esquerda. Sabia que s tinha um pouco dedinheiro, que estava indo para casa para uma fazenda pedregosa e que a minha vida no seria fcil. Mas estava certo quelaaltura que a lavoura, mesmo que eu tivesse que faz-lo, no seria a ocupao da minha vida. Sabia que se meu nome tivesseque ser lembrado, seria lembrado com o de De Selby.

    Posso recordar com todos os detalhes a noite em que entrei de volta em minha prpria casa com uma bolsa de viagem emcada mo. Eu tinha vinte anos de idade; era um entardecer num vero feliz e ensolarado e a porta da taberna estava aberta.Atrs do balco estava John Divney, apoiado no painel baixo de cerveja preta com a entreperna, os braos perfeitamentecruzados e o rosto baixado sobre um jornal aberto em cima do balco. Tinha cabelos castanhos e uma constituio bastanteatraente, de um modo um tanto atarracado; seus ombros eram alargados pelo trabalho e os braos eram grossos como pequenostroncos de rvore. Tinha um rosto sereno e corts com olhos como os olhos de uma vaca, meditativos, castanhos e pacientesQuando ele percebeu que algum entrara, no interrompeu sua leitura, mas sua mo esquerda saiu em busca e encontrou umtrapo de pano e comeou a aplicar lentos golpes midos no balco. Ento, ainda lendo, moveu as mos uma acima da outracomo se estivesse abrindo uma sanfona em toda sua extenso e disse:

    Um caneco?Um caneco era o que os fregueses chamavam um meio litro de Coleraine no caneco grande de couro alcatroado. Era a

    cerveja preta mais barata do mundo. Eu disse que queria o meu jantar e mencionei meu nome e posio. Ento fechamos a lojae fomos para dentro da cozinha e ficamos l quase a noite toda, comendo, conversando e bebendo usque.

    O dia seguinte era uma quinta-feira. John Divney disse que o seu trabalho agora estava terminado e que estaria prontopara ir para a casa onde a sua gente estava no sbado. No era correto dizer que seu trabalho estava terminado porque afazenda estava em pssimo estado e a maior parte do trabalho do ano no tinha sido nem iniciada. Mas no sbado ele disseque havia algumas coisas para concluir e que no poderia trabalhar no domingo, mas que estaria em condies de entregar olugar em perfeita ordem na noite de tera. Na segunda ele teve um porco doente para cuidar e aquilo atrasou. Ao final dasemana estava mais ocupado do que nunca e a passagem de outros dois meses no pareceu aliviar ou reduzir suas tarefasurgentes. No me importei muito porque, embora fosse um trabalhador um pouco limitado, era satisfatrio no que diziarespeito companhia e nunca pedia pagamento. Trabalhei um pouco no lugar por minha conta, usando todo meu tempo paraorganizar os meus papis e reler ainda mais atentamente as pginas de De Selby.

    Um ano inteiro ainda no se passara quando percebi que Divney estava usando a palavra ns em sua conversa e, piorque isso, a palavra nosso. Dizia que o lugar no estava exatamente como podia ser e falava em arranjar um empregado. Noconcordei com isso e assim lhe disse, afirmando que no havia necessidade de mais de dois homens numa fazenda eacrescentando, com grande infelicidade para mim mesmo, que ramos pobres. Depois disso era intil tentar lhe dizer que eraeu o dono de tudo. Comecei a confessar a mim prprio que, mesmo eu sendo dono de tudo, ele era dono de mim.

    Quatro anos se passaram de um modo bastante feliz para cada um de ns. Tnhamos uma boa casa e abundante comida daroa, mas pouco dinheiro. Quase todo o meu tempo era passado em estudos. Das minhas economias eu tinha agora compradoas obras completas dos dois principais comentadores, Hatchjaw e Bassett, e uma fotocpia do Cdice de Selby. Eu tambmembarcara na tarefa de aprender o francs e o alemo perfeitamente a fim de ler as obras de outros comentadores naquelaslnguas. Divney vinha trabalhando mediocremente na fazenda durante o dia, falando aos brados na taberna durante a noite eservindo drinques l. Uma vez lhe perguntei como ia indo a taberna e ele disse que estava perdendo dinheiro nela todo dia.No entendi isso porque os fregueses, a julgar pelas suas vozes atravs da porta fina, eram bastante numerosos e Divneyestava continuamente comprando ternos e elegantes alfinetes de gravata para si prprio. Mas eu no disse nada. Estavasatisfeito por ser deixado em paz porque sabia que meu prprio trabalho era mais importante que eu mesmo.

    Um dia, no incio do inverno, Divney me disse: No posso perder muito mais do meu prprio dinheiro naquele bar. Os fregueses esto reclamando da cerveja preta.

    uma pssima cerveja preta porque eu mesmo tenho que beber um pouco de vez em quando para lhes fazer companhia e estoume sentindo muito mal com ela. Terei que me afastar por dois dias e viajar um pouco e ver se consigo uma marca melhor decerveja preta.

    Ele sumiu na manh seguinte em sua bicicleta e, quando voltou todo empoeirado e exausto da viagem ao final de trs dias,disse-me que estava tudo certo e que quatro barris de uma cerveja preta melhor podiam ser esperados na sexta-feira. Elachegou pontualmente naquele dia e foi bem recebida pelos fregueses na taberna aquela noite. Era fabricada em alguma cidadedo sul e conhecida como A Brigona. Se voc bebesse uns dois litros dela, ela quase certamente venceria. Os fregueses lhefaziam altos elogios e quando a botavam para dentro cantavam e gritavam e s vezes se deitavam no cho ou l fora na estrada

  • em completo estupor. Alguns deles reclamavam depois que tinham sido roubados enquanto nesse estado e falavamraivosamente dentro da loja na noite seguinte sobre dinheiro roubado e relgios de ouro que tinham sido arrancados de suasgrossas correntes. John Divney no fazia comentrios sobre o assunto com eles e no o mencionou em absoluto a mim.Escreveu em letra de forma as palavras CUIDADO COM OS LADRES com letras enormes num cartaz e o pendurou atrsdas prateleiras ao lado de outro aviso que tratava de cheques. Apesar disso raramente se passava uma semana sem que algumfregus reclamasse aps uma noite com A Brigona. No era uma coisa a contento.

    Com o passar do tempo Divney foi ficando cada vez mais animado com o que ele chamava o bar. Dizia que ficariasatisfeito se o mesmo no desse prejuzo mas que duvidava seriamente que isso algum dia acontecesse. O governo era emparte responsvel pela situao devido aos altos impostos. Ele achava que no ia poder continuar suportando o nus dasperdas sem alguma ajuda. Eu disse que meu pai tinha alguma forma antiquada de administrar que tornava possvel o lucro, masque a loja devia ser fechada se ainda continuasse a dar prejuzo. Divney disse apenas que era uma coisa muito sria abrir mode uma licena.

    Foi mais ou menos nessa poca, quando eu estava prximo dos trinta, que Divney e eu comeamos a adquirir a fama desermos grandes amigos. Durante anos antes daquilo eu raramente sa. Isto era porque estava to ocupado com meu trabalho quequase nunca tinha tempo; tambm a minha perna de pau no era muito boa para caminhar. Ento algo muito incomum aconteceupara mudar isso tudo e, depois que ocorreu, Divney e eu nunca nos separamos por mais de um minuto fosse de noite ou de dia.O dia inteiro eu ficava fora com ele na fazenda e noite me sentava no velho assento do meu pai sob o lampio num canto databerna trabalhando nos meus papis na medida do possvel, em meio aos gritos, cotoveladas e rudos irados que sempreacompanhavam A Brigona. Se Divney saa para passear no domingo at a casa de um vizinho eu ia com ele e voltava paracasa com ele novamente, nunca antes ou depois dele. Se ele ia at uma cidade na sua bicicleta para encomendar cerveja pretaou plantar batatas ou mesmo para ver uma certa pessoa, eu ia na minha prpria bicicleta ao seu lado. Trouxe minha camapara dentro do quarto dele e me dei ao trabalho de s dormir depois que ele estivesse dormindo e de estar bem desperto umaboa hora antes de ele se espreguiar. Uma vez quase falhei na minha vigilncia. Lembro-me de ter despertado num sobressaltona madrugada de uma noite negra e de encontr-lo se vestindo em silncio no escuro. Perguntei-lhe aonde estava indo e eledisse que no conseguira dormir e que achara que uma caminhada lhe faria bem. Eu disse que eu prprio estava na mesmasituao e fomos os dois andar juntos na noite mais fria e mida por que jamais passei. Quando voltamos encharcados eu disseque era tolice dormirmos em camas separadas num tempo to cruel e fui para a cama dele ao seu lado. Ele no fezcomentrios, naquela ou em nenhuma outra ocasio. Dormi sempre com ele depois daquilo. ramos amistosos e sorramos umpara o outro, mas a situao era estranha e nenhum dos dois a apreciava. Os vizinhos ainda no percebiam o quo inseparveisramos. Vivamos aquela condio de estarmos sempre juntos h quase trs anos e diziam que ramos os dois melhorescristos de toda a Irlanda. Diziam que a amizade humana era uma coisa linda e que Divney e eu ramos o exemplo mais nobredisso na histria mundial. Se outras pessoas tinham desavenas ou brigavam ou discordavam, perguntavam-lhes por que nopodiam ser como eu e Divney. Teria sido um choque tremendo para todos caso Divney aparecesse em qualquer lugar aqualquer momento sem mim ao seu lado. E no estranho que duas pessoas nunca tenham vindo a desgostar uma da outra toamargamente como eu e Divney? E duas pessoas nunca foram to corteses uma com a outra, to amigveis na aparncia.

    Tenho que voltar vrios anos para explicar o que ocorreu para motivar esta situao peculiar. A certa pessoa a quemDivney ia visitar uma vez por ms era uma garota chamada Pegeen Meers. De minha parte eu havia completado meu ndiceDe Selby definitivo, no qual as opinies de todos os comentadores conhecidos sobre cada aspecto do sbio e de sua obratinham sido coligidas. Cada um de ns, portanto, tinha algo grande em mente. Um dia Divney me disse:

    Este um livro importante que voc escreveu, no tenho dvida. til admiti e tremendamente procurado. De fato ele continha muita coisa que era inteiramente nova e

    provas de que muitas opinies amplamente sustentadas sobre De Selby e suas teorias eram equivocadas com base em msinterpretaes de suas obras.

    Ele poderia fazer a sua fama no mundo e sua fortuna dourada em direitos autorais? Poderia. Ento, por que voc no o publica?Expliquei que necessrio dinheiro para publicar um livro desse tipo, a menos que o autor j tenha uma reputao. Ele

    me lanou um olhar solidrio que no lhe era costumeiro e suspirou. O dinheiro est difcil de obter hoje em dia disse ele com o comrcio de bebidas nas ltimas e a terra

    completamente exaurida e necessitando adubos artificiais que no podem ser obtidos de graa nem por dinheiro devido stramoias dos judeus e dos maons.

    Eu sabia que no era verdade sobre os adubos. Ele j tinha me alegado que era impossvel obt-los porque no queria seincomodar com o trabalho. Aps uma pausa ele disse:

    Teremos que ver o que podemos fazer para conseguir dinheiro para o seu livro e de fato eu prprio estou precisandode algum porque no se pode querer que uma garota espere at ficar muito velha para esperar mais.

    Eu no sabia se ele tinha a inteno de trazer uma esposa, caso arranjasse alguma, para dentro da casa. Se o fizesse e eu

  • no pudesse impedi-lo, ento eu teria que partir. Por outro lado, se o casamento implicasse que ele prprio partisse, acho queeu ficaria contentssimo com isso.

    Passaram-se alguns dias antes que ele falasse neste assunto de dinheiro novamente. Ento ele disse: Que tal o velho Mathers? Que que tem ele?Eu nunca vira o velho, mas sabia tudo a respeito dele. Tinha passado uma longa vida de cinquenta anos no comrcio de

    gado e agora vivia retirado num casaro a cinco quilmetros de distncia. Ele ainda fazia negcios vultosos atravs de agentese as pessoas diziam que levava nada menos que trs mil libras consigo cada vez que claudicava at o vilarejo para depositar oseu dinheiro. Por pouco que eu conhecesse de convenes sociais na poca, no sonharia em pedir-lhe auxlio.

    Ele no vale um pacote de fcula de batata disse Divney. No acho que devssemos ir atrs de esmola respondi eu. Tambm acho que no disse ele. Era um homem orgulhoso a seu prprio modo, pensei, e no mais se disse na

    ocasio. Mas depois disso ele pegou o hbito de inserir ocasionalmente em conversa sobre outros assuntos alguma observaoirrelevante sobre nossa necessidade de dinheiro e a quantia dele que Mathers levava em seu cofrinho preto; s vezes eleinsultava o velho, acusando-o de pertencer ao conluio do adubo artificial ou de ser desonesto nas suas transaescomerciais. Uma vez disse algo sobre justia social, mas para mim era bvio que ele no compreendia propriamente otermo.

    No sei exatamente como ou quando ficou claro para mim que Divney, longe de querer esmola, pretendia assaltarMathers, e no consigo recordar quanto tempo demorou para eu compreender que ele tinha igualmente a inteno de mat-lo afim de evitar a possibilidade de ser identificado como o assaltante depois. Sei apenas que em seis meses eu passara a aceitaresse plano sinistro como um lugar-comum em nossa conversa. Mais trs meses se passaram antes que eu pudesse resolverconcordar com a proposta e outros trs meses antes de admitir abertamente a Divney que minhas apreenses tinham acabado.Me impossvel narrar os truques e artifcios que ele usou para me fazer passar para o seu lado. suficiente dizer que ele liatrechos de meu ndice De Selby (ou fingia faz-lo) e discutia comigo em seguida a sria responsabilidade de qualquerpessoa que se furtasse por mera questo de capricho pessoal a entregar o ndice ao mundo.

    O velho Mathers vivia sozinho. Divney sabia em que tarde e em que trecho deserto da estrada prximo a sua casa oencontraramos com seu cofre de dinheiro. A tarde em que a coisa se deu foi em pleno inverno; a claridade j estavadiminuindo quando nos sentamos para jantar discutindo o assunto que tnhamos em mos. Divney disse que devamos levarnossas ps presas nos tubos dos quadros das nossas bicicletas porque isso faria com que parecssemos homens caandocoelhos; ele traria sua prpria bomba de ferro caso tivssemos um pneu furado.

    Pouco h a dizer sobre o crime. O cu enfarruscado parecia conspirar conosco, descendo numa mortalha de lgubreneblina at poucos metros da estrada mida onde aguardvamos. Tudo estava em completo silncio, sem nenhum rudo emnossos ouvidos exceto o gotejar das rvores. Nossas bicicletas estavam escondidas. Eu me apoiava miseravelmente em minhap e Divney, a bomba de ferro debaixo do brao, fumava seu cachimbo prazerosamente. O velho nos alcanou quase antes depercebermos que havia algum prximo. No pude v-lo bem na obscuridade, mas pude vislumbrar um rosto consumido eexangue perscrutando do topo do enorme sobretudo preto que o cobria das orelhas at o tornozelo. Divney adiantou-seimediatamente e apontando para trs ao longo da estrada disse:

    Seria seu aquele embrulho na estrada?O velho virou a cabea para olhar e recebeu um golpe atrs do pescoo com a bomba de Divney que o derrubou direto no

    cho e provavelmente esmigalhou sua coluna cervical. Ao tombar estirado na lama ele no soltou um grito. Em vez disso ouvi-o dizer alguma coisa suavemente em tom de conversa algo como no ligo para aipo ou sempre sigo meu hbito. Entoficou deitado completamente inerte. Eu estivera assistindo cena bastante estupefato, ainda apoiado na minha p. Divneyvasculhou furiosamente a figura cada e ento ficou em p. Tinha um cofrinho preto na mo. Agitou-o no ar e rosnou para mim:

    Aqui, acorda! Acaba com ele com a p!Adiantei-me mecanicamente, brandi a p por cima do ombro e vibrei a lmina com toda a minha fora no queixo

    protuberante. Senti e quase ouvi a estrutura do crnio dele se esfarelar vivamente como uma casca de ovo vazia. No seiquantas vezes o golpeei em seguida, mas no parei at ficar cansado.

    Joguei a p no cho e olhei em volta buscando Divney. Ele no estava vista. Chamei seu nome em voz baixa mas eleno respondeu. Andei um pouquinho estrada acima e chamei novamente. Galguei a elevao de uma vala e perscrutei ao redorna penumbra crescente. Chamei o nome dele mais uma vez to alto quanto pude ousar, mas no houve resposta no silncio. Elefora embora. Tinha fugido com o cofre de dinheiro, deixando-me sozinho com o homem morto e com uma p que agoraprovavelmente estava tingindo a lama encharcada ao redor dela com uma plida mancha rosada.

    Meu corao falhava dolorosamente nas suas batidas. Um arrepio de terror atravessou meu corpo inteiro. Caso algumaparecesse, nada no mundo me salvaria da cadeia. Se Divney ainda estivesse comigo para partilhar a minha culpa, tampoucoisso me protegeria. Paralisado de medo, fiquei um longo tempo olhando para o montinho amarrotado dentro do sobretudopreto.

  • Antes de o velho chegar, Divney e eu tnhamos cavado um buraco bem fundo no mato beira da estrada, tomando cuidadopara preservar as placas de grama. Agora em pnico arrastei a pesada figura encharcada de onde jazia e levei-a com tremendoesforo por cima da vala para dentro do mato deixando-a cair no buraco. Ento corri de volta at a minha p e comecei alanar e empurrar a terra novamente no buraco numa louca fria cega.

    O buraco estava quase cheio quando ouvi passos. Olhando em torno inteiramente assustado vi a inconfundvel silhueta deDivney transpondo cuidadosamente a vala para dentro do mato. Quando ele me alcanou apontei pateticamente para o buracocom a minha p. Sem dizer uma palavra ele foi at onde estavam nossas bicicletas, voltou com sua prpria p e trabalhoumetodicamente comigo at concluir a tarefa. Fizemos todo o possvel para ocultar qualquer vestgio do que ocorrera. Entolimpamos nossas botas com grama, prendemos as ps e andamos para casa. Algumas pessoas com quem nos encontramos naestrada desejaram-nos boa noite no escuro. Estou certo de que nos tomaram por dois trabalhadores cansados rumando paracasa aps um dia duro de trabalho. No estavam muito errados.

    No caminho eu disse a Divney: Onde que voc estava naquela hora? Tratando de um assunto importante respondeu ele. Achei que ele estava se referindo a uma certa coisa e disse: Com toda certeza voc podia ter deixado para depois. No o que voc est pensando respondeu ele. Voc est com o cofre?Ele virou o rosto para mim essa vez, franziu-o e ps um dedo sobre os lbios. No to alto sussurrou. Est num lugar seguro. Mas onde?A nica resposta que ele me deu foi pr um dedo sobre o lbio mais firmemente e fazer um longo psiu. Dava-me a

    entender que mencionar o cofre, mesmo num sussurro, era a coisa mais tola e imprudente que eu podia fazer.Quando chegamos em casa ele se afastou, se lavou e vestiu um dos muitos ternos domingueiros azuis que possua. Quando

    voltou para onde eu estava sentado, uma msera figura junto ao fogo da cozinha ficou na minha frente com o rosto bem srio,apontou para a janela e gritou:

    Seria seu aquele embrulho na estrada?Ento soltou uma risada trovejante que pareceu relaxar seu corpo inteiro e transformar seus olhos em gua e estremecer a

    casa inteira. Quando terminou, enxugou as lgrimas do rosto, entrou na loja e fez um rudo que s pode ser feito arrancando-sea rolha de uma garrafa de usque rapidamente.

    Nas semanas seguintes perguntei-lhe onde a caixa estava uma centena de vezes de mil formas diferentes. Ele nuncarespondia da mesma maneira, mas a resposta era sempre a mesma. Estava num lugar bem seguro. Quanto menos se falassesobre aquilo, melhor, at, as coisas se aquietassem. Psiu era a senha. Ela seria achada no momento oportuno. Em termos desegurana o lugar em que estava era superior ao Banco da Inglaterra. Bons tempos estavam a caminho. Seria uma pena prtudo a perder por precipitao ou impacincia.

    E foi por isso que John Divney e eu nos tornamos amigos inseparveis e por que nunca permiti que sasse da minha vistadurante trs anos. Depois de me roubar na minha prpria taberna (tendo inclusive roubado os meus fregueses) e depois dearruinar a minha fazenda, eu sabia que ele era suficientemente desonesto para roubar a minha parte do dinheiro de Mathers efugir com o cofre caso tivesse a chance. Eu sabia que no havia a menor necessidade de aguardar at que as coisas seaquietassem porque mal se percebeu o sumio do velho. As pessoas diziam que ele era um homem estranho e perverso e queir embora sem dizer a ningum ou deixar seu endereo era o tipo de coisa que ele faria.

    Acho que j disse que as condies peculiares de intimidade fsica sob as quais eu prprio e Divney nos encontrvamoshaviam se tornado cada vez mais intolerveis. Nos ltimos meses eu tivera a esperana de obrig-lo a capitular tornando aminha companhia insuportavelmente prxima e implacvel, mas ao mesmo tempo passei a carregar uma pequena pistola para ocaso de acidentes. Uma noite de domingo, quando estvamos os dois sentados na cozinha os dois, incidentalmente, nomesmo lado do fogo , ele tirou o cachimbo da boca e voltou-se para mim:

    Sabe disse , acho que as coisas se aquietaram.Dei apenas um grunhido. Entendeu o que eu quis dizer? perguntou ele. As coisas nunca estiveram de outra forma respondi laconicamente.Ele me olhou com um ar de superioridade. Estou por dentro destas coisas disse , e voc ficaria surpreso com as ciladas em que um homem pode cair caso

    se apresse demais. Todo cuidado pouco, mas mesmo assim acho que as coisas se aquietaram o suficiente para torn-loseguro.

    Estou contente por voc achar isso. Vm por a bons tempos. Amanh eu vou buscar o cofre e ento dividiremos o dinheiro, bem aqui em cima desta mesa. Ns vamos buscar o cofre respondi, dizendo a primeira palavra com o maior cuidado. Ele me lanou um longo

  • olhar ofendido e me perguntou com tristeza se eu no confiava nele. Respondi que ns dois devamos terminar o que ns doishavamos comeado.

    Tudo bem disse ele de um modo bastante irritado. pena voc no confiar em mim depois de todo o trabalhoque fiz para tentar pr este lugar em ordem; mas para mostrar como eu sou, vou deixar voc mesmo ir buscar o cofre, amanheu digo onde est.

    Tive o cuidado de dormir com ele como de costume naquela noite. Na manh seguinte ele estava com melhor humor e medisse com a maior simplicidade que o cofre estava escondido na prpria casa deserta de Mathers, sob as tbuas do assoalhono primeiro quarto direita da entrada.

    Tem certeza? perguntei. Juro disse ele solenemente, erguendo a mo para o cu.Considerei a situao por um instante, examinando a possibilidade de ser um ardil para separar-se de mim finalmente e

    depois escapar ele prprio para o verdadeiro esconderijo. Mas seu rosto pela primeira vez parecia exibir um ar dehonestidade.

    Sinto se feri seus sentimentos na noite passada disse eu , mas para mostrar que no h ressentimentos eu ficariacontente se voc viesse comigo pelo menos parte do caminho. Acho honestamente que ns dois devamos terminar o que nsdois iniciamos.

    Tudo bem disse ele. D no mesmo, mas eu gostaria que voc buscasse o cofre com as suas prprias mos,porque apenas justo depois de no ter contado a voc onde que ele estava.

    Como a minha prpria bicicleta estava com um pneu furado percorremos a distncia caminhando. Quando estvamos acerca de cem metros da casa de Mathers, Divney parou junto a um muro baixo e disse que ia ficar sentado nele fumando seucachimbo e esperando por mim.

    Pode ir sozinho buscar o cofre e traz-lo de volta pra c. Vm por a bons tempos e seremos homens ricos esta noite.Ele est pousado sob uma tbua no cho do primeiro quarto direita, no canto oposto porta.

    Trepado como ele estava em cima do muro, eu sabia que ele nunca sairia da minha vista. No curto tempo em que meafastaria poderia v-lo a qualquer momento em que virasse a cabea.

    Estarei de volta em dez minutos disse eu. Bom rapaz respondeu ele. Mas lembre-se disso. Se voc encontrar algum, voc no sabe o que est

    procurando, no sabe na casa de quem voc est, no sabe de nada. No sei nem o meu prprio nome respondi.Foi algo bastante digno de nota o que eu disse porque na prxima vez em que me perguntaram meu nome no fui capaz de

    responder. Eu no sabia.

    [*] Charles Stewart Parnell (1846-1891), lder poltico irlands. (N. do T.)

  • II

    De Selby tem certas coisas interessantes a dizer sobre o tema casas.[1] Uma fila de casas ele encara como uma fila de malesnecessrios. A debilitao e degenerao da raa humana ele atribui sua progressiva predileo por interiores e ao interessedecrescente pela arte de sair e ficar fora. Isto por sua vez ele v como o resultado do aumento de ocupaes, tais como aleitura, o jogo de xadrez, a bebida, o casamento e afins, poucas das quais podem ser satisfatoriamente conduzidas ao ar livre.Em outro lugar,[2] ele define uma casa como um enorme caixo, uma coelheira, e uma caixa. Evidentemente suaprincipal objeo era o confinamento de um teto e quatro paredes. Atribua propriedades teraputicas um tanto esdrxulas principalmente pulmonares a certas estruturas de sua prpria concepo que chamava de habitats, desenhos toscos queainda podem ser vistos nas pginas de lbum do campo. Essas estruturas eram de dois tipos: casas sem telhado e casassem paredes. As primeiras tinham amplas portas e janelas abertas com superestruturas extremamente deselegantes deencerados frouxamente enrolados em mastros contra o mau tempo o conjunto parecendo-se com um navio vela naufragadoerigido sobre uma plataforma de alvenaria e o ltimo lugar onde se pensaria em abrigar nem que fosse gado. O outro tipo dehabitat tinha o convencional telhado de ardsia, mas nenhuma parede salvo uma, que devia ser erguida na direo do ventodominante; em volta dos outros lados ficavam os inevitveis encerados frouxamente esticados em roldanas suspensas nascalhas do telhado, a estrutura toda cercada por uma vala ou fosso minsculo guardando certa semelhana com latrinasmilitares. A luz das teorias atuais sobre habitao e higiene, no resta a menor dvida de que De Selby estava bastanteequivocado nessas ideias, mas em seus prprios tempos remotos mais de um doente perdeu a vida numa imprudente aventuraem busca da sade nessas fantsticas moradias.[3]

    Minhas recordaes de De Selby foram avivadas por minha visita residncia do velho sr. Mathers. Aproximando-medela pela estrada a casa parecia ser uma bela e espaosa construo de tijolos de idade indeterminada, da altura de doisandares com um prtico comum e oito ou nove janelas na fachada de cada pavimento.

    Abri o porto de ferro e caminhei o mais suavemente possvel pelo caminho de cascalho com tufos de ervas daninhas.Minha cabea estava estranhamente vazia. No sentia que estava para concluir com xito um plano em que trabalhara noite edia ininterruptamente durante trs anos. No sentia a menor excitao de prazer e estava indiferente quanto perspectiva deficar rico. S estava ocupado com a tarefa mecnica de encontrar um cofre preto.

    A porta da entrada estava fechada e, embora ficasse bem recuada num prtico bastante amplo, o vento e a chuva haviamjuntado uma camada de p arenoso nas almofadas e bem dentro da fenda onde a porta abria, mostrando que ela estiveracerrada h anos. De p sobre um canteiro de flores abandonado, tentei empurrar para cima o caixilho da primeira janela esquerda. Ele cedeu minha fora, spera e obstinadamente. Me introduzi pela abertura agarrando-me com os ps e as mos edei comigo no direto em um quarto, mas rastejando pela sacada mais longa que j vi. Quando alcancei o assoalho e puleisobre ele ruidosamente, a janela aberta parecia bem distante de mim e pequena demais para ter me admitido.

    O quarto onde me encontrei estava coberto de poeira, bolorento e desprovido de qualquer moblia. Aranhas tinhamesticado enormes extenses de teia ao redor da lareira. Avancei rapidamente para o corredor, abri com um empurro a portado quarto onde o cofre estava e me detive na soleira. Era uma manh escura e o tempo tingira as janelas com turvaes de umacamada cinzenta que impediam a parte mais brilhante da luz plida de entrar. O canto mais distante do quarto era uma nvoade sombras. Senti uma nsia sbita de dar cabo da minha tarefa e cair fora desta casa para sempre. Atravessei as tbuasdesnudas, ajoelhei-me no canto e passei as mos pelo assoalho em busca da tbua solta. Para minha surpresa encontrei-afacilmente. Tinha uns sessenta centmetros de comprimento e balanou em falso sob minha mo. Ergui-a, coloquei-a de lado erisquei um fsforo. Vi um cofrinho preto de metal aninhado obscuramente no buraco. Meti a mo l embaixo e coloquei umdedo sob a ala solta pendente, mas o fsforo subitamente bruxuleou e se apagou e a ala da caixa, que eu erguera algunscentmetros, escorregou pesadamente do meu dedo. Sem me deter para acender outro fsforo, enfiei a mo toda dentro daabertura e bem no instante em que ela devia estar se fechando em torno da caixa, algo aconteceu.

    No posso pretender descrever o que foi, mas a coisa me assustou muitssimo antes que a tivesse compreendido mesmoque de leve. Foi alguma mudana que se abateu sobre mim ou sobre o quarto, indescritivelmente sutil, ainda que momentnea,inefvel. Foi como se a luz do dia tivesse mudado com uma subtaneidade anormal, como se a temperatura da tarde tivesse sealterado enormemente num instante ou como se o ar tivesse ficado duas vezes mais rarefeito ou duas vezes mais denso do queestava num piscar de olhos; talvez tudo isso e outras coisas tenham acontecido juntas pois todos os meus sentidos sedesorientaram a um s tempo e no puderam me oferecer qualquer explicao. Os dedos da minha mo direita, metidos naabertura no cho, tinham-se fechado mecanicamente, no encontrado absolutamente nada e subido de volta novamente vazios.A caixa desaparecera!

    Ouvi um tossido atrs de mim, brando e natural, embora mais perturbador que qualquer som que jamais pudesse descersobre o ouvido humano. Que eu no tenha morrido de pavor se deveu, eu acho, a duas coisas: o fato de que meus sentidos j

  • estavam desconcertados e capazes de interpretar para mim somente de forma gradual o que tinham percebido e tambm o fatode que a emisso do tossido pareceu trazer consigo alguma alterao mais terrvel em tudo, exatamente como se ele tivessemantido o universo em suspenso por um instante, detendo os planetas em suas trajetrias, fazendo parar o sol e retendo no arqualquer coisa cadente que a terra estivesse puxando em sua direo. Tombei debilmente para irs da posio ajoelhada,caindo sentado frouxamente no cho. O suor brotou da minha testa e meus olhos permaneceram abertos por longo tempo semuma piscadela, embaados e quase cegos.

    No canto mais escuro do quarto prximo janela havia um homem sentado numa cadeira, olhando-me com brando masinabalvel interesse. Sua mo avanara lentamente at a mesinha ao seu lado para aumentar a chama de um lampio que estavasobre ela. O lampio tinha uma manga de vidro com o pavio fracamente visvel dentro dele, ondulando em convulses comoum intestino. Havia utenslios de ch sobre a mesa. O homem era o velho Mathers. Me observava em silncio. No se mexianem falava e poderia ainda estar morto, salvo pelo ligeiro movimento de sua mo no lampio, a suavssima torcida de seupolegar e indicador no regulador do pavio. A mo era amarelada, a pele enrugada pendia frouxamente sobre os ossos. Sobre on do seu indicador pude ver claramente o traado de uma veia descamada.

    difcil escrever sobre uma cena tal ou transmitir com palavras conhecidas as sensaes que vieram bater minha menteentorpecida. Por quanto tempo ficamos sentados ali, por exemplo, olhando um para o outro, eu no sei. Anos ou minutospoderiam ter sido consumidos com idntica facilidade naquele indescritvel e inenarrvel intervalo. A claridade da manhsumiu da minha vista, o assoalho empoeirado era como um nada sob mim e meu corpo inteiro se dissolveu, deixando-meexistindo apenas no olhar estupefato e enfeitiado que partia fixamente de onde eu estava para o outro canto.

    Lembro-me de ter observado vrias coisas de um modo frio e mecnico como se estivesse sentado ali sem qualquerpreocupao a no ser observar tudo o que via. Seu rosto era aterrorizante, mas os olhos no meio dele tinham uma qualidadede frieza e averso que fazia suas outras feies me parecerem quase amigveis. A pele era como pergaminho murcho com umarranjo de rugas e pregas que criavam entre si uma expresso de insondvel inescrutabilidade. Mas os olhos eram terrveis.Olhando para eles tive a sensao de que no eram em absoluto olhos autnticos mas cpias mecnicas ativadas poreletricidade ou algo do gnero, com um minsculo furinho no centro da pupila por dentro do qual o olho verdadeiroespreitava furtivamente e com extrema frieza. Tal concepo, possivelmente sem o menor fundamento de fato, perturbou-meagoniadamente e deu margem em minha mente a interminveis especulaes quanto cor e caracterstica do olho verdadeiro,quanto a se, na verdade, era de todo real ou meramente outra cpia com seu furinho no mesmo nvel do primeiro, de forma queo olho verdadeiro, possivelmente por detrs de milhares daqueles disfarces absurdos, olhasse para fora atravs de um cilindrode compactos visores. Ocasionalmente as pesadas plpebras queijosas baixavam-se lentamente com extrema languidez e entose erguiam novamente. Envolto frouxamente no corpo havia um velho robe cor de vinho.

    Em minha aflio pensei comigo mesmo que talvez se tratasse do irmo gmeo dele, mas na mesma hora ouvi algumdizer:

    Dificilmente. Se voc olhar com cuidado para o lado direito do pescoo dele vai perceber que h um esparadrapo ouuma atadura ali. A garganta e o queixo dele tambm esto enfaixados.

    Desalentadamente, olhei e vi que aquilo era verdade. Ele era o homem que eu assassinara, sem a menor dvida. Estavasentado numa cadeira a uns quatro metros de distncia me observando. Estava sentado sem fazer um movimento, como se commedo de machucar as feridas abertas que cobriam o seu corpo. De um lado a outro dos meus ombros uma rigidez se espalharapelos meus esforos com a p.

    Mas quem pronunciara aquelas palavras? Elas no tinham me assustado. Foram claramente audveis para mim embora eusoubesse que no ressoaram pelo ar como o glido tossido do velho na cadeira. Elas vieram das minhas profundezas, da minhaalma. Nunca antes eu acreditara ou suspeitara ter uma alma, mas naquele instante soube que tinha. Soube tambm que minhaalma era amistosa, era minha snior em anos e estava unicamente preocupada com o meu prprio bem-estar. Por conveninciachamei-a de Joe. Senti-me um pouco mais tranquilo em saber que no estava inteiramente s. Joe estava me ajudando.

    No tentarei narrar o espao de tempo que se seguiu. Na terrvel situao em que me encontrava, meu intelecto no podiame prestar nenhuma ajuda. Eu sabia que o velho Mathers fora abatido com uma bomba de bicicleta de ferro, retalhado at amorte com uma pesada p e depois seguramente enterra do num campo. Tambm sabia que o mesmo homem agora estavasentado no mesmo quarto comigo, observando-me em silncio. Seu corpo estava enfaixado, mas seus olhos estavam vivos,assim como a sua mo direita e assim como tudo nele. Talvez o assassinato beira da estrada fosse um sonho ruim.

    No h nada de sonho nos seus ombros duros. No, respondi, mas um pesadelo pode ser to extenuante fisicamentecomo a coisa real.

    Resolvi um tanto desonestamente que a melhor coisa a fazer era acreditar no que os meus olhos estavam vendo em vez dedepositar minha confiana numa lembrana. Resolvi demonstrar indiferena, conversar com o velho e testar a sua prpriarealidade perguntando sobre o cofre preto que era responsvel, se alguma coisa podia ser, por cada um de ns estar do jeitoque estava. Resolvi ser audacioso porque sabia que estava correndo grande perigo. Sabia que ficaria louco a menos que melevantasse do cho, me mexesse, falasse e me comportasse da maneira mais trivial possvel. Afastei o olhar do velho Mathers,me pus cuidadosamente de p e sentei numa cadeira que no estava muito distante dele. Ento olhei de volta para ele, meu

  • corao estacando por um tempo e voltando a trabalhar com lentas marteladas que pareciam fazer toda minha estruturaestremecer. Ele permanecera perfeitamente imvel, mas a mo direita viva segurara o bule de ch, erguera-o de modo bastantedesajeitado e entornara uma poro na xcara vazia. Seus olhos tinham me seguido at a minha nova posio e agora estavamme olhando fixos novamente com o mesmo inabalvel e lnguido interesse.

    Subitamente comecei a falar. As palavras vertiam de dentro de mim como se fossem produzidas por um mecanismo.Minha voz, trmula a princpio, foi ficando mais firme e mais alta e encheu o quarto todo. No me lembro o que disse noincio. Estou certo de que a maior parte era sem sentido, mas eu estava por demais satisfeito e tranquilizado com o som naturale saudvel de minha lngua para me preocupar com as palavras.

    O velho Mathers no se mexeu nem disse nada no comeo, mas eu tinha certeza de que ele estava me escutando. Poucodepois ele comeou a balanar a cabea e ento tive certeza de ouvi-lo dizer No. Fiquei excitado com as respostas dele ecomecei a falar com cautela. Ele denegou a minha indagao sobre a sua sade, recusou-se a dizer para onde fora o cofrepreto e at negou que fosse uma manh escura. Sua voz tinha um efeito dissonante peculiar como a spera badalada de um sinoantigo enferrujado numa torre sufocada por heras. Ele no dissera nada alm da palavra No. Seus lbios quase no semoveram; fiquei certo de que ele no tinha dentes por detrs deles.

    Voc est morto no momento? perguntei. No estou. Voc sabe onde a caixa est? No.Ele fez outro movimento brusco com o brao direito, despejando gua quente dentro do seu bule de ch e entornando um

    pouco mais da fraca infuso em sua xcara. Ento recaiu em sua atitude de imvel vigilncia. Ponderei por um tempo. Voc gosta de ch fraco? perguntei. No gosto disse ele. Voc gosta mesmo de ch? perguntei. De ch forte, fraco ou mais ou menos? No disse ele. Ento por que voc o bebe?Ele balanou seu rosto amarelado de um lado para o outro tristemente e no disse nada. Quando parou de balanar, abriu

    a boca e despejou dentro a xcara cheia de ch como quem despeja um balde de leite dentro da batedeira.Voc percebe alguma coisa?No, respondi, nada alm da lugubridade desta casa e do homem que seu dono. Ele no de maneira nenhuma o melhor

    interlocutor que j encontrei.Percebi que falava de um modo bem despreocupado. Enquanto falando para dentro ou para fora ou pensando no que dizer

    me sentia bastante corajoso e normal. Mas toda vez que vinha um silncio o pavor da minha situao baixava sobre mim comoum pesado cobertor jogado por cima da minha cabea, me envolvendo, me sufocando e me fazendo temer a morte.

    Mas voc no observa nada quanto ao modo como ele responde s suas perguntas?No.Voc no v que toda resposta na negativa? No importa o que voc lhe pergunte ele diz No.Isso bem verdade, disse eu, mas no vejo aonde isso me leva.Use a sua imaginao.Quando tornei a voltar toda a minha ateno para o velho Mathers, achei que ele tinha adormecido. Estava sentado diante

    de sua xcara de ch numa postura mais curvada, como se fosse uma pedra ou parte da cadeira de madeira onde se sentava, umhomem completamente morto e petrificado. Por cima dos olhos as plpebras flcidas tinham abaixado, quase fechando-os. Suamo direita pousada sobre a mesa jazia inerte e largada. Serenei minhas ideias e lhe dirigi uma pergunta abrupta e barulhenta.

    Ser que voc responde a uma pergunta direta? perguntei. Ele se mexeu um pouco, suas plpebras abrindo-seligeiramente.

    No respondo replicou ele.Vi que esta resposta estava de acordo com a arguta sugesto de Joe. Fiquei sentado pensando por um momento at ter

    pensado o mesmo pensamento pelo avesso. Ser que voc se recusa a responder a uma pergunta direta? perguntei. No me recuso respondeu ele.Esta resposta me agradou. Ela significava que minha mente tinha afrontado a dele, que agora eu estava quase discutindo

    com ele e que estvamos procedendo como dois seres humanos normais. Eu no entendia todas as coisas terrveis que tinhamme acontecido, mas agora comecei a achar que devia estar enganado sobre elas.

    Muito bem disse eu serenamente: Por que que sempre responde No?Ele se mexeu perceptivelmente em sua cadeira e encheu a xcara de ch novamente antes de falar. Parecia estar com

    alguma dificuldade em encontrar as palavras. No , falando de uma maneira geral, uma resposta melhor que Sim disse ele afinal. Parecia falar com avidez,

  • suas palavras saindo como se tivessem ficado aprisionadas em sua boca por centenas de anos. Parecia aliviado por eu terencontrado uma forma de faz-lo falar. Achei que at sorriu ligeiramente para mim, mas isso era sem dvida um embuste daclaridade da manh feia ou uma travessura armada pelas sombras do lampio. Ele sorveu um longo gole de ch e ficou sentadona expectativa, me olhando com seus olhos esquisitos. Agora eles estavam brilhantes e ativos e se moviam de um lado para ooutro agitadamente em suas rbitas amarelas e enrugadas.

    Voc se recusaria a me explicar por que diz isso? perguntei. No disse ele. Quando eu era rapaz levei uma vida inadequada e devotei a maior parte do meu tempo a

    excessos de um tipo ou de outro, minha principal fraqueza sendo a Nmero Um. Tambm fui partidrio da formao de umconluio do adubo artificial.

    Minha mente voltou imediatamente a John Divney, fazenda e taberna, e dali em diante at a tarde terrvel quepassamos na mida estrada deserta. Como se para interromper os meus tristes pensamentos, ouvi a voz de Joe novamente,desta vez severa:

    No precisa perguntar a ele o que Nmero Um, no queremos trgicas descries de vcios ou de absolutamentenada nesta linha. Use a sua imaginao. Pergunte-lhe o que tudo isso tem a ver com Sim e No.

    O que que isso tudo tem a ver com Sim e No? Aps algum tempo disse o velho Mathers me ignorando , percebi misericordiosamente o erro dos meus atos e o

    triste destino a que eu chegaria a menos que os corrigisse. Retirei-me do mundo a fim de tentar compreend-lo e de descobrirpor que ele fica mais detestvel medida que os anos se acumulam sobre o corpo de um homem. O que que voc acha que eudescobri ao trmino das minhas meditaes?

    Senti-me contente de novo. Agora ele me fazia perguntas. O qu? Que No uma palavra melhor do que Sim respondeu ele.Isto parecia nos deixar na mesma, pensei eu.Pelo contrrio, muito longe disso. Estou comeando a concordar com ele. H um bocado de coisas a serem ditas

    sobre o No como um Princpio Geral. Pergunte-lhe o que que ele quer dizer. O que que voc quer dizer? indaguei. Quando eu estava meditando disse o velho Mathers , tirei de dentro todos os meus pecados e os pus em cima da

    mesa, por assim dizer. No preciso lhe dizer que era uma mesona.Ele pareceu dar um sorriso sarcstico com a sua prpria piada. Dei um risinho para encoraj-lo. Examinei-os com todo rigor, sopesei-os e estudei-os sob todos os ngulos do compasso. Perguntei a mim mesmo como

    vim a comet-los, onde que eu estava e com quem eu estava quando vim a pratic-los.Este um material extremamente saudvel, cada palavra um sermo em si mesma. Oua com a mxima ateno.

    Pea-lhe que continue. Continue disse eu.Confesso que senti um estalido dentro de mim bem prximo ao estmago, como se Joe tivesse posto um dedo sobre os

    lbios e empinado um par de bambas orelhas de sabugo para se certificar de que nenhuma slaba da sabedoria lhe escaparia.O velho Mathers continuou a falar calmamente.

    Descobri disse ele que tudo que voc faz em resposta a um pedido ou sugesto feita a voc por alguma outrapessoa, seja dentro ou fora de voc. Algumas dessas sugestes so boas e louvveis e algumas delas so indubitavelmentedeliciosas. Mas a maioria delas definitivamente m e so pecados bastante considerveis enquanto pecados. Voc est meentendendo?

    Perfeitamente. Eu diria que as ms superam as boas de trs para uma.De seis para uma se voc me perguntasse. Portanto eu decidi dizer No dali por diante a toda sugesto, pedido ou pergunta, seja vinda de dentro ou de fora.

    Era a nica frmula simples que era confivel e segura. Foi difcil de praticar no incio e frequentemente exigiu herosmo, masperseverei e quase nunca sucumbi por completo. J faz muitos anos que no digo Sim. Recusei mais pedidos e denegueimais afirmaes do que qualquer homem vivo ou morto. Rejeitei, reneguei, discordei, recusei e neguei num grau que inacreditvel.

    Um regime excelente e original. Isso tudo extremamente interessante e salutar, cada slaba um sermo em si mesma.Muito, muito saudvel.

    Extremamente interessante disse eu ao velho Mathers. O sistema conduz paz e ao contentamento disse ele. As pessoas no se do ao trabalho de lhe perguntar coisas

    se sabem que a resposta invariavelmente a mesma. Pensamentos que no tm chance de vingar no se do sequer ao trabalhode ocorrer na sua cabea.

    Voc deve ach-lo penoso de certa forma sugeri. Se, por exemplo, eu fosse lhe oferecer um copo de usque...

  • Os poucos amigos que eu tenho respondeu ele so geralmente bondosos o bastante para formular tais convitesde um modo que me permite ser fiel ao meu sistema e tambm aceitar o usque. Mais de uma vez me perguntaram se eurecusaria tais coisas.

    E a resposta ainda NO? Certamente.Joe nada disse nesta altura, mas tive a impresso de que esta confisso no fora do seu agrado; ele pareceu ficar inquieto

    dentro de mim. O velho pareceu ter ficado um tanto nervoso tambm. Curvou-se sobre sua xcara de ch abstrado como seestivesse ocupado em consumar um sacramento. Ento ele bebeu com sua garganta oca, fazendo rudos vazios.

    Um homem santo.Voltei-me para ele novamente, temendo que seu acesso de loquacidade tivesse passado. Onde que est o cofre preto que estava debaixo do assoalho um instante atrs? perguntei. Apontei para a abertura

    no canto. Ele sacudiu a cabea e no disse nada. Voc se recusa a me dizer? No. Voc faz objeo a que eu o pegue? No. Ento onde que ele est? Como o seu nome? ele perguntou subitamente.Fiquei surpreso com essa pergunta. Ela no tinha nada a ver com a minha prpria conversa, mas no percebi sua

    irrelevncia porque fiquei chocado ao perceber que, por simples que fosse, no podia respond-la. Eu no sabia o meu nome,no me lembrava quem eu era. No tinha certeza de onde tinha vindo ou de qual era o meu objetivo naquele quarto. Descobrique no tinha certeza de nada salvo da minha busca pelo cofre preto. Mas sabia que o nome do outro homem era Mathers e queele tinha sido morto com uma bomba e uma p. Eu no tinha nome.

    Eu no tenho nome respondi. Ento como que eu poderia dizer a voc onde o cofre est se voc no ia poder assinar um recibo? Isso seria

    extremamente irregular. Eu poderia igualmente entreg-lo ao vento oeste ou fumaa de um cachimbo. Como que voc iapoder autenticar um documento bancrio importante?

    Sempre posso arrumar um nome respondi. Doyle ou Spaldman um bom nome tanto quanto OSweeny,Hardiman e OGara. Posso escolher qualquer um. No estou atado vida por uma palavra como a maioria das pessoas.

    No gosto muito de Doyle disse ele distraidamente.O nome Bari. Signor Bari, o eminente tenor. Quinhentas mil pessoas apinharam a enorme piazza quando o grande

    artista apareceu no balco de So Pedro em Roma.Felizmente estas observaes no eram audveis no sentido comum mundano. O velho Mathers estava de olho em mim. Qual a sua cor? perguntou ele. A minha cor? Certamente voc sabe que tem uma cor? As pessoas frequentemente comentam o meu rosto vermelho. No estou falando absolutamente disso.Acompanhe isto atentamente, isto com certeza extremamente interessante. Muito edificante tambm.Vi que era preciso interrogar o velho Mathers com cuidado. Voc se recusa a explicar esta pergunta sobre as cores? No disse ele. Despejou mais ch em sua xcara. Sem dvida voc est ciente de que os ventos tm cores disse ele. Achei que ele se acomodava mais

    descansadamente em sua cadeira e alterava suas feies at elas parecerem um pouco mais afveis. Nunca percebi isso. Um registro desta crena pode ser encontrado na literatura de todos os povos antigos.[4] Existem quatro ventos e oito

    subventos, cada um com a sua prpria cor. O vento do leste roxo-escuro, o do sul um belo prata brilhante. O vento norte inteiramente negro, e o leste mbar. As pessoas de antigamente tinham o poder de perceber essas cores e podiam passar odia sentadas tranquilamente numa encosta observando a beleza dos ventos, seu declnio, intensificao e diferentes matizes, amgica dos ventos vizinhos quando esto entrelaados como fitas num casamento. Era um passatempo, melhor do que olhar osjornais. Os subventos tinham cores de indescritvel delicadeza, um amarelo-avermelhado a meio caminho entre o prata e oroxo, um verde-acinzentado puxando tanto ao preto quanto ao marrom. Que coisa poderia ser mais requintada do que o campovarrido levemente pela chuva fresca avermelhada pela brisa sudoeste!

    E voc consegue ver essas cores? perguntei. No. Voc estava me perguntando qual era a minha cor. Como que as pessoas adquirem suas cores?

  • A cor de uma pessoa ele respondeu lentamente a cor do vento predominante no seu nascimento. Qual a sua prpria cor? Amarelo-claro. E qual o sentido de saber a sua cor ou at mesmo de ter uma cor? Por um lado voc pode saber a durao da sua vida por ela. O amarelo significa uma vida longa, e quanto mais claro

    melhor.Isto muito edificante, cada sentena um sermo em si mesma. Pea-lhe para explicar. Explique, por favor. uma questo de fazer vestezinhas disse ele informativamente. Vestezinhas? Sim. Quando eu nasci havia um certo policial presente que tinha o dom de observar o vento. O dom est ficando muito

    raro hoje em dia. Logo depois que eu nasci ele foi l fora e examinou a cor do vento que soprava sobre a colina. Ele tinhaconsigo uma sacola secreta cheia de certos tecidos, frascos e tambm tinha apetrechos de alfaiate. Ficou l fora por cerca dedez minutos. Quando entrou novamente tinha uma vestezinha na mo e fez minha me coloc-la em mim.

    Onde foi que ele arrumou essa veste? perguntei surpreso. Ele mesmo a fez secretamente no ptio dos fundos, muito provavelmente no estbulo. Era muito fina e leve como uma

    finssima musselina de seda. Voc no a via de maneira nenhuma se a erguesse contra o cu, mas sob certos ngulos da luzpodia s vezes acidentalmente perceber a sua margem. Era a mais pura e perfeita manifestao da pelcula externa doamarelo-claro. Esse amarelo era a cor do meu vento de nascena.

    Entendo disse eu.Uma belssima concepo. Toda vez que chegava o meu aniversrio disse o velho Mathers , eu era presenteado com outra vestezinha da

    mesma idntica qualidade, exceto que era vestida por cima da outra e no no lugar dela. Voc pode avaliar a extremadelicadeza e refinamento do tecido se eu lhe disser que mesmo aos cinco anos de idade, com cinco dessas vestes juntas emmim, eu ainda parecia estar nu. Era, entretanto, uma espcie incomum de nudez amarela. Claro que no havia qualquer objeoa usar outras roupas sobre a veste. Geralmente eu usava um sobretudo. Mas todo ano ganhava uma nova veste.

    Onde que voc as conseguia? perguntei. Da polcia. Elas eram trazidas minha prpria casa at eu estar suficientemente crescido para passar pelo alojamento

    para busc-las. E como que isso tudo permite a voc prever a durao da sua vida? Eu vou explicar. No importa a cor que voc tenha, ela estar representada fielmente na sua veste de nascena. A cada

    ano e a cada veste, a cor ficar mais escura e mais pronunciada. No meu prprio caso eu adquirira um amarelo carregado ebrilhante aos quinze anos, embora a cor fosse to clara ao nascer que era imperceptvel. Agora estou me aproximando dossetenta e a cor um marrom-claro. A medida que minhas vestes forem chegando nos prximos anos, a cor vai se fechar at omarrom-escuro, depois um castanho-avermelhado e da finalmente aquele tipo bem escuro de castanho que as pessoasassociam geralmente cerveja preta forte.

    ? Em uma palavra, a cor gradualmente escurece de veste em veste e de ano em ano at ficar parecida com o preto. Por

    fim chegar um dia em que o acrscimo de mais uma veste vai alcanar de fato a negrido completa e verdadeira. Nesse dia eumorrerei.

    Joe e eu nos surpreendemos com aquilo. Refletimos em silncio, Joe, achei, buscando conciliar o que ouvira com certosprincpios que conservava a respeito de moralidade e religio.

    Isso significa disse eu afinal que se voc pegar um nmero dessas vestes e vesti-las todas juntas, computandocada uma como um ano de vida, voc poder determinar o ano da sua morte?

    Teoricamente, sim respondeu ele , mas h duas dificuldades. Em primeiro lugar, a polcia se recusa a entregar avoc as vestes juntas com base em que a determinao geral dos dias da morte seria contrria ao interesse pblico. Falam deviolao da paz e por a afora. Em segundo lugar, h uma dificuldade com respeito ao espichamento.

    Espichamento? Sim. Uma vez que voc estar usando quando adulto a veste minscula que cabia em voc quando nasceu, claro que

    a veste espichou at ficar possivelmente cem vezes maior do que era originalmente. Naturalmente isto afetar a cor, tornando-a muitas vezes mais tnue do que era. Similarmente, haver uma espichada proporcional e uma correspondente diminuio nacor em todas as vestes at a fase adulta talvez vinte ou mais ao todo.

    Imagino se podemos presumir que esse acrscimo de vestes ter se tornado opaco com a chegada da puberdade.Lembrei-lhe que sempre havia um sobretudo. Entendo, ento disse eu ao velho Mathers , que quando voc diz que pode saber a durao da vida, por assim

    dizer, pela cor da sua camisa, voc quer dizer que pode saber aproximadamente se ter uma vida longa ou uma vida curta?

  • Sim respondeu ele. Mas se voc usar a sua inteligncia poder fazer um prognstico bastante acurado.Naturalmente algumas cores so melhores do que outras. Algumas delas, como o roxo ou o marrom, so muito ruins e sempresignificam uma morte prematura. O rosa, no entanto, excelente, e muito h a dizer sobre certas tonalidades do verde e doazul. A predominncia de tais cores no nascimento, porm, geralmente conotam um vento que traz mau tempo troves erelmpagos, talvez e com o tempo poderiam haver dificuldades tais como, por exemplo, para satisfazer uma mulher nacama. Como voc sabe, a maioria das boas coisas da vida se associa a certas desvantagens.

    Realmente lindssimo, todas as coisas consideradas. Quem so estes policiais? perguntei. H o sargento Pluck e outro homem chamado MacCruiskeen, e h um terceiro homem chamado Fox, que desapareceu

    25 anos atrs e do qual nunca mais se teve notcia. Os dois primeiros esto l no alojamento e tanto quanto eu saiba tm estadol h centenas de anos. Devem estar atuando com uma cor muito tnue, algo que o olho comum no poderia ver em absoluto.No existe um vento branco, que eu saiba. Todos eles tm o dom de ver os ventos.

    Uma ideia brilhante me ocorreu quando ouvi falar desses policiais. Se eles sabiam tantas coisas, no teriam dificuldadesem me dizer onde eu encontraria o cofre preto. Comecei a achar que nunca ia ficar satisfeito at ter aquele cofre de volta emminhas mos. Olhei para o velho Mathers. Ele tornara a cair na sua passividade anterior. A luz se extinguira em seus olhos e amo direita pousada sobre a mesa parecia inteiramente morta.

    O alojamento fica longe? perguntei em voz alta. No.Decidi ir l sem demora. Ento percebi algo extremamente invulgar. A luz do lampio, que no incio estivera reluzindo

    tristemente apenas no canto do velho, agora ficara mais abundante e amarela e inundava o quarto inteiro. A luz externa damanh se dissipara at quase sumir. Dei uma olhada pela janela e tive um sobressalto. Entrando no quarto eu observara que ajanela dava para o leste e que o sol estava subindo naquela direo, atingindo as nuvens espessas com luz. Agora ele estava sepondo com lampejos finais de um vermelho-plido exatamente no mesmo lugar. Ele tinha subido um pouco, parado e ento,voltado. A noite chegara. Os policiais estariam na cama. Eu tinha certeza de ter cado entre pessoas estranhas. Decidi ir aoalojamento na primeira hora do dia seguinte. Ento voltei-me novamente para o velho Mathers.

    Voc faria objeo disse a ele a que eu subisse e ocupasse uma das suas camas por esta noite? Est tardedemais para ir para casa e eu acho que vai chover de qualquer modo.

    No disse ele.Deixei-o curvado sobre seu aparelho de ch e subi as escadas. Passara a gostar dele e achava uma pena que ele tivesse

    sido assassinado. Sentia-me aliviado e vontade e certo de que logo teria o cofre preto. Mas no ia perguntar aos policiaisabertamente sobre ele logo de cara. Eu seria astuto. De manh iria ao alojamento e daria parte do roubo do meu relgioamericano de ouro. Talvez tenha sido esta mentira a responsvel pelas coisas ruins que me aconteceram depois. Eu no tinhaum relgio americano de ouro.

  • III

    Esgueirei-me da casa do velho Mathers nove horas depois, pondo-me a caminho da estrada firme sob os primeiros cusmatutinos. O amanhecer estava contagiante, espalhando-se rapidamente pelo firmamento. Pssaros se agitavam e as frondosase majestosas rvores estavam sendo agradavelmente importunadas pelas primeiras brisas. Meu corao estava feliz e cheio dedisposio para grandes aventuras. Eu no sabia o meu nome nem de onde viera, mas o cofre preto estava praticamente emminhas mos. Os policiais me conduziriam at ele. Dez mil libras esterlinas em ttulos negociveis seria uma estimativamodesta do que havia dentro dele. Andando pela estrada eu estava bastante satisfeito com tudo.

    A estrada era estreita, clara, antiga, slida e cortada pelas sombras. Ela corria para oeste em meio neblina do comeoda manh, atravessando graciosamente pequenas colinas e encontrando certa dificuldade para visitar pequeninas cidades queno estavam, a rigor, no seu caminho. Possivelmente era uma das estradas mais antigas do mundo. Achei difcil conceber umapoca em que no houvesse estrada ali porque as rvores, as altas colinas e as belas paisagens de terra pantanosa tinham sidodispostas por mos sbias pela agradvel imagem que produziam quando olhadas da estrada. Sem uma estrada de onde sepudesse olh-las, elas teriam um aspecto um tanto despropositado quando no intil.

    De Selby tem certas coisas interessantes a dizer sobre o tema estradas.[5] As estradas ele encara como os mais remotosdos monumentos humanos, ultrapassando em muitas dezenas de sculos o mais antigo objeto de pedra que o homem tenhaerigido para assinalar a sua passagem. O passo do tempo, diz ele, uniforme em todas as outras partes, apenas bateu com umafirmeza mais duradoura os caminhos que foram abertos pelo mundo afora. Ele menciona de passagem um artifcio utilizadopelos celtas nos tempos antigos o de lanar uma estimativa com base numa estrada. Naqueles tempos os homensexperientes podiam dizer com preciso o tamanho de uma hoste que tivesse passado durante a noite estudando os seus rastroscom um certo olhar e julgando-os pela sua perfeio e imperfeio, o modo como cada pegada era modificada pela que vinhaem seguida. Desta forma podiam determinar o nmero de homens que tinham passado, se estavam a cavalo ou carregados deescudos e armamentos de ferro, e quantas bigas; assim podiam saber o nmero de homens que devia ser enviado em seuencalo para destru-los. Em outra parte,[6] De Selby assevera que uma boa estrada tem que ter carter e um certo ar dedestino, uma insinuao indefinvel de que est indo para algum lugar, seja para leste ou oeste, e no retornando de l. Se vocseguir por tal estrada, acha ele, ela lhe oferecer uma viagem agradvel, belas vistas em cada curva e uma tranquila facilidadede peregrinao que o convencer de que est andando permanentemente em declives. Mas se voc rumar para leste numaestrada que est seguindo para oeste, ficar admirado com a invarivel aridez de cada paisagem e o enorme nmero de aclivescalejantes que o confrontar para fatig-lo. Caso uma estrada amistosa o leve a entrar numa cidade complicada com umemaranhado de ruas sinuosas e quinhentas outras estradas saindo dela com destinos ignorados, sua prpria estrada ser semprediscernvel por si mesma e o conduzir para fora da cidade confusa.

    Caminhei tranquilamente por uma boa distncia nessa estrada, pensando os meus prprios pensamentos com a parte dafrente do crebro e ao mesmo tempo deleitando-me com a parte de trs no intenso e difuso refinamento da manh. O ar erapenetrante, lmpido, abundante e intoxicante. Sua pujante presena podia ser percebida em toda parte, avivando o verdegarbosamente, conferindo maior dignidade e nitidez s pedras e mataces, continuamente arrumando e rearrumando as nuvense insuflando vida no mundo. O sol subira ingrememente para fora do seu esconderijo e agora se postava benevolamente naparte inferior do cu, vertendo jorros de luz encantadora e pontadas preliminares de calor.

    Alcancei um degrau de pedra junto a uma porteira na entrada de um campo e sentei-me sobre ele para descansar. Nofazia muito que eu estava sentado ali at que fiquei surpreso; ideias espantosas acorriam minha cabea, vindas do nada.Primeiro lembrei-me quem eu era no o meu nome, mas de onde viera e quem eram os meus amigos. Lembrei-me de JohnDivney, da minha vida com ele e de como viemos a esperar sob as rvores gotejantes na tarde invernal. Isto me levou a refletiradmirado que no havia nada de invernal na manh em que agora eu me sentava. Mais ainda, no havia nada de familiar nosbelos campos que se estendiam na distncia sob todos os aspectos. Eu agora no estava h mais de dois dias de casa nomais que a trs horas de caminhada e ainda assim parecia ter alcanado regies que nunca vira antes e das quais nemsequer ouvira falar. No conseguia entender isso porque embora minha vida tivesse se passado principalmente entre meuslivros e papis, achava que no havia uma estrada no distrito que no tivesse percorrido, uma estrada cujo destino no mefosse bem conhecido. Havia uma outra coisa. Meus arredores tinham uma estranheza de um tipo peculiar, inteiramente diversada mera estranheza de uma regio onde nunca se esteve antes. Tudo parecia quase agradvel demais, perfeito demais, feitoprimorosamente demais. Cada coisa visvel ao olho era inconfundvel e inequvoca, incapaz de se fundir com qualquer outracoisa ou de ser confundida com ela. A colorao dos pntanos era linda e o verde dos verdes campos, superno. Havia rvoresdispostas aqui e ali com uma considerao fora do normal para com o olho exigente. Os sentidos logravam intenso prazer nomeramente respirar o ar e desempenhavam suas funes com deleite. Eu estava obviamente numa regio estranha, mas todas asdvidas e perplexidades que juncavam minha mente no conseguiam me impedir de me sentir feliz e de corao leve e cheiode apetite para tratar dos meus negcios e encontrar o esconderijo do cofre preto. Seu valioso contedo, achava eu, me

  • manteria pelo resto da vida em minha prpria casa e depois disso eu poderia revisitar este misterioso distrito em cima daminha bicicleta e investigar vontade as razes para todas as suas estranhezas. Desci do degrau e prossegui minha caminhadapela estrada. Era um caminhar agradvel e confortvel. Tive certeza de no estar indo em sentido oposto estrada. Ela estava,por assim dizer, me acompanhando.

    Antes de ir me deitar na noite anterior passara um longo tempo dando tratos imaginao e tambm me entregando aconversas internas com minha recm-descoberta alma. Por estranho que parea, eu no estava pensando sobre o fatodesconcertante de estar desfrutando a hospitalidade do homem que eu assassinara (ou a quem estava certo de ter assassinado)com a minha p. Estava refletindo sobre meu nome e o quo torturante era t-lo esquecido. Todo mundo tem um nome de ummodo ou de outro. Alguns so rtulos arbitrrios relacionados com o aspecto da pessoa, alguns representam associaespuramente genealgicas, mas a maioria deles fornece alguma pista quanto aos pais da pessoa chamada e confere uma certavantagem na autenticao de documentos legais.[7] At um cachorro tem um nome que o diferencia dos outros cachorros, e defato minha prpria alma, a quem ningum jamais viu na estrada ou diante do balco de uma taberna, aparentemente no tinhaqualquer dificuldade em assumir um nome que a distinguia das almas das outras pessoas.

    Uma coisa nada fcil de explicar a tranquilidade com que eu ponderava minhas vrias perplexidades em minha mente.Um absoluto anonimato surgido subitamente no meio da vida deveria ser no mnimo alarmante, um agudo sintoma de que amente est em decadncia. Mas a inexplicvel satisfao que eu extraa dos meus arredores parecia revestir essa situaomeramente com a curiosidade de uma boa piada. Mesmo agora, seguindo pelo caminho contentemente, eu pressentia umasolene pergunta sobre esse assunto vinda de dentro, similar a muitas que tinham sido formuladas na noite anterior. Era umaindagao escarnecedora. Despreocupadamente dei uma lista de nomes que, ao que eu soubesse, poderia ouvir:

    Hugh Murray.Constantin Petrie.Peter Small.Signor Beniamino Bari.O Honorvel Alex OBrannigan, Baronete.Kurt Freund.Sr. John P. de Sallis, M.A.Dr. Solway Garr.Bonaparte Gosworth.Legs OHagan.

    Signor Beniamino Bari, disse Joe, o eminente tenor. Trs investidas a golpes de cacetete do lado de fora do La Scalana premire do grande tenor. Cenas extraordinrias foram testemunhadas no lado de fora do Teatro Lrico La Scalaquando uma multido de uns dez mil aficionados, enfurecida pela declarao do administrador de que no havia maislugares em p disponveis, tentou arremeter contra as barreiras. Milhares foram feridos, e 79 fatalmente, no selvagementrevero. O guarda Peter Coutts sofreu ferimentos na virilha dos quais provavelmente no se recuperar. Estas cenasforam comparveis apenas ao delrio da elegante plateia l dentro depois que o Signor Bari encerrou seu recital. O grandetenor estava com a voz admirvel. Comeando com uma fase no timbre mais baixo, com uma riqueza rouquenha queparecia sugerir um resfriado, ele emitiu os acordes imortais de Che Gelida Manina, ria favorita do adorado Caruso.Empolgando-se em sua incumbncia divina, nota aps nota foi-se vertendo at o canto mais remoto do vasto teatro,eletrizando a todos no mago mais profundo. Quando ele atingiu o d maior onde o cu e a terra parecem unir-se em umimponente clmax de exaltao, a plateia se ps de p e o aclamou a uma s voz, cumulando de chapus, programas ecaixas de chocolate o grande artista.

    Muito obrigado, murmurei, sorrindo em arrebatado deleite.Um pouco exagerado, talvez, mas apenas uma pequena mostra das pretenses e vaidade a que voc intimamente se

    permite.Mesmo?Ou que tal dr. Solway Garr? A duquesa desmaiou. H um mdico na plateia? A mirrada figura, os dedos magros e

    nervosos, cabelos grisalhos, abrindo caminho discretamente atravs dos plidos e nervosos circunstantes. Algumas ordensrpidas, ditas calmamente mas imperiosas. Dentro de cinco minutos a situao est inteiramente sob controle. Plida massorridente, a duquesa murmura seus agradecimentos. O diagnstico experto evitou ainda outra tragdia. Um dentinhopostio foi extrado do trax. Todos os coraes se enchem de emoo pelo discreto servidor da humanidade. Sua Graa,convocado tarde demais para assistir seno ao final feliz, est abrindo seu talo de cheques e l anotou mil guinus nocanhoto como uma pequena mostra do seu apreo. Seu cheque aceito, mas rasgado em mil pedacinhos pelo sorridentemdico. Uma dama de azul no fundo do hall comea a entoar A Paz Esteja Convosco , e o cntico, crescendo em volume esinceridade, sai ressoando pela noite silenciosa, deixando poucos olhos secos e coraes no repletos de fervor antes deas ltimas notas se extinguirem. O dr. Garr apenas sorri, meneando a cabea em protesto.

  • Acho que isso j bastante, disse eu.Continuei andando sem me perturbar. O sol amadurecia rapidamente no oriente e um forte calor comeara a se espalhar

    pelo solo como uma mgica influncia, tornando tudo, inclusive eu prprio, muito bonito e feliz de uma forma lnguida eletrgica. Os canteirinhos de grama macia em vrios pontos beira da estrada e as valas secas e aconchegantes comearam aparecer sedutores e convidativos. A estrada estava sendo lentamente crestada e ficando cada vez mais dura, tornando meucaminhar mais e mais fatigante. Aps um pouco conclu que agora devia estar prximo ao alojamento da polcia e que outrodescanso me prepararia melhor para a tarefa que tinha em mos. Parei de caminhar e estirei o corpo calmamente no aconchegoda vala. O dia estava novo em folha e a vala era fofa. Fiquei deitado de costas prodigamente, atordoado pelo sol. Sentiamilhes de pequenas modificaes em minha narina, cheiros de feno, cheiros de grama, odores de flores distantes, areconfortante inconfundibilidade da intransitria terra sob a minha cabea. Era um dia novo e luminoso, o dia do mundo.Pssaros cantavam ilimitadamente e abelhas incomparveis de cores listradas passavam acima de mim em suas misses equase nunca voltavam para casa pelo mesmo caminho. Meus olhos estavam cerrados e minha cabea zumbia com a rotao douniverso. No fazia muito que eu estava deitado ali at que meus sentidos me abandonaram e ca num sono profundo. Dormi alipor um longo tempo, to imvel e to privado de sensaes quanto a minha prpria sombra que dormia atrs de mim.

    Quando despertei novamente, o dia avanara e havia um homenzinho sentado ao meu lado me observando. Ele eramatreiro e fumava um cachimbo matreiro e sua mo era trmula. Seus olhos eram matreiros tambm, provavelmente deespreitar policiais. Eram olhos bastante incomuns. No havia nenhuma divergncia palpvel no seu alinhamento, mas pareciamincapazes de lanar um olhar direto para qualquer coisa que estivesse em linha reta, fosse ou no porque sua curiosaincompatibilidade era adequada para olhar para coisas tortas. Eu sabia que ele estava me observando apenas pelo modo comosua cabea estava virada; me era impossvel olhar direto nos olhos dele ou provoc-los. Ele era baixo e estava pobrementevestido e em sua cabea havia um bon de pano salmo-claro. Mantinha a cabea na minha direo sem falar e achei suapresena inquietante. Imaginei h quanto tempo ele estava me observando antes de eu despertar.

    Fique de olhos bem abertos. Um sujeito com cara de muito ardiloso.Meti a mo dentro do bolso para ver se minha carteira estava l. Estava, macia e quente como a mo de um bom amigo.

    Quando constatei que no tinha sido roubado, decidi conversar com ele de forma afvel e corts, saber quem ele era e pedir-lhe que me indicasse a direo da delegacia. Tomei a deciso de no desprezar o auxlio de ningum que pudesse me ajudar,mesmo que em menor medida, a encontrar o cofre preto. Dei-lhe as horas e, tanto quanto me foi possvel, um olhar tointrincado quanto qualquer um que ele prprio pudesse dar.

    Boa sorte para voc disse eu. Muita sade para voc ele respondeu sombriamente.Pergunte-lhe seu nome e ocupao e indague qual o seu destino. No quero ser indiscreto disse eu , mas seria correto dizer que voc um caador de passarinhos? No sou caador de passarinhos respondeu ele. Um faz-tudo? Tambm no. Um homem em viagem? No, tambm no. Um tocador de rabeca? Tampouco isso.Sorri para ele com bem-humorada perplexidade e disse: Homem de olhar matreiro, voc difcil de situar e no o fcil adivinhar a sua ocupao. Voc parece muito contente

    por um lado, mas ento no parece estar satisfeito. Qual a sua objeo com relao vida?Ele soltou pequenas baforadas de fumaa na minha direo e me olhou atentamente por detrs dos tufos de cabelo que

    cresciam em torno de seus olhos. Sobre a vida? respondeu ele. Eu passaria melhor sem ela disse ele , pois de pouqussima serventia.

    Voc no pode com-la nem beb-la nem fum-la no seu cachimbo, ela no o protege da chuva e uma triste companhia noescuro se voc a despir e a levar para a cama com voc aps uma noite de cerveja preta quando voc est tremendo de desejo.Ela um grande engano e algo que melhor passar sem, como pinicos ou toicinho importado.

    Que bela maneira de se falar num dia lindo e cheio de vida como este censurei , quando o sol est exuberante nocu e irradiando tamanhas ondas em nossos ossos fatigados.

    Ou como colches de plumas continuou ele ou po fabricado em possantes mquinas a vapor. da vida quevoc fala? Vida?

    Explique a dificuldade da vida ainda assim enfatizando sua essencial beleza e atrativo.Que beleza?Flores na primavera, a glria e a plenitude da vida humana, o canto dos pssaros ao entardecer voc sabe muito bem

    o que eu quero dizer. No estou to certo acerca da beleza mesmo assim.

  • difcil conceb-la exatamente eu disse ao homem matreiro ou definir a vida, mas se voc identifica a vidacom o prazer, pelo que sei ela de melhor qualidade nas cidades que nas regies do campo e dizem que de qualidade muitosuperior em certas regies da Frana. Voc j observou como os gatos tm um bocado dela dentro deles quando esto bemjovens?

    Ele estava olhando atravessado na minha direo. da vida? Mais de um homem j passou um sculo tentando entender a importncia dela e quando finalmente a

    entendeu e considera o padro descoberto em sua cabea, com os diabos ele a leva para a cama e morre! Morre como umaco pastor envenenado. No existe nada mais perigoso, voc no pode fum-la, ningum lhe dar um tosto furado por metadedela e ela o mata no final das contas. uma geringona suspeita, perigosssima, uma armadilha mortal infalvel. Vida?

    Ele ficou ali sentado parecendo bastante irritado consigo mesmo e passou algum tempo sem falar por detrs de umparedinha cinzenta que erguera para si prprio utilizando o seu cachimbo. Aps um intervalo fiz outra tentativa para descobrirqual era a atividade dele.

    Ou um homem em busca de coelhos? perguntei. Tambm no. Tambm no. Um itinerante que trabalha por salrio? No. operador de uma debulhadora a vapor? Certamente que no. Artigos de estanho? No. Um funcionrio municipal? No. Um inspetor da rede de abastecimento de gua? No. Tem plulas para cavalos doentes? Nada de plulas. Ento, por Deus observei perplexamente , seu ofcio muito incomum e no consigo absolutamente imaginar o

    que seja, a no ser que voc seja um fazendeiro como eu mesmo, ou um ajudante de taverneiro ou possivelmente algo nocomrcio de secos. Voc um ator ou um palhao?

    Tampouco isso.Ele se aprumou de repente e me olhou de uma forma que era quase direta, seu cachimbo se projetando agressivamente de

    suas mandbulas cerradas. Tinha enchido o mundo de fumaa. Eu estava inquieto, mas sem o menor medo dele. Se eu tivesse aminha p comigo sabia que num instante daria cabo dele. Achei que a coisa mais sensata a fazer era satisfaz-lo e concordarcom tudo o que ele dissesse.

    Sou um salteador disse ele numa voz tenebrosa , um salteador com uma faca e um brao que to forte quantouma pea de uma possante mquina a vapor.

    Um salteador? exclamei. Meus pressentimentos tinham se confirmado.V com calma. No se arrisque. To forte quanto os aparelhos reluzentes que se movem numa lavanderia. Um assassino sinistro tambm. Toda vez que

    eu roubo um homem eu acabo com a vida dele porque no tenho nenhuma considerao pela vida, nem um pouco. Se eu matarbastantes homens vai restar mais vida para os outros e talvez ento eu possa viver at fazer mil anos e me livrar dos estertoresna minha garganta quando completar setenta. Voc est com uma bolsa de dinheiro?

    Alegue pobreza e misria. Pea algum dinheiro emprestado.Isto no vai ser difcil, respondi. No tenho dinheiro nenhum, nem moedas, nem soberanos nem ordens de pagamento respondi , nenhuma cautela

    de penhores, nada que seja negocivel ou de qualquer valor. Sou um homem to pobre quanto voc e estava pensando em lhepedir dois xelins para me ajudar na viagem.

    Agora eu estava mais nervoso do que antes sentado ali olhando para ele. Ele guardara seu cachimbo e sacara um longofaco de fazendeiro. Olhava a lmina dele e produzia reflexos com ela.

    Mesmo se voc no tem dinheiro troou ele , vou acabar com a sua vidinha. Espere um pouco, deixe eu dizer uma coisa retruquei num tom firme , roubo e assassinato so contra a lei e alm

    do mais a minha vida acrescentaria muito pouco sua prpria porque sofro de um problema no peito e tenho certeza de quevou estar morto dentro de seis meses. Fora isso, havia alguma coisa sobre um enterro misterioso na minha xcara de ch natera-feira. Espere at ouvir um tossido.

    Forcei um tremendo tossido seco entrecortado. Ele se propagou como uma brisa pela grama ao nosso lado. Agora euestava achando que poderia ser prudente ficar de p num pulo rapidamente e sair correndo. Pelo menos seria uma soluo

  • simples. H outra coisa a meu respeito acrescentei , uma parte minha de madeira e no h nenhuma vida nela.O homem matreiro soltou estridentes exclamaes de surpresa, se ps de p num pulo e me lanou olhares que eram

    matreiros demais para se descrever. Sorri para ele e arregacei a perna esquerda da minha cala para mostrar-lhe a minhacanela de pau. Ele a examinou atentamente e passou seu dedo spero pela borda dela. Ento sentou-se bem depressa, guardousua faca e tirou seu cachimbo de novo. Este estivera queimando o tempo todo dentro do seu bolso, pois ele comeou a fum-loimediatamente a seguir e aps um minuto tinha feito tanta fumaa azulada, e cinzenta, que pensei que suas roupas tinhampegado fogo. Atravs da fumaa pude ver que ele lanava olhares amistosos na minha direo. Aps alguns instantes, ele faloucomigo num tom cordial e suave.

    Eu no lhe faria mal, homenzinho disse ele. Acho que peguei a doena em Mullingar expliquei. Sabia que tinha ganho a confiana dele e que o perigo de

    violncia agora passara. Ento ele fez algo que me pegou desprevenido. Arregaou sua prpria cala esfarrapada e memostrou sua prpria perna esquerda. Era lisa, bem torneada e bem grossa, mas era de madeira tambm.

    Que coincidncia engraada disse eu. Agora eu percebia o motivo da sua sbita mudana de atitude. Voc um homem amvel ele respondeu e eu no, encostaria um dedo em voc pessoalmente. Sou o capito de

    todos os homens pernetas do pas. Conhecia todos eles at agora exceto um voc mesmo e esse agora tambm meuamigo do mesmo jeito. Se algum homem olhar voc atravessado, eu estripo ele.

    Isto muito amvel da sua parte disse eu. Onde quer que seja disse ele, fazendo um amplo gesto com as mos. Se algum dia se meter em apuros, mande

    me chamar e eu o salvarei da mulher. No tenho o menor interesse em mulheres eu disse sorrindo. Uma rabeca algo mais divertido. No importa. Se a sua dificuldade for um exrcito ou um cachorro, eu virei com todos os homens pernetas e os

    estriparei. Meu nome verdadeiro Martin Finnucane. um nome razovel aquiesci. Martin Finnucane ele repetiu, ouvindo a sua prpria voz como se estivesse ouvindo a msica mais melodiosa do

    mundo. Ele se deitou de costas e se encheu at as orelhas de fumaa escura e quando estava quase explodindo tornou a solt-lae se escondeu dentro dela.

    Diga-me uma coisa disse ele afinal. Voc tem um desideratum?Esta pergunta esquisita foi inesperada, mas a respondi bem depressa. Eu disse que tinha. Que desideratum? Encontrar o que estou procurando. Este um desideratum interessante disse Martin Finnucane. De que modo voc o levar a efeito ou

    amadurecer seus mutandum fazendo com que chegue finalmente a uma factibilidade admissvel? Visitando o alojamento da polcia disse eu e pedindo aos policiais que me indiquem o caminho de onde ele

    est. Por acaso voc poderia me orientar sobre como chegar ao alojamento de onde estamos agora? Por acaso sim disse o sr. Finnucane. Voc tem um ultimatum? Tenho um ultimatum secreto respondi. Estou certo de que um excelente ultimatum disse ele , mas no vou lhe pedir que o declare para mim se voc

    acha que secreto.Ele fumara todo o seu tabaco e agora estava fumando o prprio cachimbo, a julgar pelo cheiro desagradvel deste. Enfiou

    a mo dentro de um bolso no meio das pernas e tirou uma coisa redonda. Aqui est um soberano para lhe dar sorte disse ele , uma lembrana dourada do seu destino dourado.Disse-lhe, por assim dizer, meu obrigado dourado, mas percebi que a moeda que ele me dera era um reluzente centavo.

    Guardei-a cuidadosamente dentro do bolso como se ela fosse extremamente estimada e muito valiosa. Eu estava satisfeito pelamaneira como tinha lidado com este excntrico companheiro da perna de pau de fala esquisita. Prximo ao lado oposto daestrada havia um riacho. Me levantei e olhei-o observando a gua clara. Ela fazia acrobacias na cama elstica de pedras esaltava no ar e sumia excitada apressadamente numa curva.

    O alojamento nesta mesma estrada disse Martin Finnucane e eu o deixei para trs a cerca de um quilmetro dedistncia hoje pela manh. Voc o encontrar no ponto onde o rio se afasta da estrada. Se voc olhar agora vai ver as trutasgordas em suas peles castanhas voltando do alojamento a esta hora porque elas vo l toda manh para o timo desjejum quecostumam fazer com os despejos e as sobras dos dois policiais. Mas eles fazem suas jantas mais adiante pelo outro caminhoonde um homem chamado MacFeeterson tem uma padaria num povoado de casas que do de fundos para a gua. Trs carroasde po ele tem e uma carruagem leve para o alto das montanhas e vai regularmente a Kilkishkeam nas segundas e quartas.

    Martin Finnucane disse eu , tenho mil e uma preocupaes com que me ocupar at o meu destino, e quanto maiscedo melhor.

    Ele me lanou olhares amistosos de dentro da vala enfumaada.

  • Homem simptico disse ele , boa sorte para a sua sorte e no se meta em perigo sem me dar conhecimento.Eu disse At logo, at logo e o deixei aps um aperto de mo. Olhei para trs mais frente na estrada e no vi nada a

    no ser a beirada da vala com a fumaa saindo de dentro como se houvesse ciganos ali no fundo cozinhando seu o-que-tiver.Antes de sumir de vista olhei para trs novamente e vi a silhueta da sua cabea familiar me observando e perscrutandoatentamente a minha partida. Ele era divertido e interessante e tinha me ajudado indicando a direo do alojamento e medizendo a que distncia ficava. E prosseguindo no meu caminho me sentia um tanto contente por t-lo conhecido.

    Um sujeito cmico.

  • IV

    De todas as muitas surpreendentes afirmaes feitas por De Selby, no creio que qualquer delas possa rivalizar com suaassero de que uma viagem uma alucinao. A frase pode ser encontrada no lbum do campo[8] lado a lado com o famosotratado sobre os trajes-tenda, aquelas espalhafatosas vestimentas de lona que ele concebeu como um substituto tanto para asdetestadas casas como para as roupas comuns. Sua teoria, tanto quanto eu possa entend-la, parece desprezar o testemunho daexperincia