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1016 O TEMA DO CALVINISMO NOS MANUAIS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Paulo Henrique Vieira Universidade Estadual de Maringá Cezar de Alencar Arnaut de Toledo Universidade Estadual de Maringá RESUMO Sem a educação não teria sido possível a religião Reformada, pois, ela era a grande auxiliar da fé, pensava o pai da Reforma, Martinho Lutero (1483-1546). João Calvino (1509-1564), ao publicar sua Instituição da Religião Cristã (Christianae Religionis Institutio) de 1536, deu ao Protestantismo a solidez e coerência que faltava aos escritos de Lutero. De Genebra, os novos ministros formados pela Academia da cidade, fundada por Calvino em 1559, retornavam aos seus países de origem divulgando a nova fé. Suíça, França, Escócia, Inglaterra e Holanda foram os principais destinos desses novos pastores e foi nesses países que o Calvinismo mais se desenvolveu. Diz-se que a internacionalização do Protestantismo se deveu ao Calvinismo, que também buscou na formação intelectual do crente a base para sua consolidação. Como pode um movimento que internacionalizou a Reforma não ter também sido um importante agente fomentador do ensino popular, tal como se atribui à Reforma e ao próprio Lutero? O objetivo deste trabalho é analisar o modo como Calvino e o Calvinismo são apresentados em alguns manuais de história da educação e da pedagogia para responder, por quê muitos deles nem sequer os mencionam. Os manuais foram selecionados por amostra aleatória dentre os títulos mais utilizados nos cursos de Pedagogia no Brasil. Dos livros consultados neste artigo, a Pequena História da Educação de Ruy de Aires Bello é a publicação mais antiga, que data 1967. Da década seguinte usamos: Historia de la educación de Isabel Gutierrez Zuluaga de 1972, As Origens e a Evolução da Educação Moderna de Elizabeth S. Lawrence de1974, História da Educação de Paul Monroe também de 1974, História da Educação Moderna, de Frederick Eby publicada em 1976 e História da Pedagogia de René Hubert de 1976. Dos anos oitenta: História Geral da Pedagogia de Francisco Larroyo de 1982, História da Educação de Roger Gal de 1987 e História da Educação de Thomas Ranson Giles de 1987. Da década de noventa: História da Educação de Mario Alighiero Manacorda de 1992 e História da Pedagogia de Franco Cambi de 1999. História da Educação e da Pedagogia de Lorenzo Luzuriaga, bem como o livro: Historia de la pedagogía de Abbagnano e Visalberghi, ambos publicados em 2001, encerram a lista dos manuais consultados. Dos treze manuais de História da Educação ou da Pedagogia analisados neste trabalho, seis deles não acreditam haver qualquer relação entre o Calvinismo e a educação. Essa conclusão, no entanto, não é compartilhada pelos outros sete autores. Em nossa pesquisa identificamos obras como a de Ruy de Aires Bello e René Hubert, que sequer reconhecem a Reforma como fomentadora de uma educação popular. Outras como a de: Elizabeth Lawrence, Roger Gal, Isabel Gutierrez Zuluaga e Mario Alighiero Manacorda que vinculam a Reforma Protestante aos movimentos culturais que incentivaram o progresso educacional no século XVI, mas não apresentam a participação do Calvinismo nesse processo. Finalmente aqueles que admitem as intervenções positivas do Calvinismo no sentido de corroborar para uma ampliação da educação para o povo. Compartilham dessa tese: Lorenzo Luzuriaga, Thomas Ranson Giles, Franco Cambi, Abbagnano e Visalberghi, Paul Monroe, Francisco Larroyo e Frederick Eby. O estudo da História da Educação nos cursos de graduação no Brasil requer, como vimos, um cuidado especial, sobretudo para aqueles que utilizam como fonte unicamente os manuais. O seu uso exclusivo pode levá-los a conclusões apressadas ou parciais, comprometendo a formação desses novos professores, senão sobre a história geral da educação, pelo menos no que diz respeito ao Calvinismo

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O TEMA DO CALVINISMO NOS MANUAIS DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Paulo Henrique Vieira

Universidade Estadual de Maringá Cezar de Alencar Arnaut de Toledo

Universidade Estadual de Maringá

RESUMO Sem a educação não teria sido possível a religião Reformada, pois, ela era a grande auxiliar da fé, pensava o pai da Reforma, Martinho Lutero (1483-1546). João Calvino (1509-1564), ao publicar sua Instituição da Religião Cristã (Christianae Religionis Institutio) de 1536, deu ao Protestantismo a solidez e coerência que faltava aos escritos de Lutero. De Genebra, os novos ministros formados pela Academia da cidade, fundada por Calvino em 1559, retornavam aos seus países de origem divulgando a nova fé. Suíça, França, Escócia, Inglaterra e Holanda foram os principais destinos desses novos pastores e foi nesses países que o Calvinismo mais se desenvolveu. Diz-se que a internacionalização do Protestantismo se deveu ao Calvinismo, que também buscou na formação intelectual do crente a base para sua consolidação. Como pode um movimento que internacionalizou a Reforma não ter também sido um importante agente fomentador do ensino popular, tal como se atribui à Reforma e ao próprio Lutero? O objetivo deste trabalho é analisar o modo como Calvino e o Calvinismo são apresentados em alguns manuais de história da educação e da pedagogia para responder, por quê muitos deles nem sequer os mencionam. Os manuais foram selecionados por amostra aleatória dentre os títulos mais utilizados nos cursos de Pedagogia no Brasil. Dos livros consultados neste artigo, a Pequena História da Educação de Ruy de Aires Bello é a publicação mais antiga, que data 1967. Da década seguinte usamos: Historia de la educación de Isabel Gutierrez Zuluaga de 1972, As Origens e a Evolução da Educação Moderna de Elizabeth S. Lawrence de1974, História da Educação de Paul Monroe também de 1974, História da Educação Moderna, de Frederick Eby publicada em 1976 e História da Pedagogia de René Hubert de 1976. Dos anos oitenta: História Geral da Pedagogia de Francisco Larroyo de 1982, História da Educação de Roger Gal de 1987 e História da Educação de Thomas Ranson Giles de 1987. Da década de noventa: História da Educação de Mario Alighiero Manacorda de 1992 e História da Pedagogia de Franco Cambi de 1999. História da Educação e da Pedagogia de Lorenzo Luzuriaga, bem como o livro: Historia de la pedagogía de Abbagnano e Visalberghi, ambos publicados em 2001, encerram a lista dos manuais consultados. Dos treze manuais de História da Educação ou da Pedagogia analisados neste trabalho, seis deles não acreditam haver qualquer relação entre o Calvinismo e a educação. Essa conclusão, no entanto, não é compartilhada pelos outros sete autores. Em nossa pesquisa identificamos obras como a de Ruy de Aires Bello e René Hubert, que sequer reconhecem a Reforma como fomentadora de uma educação popular. Outras como a de: Elizabeth Lawrence, Roger Gal, Isabel Gutierrez Zuluaga e Mario Alighiero Manacorda que vinculam a Reforma Protestante aos movimentos culturais que incentivaram o progresso educacional no século XVI, mas não apresentam a participação do Calvinismo nesse processo. Finalmente aqueles que admitem as intervenções positivas do Calvinismo no sentido de corroborar para uma ampliação da educação para o povo. Compartilham dessa tese: Lorenzo Luzuriaga, Thomas Ranson Giles, Franco Cambi, Abbagnano e Visalberghi, Paul Monroe, Francisco Larroyo e Frederick Eby. O estudo da História da Educação nos cursos de graduação no Brasil requer, como vimos, um cuidado especial, sobretudo para aqueles que utilizam como fonte unicamente os manuais. O seu uso exclusivo pode levá-los a conclusões apressadas ou parciais, comprometendo a formação desses novos professores, senão sobre a história geral da educação, pelo menos no que diz respeito ao Calvinismo

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TRABALHO COMPLETO INTRODUÇÃO

É natural encontrarmos nos manuais de história da educação referências sobre as contribuições

que a Reforma Protestante deu para a educação. O fiel desejado por Lutero era aquele que pudesse compreender os textos bíblicos, dispensando a atuação de sacerdotes na intermediação entre ele e Deus. A Salvação, nos moldes professados pelo reformador alemão se daria apenas por meio da confiança na Palavra de Deus revelada nas Escrituras, daí resultando sua preocupação com a questão educacional para fins escatológicos, de vital importância. De sua pena saíram textos como: Aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs (An die Ratsherren aller Städte deutsches Lands, dass sie christliche schulen aufrichten und erhalten sollen), de 1524, e Uma prédica para que se mandem os filhos à escola (Eine Predigt, dass man Kinder zur Schule halten solle), de 1530, exortando as autoridades civis e os pais a se comprometerem com a educação de seus súditos e filhos. Estes são os mais clássicos textos de Lutero sobre o assunto.

Na história da educação moderna, o capítulo referente à Reforma Protestante ganhou importância significativa. Ao lado dos interesses religiosos, Martinho Lutero (1483-1546) e Felipe Melanchton (1497-1560), buscaram também efetivar uma educação popular, que fornecesse aos fiéis as mínimas condições para o entendimento dos textos bíblicos. Lutero dedicou alguns dos seus escritos para exortar as autoridades civis a se comprometerem com o ensino popular, criando e mantendo escolas, não apenas para que o povo pudesse ler a Bíblia, mas também porque pessoas instruídas seriam valiosas para a formação de uma sociedade mais justa e ordeira. Aos pais lembrou da obrigação moral de encaminhar os filhos para Deus através da leitura de Sua Palavra. Sacerdócio Universal de todos os Crentes e Autoridade Máxima das Escrituras, pilares básicos das idéias luteranas estariam seriamente comprometidos sem uma educação geral das massas e foi a partir dessa necessidade que a educação passou a preocupar os protestantes. Melanchton, amigo e contemporâneo de Lutero, considerado o Preceptor Germaniae, ou seja, o professor da Alemanha, contribuiu para o currículo e para as estruturas organizativas das escolas alemãs naquela época e que perduraram por muito tempo. Segundo Lorenzo Luzuriaga.

A ele se deve realmente a criação do ensino secundário alemão e a orientação para o dos demais países europeus, o que fez tanto pela atuação prática, direta, à frente de escolas e cátedras, como pela inspiração, que deu, aos príncipes alemães no sentido da criação de colégios humanistas, grandemente aumentados então.1

Os manuais de história da educação realmente fizeram justiça à importância que Lutero e

Melanchton tiveram nessa área. Todos os manuais consultados para este artigo, que fazem referência à Reforma Protestante, apresentam os dois Reformadores da Alemanha.

O livro didático pode ser usado como uma importante ferramenta auxiliadora no processo educativo, sobretudo em países de escassa estrutura cultural e educacional, como é o caso do Brasil. Em decorrência das deficiências educacionais presentes no país tais como: ausência de professores qualificados, alunos sem condições financeiras e culturais satisfatórias e a inadequação dos espaços escolares, sem bibliotecas; tornaram o livro didático um mecanismo importante para assegurar a qualidade da educação. “Repetia-se aquela velha idéia, tão presente no início da implantação das democracias liberais, de que ‘quanto pior o professor, melhor precisam ser os livros-texto.”2

Recomenda-se, entretanto, o cuidado na transformação desses manuais em única fonte de pesquisa, o que poderia comprometer seriamente a formação dos alunos que se utilizam exclusivamente desse material. A utilização do livro didático, qualquer que ele seja, deve ser antecedida da compreensão de que seu conteúdo, sobretudo, nas áreas de ciências humanas, é um conteúdo construído a partir das perspectivas teóricas de seus autores. O professor que toma como única fonte esse material, corre o risco de enfatizar os fatos que fortalecerão o ponto de vista de seu autor, sem analisar outras versões sobre o mesmo tema que já tenha sido estudado em outras obras. No que diz respeito ao Calvinismo isso é perceptível, como veremos no decorrer deste artigo.

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O objetivo deste trabalho é analisar as referências em alguns manuais sobre Calvino e o Calvinismo no campo educacional. Sabe-se que o Calvinismo projetou a Reforma Protestante para outros países onde o luteranismo não alcançou. Suíça, França, Holanda, Inglaterra e Escócia e depois a América do Norte foram influenciados pelos escritos do reformador francês. A Instituição da Religião Cristã (Christianae Religionis Institutio)3, considerada a obra-prima de Calvino, foi a responsável pela sistematização do pensamento teológico e eclesiológico Reformado. Calvino, portanto, foi o organizador e o grande disseminador das idéias reformadoras, mas, sua presença nos manuais de história da educação não atingiu a mesma abrangência que Lutero e Melanchton. Por quê? Nosso intuito é discutir a questão apresentando o que se escreveu em alguns manuais de História da Educação e da Pedagogia sobre as contribuições de Calvino e do Calvinismo para a educação e porque ao lado dessas afirmativas, outros autores nem sequer citam o reformador francês. Não nos deteremos sobre o conteúdo dos manuais de História da Educação e da Pedagogia modernas4. O que queremos é mostrar ao leitor as diferentes formas apresentadas sobre a educação na modernidade, principalmente no que diz respeito ao Calvinismo, constatando essas variações nos diferentes manuais consultados. As conclusões que daí resultarão serão no sentido de identificar essas ausências ou “equívocos”. JOAO CALVINO (1509-1564) João Calvino nasceu em Noyon, França e após terminar seus estudos iniciais nessa pequena cidade francesa, transferiu-se para Paris onde estudou Teologia. Mais tarde foi para Orleans onde iniciou seus estudos na área do Direito tornando-se bacharel. Calvino chegou numa Paris já inserida nos debates sobre as novas idéias que, advindas de Wittenberg pelas mãos de um monge agostiniano de nome Lutero, incomodava toda a cristandade. Calvino acabou simpatizando com as novas idéias de Lutero que questionavam a hierarquia da Igreja Católica, a simonia praticada por seus representantes e sua teologia, para Lutero, desconectada do ensino bíblico. Calvino foi obrigado a deixar a cidade em busca de segurança pessoal e paz espiritual. Paris tornava-se uma cidade perigosa para ele uma vez que os catedráticos da Sorbone repugnavam as reformas propostas pelo monge alemão e pressionaram o rei Francisco I a tomar um posicionamento mais firme em relação ao novo perigo que ameaçava a religião cristã. Ao fugir de Paris, Calvino refugiou-se em Genebra, na Suíça, e lá permaneceu a maior parte do tempo até a sua morte aos cinqüenta e cinco anos. Nessa cidade recém convertida ao protestantismo, Calvino exerceu as funções de líder religioso e escritor incansável e foi nela também que suas práticas revelaram, tanto quanto seus escritos, que ele queria educar o homem não apenas para a salvação, mas também para a felicidade terrena no cumprimento de sua vocação. A educação se tornou essencial em sua luta contra a ignorância dos homens para com a Palavra de Deus. A sua Instituição da Religião Cristã, considerada por ele como um “compêndio de instrução”, um manual para a compreensão bíblica, segundo definições do próprio autor, era uma cartilha que todo fiel precisava conhecer. Sua obra-prima é em si mesma um enorme tratado pedagógico da doutrina cristã. Com essa obra Calvino buscou reunir de forma clara e didática todo o pensamento Reformado. O termo latino Institutio pode ser traduzido como: instrução, ensino, ou, educação, demonstrando claramente as intenções pedagógicas de Calvino. Ele percebia, que a carência de conhecimento que o povo francês experimentava, era, sobretudo, uma carência do conhecimento espiritual e precisava ser eliminada. Foi primeiramente escrita em latim, para que fosse disseminada em todos os países. Logo em seguida, ele mesmo a traduziu para o francês. A forma simples com que redigiu sua Institutio e a tradução de seu próprio punho para o vernáculo demonstram sua intenção em atingir todos os fiéis. “Que esta me foi a intenção proposta, di-lo o próprio livro, composto que o é em uma forma de ensinar simples e, dir-se-á, chã.”5 Por isso, de todos os escritores do século XVI, afirmou Stanford Reid, Calvino é provavelmente um dos mais fáceis de se ler atualmente.6 É na Palavra de Deus revelada pela Bíblia que se agrega todo o conhecimento humano acerca de Deus e de sua obra. Ela encerra o limite do nosso conhecimento sobre as coisas celestes. Querer ultrapassar esse limite, para além do que Deus achou por bem revelar, é cair no temeroso terreno das especulações humanas.

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A implicação mais óbvia e menos vista e praticada entre educadores cristãos é que, se para Calvino o conhecimento de Deus é a razão de ser do homem, então todas as pessoas que se dizem cristãs reformadas deveriam espontaneamente priorizar a educação. [...] Não se trata de uma educação qualquer, e, sim, de uma educação holística, ou seja, transformadora, vivencial, humana, coerente com as Escrituras, aberta para a revelação do Espírito de Deus e voltada para sua glorificação.7

Para Calvino, assim como para Lutero e os demais Reformadores, a educação não era um fim em si mesma, ela era uma ferramenta imprescindível e útil à sua teologia. A educação era, pois, a base para o conhecimento da verdade que liberta. Não era possível criar uma comunidade verdadeiramente cristã que seguisse os preceitos expostos na Bíblia e dedicasse, cada qual à sua vocação, se não houvesse conhecimento correto de Deus e de Seus propósitos para o mundo. Em 1559, Calvino pôde ver realizado seu grande sonho quando fundou, com a ajuda dos moradores de Genebra, a Academia, que passou a servir à formação de novos pregadores. A idéia dos fundadores da Academia de Genebra era doutrinar, tanto quanto instruir. Por isso ela “tornou-se o centro do saber protestante e dela fluíam as energias que revigoravam os grupamentos calvinistas espalhados pelos diversos países europeus.”8 Escócia, Holanda, Inglaterra e Suíça foram atingidos pelas idéias calvinistas referentes à religião, bem como àquelas sobre educação, porque para Calvino, religião e educação são partes integrantes de um mesmo propósito: a salvação do homem. A educação na Academia era em muitos aspectos uma educação humanista, ou seja, valorizava a produção intelectual dos grandes nomes latinos da Antigüidade como Cícero, como sendo dons divinos concedidos para o gênero humano. Não para que o homem achasse em si mesmo glória, mas para que Deus fosse glorificado.9 A famosa Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, que deve seu nome a um ministro puritano (John Harvard), criada com o objetivo de formar novos ministros, foi fundada por calvinistas, obedecendo aos mesmos propósitos de Calvino quando fundou sua Academia no século XVI.10 Apresentaremos a seguir os manuais que não estabelecem relações entre Calvino ou o Calvinismo com a educação. A AUSÊNCIA DO CALVINISMO NOS MANUAIS

Na Pequena História da Educação de Ruy de Ayres Bello, de 1967, publicada pela Editora do Brasil com duzentos e trinta e quatro páginas, o autor estuda a Reforma no capítulo dez de seu livro. Para ele não houve, pelo menos no que diz respeito ao conteúdo, nenhuma contribuição da Reforma para a educação. “Em resumo, pode ser dito que, no domínio do conteúdo da educação, o apregoado racionalismo protestante apenas se traduziu no espírito de polêmica, num treino permanente da habilidade de discutir, tudo isso limitado pelos pontos de vista sectários que dividiam os campos intelectuais.”11 Calvino, conseqüentemente não figura como alguém que possa ter tido alguma importância para a educação. No campo administrativo e organizacional, o autor conclui também que não houve contribuição da Reforma Protestante nesses campos. “Vemos, assim, que foi perfeitamente negativa a influência da Reforma tanto na administração como na organização do ensino.”12 René Hubert, no livro: História da pedagogia, publicado em 1976 pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, com trezentos e noventa e quatro páginas, trabalha a educação no início da Modernidade. No segundo capítulo da segunda parte do livro intitulado: As principais doutrinas modernas, que inicia-se com a Renascença e após citar Erasmo de Roterdã, Rabelais e Montaigne não apresenta a Reforma Protestante, como tendo de alguma forma contribuído para o desenvolvimento educacional dos povos por ela atingidos.

No livro de Elizabeth Lawrence: As Origens e a Evolução da Educação Moderna, publicado em 1974, com quatrocentos e cinqüenta e cinco páginas, a autora inicia seus estudos com os gregos como Sócrates, Platão e Aristóteles e chega até o século XVI mencionando nomes como Sadoleto, Lutero, Melanchton, Sturm e Rabelais, sem citar Calvino em qualquer momento.

O livro de Roger Gal: História de la Educación, publicado pela Editorial Paidós em 1968. O livro é composto por nove capítulos num total de cento e quarenta páginas. O texto é uma tradução

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feita para o castelhano por Mobel Arruñada, do original francês intitulado: Histoire de L’Éducation, publicado pela P.U.F de Paris. O capítulo cinco do livro aborda os efeitos do Renascimento e da Reforma sobre a educação, embora cite Calvino na página setenta e três, a autora não explica e nem descreve o programa que Calvino propunha para a educação. Isabel Guitiérres Zuluaga escreveu o livro: Historia de la Educación, pela Narcea Ediciones, de Madrid. Originalmente o livro foi impresso em 1968, no entanto, o exemplar consultado foi publicado em 1972 na sua quarta edição, com quatrocentas e setenta e nove páginas. A autora dedica um capítulo especial para tratar da Reforma e Contra-Reforma na educação. Fala de Lutero e de sua preocupação com as almas, argumentando junto às autoridades que, a formação do povo era uma riqueza tão ou mais importante para a prosperidade das cidades e reinos, quanto os bens materiais. Zuluaga não aponta nenhuma relação entre educação e Calvinismo. Nesse livro, Calvino não chega nem a ser citado. Mario Alighiero Manacorda autor do livro: História da Educação, publicado no Brasil pela editora Cortez, elaborou um manual que compreende desde a antigüidade até os nossos dias, ou seja, do antigo Egito até o século XX. No período da Reforma Protestante, em que o autor analisa a educação no quinhentos e seiscentos, Manacorda afirma que partia principalmente dos grupamentos reformados, o empenho na instituição de novos modelos educacionais de caráter popular e moderno.13 O autor escreve sobre a importância de Lutero no incentivo à criação de escolas na Alemanha, mesmo admitindo a anterioridade de outros reformadores como Zwinglio (1484-1531) que em 1523 publicou seu Livreto para a instrução e a educação cristã das crianças. Depois de citar trechos de um texto de Lutero que fala da necessidade de se criarem escolas na Alemanha, Manacorda afirma:

Se a necessidade de ler as Sagradas Escrituras e a capacidade de cada um interpretar a palavra divina nelas contida esta na base desta nova exigência da cultura popular, é, porém o desenvolvimento das capacidades produtivas e a participação das massas na vida política que exigem esse processo.14

Para Manacorda, tanto Lutero, quanto Melanchton souberam conciliar a escola e a cidade; a instrução e o governo, onde a educação cabe aos propósitos reformadores e às novas necessidades sociais e materiais. Calvino não foi estudado por esse autor.

Vimos até aqui os autores que não incluem Calvino nem o Calvinismo nos movimentos históricos que impulsionaram a educação. Certamente Calvino não escreveu grandes textos sobre educação. O homem comum sente muitas vezes dificuldades para compreender a linguagem bíblica, daí porque sua Instituição... servia como uma cartilha ou um manual para facilitar seu entendimento. A função didática da grande obra de Calvino exala de suas páginas, nelas o autor pretendia difundir o conhecimento dos Textos Sagrados como premissa para a difusão do Evangelho na terra e de sua aceitação geral como forma de transformar o mundo e salvar o homem. Educar o homem, ensiná-lo a ler e dar-lhe uma formação básica, era algo tão importante e se fazia tão necessário para a continuidade da fé reformada que Calvino não sentiu necessidade de escrever aquilo que se lhe apresentava como óbvio. Não teorizou sobre a importância da educação, agiu. A Instituição da Religião Cristã é a cartilha que simplifica e esclarece sobre os principais pontos relacionados à fé, salvação, sacramentos, Igreja e Estado. Podemos citar ainda, a Academia de Genebra, que formou teólogos e pregadores para o ensino das Escrituras. Os calvinistas da Holanda, Escócia, Inglaterra criavam ao lado de cada Igreja uma escola, e mantinham um pregador que também ensinasse a leitura. No Livro da Disciplina da Igreja escocesa, livro que fundamentava a organização da Igreja reformada naquele país, todo um projeto de educação básica e universitária foi apresentada. Os puritanos ingleses, também calvinistas, levaram até as terras da América do Norte, seu espírito de amor à educação.

Vemos assim que o Calvinismo em suas origens, bem como em suas posteriores ramificações se manteve fiel, pelo menos no que diz respeito à importância da educação, às idéias de Calvino. É interessante que os autores até aqui apresentados não tenham concordado com esses dados. Veremos, entretanto, que um outro grupo de historiadores da educação e da pedagogia tenha concluído de modo diferente sobre a questão.

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A PRESENÇA DO CALVINISMO NOS MANUAIS.

Lorenzo Luzuriaga, no livro: História da Educação e da Pedagogia, publicado em 1977 com

duzentos e noventa e duas páginas e já na sua nona edição pela Companhia Editora Nacional, cujo título original era: Historia de la educación y de la pedagogia, publicado pela Editorial Losada de Buenos Aires em 1951. Nessa obra o autor dedica apenas uma página para falar da educação religiosa calvinista, inserida no capítulo dez que trata da educação religiosa reformada (protestante), enquanto que o capítulo onze trabalha com a educação religiosa reformada (católica).

O autor cita a idéia de Calvino exposta num programa de governo para a cidade de Genebra. Segundo Luzuriaga, Calvino afirmava que o saber era necessário para a boa administração pública e para apoiar a “igreja indefesa” e os bons costumes, pedindo, para isso, que criassem escolas. Lembrou ainda da criação de um sistema de educação elementar em 1558 no idioma francês, para todos, que incluía o ensino de leitura, escrita, aritmética, religião e exercícios de gramática. A criação dos famosos Collèges, escolas secundárias que formavam os funcionários civis e eclesiásticos por meio das humanidades e da instrução religiosa, teve grande influência para os futuros colégios e liceus da França. Genebra tornou-se um centro de irradiação da fé protestante e do saber secular, e para lá se dirigiam refugiados de toda a Europa. Citando H. D. Foster, Luzuriaga define as principais características da educação calvinista.

Acentuação do elemento leigo na educação; preparação para a “república” e para a “sociedade”, tanto quanto para a Igreja; insistência na virtude e no conhecimento; exigência de larga educação como essencial para a liberdade de consciência; amplo sistema de educação elementar, secundária e universitária, tanto para os pobres como para os ricos; enorme conhecimento das Escrituras, ainda entre as classes mais pobres; utilização da organização representativa da Igreja para fundar, sustentar e unificar a educação; disposição de sacrificar-se pela educação, realizando-a a todo custo; inspeção, de forma coletiva, de professores e estudantes; grande acentuação do emprego da língua vernácula e, finalmente, espírito progressivo de indagação e investigação.15

Por isso, mesmo explicitando o aspecto severo da educação calvinista, ela é considerada do ponto de vista educacional, “quiçá mais eficiente que o próprio movimento luterano”.16 Essas idéias se disseminaram em vários países, dando um caráter internacional ao movimento calvinista, e com ele, a educação nos moldes acima definidos se instalou entre os huguenotes na França, os valões da Holanda e Bélgica, os puritanos da Inglaterra, os presbiterianos da Escócia e mais tarde nas colônias inglesas da América. O autor ainda considera importantes as intervenções do calvinista John Knox (1505-1572) na Escócia, pois, lá ele “[...] deu enorme impulso à educação popular, fazendo daquele Estado o mais culto da língua inglesa”.17 A Editora Pedagógica e Universitária publicou em 1987 o livro: História da Educação, de Thomas Ranson Giles, que trabalha sobre a educação calvinista no capítulo doze entitulado: O humanismo cristão e o processo educativo, no subitem três que ele denominou de: A Reforma e além. O livro de trezentos e quatro páginas dedica três delas para falar de nomes como: Johannes Bugenhagen (1485-1558), Filipe Melanchton (1497-1560), Johann Sturm (1507-1589), Calvino (1509-1564) e John Knox (1505-1572). É uma análise rápida, mas que sintetiza com propriedade as ações de Calvino para a educação. Thomas Ranson Giles fala da importância da fundação da Academia de Genebra como instituição central do pensamento calvinista. Nesse centro de estudos se realizava a dupla função do processo educativo: a formação do cidadão e do crente. “Para Calvino, a Palavra de Deus ocupava incontestavelmente o primeiro lugar no processo educativo, e serve de base para todo o ensino. Mas as Artes Liberais são auxiliares para o seu pleno conhecimento e não devem ser desprezadas”.18 Giles faz referência a John Knox e seu Livro da disciplina para a igreja escocesa, de 1560, onde Knox asseverou que toda a Igreja deveria ter um mestre-escola capaz de ensinar gramática e língua latina. Ele é lembrado como o maior realizador das idéias educacionais de Calvino. “Knox exige o ensino

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universal e compulsório dentro de um sistema nacional unificado. Porém, devido às despesas, o plano não foi universalmente aceito; todavia, onde foi aceito, representou um avanço na história da educação”.19

A Academia significava o ápice do processo educativo, o que atraiu imediatamente alunos de muitos países, sobretudo França, Inglaterra, Holanda e Escócia. Sem precisar exatamente o momento em que foram criadas, Giles enumera algumas instituições que surgiram ou que foram dinamizadas pelos calvinistas: 8 universidades e 32 colégios na França, além das inúmeras escolas elementares. Na Inglaterra, sob o governo de Elizabeth I, os puritanos dominavam Oxford e Cambridge. Na Holanda, os ensinamentos calvinistas eram seguidos pelas universidades de Leiden, Amsterdã, Utrecht e Groningen. Incentivaram, também, a abertura de escolas elementares, sob patrocínio do Estado em Haia, Utreque e Drente.20

Franco Cambi com o título: História da Pedagogia (Storia della pedagogia) traduzido e publicado no Brasil em 1999 pela Editora Unesp, com setecentas e uma páginas, trabalha com a educação moderna na terceira parte do seu livro. Nessa terceira parte a Reforma ganhou um item no capítulo três: O século XVI: o início da pedagogia moderna, onde apresenta o pensamento de Calvino no campo educacional. Para Cambi, os interesses de Calvino no campo educacional inserem-se numa perspectiva mais ampla e de caráter religiosa, ou seja, salvacionista. O autor dedica somente três parágrafos para apresentar as contribuições de Calvino para a educação. Franco Cambi fala da importância de Lutero como responsável pela idéia da renovação religiosa estreitamente relacionada com a educação, através da criação de escolas e da valorização da língua nacional. O problema educativo, segundo ele, é enfrentado particularmente por João Calvino.21 Ele promoveu um amplo programa de renovação social e religioso que enfatizava a necessidade da instrução. “Defende a necessidade da freqüência escolar para todo representante da nova Igreja e aponta nas ‘línguas’ e nas ‘ciências seculares’ os instrumentos fundamentais da formação”.22 N. Abbagnano e A. Visalberghi são autores do livro: Historia de la pedagogía, publicado em 2001 em sua décima quinta edição pela Fondo de Cultura Económica, do México, com setecentas e nove páginas. Nele Calvino aparece na página duzentos e cinqüenta e sete, onde os autores lembram que “Para João Calvino (1509-1564) o retorno às fontes do cristianismo é essencialmente um retorno à religiosidade do Antigo Testamento.”23 Tão importante, para Calvino, quanto o Novo Testamento. O retorno aos clássicos como fizeram os humanistas foi também uma prática que Calvino adotou para si e defendeu nas escolas.

Em Paul Monroe, História da Educação, publicado em 1974, Calvino não ocupa mais do que um parágrafo do seu livro, que resume as ações educacionais do reformador francês à fundação da Academia de Genebra, em 1559 da seguinte maneira. “Somente durante os últimos anos, deu atenção especial à educação. Organizou então em Genebra um colégio que era pouco mais do que uma escola de latim tipicamente humanista. Mais tarde estas escolas tornaram-se numerosas entre as comunidades protestantes da França”.24 Monroe trabalha, no entanto, de forma indireta a educação calvinista quando elabora um panorama geral sobre as escolas elementares nos países protestantes. Escócia, Holanda e Estados Unidos são enumerados como países que, por meio do protestantismo, buscaram a difusão da educação geral. Na Escócia estabeleceu-se um sistema de parceria entre a Igreja Reformada e o Estado que determinava que cada proprietário de terra em cada paróquia mantivesse uma escola e um professor. Em razão disso, lembra Monroe, “[...] o povo escocês tinha muito maiores facilidades educativas e alcançou um padrão de cultura comum mais elevado do que qualquer outro povo do Império Britânico.”25 Esse sistema perdurou sem grandes modificações na Escócia até o início do século XIX, quando se propôs criar mais de uma escola nas paróquias maiores e transferir da Igreja para os contribuintes, a escolha dos professores.

Sobre a Holanda, convertida ao Calvinismo, Monroe afirmou que as igrejas reformadas estabeleceram um sistema de escolas elementares, sobretudo após o Sínodo de Dort (1619) quando a Igreja empreendeu, em associação com o Estado, o estabelecimento de um sistema de escolas elementares em todas as paróquias. Modelo esse seguido pelas colônias americanas na fundação de suas primeiras escolas. Mesmo não admitindo uma contribuição direta de Calvino para a educação, Monroe acaba por admitir nos estudos que fez sobre esses países que o Calvinismo foi uma doutrina que buscou capacitar os fiéis na leitura e compreensão dos textos sagrados e comungados com os poderes civis, instituíram escolas para o ensino elementar.

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Francisco Larroyo em seu livro: História geral da pedagogia, publicado em 1982, concorda que a educação foi um ponto importante para as doutrinas protestantes, enfatizando os países que foram influenciados pelo Calvinismo. “Assim como na Alemanha, também na Suíça, na França, na Holanda e na Escócia os reformadores foram pedagogos, ou, pelo menos, grandes educadores.”26

Sobre a Academia, Francisco Larroyo concorda que essa tenha sido “[...] talvez sua melhor criação. Dela saíam os arautos da nova religião, impulsionados por uma fé ardorosa. Mas ao lado deste objetivo religioso, a Academia foi um centro de orientação pedagógica”.27 Para o autor, “sua obra educativa foi importante. Criou numerosas escolas primárias e promoveu uma reforma moral dos cidadãos”.28 Frederick Eby, no seu livro: História da Educação Moderna, publicado pela Editora Globo em 1976, é, sem dúvida nenhuma o autor que mais desenvolve a questão das relações entre o Calvinismo e a educação, quando aborda no capítulo cinco, o progresso educacional durante a

segunda metade do século XVI, apresentando o Calvinismo como a nova força da educação protestante. O capítulo trabalha com a organização do sistema de educação criado pelos calvinistas.

Para Frederick Eby, o Calvinismo foi uma revolução mental e espiritual que ultrapassou os limites de Genebra: “uma ideologia que não respeitou fronteiras nacionais ou tradições”.29 Na Holanda, onde ele predominou, havia uma educação geral disseminada entre o povo, ímpar na Europa, antes da Reforma. “Quase todo o homem, mulher e criança tinha aprendido a ler nas escolas públicas anteriores à Reforma”. Os Irmãos da Vida Comum, educadores da época, se voltaram quase todos para a fé protestante30. Outra vantagem para os Países-Baixos era a facilidade com que as rendas das antigas propriedades eclesiásticas eram transferidas para as escolas públicas. “A Igreja Reformada Holandesa, de acordo com sua doutrina calvinista de governo teocrático, cooperou com as autoridades para o aumento das rendas educacionais”.

No Sínodo de Dort, os servidores da Igreja foram instruídos para nomear os professores de cada localidade, bem como os recursos necessários à sua subsistência.31 “O sistema de escolas comuns da Europa e da América devem sua origem, em grande parte, às escolas municipais dos Países-Baixos”.32 Essas escolas surgiram como conseqüência de três fatores: as exigências do comércio; a democracia virtual do governo e, por último, a Reforma Protestante. As doutrinas calvinistas contribuíram para a exigência da educação popular para a leitura do credo e dos principais dogmas contidos no catecismo e na leitura das Escrituras. A educação era mantida pelo Estado, que controlava todos os assuntos relativos à educação. “Todos esses fatores contribuíram para realizar um sistema bastante eficiente de escolas públicas na Holanda, muito antes dele ser encontrado em qualquer outra parte”.33 Em relação à escola comum, Eby acredita que Calvino não tenha tido boa influência. “Queixou-se ao Conselho de Genebra que havia pequenas escolas em demasia e o número foi, então, reduzido para quatro, uma para cada região da cidade”. Continua ainda Eby que: “deve-se admitir que o seu catecismo fornecia uma pequena dose de instrução religiosa para todos”.34 Calvino também exigia que os alunos do ginásio lessem fluentemente o francês. A idéia pessimista de que a criança é intrinsecamente má engendrou um pessimismo moral que, segundo Eby, “[...] foi o motivo fundamental em todas as suas doutrinas religiosas e planos para a educação”.35

Alguns aspectos da educação moderna encontram sua gênese no protestantismo, como a inspeção das escolas da Igreja, empreendidas na Saxônia por Lutero, em 1527, e o controle da instrução, que começou nessa época com Calvino.

O esforço mais característico desse tipo foi a supervisão da vida e da instrução familiares, que Calvino instituiu em Genebra e que foi geralmente praticada por seus seguidores. Tal inspeção era prescrita pela Igreja Reformada no Sínodo de Dort, em 1619, pela Igreja Escocesa e pelos puritanos da Nova Inglaterra, na lei de 1642.36

Outro fato marcante da reorganização escolar protestante foi o surgimento do Estado como

agente de estabelecimento e manutenção de escolas. Antes, a educação era uma atividade exclusiva ou sob o controle da Igreja. “Escolas latinas e vernáculas haviam sido gradualmente fundadas pelas autoridades municipais nas cidades do norte, porém com o consentimento da Igreja. Nos Países-Baixos, no entanto, as cidades subordinavam a Igreja à sua autoridade. Em outros lugares, a Igreja

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mantinha supremacia indiscutível”.37 De acordo com a doutrina calvinista, a “Igreja e o Estado cooperam para disciplinar, formar e instruir o povo”. A igreja interpreta e desvenda a vontade de Deus, determinando o dever do Estado, e esse realiza a vontade divina naquilo que significa o bem-estar moral e espiritual do povo. “Na realização desse plano orgânico, a escola é mantida pelo Estado, mas seus objetivos, métodos, currículos, regime e professores são controlados pela Igreja”.38

Ainda sobre a Academia, Frederick Eby afirmou que “por muitos anos, Calvino teve sempre em vista a fundação de uma escola que seria a pedra fundamental da organização eclesiástica da cidade, para a disciplina moral e espiritual de todo o povo”.39 Isso só foi possível em 1559, quando reorganizou as escolas latinas em um ginásio e criou a Academia.

O sucesso da Academia foi espantoso: atingiu 900 alunos já no seu primeiro ano de atividades. “A instituição foi imediatamente reconhecida como o berço dos pregadores protestantes e professores, para a França e outros países”.40 Serviu de modelo para muitas outras universidades, como as de Leyden na Holanda, Edimburgo na Escócia, Emmanuel College da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que, por sua vez, influenciou a fundação de Harvard, em Massachussets, na América do Norte. “Por onde fosse levada a fé calvinista, ela despertava uma extraordinária preocupação com a educação”.41 CONCLUSÃO

Quando folheamos alguns manuais sobre história da educação, percebemos que Calvino não

aparece com tanta freqüência quanto Lutero, e mesmo Melanchton está presente em mais obras do que o Reformador de Genebra. Em alguns, ele sequer é citado. Em treze obras pesquisadas, seis não acreditam haver qualquer relação entre Calvino e educação.42

Acreditamos que o Calvinismo foi tão ou mais importante do que Lutero no campo educacional, mas a sua ausência em alguns manuais se deve ao fato de que os autores, não encontrando textos sobre educação assinados por Calvino, concluíram pela negativa. Numa análise mais cuidadosa, entretanto é possível estabelecer relações entre Calvinismo e educação como o provam alguns desses manuais que apresentam essas relações e concluem afirmativamente sobre elas. É, portanto, uma questão em relação ao método utilizado para averiguar se essa interação existe e como ela se dá.

Aqueles que se debruçaram mais atentamente sobre o Calvinismo puderam traçar um panorama favorável no sentido de afirmar que o Calvinismo foi grande impulsionador da educação em seu raio de ação. Um olhar apressado nos escritos de Calvino, sobretudo em sua Instituição... não permite realmente relacionar, senão de forma muito imprecisa, o Calvinismo com a educação. À medida que conhecemos sua teologia, vamos percebendo a pouco e pouco que a educação é tão importante para seu modelo de fé que toda sua doutrina estava saturada de propósitos educativos. Era tão óbvia para Calvino essa necessidade que ele não escreveu grandes textos sobre educação. Sem ela, acreditava o Reformador, não poderia haver conhecimento de Deus, do homem e da Palavra, elementos imprescindíveis para a fé, para o sacerdócio universal, para a verdadeira Igreja. Não é investigando o pensamento de Calvino querendo nele encontrar de forma explícita um tratado sobre educação que iremos responder as perguntas formuladas no início deste trabalho,43 mas é, antes, buscando em sua teologia o caráter implícito que a educação tomou em sua fé. Isso ajuda a entender porque nos manuais sobre história da educação alguns sequer fazem referências ao Calvinismo, enquanto outros exploram esse tema de modo mais completo. O problema está na visão lançada sobre o conteúdo e não na falta desse, ou seja, o modo como se analisa a educação no Calvinismo é o que determina se suas conclusões serão positivas ou não.

Essa discussão pode contribuir para demonstrar que, dentro da historiografia que trata da educação, existem autores que: negam que a Reforma como um movimento geral tenha incentivado a educação, no início da modernidade; outros, admitem como positivos os incentivos dados pela Reforma e conseqüentemente por Lutero ao campo educacional, embora neguem que Calvino, mesmo inserido no mesmo contexto do reformador alemão, tenha apoiado a educação popular. Por último, e compartilhamos dessa opinião, um grupo de pensadores que alertam para as intervenções positivas de Calvino e de sua doutrina no aperfeiçoamento intelectual e no aprimoramento educacional dos fiéis, como mecanismo inquestionável de promoção da fé.

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NOTAS 1 LUZURIAGA, 2001, p. 115. 2 JÚNIOR, 2004, p. 17. 3 Considerada a obra-prima de Calvino por sintetizar os fundamentos do pensamento protestante. A primeira publicação é de 1536, mas sofreu ao longo de vinte e quatro anos os acréscimos de seu autor. O texto final difere muito do pequeno manual de doutrina que Calvino pensou em publicar. Setenta e quatro capítulos foram acrescentados aos seis capítulos iniciais da primeira versão das Institutas. No Brasil a obra possui quatro volumes com quase mil e quinhentas páginas, publicada pela editora Cultura Cristã. 4 Recomenda-se o livro de Ana Lúcia G. de Faria: Ideologia no livro didático. Nessa obra a autora analisa o modo de como o tema: trabalho é apresentado nos livros didáticos nas primeiras séries do ensino fundamental. Para a autora fica claro que essa apresentação serve muito mais para facilitar a aceitação do Status quo, do que subsídios para uma visão crítica da sociedade. Entre outros trechos diz a autora: “Apenas uma vez se falou que a máquina substitui o trabalho de muitos homens, mas nada é explicado. O importante é o fim: o progresso; o processo para chegar a este fim: a exploração, a alienação pelo trabalho, a desvalorização da força de trabalho pela máquina, não tem lugar. Não se fala na apropriação individual de uma produção coletiva. Que o produto do trabalho não é conhecido diretamente pelo trabalhador, é um estranho a ele.” (Faria, 2005, p. 30) 5 CALVINO. Inst. I. p. 49. 6 REID, 1955, p. 19. 7 GREGGERSEN, 2003, p. 81. 8 VIEIRA, Paulo Henrique. Calvino, Calvinismo e Educação. p. 82. 9 REID, 1955, p. 17-8. 10 VIEIRA, 2005, p. 82-3. 11 BELLO, 1967, p. 152. 12 BELLO, 1967, p. 154. 13 MANACORDA, 2002, p. 194. 14 MANACORDA, 2002, p. 198. 15 FOSTER, apud LUZURIAGA, 2001, p. 113. 16 LUZURIAGA, 2001, p. 112. 17 LUZURIAGA, 2001, p. 112. 18 GILES, 1987, p. 126. 19 GILES, 1987, p. 127. 20 GILES, 1987, p. 126. 21 CAMBI, 1999, p. 251. 22 CAMBI, 1999, p. 252. 23 ABBAGNANO e VISALBERGHI, 2001, p. 257. 24 MONROE, 1974, p. 177. 25 MONROE, 1974, p. 191. 26 LARROYO, 1982, p. 376. 27 LARROYO, 1982, p. 377. 28 LARROYO, 1982, p. 377. 29 EBY, 1976, p. 99. 30 Associação religiosa fundada por Gerhard Groote. Os irmãos ganhavam o sustento com o trabalho das próprias mãos, principalmente transcrevendo livros litúrgicos e edificantes. Tornaram-se beneméritos, sobretudo, pelas missões populares, pela educação da juventude e dos clérigos, pela publicação de escritos edificantes e pelo incremento de um nobre humanismo em suas escolas. Cf. Dicionário Enciclopédico das Religiões. 1995. Verbete: Irmãos da Vida Comum. 31 EBY, 1976, p. 104. 32 EBY, 1976, p. 105. 33 EBY, 1976, p. 106. 34 EBY, 1976, p. 101. 35 EBY, 1976, p. 102. 36 EBY, 1976, p. 117. 37 EBY, 1976, p. 119. 38 EBY, 1976, p. 120. 39 EBY, 1976, p. 100. 40 EBY, 1976, p. 101. 41 EBY, 1976, p. 101. 42 HUBERT; LAWRENCE; MANACORDA; ZULUAGA, GAL e BELLO. 43 Ver introdução.

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REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. e VISALBERGHI, A. Historia de la pedagogÍa. Fondo de Cultura Económica. México, 2001. BELLO, Ruy de Aires. Pequena História da Educação, Editora do Brasil, 1967. CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora Unesp, 1999. EBY, Frederick. História da educação moderna. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. FARIA, Ana Lúcia G. de. Ideologia no livro didático. 15ª edição. São Paulo: Editora Cortez, 2005. GAL, Roger. História da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1987. GILES, Thomas Ranson. História da educação. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária. E. P. U, 1987. GREGGERSEN, Gabriele. Perspectivas para a Educação Cristã em João Calvino. Fides Reformata. São Paulo. v. 7, nº 2, p. 61-83, 2003. HUBERT, René. História da Pedagogia. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1976. JÚNIOR, Décio Gatti. A escrita escolar da história. Bauru: Edusc, 2004. LARROYO, Francisco. História geral da pedagogia. Tomo I. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. LAWRENCE, Elizabeth S. As Origens e a Evolução da Educação Moderna. Lisboa: Editora Ulisseia, 1974. LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação. 3ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 1992. MONROE, Paul. História da educação. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974. REID, W. Stanford. Calvin and the founding of the Academy of Geneva. In: Westminster Theological Journal. Vol. 18. 1955. p. 1-33. SCHLESINGER, Hugo. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis: Vozes, 1995, 2 v. VIEIRA, Paulo Henrique. Calvino, Calvinismo e Educação. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Fundamentos da Educação: Mestrado, UEM, 2005, 125 p. ZULUAGA, Isabel Gutierrez. Historia de la educación. Madrid: Narcea. Ediciones, 1972