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O TEATRO COMO INSTRUMENTO EDUCACIONAL NO PERÍODO
CLÁSSICO: UM ESTUDO DA ORÉSTIA DE ÉSQUILO
OLIVEIRA, Flávio Rodrigues de1
Introdução
Na quadra atual não é difícil estigmatizar um conceito sobre o teatro como sendo um
espetáculo cênico de caráter recreativo para as programações dos finais de semana. Há
também quem vê o teatro a partir do aparecimento do cinema e da televisão, subvertendo os
valores que normalmente deveriam ser dados ao roteiro dramático e cenografia que possuem
uma estreita interdependência, ao invés de levar todo o mérito as personagens. Ainda partindo
das premissas do senso comum, quem nunca se pegou vendo a listagem dos atores que fazem
parte de uma peça teatral, filme ou seriado antes mesmo de ler a sinopse? Aliás, tornou-se
comum dizer que tal peça tem tais personagens com participações especiais de tantas outras
levando o espectador muitas vezes a esquecer-se do roteiro e do sentindo que o escritor
pretendeu passar por meio da obra criada.
Nesse sentido, pretendemos mostrar que o theátron grego se diferencia dessa
concepção moderno-contemporânea de que assistir uma peça possui simplesmente uma
finalidade recreativa. Claro, que não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que os gregos iam
únicos e exclusivamente prestigiar uma peça grega tanto de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes ou
até mesmo a de Aristófanes que já detinha certo apreço pelo gênero cômico, porque tais peças
detinham uma função pedagógica civilizatória. Por isso o que traremos a tona, o porquê e
como, o Estado utilizava-se da teatrada para instruir moral, civil e religiosamente os helenos
do século V a.C. Por isso, propomos que para compreender a proposta pedagógica do teatro
clássico por meio da análise da trilogia Oréstia, identificando a sistematização do saber
clássico na formação dos homens, devemos ter em mente que a instrumentalização
educacional não se pauta simplesmente no âmbito de instituições, escolas, universidades e
etc., mas dentro de uma concepção mais ampla, da qual engloba todos os processos sociais 1 Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. [email protected]
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que levantam indagações sobre a essência humana, tendo este como o investigador,
questionador de suas próprias ações, relações, conceitos, regras e/ou dogmas a fim de explicá-
los e se possível solucioná-los.
Discutiremos aqui por meio do método histórico social a importância do trágico na
educação clássica, preocupando-se com a sistematização do conhecimento e a sua utilização
para a formação da pólis, em um período em que a sociedade grega agregava novos
segmentos, a partir das profundas transformações sociais, políticas e consequentemente
culturais que ocorreram durante o século V a. C. Ainda, partiremos da premissa de que a
tragédia enquanto uma modalidade de arte-educação traduz o homem e a realidade por ele
criada, levando à concretização de um aprendizado e uma análise reflexiva condizente com o
processo de desenvolvimento da essência humana instrumentalizando-o para o exercício da
sua liberdade enquanto indivíduo.
O teatro e a educação clássica
Investigar o estreito vínculo entre o teatro e a educação no período clássico,
protagonizando o esforço que os tragediógrafos possuíam de educar o cidadão sobre as
questões político-sociais da pólis requerirá que salientemos o período de seu surgimento.
Dentre os acontecimentos que marcaram o período em que o teatro se emancipa dos rituais
religiosos em honra ao deus Dioníso e afirmar-se como arte é necessário destacar o sistema
político em que o teatro se instaura, uma vez que iremos ver ao decorrer o artigo a essência
política que o drama possuía além do aspecto religioso. Essa necessidade é imposta uma vez
que entendemos que foi a partir das transformações políticas helênicas que o teatro surge
como instrumento pedagógico.
Os gregos dos séculos VI e V a.C., respectivamente, assinalam o fim do período
arcaico e o início do período clássico. No primeiro, os homens tinham como perfil de cidadão
o homem heróico, fundamentado na tradição religiosa, já o segundo período já possuía um
perfil de serem comandados pela sociedade sendo provenientes de uma aristocracia que
acreditava governar por virtudes modelares. Já em meados do século V a.C., as
transformações foram ainda maiores, pois agora o regime aristocrático começa a perder o
poder surgindo o que se chamaria de democracia com Clístenes. Trata-se aqui da transição do
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regime de governo de Sólon, aristocrata que assumiu como legislador da cidade de Atenas no
ano de 594 a.C.
Dentre as suas reformas, Sólon pretendia afastar o poder aristocrático do cargo público
para que houvesse uma maior representação popular como a Eclésia, a Boulé (instituições
onde os homens reuniam-se para tomar decisões), o Areópago (responsável por formular leis
e manter a autoridade jurídica da cidade, além de fiscalizar as decisões tomadas nas
assembléias). Alguns estudiosos dizem que por esse fato, Sólon não foi nem um completo
tirânico e nem um completo democrático, pois, suas decisões desagradavam tanto aos pobres
como aos ricos.
Com a queda do regime tirânico, houve uma abertura para que houvesse uma disputa
pelo controle da grande Atenas, partindo de dois grupos da Cidade-Estado, os aristocratas,
comandados por Iságoras (governante espartano que viveu entre 517-507, mas tarde sucessor
de Clístenes), e de outro o a massa de cidadãos liderada por Clístenes. Todavia o verdadeiro
apogeu da democracia, só foi alcançado com o regime de Péricles (495-429 a.C.), também
conhecido e rotulado por uma gama de historiadores da Idade Antiga como a Idade de Ouro.
Segundo MARROU (1975), só depois desses processos políticos que os tetes,
cidadãos menos favorecidos financeiramente obtiveram acesso a alguns dos privilégios que
até então estava detido apenas aos aristocratas.
Atenas [...] tornou-se uma verdadeira democracia: seu povo conquistou, por sua extensão gradual, não só os privilégios, diretos e poderes políticos, mas ainda o acesso a este tipo de vida de cultura, a este ideal humano do qual somente a aristocracia havia, de início usufruído (MARROU, 1975, p.70-71).
Com esse modelo de pensar o homem, a palavra passou a ser usada como um
instrumento de persuasão e comunicação; o homem que até então se orientava e justificava
suas ações pelo mito, acreditavam que o poder político era reservado aos descendentes de uma
suposta linhagem heróica. Contudo, devido a essas alterações ocorridas na mentalidade dos
helenos, fez com que o ideal de guerreiro e herói encontrado outrora na Ilíada e Odisséia de
Homero, fosse cedendo lugar ao novo modelo de homem o homem político.
Esse novo homem, não acreditava simplesmente que os deuses orientavam o seu
destino, intervindo na hora que bem entendessem, mas também que algumas leis e atitudes
poderiam sim ser tomadas pelos homens, o que deu lugar a novas regras, as quais se
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centravam na política estabelecida pela pólis. Buscava-se cada vez mais garantir a
participação política dos indivíduos e é por meio deste novo regime democrático que
aparecem os primeiros fatores que ordenam de forma fixadora o caráter educativo do teatro.
De acordo com Courtney (2001), a educação ateniense do período clássico,
fundamentava-se na arte, cujo tripé era a literatura, a música e o esporte. Para os cidadãos
com maiores condições financeiras, as crianças eram instruídas deste a sua tenra idade por
meio de preceptores (normalmente escravos de guerra), que ensinavam a ler, escrever, e
principalmente, a recitar, com todos os recursos dramáticos de expressões vocais e corporais.
A música também era ensinada na infância, sobretudo a tocar lira e flauta. Alguns, porém, os
que possuíam maiores afinidades com a proporção e harmonia, eram ensinadas as artes
esportivas, via por meio da qual o corpo adquiriria saúde, força, leveza e graça. Contudo, nem
todos tinham acesso a este tipo de aprendizado, então Courtney diz que:
O próprio teatro foi um importante instrumento educacional na medida em que disseminava o conhecimento e representava, para o povo, o único prazer literário disponível. Os dramaturgos eram considerados pelos professores tão relevantes quanto Homero, e eram recitados de maneira semelhante. O teatro, em todos os seus aspectos, foi a maior força unificadora educacional no mundo ático (COURTNEY, 2001, p.05).
O teatro desse ponto de vista estabelece a função de pedagogo, uma vez que leva ao
seu público, condições de ampliar a visão que tinha da realidade cotidiana, ou mais
detidamente, o teatro instruía o homem sobre os valores que contribuíam para a sua
completude, enquanto um ser ativo no mundo grego, responsável pela organização do
pensamento e da vida comunitária das cidades gregas.
O século V a.C. foi um século de transição tanto em suas estruturas político-
econômicas, quanto em suas estruturas sócio-culturais. Segundo Vernant (1993), “[...] não se
trata apenas de uma transformação da vida política e social, da religião, da cultura; o homem
não permaneceu idêntico ao que era tanto na sua maneira de ser, como nas suas relações com
os outros e com o mundo (VERNANT, 1993, p.22)”.
O autor e sua obra
Sobre Ésquilo (525-456 a.C.), nascido em Elêusis, cumpre-se destacar que o
dramaturgo iniciou sua vida literária após ter regressado da guerra em Salamina na qual
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participou como soldado, sofrendo e transcrevendo as influências bélicas do seu período
histórico. O teatro esquilino dedicou-se a transmitir o conhecimento que o próprio autor
alcançou em sua trajetória de vida, bem como o entendimento que tinha sobre os sistemas
políticos e os credos religiosos. Ésquilo problematizou questões políticas, da qual se sentia
cada vez mais entusiasmado em participar; indagou sobre questões religiosas, que em seu
período passavam por profundas transformações por meio dos modelos heróicos guerreiros.
Todavia, Ésquilo defendeu sua posição religiosa em relação às novas conceptiones morales
religiosae e, principalmente sua visão política, embora essa última condizia também com o
novo sistema.
Ésquilo escreveu 79 tragédias, entretanto, apenas 07 (sete), permaneceram até os
nossos dias, todavia, ao analisarmos esses números, podemos perceber a relevância dos
dramas esquilinos, tanto no que se refere à quantidade, quanto no que se refere à temática
ampla de que transcenderam o período histórico em que o autor estava inserido. Tornou-se
para os estudiosos e interessados pelo período, uma importante literatura capaz de elucidar,
com riqueza de detalhes o seu momento histórico.
Suas peças sempre contavam com um enredo ilustre provenientes de uma linhagem
real e ascendência divina. A esse respeito Aristóteles diz que é comum esse recurso em peças
gregas, uma vez que, “[...] o possível é mais fácil de acreditar. Pois aquilo que não sucedeu
não cremos tanto que seja possível, ao passo que o que é sucedido é evidente que é possível,
porquanto não sucedera, se fora impossível (ARISTÓTELES, Poética, § 1451b)”. Desta
maneira os roteiros das peças contavam sempre com uma desgraça que ocorria na vida de reis,
príncipes, heróis, guerreiros, semideuses, e/ou deuses da sociedade helênica, relatando a luta
desesperada entre as trevas e a luz, a paz e a guerra, o Hades e o Olímpio.
O homem esquilino encontra-se quase em todos os casos num impasse, sente-se
angustiado de ter de tomar uma decisão que, de qualquer maneira, trará desgraças. O
comportamento da personagem de Ésquilo, muitas vezes é mostrada como sendo susceptível
de transformações. Contudo, o homem encontra-se determinado pelas condições sociais,
políticas, religiosas e econômicas, condições das quais ele próprio como indivíduo torna-se
capaz de modificá-las, mas não as faz com medo da ira divina. Assim, o homem esquilino
encontra-se no terrível imperativo de agir, pois, mesmo sabendo que as suas ações não são
nobres, as executa, uma vez que, é designado a fazer por força da vontade divina:
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Duro é meu destino, se não obedecer, e duro também, se sacrifico a minha filha, ornamento da minha casa, e se vou poluir as minhas mãos de pai nas golfadas de sangue de uma virgem degolada ao pé do altar. Como escapar a estes males? Como hei-de abandonar a armada, faltando às minhas alianças? Se o sacrifício e o sangue virginal fazem cessar a fúria violenta, é lícito desejá-lo. Que seja pelo melhor (AGAMÉMNON, apud. PEREIRA, 1998, 192-227).
Vemos que a decisão de culpa não cabe ao homem grego, uma vez que seus atos são
denominados pelos deuses, pois ao homem que erra por vontade própria ou por desobediência
aos deuses a própria “Oréstia” nos mostra o seu destino: “[...] a ruína é o fim de todos os
culpados (ÉSQUILO, 2000, P.32)”. Segundo Mondolfo (1968), é comum encontrarmos essas
características nas peças esquilinas, porém que tem grande ênfase nos contos homéricos.
Segundo o autor, o homem culpado atribui a poder divino ou demoníaco sua própria ação
censurável; e por outro lado o deus, que rechaça a imputação humana, se atribui, por sua vez,
o mérito de haver aconselhado prudência e respeito à lei.
Costa e Remédios (1988) acreditam que o universo trágico pode ser concebido como
uma crise cujo ponto central é a ambigüidade, uma vez que a tragédia esquilina é resultado de
um mundo que apresenta um choque entre forças opostas: o mítico e o racional. Em virtude
desse mundo mítico vemos que a questão religiosa está intimamente relacionada à história da
Grécia, pois a mitologia tem a sua ascendência direta com a religião grega.
Com essas informações obtidas sobre Ésquilo e o seu contexto histórico, buscamos em
sua trilogia intitulada Oréstia conhecer, em que consiste a proposta pedagógica trágica
sistematizada nessa obra, para que possamos ter uma melhor compreensão da complexidade
do mundo grego e de suas marcas deixadas na história de todo o universo literário, filosófico
histórico e educacional no decorrer dos séculos.
O caráter democrático da educação por meio do Teatro Grego
Como sabemos por meio de fontes históricas (FINLEY, 1988) o povo grego ao fundar
o seu sistema de governo político democrático, tratava-se apenas do indivíduo público, que
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eram aqueles que por direito, podiam votar em Assembléias, participar das reuniões na Ágora,
irem para guerra, dentre outras características. O termo democracia do século de Péricles é
diferente do que empregamos hoje para denominarmos o sistema democrático atual. O
significado do termo democracia que empregamos em nosso cotidiano, define-a como sendo
uma forma de governo na qual o poder emana do povo e em nome dele é constituído;
soberania popular; igualdade. Já segundo FINLEY (1988), o termo democracia era utilizado
apenas para o homem público, ou seja, o ser livre, que tinha condições para participar das
atividades públicas como, por exemplo, votar nas Assembléias. Segundo o autor, dentre os
cidadãos desse período estavam excluídos todos os indivíduos vindos de outras regiões,
escravos, mulheres e crianças.
Devido o teatro do século V a.C. não fazer distinções entre os seus espectadores, sendo
todos indivíduos da pólis grega, pode denominá-lo como totalizante.
Para entender esta concepção educativa, devemos considerar que o Estado não estava
simplesmente interessado que a população fosse ao teatro para que se entretecem. O Estado ao
perceber que as tragédias poderiam transmitir os conceitos de uma educação voltada para o
âmbito social, como por exemplo, podemos destacar nas passagens do primeiro livro da
“Oréstia”, de que “O dom supremo é ter comedimento (ÉSQUILO, 2000, p.25)”, ou que “por
obra da justiça os sofredores se tornam dóceis e o porvir há de se mostrar no tempo prefixado
(ÉSQUILO, 2000, p.25)”. O Estado ao financiar as peças trágicas para toda a população grega
como finalidade a formação do homem para o convívio social. É por meio da tragédia que
todos adquiriam uma possibilidade de pensar os relacionamentos humanos, fornecendo
estímulos pedagógicos que os levam a adequar-se ao seu próprio mundo histórico nas
diferentes funções sociais destes na sociedade.
Assim, depois que os governantes descobrem que o teatro pode ser utilizado para
ensinar conceitos, este, torna-se itinerário entre o conhecimento político/religioso que a pólis
deveria transmitir aos espectadores por meio de seus dramas, o que acabara por garantir ainda
mais a totalidade que o teatro abrangia, passando então a ser custeado pelo Estado, o que
garante que todos iriam ter acesso as peças trágicas.
A representação era uma cerimônia religiosa oficial, presidida pelo sacerdote de Dioniso, que se assentava na primeira fileira; dela participava a cidade inteira. As despesas eram cobertas por uma LITURGIA (chorégia), imposta aos ricos. O Estado criou um fundo especial, o theorikón para pagar uma indenização aos pobres, a fim de que estes também pudessem assistir à festa.
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(JARDÉ, 1977, pg. 150).
A partir deste momento, podemos dizer que o Estado assume o papel de pai da
população menos favorecida, ou seja, os que não eram considerados cidadãos, oferecendo
ingressos àqueles que não tinham condições financeiras para irem ao teatro. Segundo Jaeger
(1986), é o Estado do século V a.C. o assímo ponto de partida histórico do grande movimento
educativo que imprimiu a idéia ocidental de cultura desde então.
Ésquilo é o primeiro dentre os trágicos que retratou de maneira mais abrangente o
sistema político democrático de sua época, e o primeiro a fazer uso do coro em suas criações,
que dava ainda mais um caráter de coletividade em suas peças. E é por meio do coro que
vemos ainda mais a totalidade de pessoas de diferentes classes sociais sendo enfatizada dentro
das tragédias gregas.
O fato é que a tragédia passou a ter um lugar na vida da cidade, ela contava com a presença de todo o povo; sua representação era programada e organizada sob os cuidados da cidade. Dirigindo-se ao povo reunido, os poetas se exprimiam como cidadãos e falavam a cidadãos (ROMILLY, 1984, p. 74).
A tragédia passa a fornecer a todos os seus espectadores uma possibilidade de pensar
os seus relacionamentos humanos, pensado sob a perspectiva individual e social. Fornece
estímulos pedagógicos que os levam a adequar-se ao seu próprio mundo histórico, na medida
em que faz com que o homem reflita por meio do teatro em suas ações cotidianas e analise se
os seus atos estão de acordo com o bem da pólis nas diferentes funções sociais dentro dessa
sociedade, e o mais importante de tudo seja o homem senhores ou escravos, governantes ou
mulheres, velhos ou crianças, natos da cidade ou estrangeiros. Neste contexto, Ésquilo
constituiu pontos culminantes para esse desenvolvimento, uma vez que, feita a análise da
“Oréstia”, pudemos perceber o quão politicamente e culturalmente engajado, o autor
encontra-se com a sua época.
Importância do Teatro Clássico na Educação Contemporânea
Entendendo como os homens viveram e interagiram com o seu período histórico, é
possível aprendermos a enfrentarmos nossos problemas, pois aprendemos a refletir com a
história, desta maneira, far-se-á pertinente e necessário estudarmos o passado. Segundo
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Saviani “clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado” (SAVIANI,
1997, p. 23). Assim, nossa escolha foi feita, na medida em que percebermos a amplitude e a
força tanto por um cunho de entretenimento quanto um caráter moralizador com que a
tragédia do período clássico trata a condição humana traduzindo em ações fictícias, fatos
sobre a realidade que estava sendo vivenciada. Ao nos atermos na tragédia temos a
compreensão de que resgatar o passado, não é apenas aceitá-lo, procurando repensar aquele
contexto histórico, dando a ele um sentido anacrônico, mostrando-se novas possibilidades de
pensarmos e analisarmos a tragédia não só pelo conhecimento que transmitiam aos helenos,
mais ainda, entender o contexto histórico em que aquele povo se encontrava.
Segundo Nagel (2006), ao fazer-se uma investigação sobre os conteúdos educativos da
Grécia do período clássico é impossível não nos atermos às tragédias. Ela diz que as tragédias
apresentam-se como uma literatura insubstituível no exame da consciência do povo grego.
Nagel enfatiza que a dramaturgia dá possibilidades ao homem de fazer reflexões sobre as
forças universais, ou seja, levá-lo a refletir sobre as suas ações, relações, conceitos, regras e
dogmas políticos e religiosos como ser ativo dentro da sociedade helênica. CORO O que depois se passou, nem o vi, nem o digo. Mas não são vãs as artes de Calcas. Aos que sofreram concede a Justiça que fiquem a saber. O futuro o ouvirás, quando surgir. Antes disso, esqueçamo-lo, que o mesmo vale que começar logo a gemer. Virá claramente com a luz que o vir nascer. Seja bem sucedida, depois disto, a acção, como deseja essa fortaleza, reduto último e mais próximo da terra de Ápis! (AGAMÉMNON apud Pereira, M.H., 1998, 248-257).
Ainda segundo Nagel (2006), é inquestionável que o conhecimento educacional e/ ou
cultural do século V a.C. passava pela tragédia. Segundo ela, o poder de formação dos
homens por esta arte só pode ser dimensionado pela importância dada ao teatro, pela sua larga
projeção social entre os atenienses.
O teatro estabelece a função de pedagogo, uma vez que ele constrói um modelo de
homem para sociedade grega, por meio das condições que o ser tinha de pensar as relações
sociais, culturais e políticas de seu período histórico.
Ao analisarmos ainda dentro do próprio teatro o seu caráter educativo, vemos que os
próprios contemporâneos de Ésquilo percebiam o teatro dentro desta função. Por meio de
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alguns fragmentos de Aristófanes em As Nuvens, percebemos que desde o surgimento da
dramaturgia o teatro esteve ligado à concepção de formador da consciência humana.
Eurípedes [...] Além disso ensinei os atenienses a falar [...] Mostrei o uso das regras mais sutis, das palavras de duplo sentido, a arte de refletir, de ver de compreender, de ser esperto, de intrigar de armar, de admitir a maldade, de controverter os fatos [...] [...] Pus em cena os hábitos de uma vida cotidiana, coisas banais, familiares, sobre as quais cada expectador estava nas condições de julgar. [...] [...] Foi assim que consegui formar o pensamento deles, introduzindo em minhas tragédias o raciocínio e a reflexão, de tal maneira que atualmente eles podem compreender tudo, aprofundar-se em tudo e governar melhor os seus lares, [...] [...] [O que torna um poeta trágico digno de admiração são, pois,] as sábias lições que tornam os homens melhores (ARISTÓFANES apud NAGEL, 2006, p. 81).
Assim, o teatro estimula o aluno para o processo da sua omnilateralidade humana, uma
vez que incide sobre o processo construtivo da consciência do aluno. Neste sentido, dizemos
que o teatro o conduz para o exercício da sua omnilateralidade. Pode-se, por meio do teatro,
apreender a totalidade das manifestações e idéias humanas. Assim, o teatro, além de arte, é
educação, já que segundo Saviani, a educação se constitui num “[...] ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 1997, p. 17)
Nagel afirma que:
O convite ao exercício de raciocínio, no entanto não se impõe como um forçoso rompimento com a tradição de respeitar e honrar as divindades por meio de cultos. Em tais costumes, acopla-se, agora, apenas um saber desembaraçado, atuante, que se propõe não só a retirar dos sujeitos o temor da divindade passiva ou indolente. A proposta pedagógica nova, nesse sentido, é incitar o povo a reflexões mais aprofundadas sobre os processos da vida em comunidade. É, pois, reeditar didaticamente, aquele espanto típico do grego que, nesse momento, busca e cria significados diante de paradoxos entranhados nas forças das vidas da materialidade. Limitação do poder, intransigência, inconstância, consequências de ações destrutivas, vão subindo ao palco com o homem que já pensa o aparente e o oculto (NAGEL, 2006, p.87).
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Por isso tornou-se relevante para a compreensão do pensamento clássico, bem como
da educação e da sociedade nesse período da análise da trilogia Oréstia, pois as formulações
contidas nessa obra influenciaram diretamente o homem sobre as transformações de todos
modelos de educação do povo grego estava passando.
A história do teatro mostra que o teatro grego tinha uma função didática muito importante no sentido de organizar o pensamento e a vida comunitária das cidades gregas. Os festivais organizados por ocasião da primavera movimentavam a vida da pólis e multidões formavam o público que acorria aos teatros ao ar livre para apreciar encenações que versavam sobre os temas profundamente humanos: suas paixões e desatinos, os valores éticos que permeavam ou não suas ações e conseqüências advindas do uso ou da falta da liberdade nas decisões e no posicionamento perante a realidade. O teatro grego era o teatro cívico por excelência, pois dialogava com o povo incitando-o a conhecer sua história e a se reconhecer na história, num caráter francamente pedagógico, o que não interferiu na qualidade artística a qual lhe conferiu seu valor universal (CEBULSKI, 2007, p.28).
Desse modo, pudemos entender a relevância da proposta pedagógica clássica
sistematizada em Oréstia. Vimos que na obra de Ésquilo evidencia-se o ideal de formação do
homem organizado em sociedade, como por exemplo, deixar em evidência ao povo grego que
a justiça é soberana formada agora dentro de uma assembléia constituída por cidadãos e
deuses:
ATENA Nem anarquia, nem despotismo eu quero que meus cidadãos cultivem com devoção. E que não se lance o temor fora da cidade. Sem nada recear, qual dos mortais seria justo? (ESQUILO, apud, Pereira, 1998, 215).
O que Ésquilo está dizendo por meio da tragédia neste sentido é que continue a
estabelecer ordem e tranquilidade, pois com este novo sistema de julgamento, os culpados
serão punidos, não havendo simplesmente o que temer mais a partir de agora.
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REFERÊNCIAS
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