o som do silêncio: a angústia social que encobre o luto · transcorre a partir da observação...

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Milena Carvalho Bezerra Freire O Som do Silêncio: a angústia social que encobre o luto - Um estudo sobre isolamento e sociabilidade entre enlutados do cemitério Morada da Paz (Natal/RN) Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Área de Concentração Cultura e Representações, para obtenção do grau de mestre em Ciências Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Lisabete Coradini. Natal – RN Março de 2005

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Milena Carvalho Bezerra Freire

O Som do Silêncio: a angústia social que encobre o luto - Um estudo sobre isolamento e sociabilidade entre enlutados do cemitério Morada da Paz (Natal/RN)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Área de Concentração Cultura e Representações, para obtenção do grau de mestre em Ciências Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Lisabete Coradini.

Natal – RN

Março de 2005

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Milena Carvalho Bezerra Freire

O Som do Silêncio: a angústia social que encobre o luto - Um estudo sobre isolamento e sociabilidade entre enlutados do cemitério Morada da Paz (Natal/RN)

Data da Defesa: ___/03/2005

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Lisabete Coradini Departamento de Antropologia - UFRN

(orientadora)

Profa. Dra. Maria Aparecida Lopes Nogueira Departamento de Antropologia - UFPE

(membro da banca)

Profa. Dra. Elisete Schwade Departamento de Antropologia – UFRN

(membro da banca)

Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior Departamento de Ciências Sociais – UFRN

(membro suplente)

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Ao meu avô, Ruy de Carvalho, por sua admirável vontade de viver.

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AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais, pelo incentivo e força dados não somente nesta etapa, mas em todas as outras de minha vida. A Caio Vitoriano pelo estímulo e presença desde o ingresso no Mestrado até a realização do trabalho final. A Tiago Spinelli por me fazer acreditar na minha capacidade de realizar esta pesquisa, pela leitura atenta, sugestões e incentivo. Ao Prof. Dr. José Guilherme Magnani e a Fernando Araújo pela atenção e pelas sugestões. Ao Sr. Eduardo Vila, diretor do Grupo Vila, por me receber em sua “casa” com extrema abertura, possibilitando a realização deste trabalho. À Millena Câmara, psicóloga do Morada da Paz, pela presteza e amizade ao me acolher em seu grupo, e por me permitir observar seu trabalho com os enlutados. Aos visitantes do Morada da Paz, que com muita paciência e sensibilidade abriram para mim suas histórias, suas dores e seus sentimentos diante da morte e do luto. Depoimentos, amizades e ensinamentos de vida sem os quais este trabalho não se realizaria. Aos amigos Gustavo e Gudmila Svensson, pelo apoio em momentos pessoais difíceis desta caminhada. À Ana Leda Varella e Miriam Moema, amigas que trocaram comigo as angústias vividas neste período acadêmico. À orientadora e amiga Profa. Dra. Lisabete Coradini, pela paciência, pelo carinho quase maternal, pelo ânimo, apoio e estímulo constantes. À Profa. Dra. Elisete Schwade, pelas conversas, conselhos e entusiasmo com a minha pesquisa e minha vida profissional. Agradeço ainda a todos os professores do Programa, pela exposição de seus conhecimentos, que certamente acenderam muitas luzes deste trabalho. Aos colegas de curso, pelas conversas e pelo incentivo. A todos os amigos que, mesmo distantes da minha rotina acadêmica, sempre me apoiaram e acreditaram na realização deste projeto. E, por fim, agradeço à Capes, pelo apoio financeiro.

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“A morte é grande. Nós lhe pertencemos,

Boca sorridente. Quando nos acreditamos no coração da vida.

Ela ousa de repente Chorar em nós.”

Rainer Maria Rilke

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RESUMO

O estar enlutado, nos dias atuais, configura-se como uma circunstância de isolamento e

angústia social devido à impossibilidade de exposição da dor por parte dos indivíduos que sofrem

uma perda. Ao mesmo tempo, a relação simbólica instituída entre a sociedade e o cemitério

abrange interpretações sobre a morte, a dor e o medo – conferindo às visitas ao espaço um caráter

especial e individual. Diante deste contexto, esta dissertação busca analisar a formação de uma

sociabilidade observada entre visitantes do Morada da Paz - cemitério particular localizado em

Natal/RN -, bem como a freqüência assídua destes sujeitos à necrópole. Assim, a pesquisa

transcorre a partir da observação das relações existentes entre estes atores sociais - cujos

encontros têm proporcionado laços baseados na troca de experiências sobre a dor do luto. Desse

modo, este estudo pretende analisar, como ponto principal, de que maneira o espaço do Morada

da Paz e as relações lá instituídas estão sendo apropriados pelos visitantes em seu processo de

luto, buscando compreender qual o papel destes vínculos na elaboração da perda para estes

sujeitos.

Palavras-chave: Luto, sociabilidade, isolamento, cemitério, emoção.

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ABSTRACT

Nowadays, the act of mourning configures as a circumstance of isolation and social

anguish due to the impossibility to express the pain by those who suffer the loss of a dear one. At

the same time, the symbolic relations established between society and the cemetery contains

interpretations about death, pain and fear – which confer to the visits a special and individual

feature. In this context, this dissertation tries to analyse the formation of a sociability observed

among visitors of the Morada da Paz – a private cemetery located in Natal/RN – as well as the

frequency of the visitors to the necropolis. Therefore, the research was accomplished from the

observation of the existent relations among these actors – whose meetings have procured links

based on the experiences´ exchange about pain and bereavement. In this sense, this study tries to

analyse, as its principal point, in which way the Morada da Paz space and the relations

established there are being appropriate by the visitors in their mourning process, trying to

understand what are the role of these bond in the elaboration of the loss for these people.

Key words: mourning, sociability, social isolation, cemetery, emotion.

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SUMÁRIO

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Dedicatória........................................................................................................................Agradecimentos................................................................................................................Resumo..............................................................................................................................Abstract.............................................................................................................................Sumário.............................................................................................................................Lista de Ilustrações............................................................................................................ INTRODUÇÃO...............................................................................................................A morte e o luto: o indizível e o inaudível........................................................................ CAPÍTULO 1...................................................................................................................A consciência e o enfrentamento da morte.......................................................................Da morte familiar ao assunto proibido.............................................................................. CAPÍTULO 2...................................................................................................................Isolamento social no luto..................................................................................................Primeira descrição do ambiente e da observação de campo............................................. CAPÍTULO 3...................................................................................................................A socialização da dor no luto............................................................................................Aproximação, observação e relação com enlutados.........................................................O tempo, a forma da morte e o vínculo em vida...............................................................Pais que sepultam filhos....................................................................................................Relação entre enlutados, com o cotidiano e com os falecidos.......................................... CAPÍTULO 4...................................................................................................................Sociabilidade entre “semelhantes”: amenização ou reforço do isolamento no luto?........A espontaneidade e a superficialidade na socialização da dor..........................................Comparação entre os dois casos e perspectivas individuais do estado de luto................. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... ANEXOS..........................................................................................................................Roteiro de entrevistas com os visitantes...........................................................................Roteiro de entrevistas com a psicóloga.............................................................................Mapa do Cemitério Morada da Paz...................................................................................

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES1

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Imagem Foto 1 (Grupo Vila): Jardim do Morada da Paz.............................................................

Foto 2 (Grupo Vila): Capela Central.................................................................................

Foto 3 (Grupo Vila): Sala de Estar....................................................................................

Foto 4 (Milena Freire): Capela de Oração........................................................................

Foto 5 (Milena Freire): Instrumentistas entre jazigos.......................................................

Foto 6 (Milena Freire): Crianças brincando......................................................................

Foto 7 (Milena Freire): Oficina de Artes..........................................................................

Foto 8 (Milena Freire): Exposição de artes/ Rhazec.........................................................

Foto 9 (Milena Freire): Público presente na missa...........................................................

Foto 10 (Milena Freire): Grupos nos jardins....................................................................

Foto 11 (Milena Freire): Pessoas se alimentando.............................................................

Foto 12 (Milena Freire): Movimento na floricultura........................................................

Foto 13 (Milena Freire): Cuidado e culto ao jazigo..........................................................

Foto 14 (Milena Freire): Família reunida em oração........................................................

Foto 15 (Milena Freire): Missa semanal...........................................................................

Foto 16 (Milena Freire): Emoção na visita ao jazigo........................................................

Foto 17 (Milena Freire): Mensagens enviadas aos falecidos em balões...........................

Foto 18 (Milena Freire): Reunião do grupo de apoio psicológico....................................

As fotografias indicadas como de autoria do Grupo Vila estão disponíveis em www.grupovila.com.br.

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INTRODUÇÃO

A morte e o luto: o indizível e o inaudível

“Antes de existir a voz existia o silêncio O silêncio

Foi a primeira coisa que existiu Um silêncio que ninguém ouviu”2

Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. O Silêncio.

Silêncio. Sobre a morte não se fala. As atitudes diante da morte passaram, desde o início

do século anterior, por alterações no que diz respeito à sensibilidade coletiva na percepção a na

expressão dos sentimentos causados pela consciência da finitude humana. “Na realidade, trata-se

de um fenômeno absolutamente inaudito. A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se

apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição” (ARIÉS, 2003, p. 84).

É interessante, para melhor percepção do assunto, observar o quanto a consciência da

finitude remete à relação conflituosa, porém fundamental, do entendimento do homem sobre si

mesmo. É a consciência da transitoriedade da vida que leva o sujeito a entender seus limites e sua

existência. Assim, a morte como fato inexorável, sobre o qual não se tem controle, recai sobre a

fragilidade humana – o temor pelo desconhecido (o que seria o pós-morte?) fez os homens

atribuírem uma série de significações e explicações que sustentam a crença numa continuidade,

num prolongamento da existência após o fim da vida.

O homem deseja superar a morte, por isso constrói estas projeções3. Pensar na morte

como uma passagem, como uma etapa, significa negá-la como fim implacável da vida. Contudo,

2 Grifos meus. Nota válida para todas as epígrafes. 3 Refiro-me aqui às concepções de duplos, almas, “outro mundo” e “além”, como representações que garantem esta continuidade.

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algumas mudanças significativas ocorridas, principalmente, a partir da compreensão do indivíduo

na sociedade moderna, contribuíram para uma nova maneira de negar a morte. Não são mais as

projeções da idéia de continuidade em um plano metafísico que asseguram a amenização para o

enfrentamento da morte. Negar a mortalidade, atualmente, é viver como se ela não existisse.

Voltando a considerar a consciência da finitude como fomento para a compreensão de si e

da vida, pode-se perceber como ocorreram algumas transformações neste campo, numa

perspectiva mais atual. Observando a necessidade de atribuição de sentido às ações dos sujeitos a

partir do aproveitamento do tempo vivido – o que fortalece a idéia de responsabilidade individual

sobre o próprio destino e acaba por enfraquecer as crenças na continuidade, bem como fragiliza a

noção de congruência na relação sujeito vs. sociedade – Oliva-Augusto (1994, p. 101, grifos da

autora) faz a seguinte reflexão:

No momento contemporâneo, como a vida perdeu o sentido – à medida que desapareceu o sentido da própria história ou do próprio sentido da história – também não há significado para a morte. Há vários mecanismos que tentam afugentá-la, como se negá-la de alguma forma fosse garantia de sua não aproximação. Tratam-se dos mesmos mecanismos envolvidos no “fazer passar” a vida: o refúgio no imediato, a compartimentação entre gerações, a perda no senso de continuidade. No mundo contemporâneo, o indivíduo vive uma corrida alucinada para esquecer que vai morrer e que tudo o que faz não tem, estritamente, nenhum sentido. Sucumbe, assim, enquanto indivíduo, uma vez que o seu sentido de pertencimento é obnubilado e anulada a vivência de sua singularidade.

Nota-se, desta maneira, o quanto a morte tornou-se indizível, e, principalmente, o quanto o

escamoteamento de sua presença numa esfera reflexiva na sociedade contribui para uma

problemática social.

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A morte “é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso

civilizador” (ELIAS, 2001, p. 19). Exemplo disto está na maneira distanciada que se morre

atualmente. A inserção do hospital e da medicalização do doente no cotidiano contribuem, e

muito, para este novo enfrentamento da morte. Os ritos de passagem, como forma de manutenção

da relação entre o homem e a morte (representados de forma direta pelos falecidos), embora

permaneçam presentes, também apresentam alterações significativas:

Se algumas formalidades são mantidas, e se uma cerimônia ainda marca a partida, devem permanecer discretas e evitar todo pretexto a uma emoção qualquer – assim, as condolências à família são agora suprimidas no final dos serviços de enterro. As manifestações aparentes de luto são condenadas e desaparecem. [...] Só se tem o direito a chorar quando ninguém vê nem escuta: o luto solitário e envergonhado é o único recurso (ARIÈS, 1997, p. 87).

Desta maneira, considerando ainda as transformações ocorridas no âmbito das relações

sociais a partir do “processo civilizador” (ELIAS, 1993), no qual impera a economia dos gestos e

das emoções, torna-se perceptível o quanto a discrição é tida como elemento comportamental

preponderante entre indivíduos em estado de luto. Isolados pelo sentimento de necessidade vs.

impossibilidade de expor sua dor, os enlutados introjetam seu sofrimento de forma solitária:

Para Ricoeur4 (1994, p. 60 e 61), o sofrimento quando se abate sobre alguém é sempre solitário e sempre inominável, porque incomunicável em sua perplexidade e extensão, o que faz de cada sofredor um sofredor, específico na sua irresolução e na sua incomunicabilidade. O ato do sofrimento reduz as esferas do outro que se apresenta quase sempre como alguém ou algo que usurpa

4 RICOEUR, Paul (1994). La Souffrance nést pas la douler. Souffances 142, pp. 58 a 70.

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a necessidade de silêncio e autoreferências com que se reveste a tragédia causadora do seu sofrimento. (KOURY, 2002b, p. 59).

Seguindo nesta reflexão, percebe-se a necessidade de entender como a morte e o luto são

tratados numa sociedade em que o individualismo vigora. O sofrimento causado pelo luto tornou-

se um problema a ser vivido apenas por aquele que perdeu. A dor grita nos enlutados. Mas dentro

deles. O social faz sua economia de gestos e sentimentos. E põe-se surdo diante do sofrimento

daquele que sofre uma perda. Esta dor transforma-se em algo inaudível, e por isso mesmo

indizível. Para não sofrer mais (?) diante da inadequação de seu sofrimento num âmbito mais

amplo, o enlutado cala e põe-se mudo.

Existe, assim, um afastamento da dor da perda no cotidiano, e o jogo entre indivíduo e

sociedade torna-se quite: um não fala por não ter quem ouça e quem compreenda, e o outro não

ouve para não incomodar-se e também para não envolver-se. E então permanece o silêncio, que

guarda no fundo um som angustiado, isolado, sofrido e “inadequado” do enlutado. Vê-se, desta

maneira, que aquilo que transforma em tabu a morte e o morto, também impõe como tabu tudo

aquilo que os envolve, inclusive os enlutados (RODRIGUES, 1983, p. 69). E é no momento em

que os indivíduos que sofrem a perda mais necessitam encontrar amparo social que lhes é negado

este auxílio (ARIÈS, 2003, p. 261) – o que torna conflitante sua relação com o coletivo,

reforçando o seu isolamento e a abrangência do seu sofrimento.

Iniciei esta introdução afirmando que não se fala sobre a morte. Este é um fato primordial

para o entendimento do tema e de sua relevância como assunto a ser estudado. Antes, contudo, é

preciso registrar que a morte vem sendo cada vez mais incorporada aos estudos científicos. Na

verdade, trata-se de um retorno do tema à academia, como propõe José de Souza Martins (1983,

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p. 11): “É preciso negar e contestar o silêncio que pesa sobre este assunto; descobrir ao menos

porque a morte é tema interditado e interditado até mesmo para a pequena burguesia acadêmica”.

Pesquisar, estudar o tema da morte, remete a um pensamento sobre a vida, sobre as

construções sociais que mantêm o discernimento da finitude distante do cotidiano. Não fugindo à

“regra”, eu também não pensava na morte. Não falava sobre ela. A minha aproximação ao tema

aconteceu de maneira inesperada. Não imaginava ter que refleti-lo mais profundamente. Na

verdade, a proposta inicial deste trabalho era perceber a receptividade da população natalense

com relação à campanha publicitária do Morada da Paz – cemitério particular localizado em

Natal, Rio Grande do Norte - veiculada no ano de 2002, cujo aumento de vendas de jazigos

triplicou no período da veiculação na mídia.

A idéia era compreender como este investimento em comunicação de massa era percebido

pelos consumidores, ou seja, o que levaria as pessoas a adquirirem seus próprios jazigos

antecipadamente. Porém, com o início da pesquisa empírica, através das visitas de campo, fui

percebendo que a publicidade era apenas uma das ações mercadológicas desenvolvidas pelo

grupo empresarial que gerencia esta necrópole, e que este conjunto de ações poderia contribuir

para a ampliação da sociabilidade entre os visitantes e para uma freqüência assídua dos enlutados

ao local – o que possibilitaria demonstrar uma nova perspectiva em relação ao ambiente do

cemitério, bem como às visitas ao espaço integrando os ritos que compõem o luto.

Neste ponto, é possível lembrar Laplatine (2000, p. 151, grifos meus) quando se refere à

importância da “descoberta” etnográfica a partir da percepção das virtudes do campo:

A busca etnográfica, pelo contrário, tem algo de errante. As tentativas abordadas, os erros cometidos no campo, constituem informações que o pesquisador deve levar em conta. Como também o encontro que surge

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freqüentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quando não esperávamos. Não nos enganemos, porém, quanto às virtudes do campo. [...] Pois a prática antropológica só pode se dar com uma descoberta etnográfica, isto é, com uma experiência que comporta uma parte de aventura pessoal.

Assim, eu tive que me aproximar da morte e do luto. Daquilo que é indizível, que é

“mudo” no discurso social. Conseqüentemente, foi notada a necessidade de considerar a

dimensão simbólica estabelecida contemporaneamente na relação entre a sociedade e o espaço do

cemitério, que abrange interpretações sobre a morte, a dor e o medo. Com isso, também se

envolveram no campo da pesquisa reflexões acerca do estado de luto e do sofrimento da perda,

que dão um caráter especial e individual às visitas realizadas por enlutados no ambiente de um

cemitério.

Esta aproximação aos enlutados indicou ainda a necessidade de ouvir de maneira mais

sensível o seu discurso; de compreender mais adequadamente o que estava por trás da dor da

perda; de perceber o que levava aqueles sujeitos para um estado à margem do contexto social

(VAN GENNEP, 1977, p. 127) e de procurar entender que maneira o espaço do Morada da Paz e

as relações lá instituídas estavam sendo apropriados pelos visitantes em seus processos de luto.

Desta forma, considerando a alteração dos espaços dos cemitérios particulares - através da

prestação de serviços que visam o acolhimento dos visitantes - este trabalho se propõe a analisar

a sociabilidade existente entre os enlutados no Morada da Paz e o papel destes vínculos na

elaboração da perda por estes sujeitos. Assim, a pesquisa transcorre, basicamente, através da

observação das relações existentes entre estes atores sociais, cuja freqüência dos encontros tem

proporcionado laços baseados na troca de experiências sobre a dor do luto.

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Como recursos metodológicos para o entendimento deste quadro foram realizadas

incursões ao longo de dois anos, onde foram mantidas conversas informais, como também o

acompanhamento de reuniões do grupo de apoio psicológico para enlutados (um dos serviços

oferecidos pelo Morada da Paz). As entrevistas5 foram aplicadas com os visitantes mais assíduos

e com participantes do referido grupo, bem como com funcionários e com a gerência do grupo

empresarial. Fotografias, principalmente da observação dos dias de finados dos anos de 2003 e

2004, também foram utilizadas como forma de registro e recurso para interpretação da utilização

do espaço cemiterial6.

Descobrir o silêncio que pesa sobre a morte nos dias atuais significa, inicialmente, fazer

uma revisão histórica e social do tema. Assim, para melhor compreensão sobre a percepção que

os visitantes do Morada da Paz têm do ambiente do cemitério, da própria morte e da dor da perda,

fez-se necessário entender a construção simbólica, histórica e social do cemitério nas cidades,

assim como considerar as transformações ocorridas na relação do homem com a morte e com a

experiência do luto na sociedade ocidental. Sendo esta, portanto, a perspectiva trabalhada no

primeiro capítulo da dissertação.

O estabelecimento de um olhar mais aproximado, indispensável na observação

antropológica, permitindo uma visão particularizada do tema, está exposto no segundo capítulo,

através da análise do processo do luto na sociedade atual, além de incluir uma descrição mais

detalhada do ambiente do Morada da Paz como campo de ação destes atores sociais.

Já o terceiro capítulo reserva-se às considerações analíticas daquilo que foi percebido

como formador da angústia dos enlutados - o seu conflito com o social, que não entende e não 5 Vide roteiros em anexo. 6 Ainda sobre a construção metodológica deste trabalho, é importante destacar a maneira como estão identificados os depoentes. São utilizadas diferentes designações, tais como: visitante, enlutado, indivíduo em estado de luto, sujeito, indivíduo e ator. E, embora exista uma sensível diferença na aplicação destes termos num ponto de vista teórico de correntes sociológicas ou antropológicas, neste estudo, estas expressões distintas estão colocadas meramente com a intenção de facilitar a construção textual, procurando evitar a exaustiva repetição de uma única terminologia.

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permite a exposição das suas dores. “Você já perdeu alguém? Não? Então não vai entender do

que estou falando” – me diziam, em princípio, meus entrevistados. Contudo, inserir-me no

cotidiano apartado destes indivíduos, cujas conversas sobre a dor tornam-se possíveis no

ambiente do cemitério, possibilitou compreender e observar que este silêncio, esta dor indizível,

mais parece um nó na garganta – aquilo que precisa ser revelado, e acaba por acontecer naquele

espaço, entre “iguais”. A análise de como e em que medida a sociabilidade encontrada no Morada

da Paz colabora, ou não, para a amenização da angústia social a que estão expostos os enlutados

que freqüentam aquele local, fundamenta a construção do quarto, e último capítulo.

É interessante, ainda neste momento, perceber a afirmação de Roberto DaMatta (1991, p.

149) que reflete acerca do luto na sociedade brasileira como algo que salienta as relações sociais,

sendo imposto de fora, da sociedade, para dentro – atingindo os indivíduos que cercam o morto.

Segundo sua reflexão, a oposição do caso brasileiro estaria nos sistemas individualistas para os

quais o luto torna-se ausente da esfera social pela relevância dada, nestas sociedades, às emoções

individuais.

Embora tenha sido possível perceber nesta pesquisa a presença de relações sociais

baseadas no luto, a existência destes laços se mostrou fundamentada por uma motivação oposta à

consideração de DaMatta. É justamente pela persistência da importância em assegurar como

primordiais as emoções individuais, especialmente na esfera cotidiana, que os enlutados do

Morada da Paz refugiam-se da sensação de isolamento e de inadequação, a partir dos vínculos

estabelecidos naquele espaço. Concordando, desta maneira, com a concepção de Koury (2003) de

que uma nova sensibilidade acerca do luto vem se formando no Brasil, se refletindo no

distanciamento e no estranhamento vivenciados pelos enlutados expostos à dor. É preciso

observar a angústia, compartilhar a dor inominável do enlutado, e, desta forma, ouvir o som que o

social encobre em silêncio.

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CAPÍTULO 1

A consciência e o enfrentamento da morte

“Senhoras e senhores Trago boas novas

Eu vi a cara da morte E ela estava viva

Eu vi a cara da morte E ela estava viva - viva!”

Cazuza. Boas Novas.

Uma afirmação aparentemente simples desencadeia nossa primeira reflexão: somente o

homem, dentre todos os seres, tem a consciência de sua morte. Esta noção, contudo, remete à

assimilação de um problema mais complexo, que acompanha a preocupação humana desde o seu

princípio – a partir da certeza de sua finitude, o homem estabelece uma relação conflituosa com a

morte. Esta relação, é claro, apresenta inúmeras alterações culturais, que variam de acordo com

os grupos, períodos históricos, construções simbólicas e religiosas.

No que diz respeito ao enfrentamento da morte, existe, porém, a despeito das inúmeras

alterações culturais, um ponto de confluência entre as mais diversas sociedades acerca da certeza

do fim de cada um de seus membros – ela provoca transformações na elaboração do homem

sobre si mesmo. A consciência da morte é, assim, o conhecimento de si e dos outros. José Carlos

Rodrigues (1983, p. 20) afirma: “A consciência da morte abre uma passagem pela qual vão

transitar forças notáveis que transformarão a maneira humana de ver a vida, a morte, o mundo”.

Podemos imaginar, portanto, a amplitude do problema a ser trabalhado quando notamos que a

finitude humana recai sobre sua própria construção social.

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Assim, tecer uma história das atitudes do homem perante a morte é tecer uma história

“das mentalidades e das sensibilidades coletivas” (MARCÍLIO, 1983, p. 61), pois concerne ao

entendimento do homem e de sua constituição cultural. E por que não dizer, refletindo acerca da

mentalidade e da sensibilidade humana, que a consciência da morte é, em si, um dos princípios

fundamentais da sua cultura – considerando que tal enfrentamento permite ao homem a

compreensão de si (DASTUR, 2002, p. 13). Edgar Morin (1997, p. 10-11) reflete que a sociedade

só existe por, com e na morte, ao entender que a reprodução das culturas assume sentido por

meio da transmissão dos patrimônios coletivos, que regem os saberes e as normas de conduta,

entre as antigas e as novas gerações.

Examinando a noção de cultura e de transmissão (e reelaboração) dos saberes e dos

valores simbólicos entre as gerações, proponho, ainda, considerar a temática da morte observando

sua relação com os mitos. Segundo Alípio de Sousa Filho (1995, p. 89, grifo do autor):

A morte também é nos mitos como uma intrusão dos Deuses na vida dos homens. A morte não havia no começo, mas apareceu como punição, pela desobediência, ingratidão ou simples estupidez da humanidade. Há uma crença de que, no começo, a morte deveria ser temporária ou inexistente para os homens. Os Deuses teriam concedido a imortalidade aos homens, mas esses erraram, pecaram e veio a morte.

Se observarmos a existência do mito como uma “representação do social com todos os

traços de um discurso cujas metáforas escondem dos homens os segredos do social” (idem, p.

85), percebemos o quanto este exerce a função de legitimação de uma realidade e de uma ordem

dada aos homens como existente. Assim, ao conceber através do mito que a morte é para a

humanidade uma causa externa, ou seja, ocasionada por uma atitude divina (o que não retira a

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participação do homem ao iniciar o processo através do pecado, vindo ser a morte um castigo),

vê-se mais aproximadamente o quanto este enfrentamento é uma problemática social.

Deste modo, a isenção de uma responsabilidade do homem sobre a morte nada mais é que

uma maneira de negá-la, de adaptar a sua incapacidade de vencê-la a partir de uma noção que

estabeleça a ordem social mantida, neste exemplo, através dos mitos – o que nos faz relembrar a

relevância dada à morte em diversas esferas que contribuem para a legitimação e manutenção

desta ordem, tais como filosofia, religião, ciência, medicina e artes.

A literatura e a poesia, que, através da estética, expressam a intimidade (DURAND, 2002,

p. 239) e a sensibilidade humana, tornam-se dados antropológicos que exprimem as agonias e os

conflitos da relação homem vs. morte. Assim, dando ênfase ao caráter próprio da arte que é um

ópio que não faz adormecer, e sim, abre os olhos, o corpo, o coração para a realidade do homem

e do mundo (Morin, 1997, p. 175), peço permissão para um “mergulho antropológico” nas

palavras de Manuel Bandeira (1986, p 253-254), no poema “A morte absoluta”, que nos remete à

angústia provocada pela incerteza do destino pós-morte, e ao seu conteúdo individualizante, em

que o homem teme ser esquecido enquanto indivíduo:

Morrer.

Morrer de corpo e de alma. Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,

A exangue máscara de cera, Cercada de flores,

Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas

Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante... A caminho do céu?

Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, A lembrança de uma sombra

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Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente

Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,

- Sem deixar sequer esse nome.

De maneira mais marcante, o que se pode perceber neste poema de Bandeira é o temor do

aniquilamento total após a morte, o esquecimento dos sobreviventes, a incerteza do destino para o

céu, e até mesmo o que seria este “céu”. Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Questiona. Mais ainda: o homem teme não sobreviver nem na lembrança, nem na própria

existência como alma – findar-se absolutamente com a morte. Morrer de corpo e alma. [...]

morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome. Este é o problema causado

pela consciência da morte.

A idéia da morte é, desta maneira, um problema do homem. Ou melhor, dos homens

vivos. Conforme atesta Norbert Elias (2001, p. 10) “os mortos não têm problemas”. Chega-se

então ao primeiro desdobramento que a problemática causada pela noção humana da morte nos

propõe: apesar da certeza de sua limitação, o homem não aceita esta partida e, daí, cria, diversas

perspectivas de manutenção de sua existência. A consciência gera a negação da morte. Como diz

Ernest Becker (1976, p. 9): “[...] a idéia da morte, o temor a ela, persegue o animal humano como

nenhuma outra coisa: ela é um dos maiores incentivos da atividade humana – atividade em

grande parte destinada a evitar a fatalidade da morte, a vencê-la negando de algum modo ser ela o

destino final do homem”.

Desta maneira, surgem as noções de duplos, das almas e dos seus destinos: céu,

purgatório, inferno, ainda, “além” ou “outro mundo”, como formas de negação à finitude

humana. A morte, assim, não representa o aniquilamento do homem, ele permanece existindo por

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meio de construções simbólicas originárias desta negação. É preciso notar que a concepção dos

duplos remete diretamente à noção individualizante da morte. É o temor pela própria partida que

cria a perspectiva de continuidade, como uma atribuição de uma imortalidade. A alma pode ser

vista então como um outro que acompanha o eu já em vida, e que alcança sua existência legítima

a partir da desvinculação do corpo. Assim, o duplo, concebido através do temor à finitude, é uma

experiência que o homem tem de si, conforme nos explica mais detalhadamente Morin (1997, p.

136-137, grifos do autor):

[...] o duplo é um alter-ego, e mais precisamente, um ego alter, que a pessoa viva sente nela, ao mesmo tempo exterior e íntimo, ao longo de sua existência. E por conseguinte, não é uma cópia, uma imagem da pessoa que vive que, originalmente, sobrevive à morte, mas sua realidade própria de ego alter. [...] Percebe-se agora que o suporte antropológico do duplo, através da incapacidade primitiva de imaginar a destruição, através do desejo de ultrapassar o obstáculo empírico da decomposição do cadáver, através da reivindicação fundamental de imortalidade, é o movimento elementar do espírito humano que primeiro só coloca e conhece sua intimidade exteriormente a ele. De fato, no começo, toda pessoa só se sente, se ouve, e se vê como “outro”, isto é, projetada e alienada. As crenças do duplo se fundamentam pois na experiência original e fundamental que o homem tem de si mesmo.

É perceptível, desta maneira, a propriedade da afirmação de que “os mortos têm apenas a

existência que os vivos imaginam para eles” (SCHMITT, 1999, 15), sobre a qual são criadas

expectativas de um outro plano, onde é atribuída uma outra vida. Tais lugares e formas de

existência são nada mais que representações daquilo que o homem espera para si próprio:

ultrapassar a morte. Existe, portanto, uma vinculação entre este e o outro lado, entre a vida e a

morte, que é estabelecida mediante a idéia de continuidade dos mortos. A manutenção deste

vínculo acontece primordialmente a partir das práticas funerárias, que socializam as emoções

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suscitadas pelo enfrentamento da morte, despertando a consciência para a própria finitude e

fazendo sobreviver os mortos – seja através da noção dos duplos e das suas moradas, ou a partir

da concepção do renascimento (MORIN, 1997, p. 25).

Isso demonstra que a relação do homem com a morte provoca emoções que remetem

diretamente à sua fragilidade: o desconhecido e o incontrolável. Ora, a morte é para o homem um

fato que foge de seu controle, é indissociável de sua existência. Como diz Françoise Dastur

(2002, p. 8-9):

Com efeito, poderíamos dizer, da morte, o que a tradição ocidental diz tão bem de Deus: que Ele é “algo cuja grandeza não se pode conceber”, não certamente porque ela seria plenitude de ser e perfeição suprema, mas ao inverso, porque “é” absoluta anulação, “objeto” impensável, impossível de ser circunscrita, sobre a qual nenhum domínio jamais foi possível e cuja onipotência sobre nós é semelhante à de um deus único.

Assim, a impotência do homem diante da morte acarreta o sentimento de pânico e temor

que só vem a ser estabilizado a partir da atribuição de significações que remetam a uma

continuidade, a um prolongamento da existência humana. Tais ordenações e significados se dão,

portanto, no plano da cultura, cujos códigos estruturam e organizam a vida social. Simbologias

que, por sua vez, se constroem freqüentemente através de uma imensurável contribuição da

estrutura religiosa, ao conceber seu discurso baseado na noção de punições e recompensas aos

duplos – no que diz respeito aos destinos da alma –, e até mesmo levantam a possibilidade de um

retorno dos espíritos ao mundo dos vivos a partir da idéia de renascimento ou reencarnação,

reforçando a noção de imortalidade proporcionada pela fé em Deus. Em uma passagem do

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sermão de Quarta-feira de Cinza, do Padre Antônio Vieira, escrito em 1672 (1994, p. 63-64,

grifos do autor) podemos perceber mais claramente:

Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a Fé? Que importa a autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó daquela sepultura está chamando: [...] ressurgirei da terra, e serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei o meu Deus7. Eu mesmo o verei, e os meus olhos o hão de contemplar, e não outro. Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há-de morrer? Sim; mas reviver e ressuscitar à imortalidade.

A congruência entre representações da morte e representações religiosas é inevitável.

Grande parte das concepções humanas sobre a morte encontra suas bases na religiosidade, que

por sua vez, manifesta pensamentos e realidades coletivas. Lembremos de Durkheim (1989, p.

38): “As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades

coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio de grupos reunidos que se

destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estados mentais destes grupos”. Logo, ao aplicar

concepções acerca dos duplos, suas recompensas e penalidades, tais representações religiosas

correspondem, primeiramente, a representações8 coletivas.

Além da integração a preceitos religiosos, as maneiras de conviver com a incerteza do

destino do homem pós-morte se dão ainda através das ligações mantidas entre falecidos e

sobreviventes. Isto inclui não somente o vínculo conservado entre este e um outro plano de vida,

mas também garante a tranqüilidade dos sobreviventes no que diz respeito ao seu futuro,

7 Jó, 19, 25 – 27. 8 Emprego aqui o conceito de representações trabalhado por Jovchelovitch (1994)

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posterior à morte - uma vez que a própria existência e manutenção de tais ritos se dão a partir do

temor à finitude e às incertezas por ela causadas.

A partir de então se tem a percepção da importância dos ritos funerários na manutenção

desta relação. São os ritos mortuários que demonstram os cuidados e as preocupações humanas

diante do “fantasma” de sua finitude. Podemos, desta forma, percebê-los como fenômenos sociais

que envolvem os mortos - que devem, a partir de tais cuidados, se adaptar à sua nova “vida” - e

os vivos - que diante da perda também se submetem a padrões de comportamento e de

reorganização da vida.

Os ritos de passagem assumem a função de estabelecer a ordem social perdida com o

evento da morte. Os falecidos, logo após sua partida, transitam até alcançarem seu firmamento no

mundo dos mortos. No intuito de auxiliar esta passagem, de maneira que ela ocorra com

segurança para mortos e sobreviventes – que temem a convivência com os duplos -, é que se

revelam os sentidos dos ritos praticados pelos vivos (REIS, 1991, p. 89-90). São eles, portanto,

que marcam e asseguram a passagem dos mortos deste para um outro plano. É perceptível então

porque o evento da morte, desde os mais antigos registros da humanidade, transforma-se em si

num momento público e social, em que são demonstradas e ritualizadas emoções que estão

incutidas nesta relação do homem com a noção de sua finitude.

Os ritos manifestam, desta forma, a necessidade humana de solucionar seus problemas

com a desordem provocada pela morte. É preciso assegurar a partida do morto. Tais atividades,

devido à relação conflituosa entre o homem e a. morte, podem ser observadas como momentos de

reestruturação social a que os sobreviventes são submetidos, como aponta Rodrigues (1983, p.

45):

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Como fenômeno social, a morte e os ritos a ela associados consistem na realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um domínio e introduzi-lo em outro. Tal trabalho, exige todo um esforço de desestruturação e reorganização das categorias mentais e dos padrões de relacionamento social. O enterro, bem como as outras maneiras de lidar com o corpo morto, é um meio de a comunidade assegurar a seus membros que o indivíduo falecido caminha na direção de seu lugar determinado, devidamente sob controle. Através de tais práticas, o grupo recebe mensagens que evoluem da insegurança ao sentimento de ordem e representam a maneira especial que cada humano tem de resolver um problema fundamental: é necessário que o morto parta.

É notável que a prática da inumação, o cuidado com o corpo morto, ocorre como uma

forma de salvaguardar falecidos e sobreviventes. O local de sepultamento pode ser visto como o

espaço onde “reside” o morto, e, porque não pensar, o duplo. Resgata-se, assim, a noção de

individualidade dos mortos a partir dos ritos, que, ao integrarem também os vivos, são igualmente

constituições sociais. Para Durand (2002, p. 237), a prática do enterramento estabelece a

concepção da morte-maternal, em que a terra “torna-se berço mágico e benfazejo porque é o

lugar do último repouso”. Desta forma, a terra acolhe o corpo que repousa, o que mantém a noção

de sobrevivência da alma, visto que aquele que repousa permanece existindo.

Deduz-se então que a morte e os ritos por ela gerados suscitam nos sobreviventes

emoções que os reportam tanto à sua relação particular com a morte quanto com o falecido.

Estabelece-se aí a noção do luto, estado em que se situam aqueles que estão vinculados de

alguma maneira com o morto. Para Arnold Van Gennep (1977, p. 127) o luto “é um estado de

margem para os sobreviventes, no qual entram mediante ritos de separação e do qual saem por

ritos de reintegração na sociedade geral”, e sua duração pode relacionar-se diretamente com o

período de acomodação do morto em seu novo plano. Portanto, durante o período do luto, ambos,

falecidos e sobreviventes, “constituem uma sociedade especial, situada entre o mundo dos vivos,

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de um lado, e o mundo dos mortos, de outro, da qual os vivos saem mais ou menos rapidamente

conforme fossem mais estreitamente aparentados ao morto”.

Se enxergarmos mais detalhadamente o estado de luto, podemos observar que esta é a

experiência mais próxima que o homem tem com a morte – uma vez que a própria morte não

pode ser experimentada, nem sequer descrita, pelos sobreviventes9. Assim, é a partir da condição

de enlutado que o indivíduo - além de vivenciar a dor da perda (o que lhe permite uma vinculação

com o morto, situando-o num estado à margem) - passa a notar mais nitidamente a sua própria

condição de mortal.

O luto carrega em si, portanto, uma dimensão “afetiva”, que relembra ao homem sua

mortalidade, e, além disso, possibilita ao indivíduo uma noção de falta, de lacuna, uma vez que a

existência do homem, em sociedade, é um “ser-com-o-outro10”, como bem explicita Elias (2001,

p. 76): “A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece - se correr tudo bem.

Terrível pode ser [...] a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura

conhecida. Somos parte uns dos outros”.

É então quando a morte, através do luto, apresenta-se como além de uma experiência

social, coletiva, mas também individual, privativa – pois refere-se à consciência que o homem

tem de si e de suas limitações, e ainda à sua dor pela partida do próximo. Este sentimento de

aflição provocado pelo luto desdobra-se numa série de conseqüências sociais que serão

analisadas mais cuidadosamente no decorrer do trabalho. O que quero apontar, em princípio, é o

vínculo conflituoso que o homem tem, desde a sua origem, com a morte - estendendo-se este

9 A impossibilidade de prever, de descrever o delírio da partida, e a construção romanceada da percepção de um falecido sobre a morte é tema, inclusive, de notável obra da literatura brasileira. Em suas “Memórias Póstumas”, Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, relembra seu pioneirismo nesta descrição: “Que me conste, ainda ninguém relatou seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá” (ASSIS, 1997, p. 23) 10 Tomo aqui expressão emprestada de Heidegger, citado por Dastur (2002, p. 67)

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enfrentamento para uma série de práticas e relações sociais que fazem refletir acerca das causas e

conseqüências do estado de luto nos dias de hoje.

A pertinência em observar tal quadro apresenta-se pela relevância que tem a morte e os

ritos por ela gerados na concepção que o homem tem de si e do mundo em que vive – o que nos

remete ao conceito de cultura, objeto essencial do estudo antropológico. Assim, compreendendo

o luto e o sepultamento como ritos que envolvem a relação da sociedade com a morte e que, por

isso, colaboram com a construção cultural do homem, chegamos ao panorama inicial desta

pesquisa. Para termos um entendimento mais específico destas atitudes e relacioná-las com o

objeto deste estudo, faz-se necessário uma reconstrução histórica e social da relação do homem

com a morte, com o luto e com o rito de inumação, e, conseqüentemente, com os espaços

cemiteriais na sociedade cristã ocidental.

Da morte familiar ao assunto proibido

Segundo Philippe Ariès (2003, p. 36-38) registros das civilizações pré-cristãs demonstram

uma familiaridade da sociedade com a morte. Existia uma aceitação do destino coletivo, da

finitude natural dos indivíduos. Contudo, o culto aos mortos, que eram sepultados

individualmente e muitas vezes tinham seus túmulos identificados, tinha o intuito de coibir a

volta dos mortos para que não perturbassem os vivos. Assim, objetos e alimentos eram oferecidos

aos falecidos com a intenção de satisfazê-los, para que estes não precisassem voltar para pedir ou

exigir nada dos sobreviventes. A presença dos defuntos entre os vivos era evitada ainda através

da proibição do enterro nas cidades. Os cemitérios localizavam-se na beira das estradas, longe

dos centros urbanos.

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A concepção do sepultamento dava, desse modo, dignidade ao falecido e tranqüilidade

aos sobreviventes. O processo de luto, a permanência da memória do finado, garantia a fixação

deste num outro plano. O que amedrontava nessa situação não era a idéia ou o evento da morte,

mas o corpo morto e a possibilidade de seu retorno entre os vivos. Escrevendo sobre as noções da

morte neste período, Dastur ( 2002, p. 27) afirma:

[...] nada podia ser mais terrível para o homem da Antigüidade do que privá-lo da honra suprema da sepultura, pois, neste caso, o que é propriamente terrível é menos a morte em si que o morto, enquanto ele não tiver atingido o processo de interiorização e fixação da memória que é o luto, última provação contra o poder exercido pelos mortos sobre os vivos, e enquanto continuar a povoar, conforme a maneira de inquietante estranheza daquele que retorna do além, que ao mesmo tempo está fora da morte e fora da vida, a consciência dos sobreviventes.

A importância da inumação e da preservação da memória, bem como a idéia de

continuidade do espírito, permaneceram presentes desde a Era Cristã. Com o início do culto aos

mártires, também sepultados nos cemitérios extra-urbanos, foram construídas as primeiras

basílicas no espaço da necrópole. Aliado à influência do cristianismo, foi estimulado o desejo de

enterrar os mortos próximo às capelas, com a intenção de purificar suas almas, pois existia a

crença na ressurreição após o Juízo Final. Por volta do século VI, com a expansão das cidades, os

cemitérios foram incorporados às paisagens urbanas.

Entre os séculos VI e XII, com a entrega dos corpos às igrejas, perdeu-se a concepção de

que os mortos deveriam ser enterrados em seu local próprio, individual. O sepultamento em solo

sagrado já era suficiente para assegurar a espera pela ressurreição. Desta maneira, de acordo com

Ariès (2003, p. 42), os corpos eram depositados em grandes valas comuns, sem caixão, e a

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familiaridade dava um caráter pacífico à morte. A diferença dos sepultamentos ficava apenas para

os defuntos mais ricos, enterrados no interior das igrejas, sendo alguns em túmulos identificados.

Segundo José Carlos Rodrigues (1983, p. 118) existia a dor entre os sobreviventes, mas

esta não era insuportável ou intolerável. Este ponto de vista é reforçado por Norbert Elias (2001,

p. 19-24), que faz uma ressalva quanto à consideração de Ariès de que a morte na Idade Média

seria concebida como pacífica, aceita pelo moribundo e por seus familiares. Ele argumenta que,

devido a menor expectativa de vida, era mais fácil manter contato com a morte. Isto a tornava

mais familiar, o que não quer dizer que não existisse o sentimento de culpa e o medo da punição

após a morte.

Ambos concordam, no entanto, que existia uma familiaridade da sociedade com os

mortos. O lugar do cemitério, cujo limite já se confundia com o espaço da cidade, era um local

público, onde começaram a ser construídas casas e passou a desenvolver-se uma sociabilidade. O

que torna possível o registro de Rodrigues (1983, p. 165), que, contextualizando o reflexo da

convivência com a morte e o ambiente do cemitério, da Idade Média até meados do século XVIII,

faz a seguinte descrição: “[...] nele [no cemitério] as pessoas iam passear, dançar, vender e

comprar, lavar a roupa; nele se dava justiça, se resolviam questões políticas da comunidade, se

consumavam execuções, se faziam reuniões, representações teatrais e se deixava o gado pastar”.

A partir do século XII, a familiaridade com a morte vai adquirir uma carga dramática,

devido a uma preocupação específica com a finitude de cada indivíduo: o conceito de destino

coletivo volta-se para o conceito de destino pessoal, através do qual cada um vai preocupar-se

com a sua própria morte, o que reflete um redescobrimento da individualidade - indicado pelo

destino da alma, que, a partir de então, acreditava-se ser julgada no momento da partida. A

consciência da morte suscita, neste momento, a consciência da vida, da sua fragilidade e da sua

fugacidade. O destino da alma nada mais é que um reflexo, uma conseqüência dos atos e dos

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momentos vividos. Louis-Vincent Thomas, citado por Rodrigues (1983, p. 24) coloca claramente:

“é no momento que tomo consciência de minha finitude que cada instante da minha vida se

carrega de todo o meu destino”.

Neste contexto, a morte era vista como uma separação entre o morto e as coisas terrenas,

da vida pela qual tinha se apegado. Daí a necessidade, registrada a partir do século XIII

(RODRIGUES, 1983, p. 129), da individualização das sepulturas, pois os mortos também foram

individualizados, vistos como pessoas. E os túmulos individuais representavam a tentativa de

continuidade do morto também na Terra (idem, p. 127). Diante desta nova expectativa de

salvação individual da alma no momento da morte, os funerais, ritos de passagem após a morte,

passaram de cerimônias civis a religiosas, até que, no século XVII, apresentaram-se totalmente

religiosas.

No século XVIII, duas mudanças importantes ocorreram com relação à concepção da

morte e do cemitério. A primeira transformação é de origem simbólica: neste período, a idéia

dramática da morte voltou-se para a idéia dramática da perda do próximo. A partir de registros

em testamentos (ARIÈS, 2003, p. 70-72), vê-se a presença de citações e solicitações aos

familiares e amigos, o que demonstrava uma maior união entre os membros, e,

conseqüentemente, uma maior dramaticidade na partida do próximo. A aproximação familiar

ocorrida neste período se reflete na adoção dos jazigos familiares como locais sagrados

destinados à reunião perpétua dos membros, como cita Gilberto Freyre (1985, p. LX):

O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descendentes, pessoas do mesmo nome. E sob este ponto de vista, o

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túmulo patriarcal é, de todas as formas de ocupação humana de espaço, o que representa maior esforço no sentido de permanência ou sobrevivência da família.

Desta maneira, percebe-se como o temor pela morte do outro, e até mesmo a idéia da

morte, sensibilizam o indivíduo. Com a dificuldade de aceitar a morte do próximo, inicia-se neste

período um desenvolvimento crescente da dor do luto, o que acarretou numa volta do culto aos

mortos, que continuará manifestando-se no século XIX. Estas considerações reforçam o caráter

individual da morte, que tem por fim o reconhecimento da perda dos próximos, os quais são tidos

como únicos, como reforça Edgar Morin (1997, p. 32, grifos do autor):

A dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto estiver presente e reconhecida: quanto mais o morto for próximo, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é, “único”, mais violenta é a dor; nenhuma ou quase nenhuma perturbação se morre um ser anônimo, que não era “insubstituível”.

O segundo aspecto de transformação do século XVIII diz respeito aos cemitérios e é de

origem sanitária. Refere-se principalmente à necessidade de transferência dos cemitérios dos

centros urbanos para as periferias, bem como à individualização dos mortos em sepulturas,

devido ao perigo de contaminações graves pela exposição permanente de cadáveres nos

cemitérios dentro das cidades, conforme aponta Michel Foucault (1986, p. 89-90):

Crê-se, freqüentemente, que foi o cristianismo quem ensinou à sociedade moderna o culto aos mortos. Penso de maneira diferente. Nada na teologia cristã levava a crer ser preciso respeitar o cadáver enquanto tal. O Deus cristão é bastante Todo-Poderoso para poder ressuscitar os mortos mesmo quando misturados em um ossuário. Em compensação, a individualização do cadáver, do caixão e do túmulo aparece no final do século XVIII por razões não teológico-religiosas de respeito ao cadáver, mas político-sanitárias de respeito

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aos vivos. Para que os vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é preciso que os mortos sejam tão bem classificados quanto os vivos, ou melhor, se possível.

A transferência dos cemitérios para territórios extra-urbanos, e, principalmente, para fora

do domínio do ambiente religioso da igreja, define uma terceira importante modificação que

também merece ser considerada. Os cemitérios foram, aos poucos, sendo secularizados, o que

indica a substituição da administração destes espaços da igreja para o poder municipal. É certo

que este processo não foi pacífico, considerando que tal mudança implicava numa perda de

controle religioso e econômico por parte da Igreja.

No Brasil, onde a transposição das necrópoles para fora das cidades foi determinada por

D. Pedro I - pelo artigo 66, parágrafo 2º, da Lei promulgada em 1º de outubro de 1828 -, a

secularização destes espaços foi institucionalizada somente 61 anos depois, em 1889, mediante o

decreto Federal nº 789, de 27 de setembro daquele mesmo ano (BORGES, 2002, p.140 -142). O

impasse que perpassa a secularização dos cemitérios brasileiros foi gerado, segundo Maria Elizia

Borges (idem, p. 143) muito mais por uma disputa de poder entre políticos e religiosos, do que

por uma preocupação em manter o repouso dos falecidos. A definição do problema se deu

somente com a instauração da República, que oficializou a separação entre Estado e Igreja11.

Voltando ao assunto da dor da perda, vemos que o luto sofrido e dramático que teve início

no século XVIII indo até o início do século XIX, vai aos poucos mudando de contexto,

transformando a dor socializada em dor individual. Com a higienização da morte, ocorre

paralelamente a medicalização do doente – o que tem como conseqüência uma resignação à

mortalidade. A possibilidade de prolongar a vida causa o horror à morte. Desta forma, sentindo

mais dramaticamente a finitude do próximo, o sentimento de perda continua comovente, pela não 11 Sobre este mesmo assunto, ver João José Reis (1991).

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aceitação desta partida. A família passa então a acompanhar mais de perto os preparativos para os

ritos de despedida, mas a sua dor não pode mais ser externada para os mais próximos, como

aponta Rodrigues (1983, p. 178, grifos do autor):

Ao mesmo tempo e paradoxalmente, este círculo de parentes e amigos tende a aumentar a dor individual: a expectativa de comportamento de que está imbuído é a de que o indivíduo sofra, de que sofra muito pela perda de um ente querido e que, a imagem do moderno sistema de divisão “racional” do trabalho, sofra também em substituição aos outros que se sentem na obrigação de sofrer, mas não chegam mais a experimentar este sofrimento. Rapidamente, a ideologia ocidental vai mascarar este caráter duplamente coercitivo do luto romântico (ditado ao mesmo tempo pela solidão e desamparo em que o enlutado se vê repentinamente e pela tarefa de substituição, através da qual ele se transforma no bode expiatório a resguardar a comunidade desses sentimentos incômodos) e transformar a tristeza do enlutado em “depressão”, em dados da “natureza humana”, objeto de estudo dos psicólogos. No entanto, essa tristeza e esta depressão individuais são contemporâneas da recusa ocidental de pensar na morte. E da sobrecarga de uma realidade que a sociedade, não querendo mais olhar de frente, impõe ao indivíduo.

Após tal contextualização, chegamos assim ao aspecto atual da morte como algo temido,

por isso interditado e sentido dramatica e individualmente pelos enlutados, como também à

concepção dos cemitérios higienizados, com jazigos familiares separados e localizados. É certo

que com o crescimento das cidades, a partir do desenvolvimento da industrialização, os

cemitérios voltaram à paisagem dos centros urbanos. José Luiz Maranhão (1987, p. 36) faz,

inclusive, uma interessante comparação entre a cidade dos mortos e a cidade dos vivos, com suas

separações por ruas, quadras e diferenciações sociais de acordo com a imponência dos túmulos.

Esta reflexão é também proposta por Enrico Valeriani, citado por Borges (2002, p. 130-131), que

traduz o cemitério público secularizado como uma instituição cultural, além de religiosa, por ser

uma invenção moderna – o que atribui à “cidade dos mortos” a aplicação do gosto burguês ao

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perenizar o individualismo do homem, a partir da quebra do anonimato dos jazigos e da distinção

dos mortos através das alterações arquitetônicas dos túmulos.

O que não podemos ver comumente nesta “cidade dos mortos”, porém, é a sociabilidade e

as práticas sociais que os indivíduos compartilham em seu cotidiano. Isso ocorre devido à noção

moral que os cemitérios adquiriram na cidade como um local de culto e respeito – considerando

que a própria idéia do culto modificou-se pela nova sensibilidade do luto, sendo o túmulo o lugar

onde a saudade pode ser externada e a memória do morto reverenciada (RODRIGUES, 1983, p.

178). Assim, nos cemitérios, prevalecem o silêncio e a homenagem individual, fazendo deles

espaços diferenciados dos centros urbanos. Para Elias (2001, p. 40), o silêncio e a solenidade

mantidos no espaço do cemitério remetem a um distanciamento na relação entre vivos e mortos,

como forma de controle da sensação de ameaça contida na morte para os que ficam.

Na sociedade moderna, aliada a esta concepção moral, tem-se a preocupação dos vivos na

manutenção das necrópoles, como maneira de resguardar tais lugares das violações e da falta de

higiene normalmente presentes. Com esta perspectiva, no século XIX, surgiram na América do

Norte e na Inglaterra os primeiros cemitérios particulares, criados e mantidos por sociedades civis

sem fins lucrativos. Tal possibilidade se deu porque em tais países o cemitério não era mais, neste

período, um monopólio municipal (ARIÈS, 1977, p. 276). A partir de então, estes espaços foram

se transformando com intuito de estimular as visitas, o que ocorre paralelamente à concepção de

aproximação com a natureza instituída pelos cemitérios-jardim, sobre os quais falarei mais

detalhadamente a seguir.

Juntamente ao surgimento dos primeiros cemitérios particulares, tem-se a valorização do

espaço tumular, ocorrida principalmente pelo grande aumento de sepultamentos nos cemitérios

públicos, proveniente do crescimento demográfico, o que torna o espaço cemiterial vulnerável à

especulação imobiliária. Esta situação, atualmente, tem tornado a gerência das necrópoles uma

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espécie de problema para a administração pública no Brasil, como bem reflete Borges (2002, p.

146):

Hoje, de um modo geral, os cemitérios lotados são administrados de maneira precária. Possuem poucos funcionários, pouca vigilância noturna, minguadas verbas orçamentárias para sua manutenção. Além de sofrerem a ação do tempo, suas sepulturas são depredadas constantemente pelos vândalos que vão em busca de bronze, mármore e dentes de ouro. Os cemitérios convencionais secularizados nos grandes centros urbanos do Brasil acarretam, atualmente, um déficit aos cofres públicos. Daí o desinteresse em preservá-los.

Desta maneira, a partir do exemplo brasileiro citado, percebe-se o processo de

desenvolvimento do mercado de cemitérios particulares e da profissionalização dos serviços

funerários, desde o velório e o enterro até o apoio psicológico aos enlutados – serviços

introduzidos, principalmente, pelos Estados Unidos no século XX. É importante ressaltar que tais

serviços correspondem não somente a uma mera mercantilização dos ritos fúnebres. Existe

também, através do processo de dor da perda vs. medo da morte, uma necessidade de transferir da

família para “especialistas” o contato mais próximo com o falecido, como forma de manter-se

afastado de tais sentimentos (ELIAS, 2001, p. 37-40).

Vê-se, contudo, que as práticas funerárias que têm contato com o cadáver são apenas a

parte visível do luto. Assim, sendo a manipulação do corpo morto considerada impura, e

livrando-se a sociedade moderna de tal função ao colocá-la nas mãos de “especialistas”, resta-

nos pensar na relação mais sensível existente entre falecidos e sobreviventes. Ocorre um processo

de interiorização do falecido a partir do luto, no qual os ritos funerários transformam-se apenas

em manifestações visíveis aos olhos do pesquisador. Esta relação “invisível”, sensível, e por que

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não dizer, “espiritualizada” entre os mortos e seus próximos, é que remonta a problemática do

luto que pretendo tratar.

A partir das considerações expostas, nota-se a relevância de compreender mais

cuidadosamente as transformações ocorridas no processo de luto e na relação do indivíduo/

sociedade com os mortos. Para Sigmund Freud (1996a, p. 300-301), o processo de luto,

especialmente quando decorre da perda de alguém próximo, proporciona ao indivíduo a falta de

interesse pela própria vida, tamanha a intensidade do pesar. É necessário pensar, ainda, na

permanência do morto na consciência dos sobreviventes. As lembranças da vida e da convivência

com aquele que partiu são sua forma de permanência entre os vivos. Uma citação de Rodrigues

(1983, p. 29, grifo do autor) torna-se esclarecedora neste aspecto:

O absurdo da finitude humana reside em parte no fato de que a morte física não basta para realizar a morte nas consciências. As lembranças daquele que morreu recentemente continuam sendo uma forma de sua presença no mundo. E esta presença só arrefece aos poucos, lentamente, por meio de uma série de dilaceramentos de que são vítimas os sobreviventes. A consciência não consegue pensar o morto como morto e por isso não pode se furtar a lhe atribuir uma certa ‘vida’. A morte definitiva não é determinada pela realidade natural mais que pelas instituições sociais: o defunto conserva ainda, por algum tempo, determinados poderes e direitos, mais ou menos duradouros segundo as diferentes culturas.

O desnorteamento sentido pelo enlutado, contudo, pode ser atribuído ao interdito sofrido

pela morte, sobre a qual não se fala mais, e conseqüentemente ao luto, convencionado atualmente

como um momento de dor individual. Isso nos permite comparar este desnorteamento individual

ao processo do luto vivido até o século XIX, quando a perda era sofrida e vivida socialmente.

Aquele que perdia um parente tinha o direito (ou por vezes o dever) de demonstrar e compartilhar

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a sua dor com a sociedade. Neste aspecto, lembramos de Marcel Mauss (1950, p. 147-153) e sua

consideração acerca da expressão obrigatória dos sentimentos:

Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação. [...] um considerável número de expressões orais de sentimentos e emoções [...] têm unicamente caráter coletivo. Digamos logo que este caráter não prejudica em nada a intensidade dos sentimentos, muito pelo contrário. [...] Mas todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras manifestações, são sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem. Os gritos são como frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo entende. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. Manifesta-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros. É essencialmente uma ação simbólica.

É possível imaginar, ainda, a necessidade do enlutado em expor sua angústia diante da

perda, uma vez que a condição social de existência de “ser-com-o-outro” encontra-se, neste

momento, afetada pela ausência daquele que partiu. Sobre este aspecto, Dastur (2002, p. 67,

grifos do autor) esclarece bem:

Eis por que (sic) a solidão, isto é, a deficiência da presença efetiva dos outros, não é o contrário de ser-com-os-outros, mas a experiência privativa daquela. E é precisamente a privação do outro que é experimentada no luto, que um notável ser-com-o-outro, já que pelo próprio fato da perda, o morto está presente para nós mais totalmente do que já foi em vida. O “sentimento exagerado do meu”, do existir, não é, portanto, de forma alguma, incompatível com o ser-com-os-outros, mas, ao contrário, é o seu fundamento, já que o que eu compartilho com o outro é, precisamente, o caráter intransferível da existência que me separa abissalmente dele.

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A noção de existência do ser, desta forma, corresponde ao entendimento de sua co-

existência, de sua inserção num mundo de “existentes”, onde este compartilhamento o estrutura

(FERREIRA, 2000, P. 115). Assim, notamos que o significado da perda de um ente pode, antes

de qualquer coisa, vincular-se a uma perda de si próprio. E, a partir do momento em que o

enlutado, devido ao interdito imposto socialmente pela morte, não tem espaço para revelar seu

sofrimento, torna-se perceptível o conflito no qual ele se encontra. Considerando a relação

necessidade vs. impossibilidade de expor sua dor, o enlutado depara-se, nos dias de hoje, com um

sentimento de inadequação social, o que lhe torna introspectivo, com receio de demonstrar seu

pesar para não parecer fraco diante da perda e da morte, trazendo a noção da necessária discrição

do enlutado. Sobre este tema, comenta Mauro Koury (2003, p. 22):

O ser discreto no lidar com o seu sofrimento, em público, é a tônica dominante de um discurso que parece revelar a expressão de emoções através do luto como uma espécie de vergonha. A demonstração do sofrimento parece anunciar ou denunciar a idéia de fracasso e de medo de ser visto pelos outros através desta idéia. [...] Ser discreto, deste modo, não significa que o indivíduo não esteja envolvido em seu sofrimento, que não viva a perda do ente querido, mas que este sofrimento é pessoal, e diz respeito apenas àquele que sofre.

Desta forma, o indivíduo que perde alguém não encontra espaço para falar da sua dor nos

grupos cotidianos e, por outro lado, aqueles que estão próximos não oferecem ajuda por

entenderem que devem respeitar a dor do enlutado ou, ainda, não tocam no assunto da morte com

o enlutado por medo de se contaminar, de também sofrer ou angustiar-se com a idéia de que a

morte vai acontecer consigo (KOURY, 2003, p. 152). Assim, a partir da individualização da dor,

as relações sociais mantidas nos ritos de despedida, incluindo o luto, tornam-se fragmentadas,

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superficiais, e, principalmente, constrangidas pela falta de noção daquilo que pode/deve ser dito,

tornando as expressões de sentimentos minimizadas e as condolências “padronizadas”, como

esclarece Elias (2002, p. 32):

A convenção social fornece às pessoas umas poucas expressões estereotipadas ou formas padronizadas de comportamento que podem tornar mais fácil enfrentar as demandas emocionais de tal situação. Frases convencionais e rituais ainda estão em uso, porém mais pessoas do que antigamente se sentem constrangidas em usá-las, porque parecem superficiais e gastas.

Analisando a concepção das relações sociais estereotipadas de luto, percebe-se que este é

um processo de negação à morte bem particular da sociedade moderna industrial. Ora, levando

em consideração o avanço da medicina atual, a morte tornou-se mais distante, ou pelo menos

mais “controlável”. A própria maneira de morrer também sofreu alterações: hoje o indivíduo

morre no hospital, e não mais em casa, e a família, por sua vez, acompanha o processo cada vez

mais de longe. A forma de morrer atualmente pode nos fazer pensar, inclusive, num processo de

massificação do indivíduo, como nos lembra Roger Bastide, citado por Santos (1983, p. 23):

A impessoalidade das relações humanas, a indiferença afetiva e o isolamento nas grandes metrópoles, [...] a fragmentação do nosso comportamento cotidiano em conseqüência do fato de pertencermos a grupos múltiplos, que nos impõem com freqüência papéis contraditórios [...] a massificação do indivíduo.

Se agora o indivíduo morre como paciente e não mais como membro da família, pode-se

supor que o distanciamento dos parentes do moribundo, em oposição ao sentimento de perda, que

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permanece presente, enquadra-se nesses “papéis contraditórios” a que se refere Bastide. Tudo

isso, contudo, reflete um reforço ao interdito da morte, conforme nos diz Elisabeth Kübler-Ross

(1985, p. 17): “[...] o homem, basicamente não mudou. A morte constitui ainda um

acontecimento medonho, pavoroso, um medo universal, mesmo sabendo que podemos dominá-lo

em vários níveis”. Assim, as técnicas científicas podem prolongar a vida, podem higienizar a

morte, podem manter os indivíduos distantes dos moribundos12, colocando-os afastados deste

evento, mas não podem aniquilar o temor à morte, nem o sofrimento do luto. Desta forma, quanto

mais o indivíduo tenta se colocar alheio ao enfrentamento da morte, mais o assunto torna-se

repulsivo, porém, inevitável – a morte é condição da existência humana.

Diante disso, a saída encontrada pela sociedade atual - que pode adiar, suavizar, mas não

contestar a morte - é exorcizá-la do cotidiano como se ela não existisse, refletindo diretamente

nos sentimentos sociais, como lembra Manuel Castells (1999, p. 478):

[...] são as descobertas extraordinárias da tecnologia médica e da pesquisa biológica nas duas últimas décadas que fornecem material para a mais antiga aspiração humana: viver como se a morte não existisse, apesar de ser nossa única certeza. Com isso, realiza-se a subversão final do ciclo de vida, e a vida torna-se esta paisagem monótona entrecortada por selecionados momentos de experiências ricas e pobres na eterna butique dos sentimentos personalizados.

Voltamos a pensar então que o interdito à morte, exposto na sua negação, no seu temor, e

principalmente na impossibilidade de compartilhamento do tema, fortalece o sentimento de

inadequação dos enlutados, colocando-os num estado à margem, através do qual a dor da perda

torna-se pessoal, individual e de improvável socialização.

12 Sobre este assunto ver Elias (2001)

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Pesquisas atuais acerca da morte apontam para o desenvolvimento de uma nova

sensibilidade social em relação ao tema. Até mesmo uma perspectiva de que “após longo período

de silêncio, de morte ‘proibida’, sucede hoje um retorno à ‘morte falante’” (MARCÍLIO, citando

Michel Vovelle, 1983, p. 62, grifos da autora). Contudo, mesmo que esta expectativa esteja em

voga, é preciso considerar que modificações neste plano se dão muito sensivelmente, e que a

morte interditada permanece presente de maneira muito forte em nossa sociedade, gerando, por

conseqüência, interferência direta no processo de individualização do sentimento imposto pelo

estado de luto, sobre o qual iremos tratar.

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CAPÍTULO 2

Isolamento social no luto

“Se ela me deixou a dor É minha só, não é de mais ninguém

Aos outros eu devolvo a dó Eu tenho a minha dor

Se ela preferiu ficar sozinha Ou já tem um outro bem

Se ela me deixou a dor é minha A dor é de quem tem.”

Marisa Monte e Arnaldo Antunes. De mais ninguém.

Ao observarmos o embaraço social causado pelo luto na atualidade, torna-se interessante

perceber o processo de individualização ocorrente na sociedade contemporânea – o que permite,

partindo de uma visão ampla para uma mais específica, analisar como a construção da concepção

de indivíduo, na modernidade, reflete-se nas relações sociais que envolvem o luto.

Tendo como princípio algumas alterações marcantes, como por exemplo na compreensão

de tempo, podemos ver os reflexos dos conceitos de vida, morte e luto na contemporaneidade. Se

considerarmos a exigência, iniciada na modernidade, de aproveitamento inesgotável do tempo em

todas as esferas da vida social, podemos refletir como esta convenção se sobrepõe do âmbito

externo até o individual. O homem, hoje, concentra-se em gerenciar qualitativamente seu tempo –

que, por sua vez, torna-se linear e em uma perspectiva única, em que o destino do indivíduo

depende de suas realizações e ações em vida.

No cotidiano da modernidade, as atitudes do sujeito, bem como seu comportamento e suas

ações reflexivas correspondem ao que Giddens chama de “segurança ontológica”, mantendo no

inconsciente e na consciência prática “respostas” para suas questões existenciais. Nos diz

Giddens (2002, p. 50, grifos do autor):

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A “luta do ser contra o não-ser” é a tarefa perpétua do indivíduo, não apenas “aceitar” a realidade, mas criar pontos ontológicos de referência como parte integrante do “seguir em frente” nos contextos da vida cotidiana. A existência é um modo de estar-no-mundo no sentido de Kierkegaard. Ao “fazer” a vida cotidiana, todos os seres humanos “respondem” a questão do ser – e o fazem pela natureza das atividades a que se dedicam.

A própria vida, sob esta ótica da efemeridade do tempo, é sentida e absorvida como

período único de realizações, sendo, desta maneira, a morte, cada vez mais, vista como o fim

implacável do homem. Mais uma vez, a consciência da finitude recai sobre o reconhecimento de

si, e a própria construção da noção do indivíduo. Contudo, a idéia de aproveitamento da vida, do

tempo, e a perspectiva da morte como fim intransponível, significa o questionamento das crenças

na continuidade de existência pós-morte, bem como das instituições que as sustentam, o que tem

conseqüências ontológicas na constituição do indivíduo na modernidade, conforme reflete

Giddens (idem, p. 52, grifos do autor):

A finitude é o que nos permite discernir o significado moral em eventos de outra maneira transitórios, o que seria negado a um indivíduo sem horizontes finitos. O “chamado da consciência” que a consciência da finitude traz estimula os homens a perceberem sua “essência temporal como seres-para-a-morte”. O que Heidegger chama de “resolução” é a urgência que se faz sentida como a necessidade de lançar-nos no que a vida tem para oferecer antes que o tempo – para o indivíduo - “se esgote”. Essa visão não é oferecida por Heidegger como uma filosofia moral, mas como uma descrição das realidades da experiência humana. Mas é seguramente uma posição difícil de sustentar numa base transcendental. É acima de tudo uma visão dirigida a uma civilização afligida pelo que Kierkegaard chama de “doença até morrer” – que, segundo ele, é a inclinação a aceitar que, a morte é de fato o fim. Embora as ansiedades sobre a finitude, derivadas do desenvolvimento psicológico do indivíduo, sejam universais, as representações culturais da morte não o são. As cosmologias

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religiosas podem atuar sobre essas ansiedades desenvolvendo concepções do além-vida, os ciclos de renascimento. Mas elas nem sempre cultivam significados morais destacando principalmente a transitoriedade da existência do indivíduo.

Nota-se, assim, como e o quanto a finitude humana inquietam o homem na modernidade.

A transitoriedade da vida e a urgência em aproveitar o tempo, na intenção de atribuir de

significados mais substanciais para sua existência, levam os indivíduos a se afastarem da idéia da

morte. Assim, sendo a morte uma questão de temporalidade, entende-se que a percepção da vida

como a “linearidade de um tempo que começa e se esvai, até o fim previsto mas não datado,

precisa ser escamoteada. Esta precariedade do viver é então afrontada de maneira ardilosa, para

poder-se vivenciar com um nível de angústia suportável, este tempo que passa” (REZENDE, Ana

Lúcia, et al. 1996, p. 45). Esta “precariedade da vida”, proveniente da consciência de sua

transitoriedade e da “angústia suportável” que esta idéia reflete no indivíduo, tende a corroborar

com a sensação de ausência de sentido para as atitudes da vida do sujeito e da própria morte – o

que pode corresponder a uma impressão de desconexão entre o indivíduo e a sociedade,

contribuindo para um processo de isolamento social do homem contemporâneo.

Dessa maneira, uma outra conseqüência importante a ser observada nesta nova apreensão

do tempo se dá no campo das relações entre o sujeito e a sociedade, em que o individualismo

fragmenta o sentido de pertencimento do homem no ambiente social, e, conseqüentemente, o

próprio sentido de sua existência e de suas ações, como afirma Maria Helena Oliva-Augusto

(1994, p. 97-98, grifo da autora):

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[...] a vivência do momento presente, para grande parte dos homens e mulheres contemporâneos, antes de possibilitar a percepção de si como seres completos, indivíduos na extensão do termo, fá-los sentirem-se como seres desconectados, sem raízes e sem perspectivas. Disto decorre – uma vez que se perdeu o sentido do pertencimento, de participação em um “nós” – que, hoje, para a maioria das pessoas, a tradução subjetiva da significação da autonomia individual e da realidade que a sustenta é um profundo individualismo em que cada um se volta egoisticamente para seus desejos e expectativas e não reconhece no outro um semelhante. O resultado desse processo não é senão [...] a fragmentação da vida em um conjunto de atos sem sentido e a extrema solidão que persegue as pessoas, ainda que vivam em sociedade.

Na modernidade, a falta de reflexões sobre a finitude e sobre a perda, como uma

conseqüência do individualismo e da exigência de aproveitamento da vida, causa a sensação de

isolamento e de ausência de afetividade no âmbito social. Este processo fica bem demonstrado no

depoimento de um enlutado participante do grupo de apoio psicológico do Morada da Paz:

(Mecanicismo da vida moderna) Naquela vida sem um propósito maior, no fundo eu tava virando um materialista, um negócio seco, eu não acreditava em mais nada a não ser na realidade objetiva das coisas. Tudo que fosse feito, qualquer ação que fosse desprendida tinha que ter um propósito, um resultado, a perseguição de um objetivo. Passou a ser uma vida mecânica, é isso daí, uma vida mecânica. Um relógio suíço. Você tem que tudo perseguir aqueles negócios, perseguir aqueles objetivos sem turbulência, excluindo tudo que pudesse provocar uma turbulência, como se nós pudéssemos excluir isso da nossa vida. (O pensamento sobre a perda) Não cabia. Na minha cabeça não. Eu não pensava, eu simplesmente parei de pensar nisso, em termos de perda. Eu parei de pensar e as coisas estavam rodando normalmente no mundo. Pensar é uma possibilidade que todo mundo pensa, mas é aquele um por cento que pode ocorrer, e não é imediato. (Isolamento) O que mais me pesou foi isso. Sozinho porque eu não tinha desenvolvido, eu não sabia lidar com a afetividade. O que eu sabia antes, eu tinha perdido. Não sabia lidar com a afetividade, não sabia botar pra fora. Meus sentimentos. (Marcos)13

13 Todos os nomes aqui expostos são fictícios, não correspondendo ao verdadeiro nome dos atores sociais. A referência serve para compreensão do discurso do enlutado, conforme aconteça a repetição de depoimentos do mesmo entrevistado. No caso, trata-se de um engenheiro, 48 anos, viúvo, pai de um casal de adolescentes. Participante do grupo de apoio psicológico, perdeu a esposa há seis meses (contados a partir da data da entrevista), vítima de uma infecção renal.

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Percebendo este sentimento de isolamento social pelo qual passam os homens

contemporâneos, pode-se enxergar como isto se reflete numa perspectiva cautelosa, e porque não

dizer, de auto-controle, na sua atuação como sujeito e nas relações sociais. O individualismo e o

isolamento, desta maneira, interferem diretamente na fragmentação dos relacionamentos. Isso

faz lembrar o conceito de atitude blasé tão bem descrito por Simmel (1987) como sendo o

comportamento recluso e a adaptação dos indivíduos às tensões da vida metropolitana na

modernidade.

Neste contexto, coloco como reflexão o isolamento sofrido pelos enlutados na atualidade.

Se compreendermos que a cautela e a fragmentação já estão em voga nas relações sociais de uma

maneira geral, entenderemos como este quadro se agrava quando se trata do compartilhamento do

sofrimento causado pelo luto. Mauro Koury (2002a, p. 96), que vem desenvolvendo um

primoroso trabalho sobre o processo de individualização do luto no Brasil, descreve:

A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual, vem afigurando-se na tendência de um refreamento do processo de individuação do sujeito que sofre a perda, através do mascaramento da dor do sofrimento e da morte. Essa tendência social de escamoteamento da expressão pública dos sentimentos e a valorização da interiorização, enquanto espaço da intimidade, do privado, ou da subjetividade, cria uma pré-disposição permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e por extensão, no social.

Numa visão mais ampliada, compreende-se que o estudo sobre os conflitos sociais a que

estão sujeitos os indivíduos em estado de luto abrange aspectos de diferenciação e de isolamento,

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fundados na impossibilidade de exposição da dor. A conseqüência deste processo se desdobra em

sentimentos conflituosos como vergonha, mágoa e inquietação. A vergonha pelo estado de luto é

conseqüência da relação necessidade vs. ausência de solidariedade social no compartilhamento da

dor causada pela perda.

Ao observarmos a consideração de Giddens (2002, p. 66) de que a vergonha é decorrente

do sentimento de inadequação do eu, correspondendo à “insegurança ontológica” na qual o

sujeito teme não suportar pressões que envolvem sua coerência ou aceitabilidade social, vemos

como e por que a discrição torna-se preponderante no comportamento dos indivíduos em estado

de luto.

A discrição, por sua vez, já praticada como padrão comportamental dos indivíduos na

contemporaneidade, transforma-se, para o enlutado, em ferramenta de defesa, através da qual a

não-exposição da dor mantém a distância suscitada pela desconfiança que o sofrimento daquele

que vivencia o luto constrói pelo social. É pertinente lembrar, sobre este aspecto, a noção de

regulação e auto-controle da esfera instintiva e afetiva dos sujeitos na atualidade, conforme

esclarece Elias (1993, p. 203), quando analisa o “processo civilizador”, em que a conseqüência da

economia dos gestos e sentimentos recai diretamente nas relações sociais:

Esta luta semi-automática da pessoa consigo mesma nem sempre tem uma solução feliz, nem sempre a autotransformação requerida pela vida em sociedade leva a um novo equilíbrio entre satisfação e controle das emoções. Freqüentemente, fica sujeita a grandes ou pequenas perturbações –, à revolta de uma parte da pessoa contra a outra, ou a uma atrofia permanente – que torna o desempenho das funções sociais ainda mais difícil, se não impossível.

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Esta exposição faz refletir na desconfiança concebida pelo enlutado com o social. Desta

forma, entendemos como o sofrimento e a dor de quem passa por uma perda tornam-se

individuais, correspondentes apenas ao enlutado, uma vez que suas angústias não são externadas

em conseqüência da “opção” pela discrição, bem como da ausência de abertura para expressão da

dor, visto que o individualismo contemporâneo não permite a intromissão alheia em esferas

privativas. Conforme nos diz Koury (2002a, p. 99):

Este caminho vem se dando através do agir com discrição como uma espécie de dever ser moral para todos aqueles atingidos por uma perda. Configura-se, também, pela busca da não-intromissão na privacidade do outro. Ambos processos afiguram-se, deste modo, em espelhar um tipo de comportamento pessoal desconfiado e, ao mesmo tempo, ansioso.

O estar enlutado configura-se, assim, num processo de inadequação social pelo qual

passam aqueles que sofrem uma perda nos dias de hoje. Como efeito, temos o aprofundamento da

dor e o afrouxamento daquilo que seria tido para o indivíduo enlutado como sentido de vida e de

pertencimento social. Caracterizam-se também neste campo o enfraquecimento dos

relacionamentos sociais e a fragmentação do enlutado enquanto sujeito na sociedade. Desta

forma, observa-se porque a instância desindividualizante que rege a crença numa continuidade

pós-morte já não atende aos anseios do enlutado, não sendo mais suficiente para abrandar seu

sofrimento. Como nos coloca um entrevistado:

Mas uma coisa que eu notei é que eu não tinha fé. Não tinha crença na hora, na noite seguinte da morte dela. Não tinha crença, quer dizer. Aí eu pensei: se

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morrer apaga tudo. Não existe nada após a morte, desintegração, decomposição total da matéria, o que passou, passou - teve o seu tempo. Ela se foi, vai apodrecer, vai virar pó. Agora, por que é que nós sentimos? Então não deveríamos sentir. Tudo o que tem é só pra fazer a gente sofrer? Então não deveria ter. Assim, como ela vai virar pó, eu também não deveria estar sentindo nada. Eu não devia ter em mim nenhum vínculo mais com ela. (Marcos)

Nota-se, desta forma, a angústia provocada pela concepção da morte como o fim

inexorável da existência humana, presente na atualidade. A conseqüência disto é o

questionamento acerca dos vínculos e das relações sociais, bem como da própria dor provocada

pela perda. Assim, o indivíduo que passa pelo luto, nos dias de hoje, isola-se em seu sentimento,

aprofunda a sua dor, sem conseguir compartilhá-la, tornando-se desiludido do mundo, da vida e

de si.

É importante perceber que a interiorização do sofrimento dos enlutados ocorre no campo

da subjetividade, o que caracteriza seu estudo na esfera do sentimento, do aspecto cognitivo-

emocional destes sujeitos. A construção desta subjetividade, contudo, se constitui a partir de

conexões tanto psicológicas quanto sociais dos indivíduos em contextos temporais, culturais e

espaciais específicos. “A intersubjetividade não deriva da subjetividade, mas ao contrário”, nos

lembra Giddens (2002, p. 53).

Desta forma, ao inclinarmos nossa atenção para o âmbito emocional que envolve o sujeito

enlutado, é preciso ter em mente que a própria emoção se constrói a partir da intersubjetividade,

da teia de relações sociais e culturais que transitam no indivíduo de maneira singular, num

encadeamento temporal e espacial determinado. As relações sociais que envolvem o luto, deste

modo, caracterizam-se como campo de estudo da sociologia da emoção – que parte “do princípio

de que as experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por um ator social específico,

são produtos relacionais entre os indivíduos e a cultura e sociedade” (KOURY, 2004, p. 89).

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Assim, ao analisarmos, no decorrer da pesquisa, as emoções por que passam os enlutados

do Morada da Paz, devemos considerar que tais experiências, tanto na esfera cotidiana quanto no

ambiente do cemitério, correspondem a entrelaces que perpassam por experimentações

individuais e coletivas, que trazem, em si, representações sociais14 e culturais sobre a morte e o

luto, e por conseqüência interferem na esfera emocional e comportamental daqueles indivíduos.

Isto significa dizer que a exposição e a troca de experiências entre estes visitantes é

percebida pela similaridade da situação sociocultural em que se encontram, configurando uma

interação, uma espécie de aliança. Vendo sobre este aspecto, para o qual as formas relacionais

assumem as ações sociais (idem, p. 12), pode-se afirmar que existe, ainda, uma projeção de cada

indivíduo nesta socialização da dor. Ou seja, cada ator social, ao projetar nestas relações o

interesse de amenizar sua angústia, passa a interagir a partir de uma situação que deve satisfazer

ambos os lados, indicando que existe uma noção comportamental que rege estas trocas. Como

esclarece Koury (ibidem, p. 13), a situação observada é

Como uma espécie de etiqueta ou moldura informacional de códigos emocionais, cultural e socialmente satisfeitos, que influenciariam os projetos e vivências emocionais dos sujeitos sociais em relação, e cujo funcionamento se ofertaria aos sujeitos em troca, através de um imaginário social fluido, de um dado contexto historicamente satisfeito.

Assim, o contexto oferecido para este estudo precisa considerar historica e temporalmente

o âmbito emocional dado para cada um dos seus atores sociais, bem como levar em conta o 14 Sandra Jovchelovitch (1995, p. 69-70, grifos da autora), trabalhando com o conceito de representações sociais, reflete acerca da experiência coletiva na construção do sujeito: “[...] o Outro generalizado é que dá ao sujeito sua possível unidade enquanto Eu, e não há possibilidade de um desenvolvimento do Eu sem a internalização de Outros. A importância de uma comunidade segue aí: ela evidencia um ‘nós’ necessário para a constituição de cada ser humano, que atesta que vidas privadas não surgem a partir de dentro, mas a partir de fora, isto é, em público.”

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espaço desta interação, ou seja, pensar de que maneira a apropriação do cemitério influencia, ou

contribui, para esta troca intersubjetiva. Desta forma, para chegarmos ao entendimento da

sociabilidade existente entre os visitantes do Morada da Paz, bem como de suas representações

sobre a morte, o luto, e o ambiente do cemitério, faz-se necessário, primeiramente, descrever o

local e as ações dos visitantes como uma primeira observação.

Primeira descrição do ambiente e da observação de campo

Antes de lançar o olhar para a esfera específica das relações sociais contidas no processo

de luto experimentado pelos visitantes do Morada da Paz, é pertinente observar que as

construções e representações sobre a morte descritas até agora, baseadas principalmente na ótica

de estudiosos que se dedicaram a esta análise em sociedade ocidentais, predominantemente

européias, recaem e influenciam nas representações mortuárias brasileiras15. Pois, conforme nos

diz Koury (2003, p. 57):

Forças internas que remetem, refletem e reconstroem continuamente a singularidade e a especificidade de sua experiência cultural, ao mesmo tempo que fundam e são fundadas por relações internacionais presentes desde seu processo gestativo e fundador. Frutos de legados, trocas e embates estabelecidos com culturas e organizações societárias fundamentais à sua construção enquanto povo e nação. Bem como projetos, desejos, sonhos e lutas que orientam rupturas e conformações novas sobre o já anteriormente instituído. [...] É impossível, assim, buscar uma compreensão de um pensamento brasileiro e das atitudes de sua população, sem situar a história de sua singular formação social a nível internacional, especificamente ligado à cultura européia.

15 Este aspecto também é bem trabalhado por Reis (1991)

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Desta maneira, no decorrer da observação empírica, pude perceber que tais construções e relações

sociais, até então contidas nas leituras, têm, de fato, seu reflexo no campo estudado.

Fazendo uma breve revisão histórica e social das representações sobre a morte e os

costumes fúnebres na cidade de Natal, temos o seguinte registro de Luís da Câmara Cascudo

(1999, p. 263, grifo do autor), referente ao período anterior à implantação do primeiro cemitério

da cidade, o do Alecrim, em abril de 1856:

Natal não sabia o que era um cemitério. Enterrava-se o cadáver dentro das igrejas, ao redor delas ou do cruzeiro. A matriz de Nossa Senhora d’Apresentação ergue-se sobre uma base de ossadas humanas, sepultadas durante séculos. Na Igreja do Rosário enterravam os escravos e os mortos na forca por ordem da Lei. Em volta das igrejas o povo dizia que a terra era também sagrada. Enterrar no sagrado era sepultar dentro das igrejas. Debalde lutava-se contra os inconvenientes desta tradição. Nas epidemias as igrejas eram focos de maus cheiros, pela urgência e precariedade dos enterramentos.

Antes da construção do Cemitério do Alecrim, entretanto, existiu na cidade uma área

destinada ao sepultamento de estrangeiros e não-católicos, que não podiam ser enterrados nas

igrejas locais. O lugar foi denominado Cemitério dos Ingleses e localizava-se perto da praia da

Redinha, à margem da Gamboa do Manimbu (idem, p. 263).

Percebe-se neste contexto que a noção de enterramento em solo religioso garantia a

sacralização do rito tanto em outras sociedades ocidentais quanto na brasileira; bem como nota-se

a concepção higienista, em implementação na Europa desde o século anterior, presente na cidade

de Natal: tanto o Cemitério do Alecrim quanto o antigo Cemitério dos Ingleses situavam-se

distantes do perímetro urbano.

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O Cemitério do Alecrim, construído sob providência do presidente da Província do Rio

Grande do Norte na época, Dr. Antônio Bernardo de Passos, localizava-se tão distante da área

urbana que foi necessária a aquisição de um carro fúnebre, por parte do governo, para a

realização dos sepultamentos. A região onde se localiza o cemitério, inclusive, só foi fundada

como bairro da cidade 55 anos depois, em outubro de 1911. A influência da presença da

necrópole na área foi tanta que o próprio nome do bairro, segundo Cascudo (1999, p. 356, grifos

do autor), tem referência direta com a prática de sepultamentos nas proximidades:

Contam que na praça Pedro II morava uma velha que costumava enfeitar com raminhos de alecrim os caixões de anjinhos que eram levados a sepultar no cemitério. O carregamento era feito pelas crianças das escolas, oficiais ou particulares. Os meninos, levando o féretro, iam à velha do alecrim na certeza de ornamentos. Essa velha sem nome batizou todo o bairro.

Hoje, a cidade de Natal tem uma população estimada de 766.081 habitantes16 e conta com

dez cemitérios, sendo oito destes secularizados e administrados pela prefeitura local, através da

Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, SEMSUR. São eles: os cemitérios da Redinha, de

Igapó, de Pajuçara, de Ponta Negra, Cemitério Parque Nova Descoberta, do Alecrim, do Bom

Pastor I e do Bom Pastor II. De acordo com o setor de administração de cemitérios da SEMSUR,

o mais populoso da cidade é o de Nova Descoberta, onde atualmente são sepultadas cerca de 20

pessoas por mês17. Não existe, contudo, uma estimativa de quantos corpos estão sepultados desde

a fundação de cada necrópole, pois, segundo a Secretaria, estes nunca foram informatizados e os

16 Informações contidas no site o IBGE, para o ano de 2004. Disponível em www.ibge.gov.br. Acessado em 10 de janeiro de 2005. 17 Informação obtida oralmente, em 14 de janeiro de 2005.

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registros são feitos em livros bastante antigos - mas uma catalogação destas informações está

sendo providenciada pela Prefeitura.

Hoje, os cemitérios Bom Pastor I e II são comumente utilizados para enterramento de

pessoas que não têm jazigos familiares em outros cemitérios, ou que não têm condições de

adquirir um túmulo. Desta forma, os corpos são enterrados provisoriamente por dois anos e

transferidos, após este período, para um ossuário. Não existe, atualmente, espaço para o

aforamento de novos túmulos nos cemitérios municipais de Natal. No ano de 2005, será

inaugurado o nono cemitério público da cidade, o Parque das Rosas, no bairro do Planalto. A

expectativa é que, com a fundação desta necrópole, o problema de lotação dos cemitérios locais

seja amenizado.

As taxas para aforamento de um terreno numa necrópole de Natal custam cerca de 10%

do valor cobrado pelo Morada da Paz. Contudo, a construção do túmulo, bem como a sua

manutenção, são de responsabilidade da família. O problema do vandalismo, comum às

necrópoles públicas atualmente, também é apontado pela SEMSUR. Uma parceria com a polícia

local está sendo montada para a melhor vigilância destes locais.

Os outros dois cemitérios instalados na cidade são particulares: o Cemitério Parque

Morada da Paz e o Parque da Passagem, fundados e administrados pelo Grupo Vila. O grupo atua

há 57 anos no ramo de serviços funerários em Natal, sendo hoje composto por cinco Funerárias,

cinco Centros de Velório, dois Cemitérios, além de um plano de Assistência Familiar e duas

Clínicas Médicas. O Morada da Paz tem 12 anos, e é o maior dos dois cemitérios do grupo. Com

uma média de 60 sepultamentos por mês o Morada tem, hoje, 4.987 jazigos vendidos e 4.461

pessoas sepultadas18. O segundo cemitério do Grupo Vila, o Parque da Passagem, localizado na

Zona Norte da cidade, ainda está em expansão, com 1.464 jazigos vendidos. Inicialmente, a 18 Dados fornecidos pelo Grupo Vila em 14 de janeiro de 2005.

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principal diferença do Morada da Paz para os outros cemitérios da cidade é, além de ser

particular, ser um cemitério-jardim, com jazigos padronizados.19

A sua ambientação natural, implementada a partir do imenso gramado e da ausência de

túmulos suntuosos, aponta para a relação do cemitério com a cidade, e, conseqüentemente, com

seus freqüentadores.20 Este tipo de necrópole, descrita por Borges (2002, p. 138, grifos da autora)

citando Remo Dorigati e Gianni Ottolini, é classificada como “cemitério ao ar livre”, cuja

apresentação e contextualização histórica nos auxilia a compreender o próprio espaço do Morada

da Paz:

Cemitério ao ar livre. É aquele que prioriza a paisagem em lugar das construções tumulares. Nele há um novo equilíbrio entre artificialidade e naturalidade. No início do século XX, denominado de lawn cemetery, esse tipo de cemitério começou a se multiplicar, substituindo túmulos monumentais e jazigos-capelas por placas funerárias perceptíveis ou túmulos pequenos que afloram na paisagem verde. São, portanto, dois os aspectos importantes do cemitério ao ar livre: a paisagem e a arquitetura funerária. Em geral uma grande relva costuma cobrir toda a extensão do cemitério cuja planta é aberta. As árvores são habituais por sua propriedade de purificar o ar, tornando-o salubre. Elas também têm a incubência (sic) de proteger o “local de repouso” do homem cansado da vida terrena. As construções que nele se erguem ficam reduzidas a elementos coletivos [...]. Essas construções tentam estabelecer um novo entrosamento entre o cemitério e a cidade. Procuram de uma nova maneira confidente e simples tratar a morte, reapresentando assim uma espécie de paraíso terrestre reencontrado.

No Morada da Paz21, a grande área verde tem como edificações a capela central (onde são

realizadas as missas e os velórios), seis salas de velório e a administração, que concentra, ao seu

19 O Morada da Paz, tais como os cemitérios implementados no século XVII com a proposta de higienização do espaço citadino, localiza-se relativamente distante do centro urbano de Natal – às margens da BR 101, no Bairro de Emaús, cidade de Parnamirim, que faz parte da região da Grande Natal. 20 Ver Foucault (1986) 21 Vide mapa em anexo.

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redor, os demais recintos onde estão dispostos os serviços oferecidos aos visitantes, tais como:

floricultura, lanchonete, estacionamento, banheiros, sala-de-estar, capela de oração, além de um

anfiteatro ao ar livre, com capacidade para 500 pessoas. No jardim, os túmulos são demarcados

por placas de mármore, que têm como inscrição o nome da família e/ou dos falecidos ali

sepultados. O projeto de valorização da natureza em detrimento da arte tumular, até a

implantação das placas de pedra, chamadas footstones, teve início nos Estados Unidos, no século

XX, onde no lawn cemetery “nenhum volume detinha já o olhar e interrompia a continuidade do

relvado” (ARIÈS, 1977, p. 278).

Foto 1: Jardim do Morada da Paz Foto 2: Capela Central

Foto 3: Sala de Estar Foto 4: Capela de Oração

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Direcionando a observação para as atividades desenvolvidas pelo grupo, tendo sempre em

perspectiva o seu cunho mercadológico, percebe-se algumas inovações no mercado funerário

iniciadas pelo Grupo Vila, como por exemplo, a implantação da primeira webcamera instalada

num centro de velório no Brasil, que possibilita a transmissão das imagens dos velórios via

Internet, mantendo mais “perto” da família aqueles que não puderam estar presentes neste

momento.

No ambiente do cemitério, uma série de serviços também é oferecida para que os

visitantes se sintam à vontade: apresentações musicais são realizadas em datas comemorativas,

missas semanais reúnem de 300 a 500 enlutados, obras de arte são expostas permanentemente

pelo artista plástico Rhazec (que trabalha e mora no cemitério), além de um serviço de apoio

psicológico que auxilia os enlutados através de um grupo de terapia do luto – também no espaço

do Morada. A estrutura oferecida, através dos serviços já citados, é diferenciada dos demais

cemitérios de Natal e possibilita ao visitante uma maior permanência no local.

Evoluindo em nosso questionamento, e percebendo o ambiente do Morada da Paz em

comparação aos demais cemitérios de Natal, vemos que as ações mercadológicas voltadas para os

visitantes podem contribuir para uma percepção diferenciada no que diz respeito ao ambiente do

cemitério e à própria morte. Como podemos perceber a partir deste depoimento:

Até porque aqui você tem o verde, você tem... é como se estivesse mostrando “tá aqui a vida”. Pra mim eu não estou num cemitério quando eu venho pra cá, eu não me sinto como se eu estivesse num cemitério. Eu me sinto num lugar como se eu estivesse numa “Morada da Paz”. Como se me trouxesse muita paz, muita tranqüilidade, sabe? Então eu, pra mim, é como se fosse um passeio, realmente é a minha casa. Então eu vou lá pro Morada, eu adoro estar aqui...[...]. Então eu acredito que o que eles fazem aqui contribui pra isso, pra você não ver o Morada só como um lugar de um cemitério, mas como um lugar que você

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possa... Você tem música, que você tem exposição de artes. Um local realmente pra ser freqüentado pelas pessoas. (Juliana)22

A partir destas afirmações, podemos admitir, inclusive, que de alguma maneira tais

estratégias têm o intuito de encobrir a morte e suas faces, como uma tentativa de torná-la mais

amena. Os efeitos reais desta investida, contudo, deverão ser melhor percebidos no decorrer da

pesquisa. Numa análise de um caso semelhante, em um cemitério-jardim alemão que se propõe

como um parque para os vivos (seus clientes), Elias (2001, p. 40, grifo do autor) faz a seguinte

observação:

De todo modo, os clientes potenciais são protegidos, tanto quanto humanamente possível, da lembrança da morte e de tudo relativo a ela. Para a possível clientela, a morte se tornou de mau gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora, por sua vez, tem um efeito algo desagradável. Seria muito bom se o lugar de recordação dos mortos fosse realmente planejado como um parque para os vivos. Essa é a imagem que os jardineiros do cemitério gostariam de transmitir – “uma ilha silenciosa, verde e em flor em meio ao ruído frenético da vida cotidiana”. Se fossem realmente parques para os vivos, onde os adultos pudessem comer seus sanduíches e as crianças, brincar!

A estrutura de cemitério-jardim do Morada da Paz é semelhante à dos cemitérios ingleses,

e a padronização, incluindo os serviços voltados para os vivos, é proveniente do modelo norte-

americano23. Como o Morada, vários outros cemitérios-jardim bem estruturados poderiam ser

observados em todo o Brasil e no mundo. O que chama a atenção, porém, é a sociabilidade

existente entre os enlutados e a freqüência assídua destes visitantes aos eventos promovidos pelo

cemitério. Longe na noção “macabra e diabólica” adquirida pelos cemitérios, por volta do século

22 Arquiteta, 29 anos, solteira. Participante do grupo de apoio psicológico. Perdeu o pai há quatro anos, vítima de enfarte. 23 Ver Maria Elizia Borges (2002); Mauro Koury (2003); Ariès (2003)

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XV24, os visitantes do Morada afirmam que aquele é um espaço de meditação e de tranqüilidade,

onde é possível encontrar os amigos - algo semelhante ao parque idealizado pelo exemplo da

necrópole alemã citada por Elias. O curioso é que, para estes mesmos atores sociais, a noção e a

apropriação diferenciada do ambiente do cemitério são específicas na relação com o Morada da

Paz, visto que estes continuam a evitar a visita a outros cemitérios por achá-los tristes e sombrios:

[...] eu antes não gostava de maneira, de forma alguma, a ir em cemitério. Até porque quando eu ia em cemitério, era aqueles outros tipos de cemitério. Tipo aqueles mausoléus, aquelas coisas antigas. Eu sentia medo, sentia medo demais, mas depois da vinda aqui ao Morada eu me sinto muito à vontade; pra mim é um ambiente que transmite muita paz. E eu gosto de estar aqui, sinto falta quando eu não estou aqui. (Juliana)

Neste ponto, é preciso considerar a afirmação de Vincent-Thomas (1983, p. 314- 315) de

que, comumente, a visitação nos cemitérios-parque é mais freqüente, devido à possibilidade de

meditação, tornando, por isso, a ocasião similar a um passeio. Neste contexto, o autor reflete25

sobre a caracterização da necrópole como um lugar simbólico de múltiplas significações,

carregado de emoções, que provoca tanto a melancolia quanto a reflexão calma, sendo, desta

maneira, um símbolo espiritual complexo, que expressa o que o homem tem experimentado

emocionalmente, em diferentes níveis. Concluindo, portanto, que o sentido do cemitério supera a

mera conotação da morte, passando da noção de piedade para a concepção de tê-lo como um

local de passeio, de tranqüilidade.

24 Ver Ariès (2003,p. 180-182) 25 Citação indireta, tradução livre.

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Esta perspectiva de focalizar a observação da pesquisa na sociabilidade entre os visitantes

e na maneira relativamente tranqüila como o cemitério é percebido por eles deu-se na visita

realizada ao espaço no Dia de Finados em 2003, quando 15.000 pessoas passaram pelo Morada

da Paz26. Na ocasião, além das tradicionais missas e cuidados com os jazigos, os visitantes foram

à exposição de artes, viram apresentações musicais - de grupos em horário marcado ou de

instrumentistas que tocavam entre os jazigos. As crianças brincavam no jardim ou participavam

da oficina de artes. Muitos lanchavam ou almoçavam entre os jazigos, alguns bebiam cerveja,

indicando despreocupação com o tempo de permanência no local, ou mesmo com a noção de

higienização introduzida no século XVIII, citada anteriormente.

Foto 5: Instrumentistas entre os jazigos (Finados 2003) Foto 6: Crianças brincando (Finados 2003)

26 Informação contida no Jornal Viver Melhor (publicação da assessoria de imprensa do Grupo Vila) – edição de novembro/dezembro de 2003. Disponível em http://www.grupovila.com.br/verNoticia.asp?idNoticia=84. Acessado em 02 de setembro de 2004.

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Foto 7: Oficina de Artes (Finados 2003) Foto 8: Exposição de artes/ Rhazec (Finados 2003)

Foto 9: Público presente na missa (Finados 2003) Foto 10: Grupos nos jardins (Finados 2003)

Foto 11: Pessoas se alimentando (Finados 2004) Foto 12: Movimento na floricultura (Finados 2004)

A sociabilidade entre os enlutados tornou-se mais perceptível a partir da aplicação das

primeiras entrevistas espontâneas. Através do entrosamento com o grupo, observou-se uma

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grande rede de visitantes que se conhecia e trocava experiências do luto a partir de longas

conversas entre os jazigos. Notou-se, então, que diferentes grupos de enlutados que conviviam no

ambiente do Morada da Paz se formavam, falavam das novidades, de como sofriam com o luto, e,

principalmente, lembravam dos seus parentes falecidos. Este fato despertou a curiosidade em

compreender o quanto aquelas relações estavam de fato presentes na vida daqueles indivíduos,

considerando a possibilidade do ambiente “festivo” poder influenciar numa maior permanência, e

conseqüentemente, na formação daqueles grupos27.

Notou-se, a partir dos diálogos com os enlutados, que a freqüência de boa parte deles não

se restringia às datas comemorativas. Ao contrário, a presença esporádica no cemitério foi

relatada por eles como um sinal de desrespeito aos falecidos, tornando-se a visita constante “uma

questão de respeito, uma espécie de obrigação moral com o familiar”(Mariana)28. Dessa forma,

percebeu-se que o conhecimento do grupo se dava a partir da regularidade das visitas, realizadas,

segundo eles, pelo menos uma vez por semana, principalmente aos sábados, dia em que é

celebrada a missa.

Quando trato por diferenciada a freqüência dos visitantes entrevistados, levo em

consideração a observação de Louis Vincent-Thomas (1983, p. 313), que afirma ser hábito da

sociedade urbana ocidental - excetuando-se as perdas recentes - visitar as necrópoles apenas nos

dias 1 e 2 de novembro29, mais por uma rotina do que por uma convicção. Esta relação entre

tempo da perda e manifestação do luto, apontada por Vincent-Thomas, incluindo a freqüência das

27 Trago, neste ponto, a noção da necessidade da domesticação teórica do “olhar” e do “ouvir” no trabalho antropológico proposta por Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p. 19-21), como maneira de melhor interpretar o que é visto e ouvido no exercício de investigação. 28 Viúva, 56 anos, dona de casa, mãe de uma moça e de um rapaz, sendo o último falecido há dois anos, por acidente, e sepultado no Morada da Paz. O marido está em outro cemitério por opção da família dele, o que, segundo ela, lhe causa constrangimento e faz com que o visite com menos regularidade. 29 Datas em que se comemoram a Festa de Todos os Santos e o Dia de Finados (ou Festa dos Mortos), respectivamente. Segundo Schmitt (1999, p. 194; 279), a celebração da Festa de Todos os Santos é registrada desde o século VIII, já a Festa dos Mortos é bem atestada a partir de cerca de 1030.

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visitas, será analisada mais detalhadamente a seguir. Contudo, adianto que, entre os entrevistados,

a distância temporal entre a perda e a data da entrevista é amplamente variável, o que demonstra,

em princípio, que a freqüência assídua ao Morada é relativamente independente da proximidade

com o evento da morte. O que, mais uma vez, desperta curiosidade sobre a apropriação deste

espaço como local de sociabilidade para estes atores sociais.

Pelo que foi observado, as conversas mantidas pelos visitantes giram essencialmente em

torno do luto, mantendo sempre em pauta os parentes que morreram, suas histórias de vida e

como estariam se ainda estivessem vivos. A causa do falecimento também é assunto constante

das conversas, cada um sabe como e porque morreu o parente do amigo. O processo de luto na

vida cotidiana e suas dificuldades são temas que permitem aos enlutados uma espécie de

identificação, o que intensifica os laços e possibilita a troca de apoio entre eles. É relativamente

comum que troquem número de telefones e mantenham o relacionamento. Isso ocorre, de acordo

com os próprios informantes, primeiramente porque se sentem bem naquele ambiente, muitas

vezes até esquecendo que estão num cemitério, e, também de acordo com os depoimentos, o ciclo

de amizade feito lá dentro tem ajudado a encontrar uma forma mais amena de encarar a morte.

Segundo relatos dos entrevistados, a realização de eventos culturais, artísticos e religiosos

no espaço do cemitério tem contribuído para o fortalecimento da sociabilidade entre eles. O

Morada da Paz é tido como local de conforto devido ao encontro com os amigos e a possibilidade

de compartilhar sentimentos que não são externados em outros grupos do cotidiano. Além disso,

a disposição do espaço entre os jazigos e o contato direto com a natureza no cemitério-jardim são

apontados como estímulos ao bem-estar e ao crescimento das visitações.

É importante ressaltar que a freqüência das visitas dos enlutados ao Morada da Paz se dá

primordialmente pela necessidade de cultuar o parente que ali está sepultado - fato proveniente da

sensibilidade e da individualidade imbuídos no processo de luto no século XX, citado

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anteriormente. Desta forma, a assiduidade das visitas ao cemitério está diretamente ligada a uma

indispensável reverência à memória dos falecidos. A diferença está na maneira como estes

enlutados se sentem neste cemitério, de maneira mais tranqüila, o que, segundo seus próprios

relatos, não acreditariam acontecer caso seus parentes estivessem sepultados em um outro local.

Para se ter uma melhor dimensão da noção de “tranqüilidade” descrita pelos enlutados ao

visitarem o cemitério, transcrevo aqui, de forma aleatória, algumas das respostas colhidas nas

entrevistas, quando se questionou como percebiam o ambiente do Morada da Paz:

“Eu me sinto bem aqui. Pra mim é uma terapia, isso pra mim é uma terapia”. (José)30

“Aqui eu me sinto em casa, me sinto em casa, porque até à noite eu venho aqui e não tenho medo [...] Eu acho um passeio vir aqui” (Bruna)31

“Me sinto aqui que parece que eu tô num jardim, olhando pra estas flores [...] E saio caminhando aqui dentro deste Morada da Paz, eu acho uma maravilha” (Suzana)32

Considerando o bem-estar descrito pelos informantes através da tranqüilidade

proporcionada pelo local, bem como a partir do vínculo construído durante os encontros, trago

para a pesquisa um questionamento a respeito do processo de luto: estas alterações teriam alguma

influência na amenização da elaboração da perda para estas pessoas? Suas concepções sobre a

perda, sobre a morte, e sobre o espaço cemiterial, seriam diferenciadas?

30 Aposentado, 68 anos. Perdeu o filho há dois anos, vítima de enfarto. Visita o Morada da Paz duas vezes por dia, é conhecido pela maioria dos visitantes assíduos. 31 Massoterapeuta, 46 anos. Tem o pai (há três anos) e a mãe (há quatro meses) sepultados no cemitério. Visitava o Morada como “passeio” antes mesmo de suas perdas. 32 Comerciante, perdeu o filho há três anos, assassinado por um policial enquanto trabalhava. Visita o Morada todos os sábados.

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Como uma primeira hipótese de pesquisa, suponho que a apropriação deste espaço como

um local de troca de experiências, de reflexão e de tranqüilidade indica uma nova perspectiva

simbólica com relação ao ambiente do cemitério, à morte e à forma de conviver com a perda.

Uma sociabilidade incentivada pela alteração do uso do espaço, propiciada também a partir de

ações mercadológicas idealizadas pelo grupo que gerencia este espaço particular/público da

cidade.

Torna-se importante ressaltar que as ações mercadológicas citadas foram planejadas

prioritariamente para conquistar e agradar estes clientes específicos, principalmente por ser o

produto do jazigo um tanto incomum e indesejado. E que essa possível mudança não estava

prevista nem era planejada pelo mercado funerário, do qual o Morada da Paz faz parte, mas pode

acabar contribuindo para o seu crescimento.

O que estes enlutados vêem de mais diferente neste cemitério, portanto, é a tranqüilidade

do local e a possibilidade de expressarem sua dor, de falarem sem constrangimento sobre seus

mortos. De acordo com Mauro Koury (1999, p. 75-76) o sentimento (incluindo a dor) é uma

construção social que submete os indivíduos a uma sociabilidade. Assim, tendo como suporte da

relação a dor comum da perda, os enlutados do Morada têm construído laços que contribuem para

a amenização da angústia social que é isolar-se devido ao luto nos dias de hoje.

Sobre esta interdição de falar sobre o parente falecido, Roberto DaMatta (1991, p. 146)

faz uma importante observação quando diz que é típico das sociedades modernas, individualistas,

não falar do morto, por este assunto parecer prender o enlutado a um passado, impedindo que

observe o seu futuro. Assim, ele diz que a sociedade moderna classifica como uma “sociabilidade

patológica” este querer falar sobre o morto. É interessante observar que DaMatta (idem, p. 151)

considera o caso do Brasil um pouco diferente - ele compara nosso comportamento às sociedades

relacionais, que dão grande importância às relações sociais, o que termina se estendendo à

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relevância que damos em manter uma relação com os mortos, lhes dando características de

pessoas que ainda vivem, conversando e trocando favores com os falecidos.

Diria que no Morada da Paz podemos observar os dois lados desta interpretação. Os

informantes sentem o peso de não conseguirem falar nos grupos do cotidiano sobre o luto, por

não se sentirem à vontade, ou mesmo por serem classificados em uma situação patológica pela

necessidade de expor esta dor. Assim, terminam por fazê-lo no ambiente do cemitério, com

pessoas que passam por situação semelhante à sua. Exemplo disto é o depoimento dado a seguir

por um visitante quando questionado se existia diferença na recepção do assunto do luto entre os

freqüentadores do Morada e de outros ambientes:

Não, tem gente que nem escuta. E acha que eu tô ficando doido ou maluco. Eles acham que morreu, acabou-se. Às vezes eu fico até chateado, porque na hora que eu vou contar você acha: pra que eu vou contar problemas de minha pessoa pra ninguém? Eu sinto mesmo que não gosta, “tá bom encerra esse assunto”. Aí eu fico tão triste... Não gosto. Não é como aqui que a gente conversa, um bate-papo com o outro, uma experiência para um outro, para mim, diz: “Se conforme, entregue a Deus...”. (Pedro)33

Seguindo a interpretação da afirmação de DaMatta, também vê-se a intensa relação destas

pessoas com os mortos, em visitas bem freqüentes, como o caso de Patrícia34, que disse visitar a

mãe “do mesmo jeito que a visitava em casa, quando ela estava viva”. Ou mesmo no cuidado

com os jazigos observado constantemente, e ainda através das mensagens dos visitantes enviadas

33 Desempregado, 42 anos. O pai faleceu há três anos de enfarto. Visita o cemitérios todos os sábados. É uma pessoa bem conhecida no Morada, cumprimentado por todos os funcionários e por muitos enlutados. 34 Artista Plástica, separada. Participante do grupo de apoio psicológico. Perdeu a mãe há dois anos por uma doença grave (possivelmente câncer). Visita o jazigo diariamente.

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para o céu em balões de hidrogênio no Dia de Finados, numa alusão à nova morada de seus

parentes.

Foto 13: Cuidado e culto ao jazigo (Finados 2003) Foto 14: Família reunida em oração (Finados 2004)

Foto 15: Missa semanal (Outubro 2004) Foto 16: Emoção na visita ao jazigo (Finados 2004)

Foto 17: Mensagens enviadas aos falecidos em balões (Finados 2003)

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Assim, nota-se que os eventos e serviços oferecidos pelo Morada da Paz, dando ênfase à

realização das missas semanais e ao grupo de apoio psicológico, além da própria estrutura que

permite uma permanência mais demorada no local, podem estar contribuindo para a construção

(transformação?) da concepção dos visitantes sobre a morte e sobre a perda. Isto considerando

que tais fatores podem estimular uma maior assiduidade na freqüência destes atores sociais, que

passam a utilizar o cemitério como um local de sociabilidade, principalmente para falar de algo

que não é possível no cotidiano: o luto.

Não é demais lembrar, todavia, que esta apropriação do cemitério como um local de

interação dá-se primordialmente por aspectos cognitivo-emocionais desses atores, bem como pela

similaridade do contexto de isolamento social pelo qual estão passando, como foi dito

anteriormente. A maneira como acontece esta apropriação do espaço, ao meu ver, pode facilitar

esta interação, mas não é condição para esta sociabilidade. Tanto que, mais na frente, veremos

que estas relações, após iniciadas, e quando estabelecidas enquanto vínculos, extrapolam os

limites do cemitério, tornando-se cotidianas na vida destas pessoas. Pois, como afirmou o

entrevistado Marcos: “É a ambientação humana que tem ali que está dando vida além da

paisagem”. O cemitério, desta maneira, é palco da principal observação da pesquisa: a interação

entre os enlutados sob o ponto de vista da troca de emoções e do estabelecimento de vínculos a

partir de uma situação de isolamento social similar entre eles.

Deve-se, contudo, perceber a relevância do “palco”, da apropriação do ambiente para as

relações e para os indivíduos isoladamente. Sobre este aspecto, nos diz Maffesoli (1987, p. 169,

grifos do autor):

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Naturalmente, devemos estar atentos ao componente relacional da vida social. O homem em relação. Não apenas a relação interindividual, mas também a que me liga a um território, a uma cidade, a um meio ambiente natural que partilho com outros. Estas são as pequenas histórias do dia-a-dia: tempo que cristaliza em espaço. A partir daí, a história de um lugar se torna história pessoal.

Assim, a consideração acerca da apropriação do local assume importância justamente pela

possibilidade de socialização encontrada no ambiente por seus freqüentadores, o que torna

relevante a ligação entre enlutados e cemitério, fazendo deste espaço e das histórias nele vividas e

compartilhadas uma parte significativa na vida destes indivíduos. “É como se aqui fizesse um

pouquinho parte da minha história, da minha vida” (Juliana).

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CAPÍTULO 3

A socialização da dor no luto

“Quando você foi embora fez-se noite em meu viver Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar Estou só e não resisto, muito tenho pra falar”

Milton Nascimento. Travessia.

As dificuldades encontradas para realizar a observação etnográfica foram muitas, a

começar pelo distanciamento com os informantes devido à falta de experiência pessoal com a

morte. Tal fato foi sentido por diversas vezes, principalmente nas apresentações ou nas

introduções a conversas, como elemento que impossibilitaria o entendimento real, mais

aproximado, da situação vivida pelos enlutados – considerando a premissa, repetida por eles

próprios, de que “só entende a dor da perda quem passa por ela”.

Embora esse fato permanecesse presente durante toda a pesquisa, a manutenção de uma

relação mais assídua com os visitantes permitiu, com o passar do tempo, que fosse estabelecida

uma abertura ao diálogo e uma aproximação entre eu e os informantes – que, por sua vez, foram

encontrando espaço para falar de suas dificuldades com o luto, ultrapassando assim a barreira

inicial encontrada na ausência de experiência pessoal com a perda. Percebeu-se, portanto, a

construção de uma relação dialógica entre nativo e pesquisador, tal como proposta por Oliveira

(1998, p. 23-24), na qual o informante se transforma em interlocutor, a partir da abertura do

diálogo entre ambos. Isso implica dizer que o envolvimento mais aproximado com os enlutados

tornou-se essencial para uma melhor compreensão de suas falas e de seus sentimentos.

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Pode-se afirmar, inclusive, que se estabeleceu uma relação de amizade entre eu e alguns

enlutados. A partir da assiduidade de nossos encontros, alguns pediram meu telefone e chegaram

até mesmo a ligar em dias difíceis. Fotos e santinhos também me foram dados como lembranças

de seus parentes. E pude, ainda, participar de um encontro marcado entre os visitantes fora do

ambiente do cemitério – o que possibilitou confirmar a constância do tema do luto em suas

conversas também em local externo aos muros do Morada da Paz. O entrosamento foi

considerado primordial para atingir a abertura necessária aos depoimentos, principalmente se

considerarmos que a perda, ou melhor, o sofrimento dessas pessoas é, para eles próprios, algo só

exposto após a demonstração de uma confiança.

A realização das entrevistas, desta forma, só pôde ser programada após uma dada

aproximação com o entrevistado. Quase sem exceção, a grande maioria dos enlutados que se

dispôs a gravar nossa conversa chorou bastante e se emocionou ao dar seu depoimento sobre a

dor da perda35. Como a situação emocional de alguns deles é bem delicada, inclusive com

acompanhamento psiquiátrico e tratamento à base de anti-depressivos, por algumas vezes precisei

desligar o gravador para consolá-los e esperar que parassem de chorar para continuarmos. Em

apenas um caso, a entrevista não seguiu o roteiro completo, pois o enlutado acabava por desviar o

assunto sempre que tentava expor seu sofrimento, até que confessou: “Mas hoje eu não quero

mais conversar sobre isso, porque dói muito” (José). Este fato, na verdade, demonstrou-se para a

observação como um dado que aponta o interdito social, a dificuldade sofrida em revelar a dor do

35 A manifestação do choro como sinal de tristeza e angústia é bem retratada por Cascudo (1987, p. 63-64, grifos do autor): “’Água dos olhos’ é patrimônio animal mas o Homem elevou-a a uma dignidade simbólica na simples eliminação. Quando outros excretos continuam na classe instintiva das expulsões naturais, a lágrima é característica da lamentação racional, flor úmida e ardente do Sofrimento ostensivo e sobretudo recôndito, privativa e distintiva no gênero humano. Identifica o pranto pela insistência. [...] Dizer-se ‘Está chorando’ é denunciar um ‘estado da Alma’ psicológico [...]. Os animais gritam. O Homem chora. A lágrima autoriza todas as eloqüências adiáveis. Sabemos, com milênios e milênios de experiência, que as lágrimas aliviam mas não solucionam o motivo de sua origem.”

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luto. Nesta situação, respeitei o estado do entrevistado e colhi o restante das informações a partir

de conversas informais, em encontros posteriores.

De uma maneira geral, contudo, a oportunidade de contar suas histórias e de desabafar

suas angústias foi para os entrevistados gratificante. Alguns agradeceram e disseram nunca terem

conseguido falar tanto sobre o seu caso, por nunca terem tamanha abertura para interlocução. Na

verdade, isto configura um reflexo de quanto a disposição em ouvir sobre a morte, no cotidiano

destas pessoas, faz falta. Uma delas encerrou nossa conversa dizendo:

Eu acho que seu trabalho, além de ser um trabalho que é isso que você quer... Eu acho que é um trabalho que vai dar muitos frutos [...]. Pra ajudar as pessoas e só em você ouvir, [...] porque você vai, se envolve num trabalho desses, você vai querendo bem às pessoas. E as pessoas querem isso, é atenção. E você escuta, quer dizer, você não tem nada com isso. Mas a gente não quer nem saber se você quer isso pro seu trabalho, você está ouvindo. (Mariana)

Percebe-se, desta maneira, que foi inevitável o estabelecimento de uma relação de

confiança e de sensibilidade para a abertura de um diálogo que atingisse a demonstração do

sofrimento destas pessoas. Um trabalho que exigiu tempo e um certo cuidado na aproximação

com os enlutados. Numa pesquisa sobre o mesmo tema, Koury (2003, p. 12) cita a necessidade de

adestramento do pesquisador para conquistar a confiança do entrevistado:

A cumplicidade distanciada e conquistada a cada entrevista requereu do entrevistador um adestramento temático e uma postura confessional que permitisse ao informante sentir-se confiante sobre o que falava, e da significância de sua narrativa, independentemente da forma, do modo, da intencionalidade e da tensionalidade (sic) discursiva expressa.

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Dessa forma, a observação desenvolvida se deu através de conversas informais,

participação em eventos e aplicação de entrevistas. A análise da sociabilidade entre os enlutados

do Morada da Paz se subdividiu em dois grupos: os que se conheciam e trocavam experiências

espontaneamente, entre os jazigos, a partir de encontros informais, e os que se encontravam

regularmente no grupo de apoio psicológico - serviço oferecido pelo cemitério aos clientes. Ao

todo, foram realizadas treze entrevistas, sendo cinco com os enlutados do grupo de apoio, cinco

com os visitantes mais assíduos, além da psicóloga, do artista plástico que reside no Morada da

Paz e do diretor do Grupo Vila.

Como existe uma semelhança nas situações socioculturais, no sentimento de inadequação

social e no sofrimento pela não-exposição da dor da perda entre os integrantes dos dois grupos

observados, a análise dos temas apontados espontaneamente no campo, como reflexões que

caracterizam o aspecto emocional, social e cultural do luto, será feita em conjunto.36 Dessa

forma, deixarei para observar mais adiante, de maneira mais cuidadosa e comparativa, os

aspectos que situam a relação de troca de experiências, de compartilhamento da dor e da

sociabilidade entre os componentes do grupo de apoio e entre os visitantes.

Aproximação, observação e relação com enlutados

Em princípio, a idéia era perceber somente a sociabilidade e as representações do luto que

ocorriam espontaneamente nos jardins do cemitério. Contudo, a partir das visitas e do

entrosamento com os enlutados, percebeu-se que muitas pessoas que freqüentavam o cemitério e

36 Tornar-se-á perceptível que grande parte das discussões aqui expostas são fruto de reflexões feitas pelo grupo de apoio psicológico e, portanto, observadas a partir de tais reuniões. Considerando a impossibilidade de perceber tais exposições, enquanto reflexão do grupo, entre os visitantes espontâneos, tendo em vista que suas visitas se dão em dias e horários alternados, ressalto que as representações e situações expostas são válidas para os dois grupos – pois apresentam uma similaridade nas concepções e nas construções narradas nas entrevistas.

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que mantinham vínculos afetivos entre si, se conheciam também através dos encontros

proporcionados pelo grupo de apoio psicológico oferecido pelo Morada da Paz – surgindo assim

o interesse em estudar mais de perto as relações existentes neste segundo grupo.

Foi quando que cheguei à Millena Câmara, psicóloga responsável pelo grupo, que foi

bastante receptiva. Ao demonstrar a vontade de acompanhar o seu trabalho para a pesquisa, notei

que, de início, ela parecia um pouco receosa com esta possibilidade. Quando fizemos a primeira

entrevista, ela explicou que nunca tinha permitido que alguém “de fora” acompanhasse esse

trabalho. Que já tinha recebido alguns pedidos, mas que não achava conveniente, pois não sentia

um interesse mais apurado nestas propostas, além da curiosidade natural.

Após a nossa primeira conversa, ela decidiu que seria possível acompanhar os trabalhos

deste novo grupo que se formava. Apesar disto, demonstrou-se preocupada com a possível reação

diante de emoções fortes que seriam vividas nesses encontros. Colocou-se a disposição para

qualquer auxílio e sugeriu que, se possível, eu fizesse uma terapia paralela neste período, e ainda,

que após cada encontro procurasse fazer uma atividade que distraísse, a fim de não absorver

qualquer carga emotiva mais forte que porventura viesse a ocorrer.

A proposta de oferecer este serviço aos enlutados do Morada da Paz foi uma iniciativa da

própria psicóloga, que, após terminar uma especialização em psicoterapia para pessoas enlutadas,

realizada em São Paulo, apresentou um projeto para a direção do Grupo Vila. Antes do trabalho

com este grupo que observei, dois outros já haviam sido realizados. Os grupos são formados a

partir de inscrições gratuitas acessíveis aos interessados na secretaria do cemitério. Para iniciar o

debate do tema, são realizadas quatro palestras durante quatro sábados consecutivos, após a missa

– quando ocorre maior fluxo de visitantes no local.

Nesta oportunidade, a psicóloga expõe alguns pontos sobre a perda e sobre a morte, fala

dos sintomas psíquicos e corporais sentidos pelos enlutados, ressalta a importância de externar e

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compartilhar a dor, e então apresenta a proposta da formação do grupo. Em média, vinte e cinco

pessoas ficaram para assistir as palestras nos sábados em que estive presente. Algumas delas já

tinham feito parte dos grupos anteriores e ficavam para conversar com a palestrante após o final

do encontro. Outras estavam ali pela primeira vez, e, principalmente as de luto mais recente, que

usavam camisetas com as fotos dos entes falecidos ou estavam com flores para colocar nos

jazigos, choravam bastante.

A proposta do grupo é desenvolver o trabalho de apoio em doze sessões, realizadas

quinzenalmente, também aos sábados, após a missa, no ambiente da sala-de-estar do cemitério.

Apesar de existir uma programação idealizada pela psicóloga para discussão dos temas e duração

do grupo, ela fez questão de ressaltar, no primeiro encontro, que os debates se desenvolveriam de

acordo com a fala dos participantes e que a proposta das doze sessões poderia ser alterada,

seguindo uma necessidade de ampliação, ou não, dos encontros. Tanto que, no final, a realização

deste grupo se deu em dezesseis encontros.

Em Natal, este é o único grupo de apoio psicológico formado para enlutados de

parentescos distintos37, como também é o único no Brasil a ser realizado dentro do ambiente de

um cemitério. Como é um serviço oferecido para clientes do Grupo Vila, apenas os visitantes que

têm parentes sepultados no Morada da Paz participam dele.

37 O outro grupo disponível na cidade é a “Associação de Pais Amor Eterno”, que nasceu a partir da iniciativa de algumas mães que trocavam suas experiências no Morada da Paz. O Grupo Vila apóia a associação financiando a presença da mesma psicóloga que acompanha o grupo de terapia do cemitério. A intenção de formar um grupo exclusivo para pais vem, segundo seus integrantes, da especificidade da dor e do processo de luto desta perda. Eles admitem sua dor como maior ou mais penosa que a de outros enlutados que têm outro parentesco com o falecido, pois esta é uma perda que não segue a ordem “natural” da vida. Diferentemente do grupo que observei, este recebe pais que têm seus filhos sepultados em outros cemitérios e hoje conta com cerca de vinte integrantes permanentes. As reuniões não são realizadas na estrutura do Morada da Paz.

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Foto 18: Reunião do grupo de apoio psicológico (30 out. 2004)

O período de observação das reuniões do grupo foi de grande importância para a pesquisa.

Nestas ocasiões, algumas indagações foram se tornando mais claras e o acompanhamento dos

depoimentos dos enlutados, bem como a evolução da elaboração do processo de luto, permitiram

que os sentimentos da perda fossem mais bem compreendidos e assimilados. Em vários

momentos, como tinha previsto a psicóloga, os relatos dos participantes emocionaram a todos,

inclusive a mim. A relação mantida com aquelas pessoas e, principalmente, o momento sensível

pelo qual estavam passando, tornavam difícil a postura distanciada ideal entre observador e

objeto de estudo.

Ao todo foram observadas dez reuniões, sendo a primeira, realizada em 03 de abril de

2004, considerada a mais significativa delas por ser o momento do encontro, da apresentação, do

primeiro contato. Sabia estar num papel que seria observado pelos presentes. Afinal, existia entre

nós o sentimento de diferenciação, devido ao sentimento de não-pertencimento ao grupo por não

ter a experiência da perda e da dor do luto que tornava aqueles indivíduos semelhantes, próximos.

Também não exercia o papel da psicóloga, para quem eles confessavam suas dores na certeza de

um apoio profissional e até mesmo pessoal. Estava ali para observá-los, e eles sabiam disso.

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Sabiam que estava ali para pesquisar, e que, de alguma maneira existia, nesta perspectiva, uma

“utilidade” na demonstração de suas fraquezas, de seus sentimentos.

Com o andamento dos trabalhos neste dia e também nas sessões que seguiram, além da

relação pesquisador/ informante, a minha presença foi transformada, assim como na experiência

citada por Koury (cf. pg 73), na figura de um confessor. Este papel também era assumido pelos

demais membros do grupo, que contribuíam na elaboração do luto uns dos outros, por serem

pessoas que podiam ouvi-los, escutar o que eles precisavam dizer.

Atingir a condição de “confessor”, porém, mesmo entre os próprios integrantes do grupo,

exigiu o momento da exposição inicial das perdas de cada um, ocorrido na primeira sessão. A

apresentação das dores e dos problemas se deu como uma iniciação para o estabelecimento da

troca, da confiança mútua. Dessa forma, os relatos das experiências individuais expostos neste

primeiro encontro têm relevância por indicarem o grau de abertura destas pessoas e a importância

do conhecimento profundo sobre os problemas de cada um, como maneira de fortificar o

sentimento de pertença e de compartilhamento da dor. Portanto, conhecer tais histórias, naquele

momento, indicava perceber o princípio da sociabilidade no grupo, estabelecida após a

apresentação e exposição das dores de cada componente e na identificação de suas dificuldades

em comum.

Apesar da importância da exposição de suas histórias, começar a apresentação foi tarefa

difícil. Participaram desta primeira sessão, ao todo, onze pessoas, contando comigo e com a

psicóloga Millena Câmara. Após a nossa apresentação, a psicóloga deu início à reunião e pediu

que cada um dos enlutados se apresentasse e dissesse por que estava ali. Um silêncio enorme.

Ninguém queria falar primeiro. A relevância daquela reunião estava ali, no contato inicial,

momento em que os participantes tinham a difícil tarefa de, pela primeira vez, expor a sua dor

para desconhecidos. Estava ali estampada para a observação, de maneira até então nunca tão

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clara, a dificuldade provocada pela exposição da dor do luto. Embora aquelas pessoas estivessem

ali por livre e espontânea vontade, tinham receio de falar, tinham medo de fazer aquilo a que se

propuseram – demonstrar o seu sofrimento.

Relatar neste espaço, de maneira um pouco mais detalhada, alguns aspectos da

socialização do grupo, tem como objetivo aproximar a visão do que foi visto e sentido nos

encontros. Após a primeira sessão, participei de mais nove encontros. Neles, o grau de

proximidade entre os participantes foi aumentando, o que, conseqüentemente, foi lhes deixando

mais à vontade para colocar algumas questões que remetem à dificuldade de expor a dor do luto.

Doze novos participantes ingressaram no grupo no decorrer dos trabalhos. Dos vinte e

um, três deles foram apenas uma vez e cinco tiveram a freqüência pouco assídua. Dos que

entraram posteriormente, uma boa parte integrou os grupos anteriores e resolveu continuar

participando das reuniões, e outra era composta por pessoas que tinham perdido seus entes após a

formação do grupo. Com o passar das sessões, foi perceptível a mudança no comportamento dos

atores sociais, principalmente naqueles que faziam parte do grupo pela primeira vez,

coincidentemente ou não, os que têm perdas mais recentes. O choro continuou presente em suas

falas, mas de alguma maneira, parecia mais ameno, mais tranqüilo.

A importância desta identificação a partir da dor ficou demonstrada na inquietação

provocada pela cobrança externa, exercida sobre cada um deles, no sentido de que deveriam parar

de sofrer. Desta maneira, a afirmação de que “só entende a dor do luto quem passa por ele”,

tornou-se cada vez mais freqüente - subentendendo que ali, naquele grupo, passando por

situações semelhantes, aquelas pessoas poderiam se ajudar mutuamente, pois compreendiam e

sentiam na pele as mesmas dificuldades que seus companheiros. Como disse uma participante:

“Lá é como que fosse, pra mim, é como que tivesse uma outra dimensão e aquelas pessoas que

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tão ali falam a mesma, a minha língua. A gente entende tudo o que tá... Eles entendem o que eu tô

passando e eu entendo o que eles estão passando.” (Sandra)38

O tempo, a forma da morte e o vínculo em vida

“De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto [...]

De repente, não mais que de repente”. Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. Soneto da Separação.

Os depoimentos que se seguiram, principalmente nas apresentações ocorridas na primeira

visita de cada integrante, davam uma idéia do perfil do grupo que se formava. Pessoas muito

diferentes com relação à idade, profissão, história de vida. O fator que lhes tornava semelhantes,

a perda, também apresentava diferenciações no que dizia respeito ao processo de elaboração do

luto e à expressão do sentimento diante da morte. Segundo a observação, isso se dava por três

motivos principais: o tempo e a forma (trágica/ esperada) da perda, e o parentesco com o

falecido.

É importante, contudo, ressaltar que o tempo de que trato como diferenciador entre estes

indivíduos não diz respeito ao que seria tido como “tempo ideal” de luto, convencionado hoje em

um ano, como período em que o enlutado pode/ deve afrouxar os laços da dor e voltar ao

cotidiano, sob pena de ser considerado em estado patológico. Pode-se entender que o tempo que

envolve o processo de elaboração da perda é algo individual, que depende de uma série de

experiências vividas pelo sujeito, conforme cita Koury (2003, p. 186):

38 Comerciante, 53 anos, divorciada. Perdeu a filha de 23 anos, há nove meses, vítima de um acidente automobilístico.

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O tempo ideal do luto fica, assim, ao que parece, ao sabor da disputa e da visão desta disputa no olhar e na experiência de cada um. Com o rompimento das regras e formas rituais, deixam de se apresentar como uma unidade por onde se pode pensar o social. Este conjunto de valores passa a ser visto e sentido através da ótica pessoal e vivência íntima, na curva de vida de cada um.

O que pretendo demonstrar como diferença entre estes indivíduos, porém, é o estado

distinto em que se encontravam com relação ao tempo da perda – a variação entre o momento da

morte e o dia da primeira reunião era para alguns de nove dias, para outros, de dez anos. Já a

relação do tempo da perda e a data da entrevista, entre o grupo dos enlutados visitantes, teve uma

variação menor: entre um ano e meio e três anos. Portanto, enquanto uns já tinham uma certa

conformação devido ao longo tempo passado, outros ainda estavam em estado de choque, sem

admitir o ocorrido como verdade. Esta distinção podia ser bem percebida no semblante, no

comportamento destas pessoas e na maneira como falavam da perda.

A forma da morte demonstrou uma certa coesão no grupo. Embora fossem histórias

completamente distintas, na grande maioria tratava-se de acontecimentos trágicos. Eram

assassinatos, acidentes, doenças graves seguidas de erro médico no tratamento ou ainda

fatalidades. A maneira abrupta como a morte fora apresentada para estes indivíduos esclarecia o

grau de dificuldade de aceitação da perda. Isso, de certa forma, lhes tornava mais próximos, pois

tinham em comum a revolta pela morte inesperada, e, em sua maioria, violenta. Sobre a maneira

como a morte acontece, Elias (2003, p. 72) faz uma importante observação: “O modo como uma

pessoa morre depende em boa medida de que ela tenha sido capaz de formular objetivos e

alcançá-los, de imaginar tarefas e realizá-las. Depende do quanto a pessoa sente que sua vida foi

realizada e significativa – ou frustrada e sem sentido”.

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Tal afirmação faz refletir e perceber que não “somente” a fatalidade e a violência da morte

tornavam a perda mais intensa, mas também os papéis e, principalmente, as não-realizações dos

falecidos, tudo somado ao estágio importante da vida em que se encontravam, refletiam no

agravamento da dor daqueles enlutados. O estágio a que reporto diz respeito aos planos não

realizados pelos falecidos, que numa relação com a maneira como estas mortes se deram, revela o

caráter trágico das perdas expostas nos grupos, como exemplo: crianças de oito e dez anos,

portadores de síndromes raras, que, após alcançarem relativa readaptação, morreram por erro

médico; jovens em torno de 20 anos que faleceram por doenças curáveis, acidente ou assassinato;

senhora, mãe de família, portadora de distúrbios psíquicos, que após uma internação devido a um

surto, morreu por infecção renal não detectada.

A revolta causada nos participantes pela maneira como a morte se deu para aquelas

pessoas era latente. Em vários momentos, o pedido de justiça para os acidentes e assassinatos e,

principalmente, para os casos em que se detectava erro médico, tornou-se assunto amplamente

debatido nas reuniões. Para alguns, faltava coragem de prosseguir na averiguação da causa da

morte por achar que faltava estrutura emocional. Para a maioria, contudo, o sentimento era de

continuar lutando, buscando, até o fim, a responsabilização dos culpados. Dessa maneira, foi

demonstrado o quanto lutar pela “justiça” no caso da morte de um parente pode trazer

constrangimentos, no sentido de lembrar sempre o ocorrido. Mas, ao mesmo tempo, percebeu-se

que o alívio destes enlutados só seria obtido através desse esclarecimento, pois esta “justiça”, por

averiguar os fatos e responsabilizar os culpados, tem para eles o valor simbólico de um descanso

para aquela dor.

O estabelecimento de um culpado para o evento da morte é algo muito comum na relação

atual que se tem com a perda. No caso de assassinatos e acidentes, ficava mais fácil para os

componentes do grupo apontar tal responsabilidade. Ficou latente que, de alguma maneira, a

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figura do culpado criava uma relação ambígua de alívio - por saber que o evento foi causado pela

atitude de outro que não o falecido - e de raiva, curiosamente pelo mesmo motivo. A noção de

culpa da morte por erro médico, porém, apontava para outros sentimentos: de impotência - por ter

que confiar a vida no saber de outro, que nem sempre agia como deveria – e de revolta, por não

saber como provar tal “injustiça” e não ter certeza da penalidade a ser sofrida por estes

profissionais.

Esta atuação do médico tem, inclusive, uma contextualização histórica e social na relação

do indivíduo com a morte. A partir da medicalização do doente e da possibilidade de

prolongamento da vida, a idéia da morte tornou-se como algo “evitável”. Assim, a

responsabilidade do médico, identificada em vários casos expostos no grupo como causa do

evento, está diretamente ligada a esta noção. É dever do médico manter a vida, e quando isso não

ocorre, sua atuação profissional torna-se passível de críticas, principalmente por aqueles que

sofrem a perda. Sobre este aspecto, Josildeth Consorte (1983, p. 43) faz uma observação

interessante:

O mais contraditório, porém, neste quadro geral de recusa, é que, dado o intenso processo de medicalização da existência a que está submetida a nossa sociedade e a conseqüente institucionalização do modo de morrer, o envolvimento dos médicos com a morte é cada vez maior e sua responsabilidade face a ela cada vez mais invocada.

O pedido constante de justiça para as perdas provenientes de mortes trágicas, em que um

“culpado” estava estabelecido, desenrolou uma discussão no grupo sobre a diferença entre justiça

e vingança. Sobre este aspecto, as reações entre os enlutados eram as mais distintas. Alguns

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chegaram a confessar que já haviam desejado, ou até mesmo planejado, vingar-se do

“responsável” pela morte do ente. Outros não queriam mexer na “ferida”39 ou ainda afirmavam

não desejar a morte do culpado por acreditar que esta atitude é “pior que a de quem matou”.

Neste contexto, percebe-se a dificuldade de aceitação da partida, seja pela forma da morte

ou pelo vínculo estabelecido entre falecido e enlutado. Para a psicóloga Millena Câmara, a

percepção de como era mantido o vínculo em vida influencia diretamente no processo de

elaboração da dor do luto:

O que a gente pode tá avaliando é a intensidade desse sentimento, a intensidade de envolvimento, que precisa estar diminuindo com o tempo. [...] o nosso parâmetro, hoje em dia, pra a gente ver o que é saudável, o que não é, quando você tá elaborando ou não, é o tipo de vínculo que você tinha com quem morreu. Se esse vínculo era muito intenso, sinal de que já não era muito saudável, vai demorar muito mais pra elaborar. E aí a gente vai tendo esse parâmetro.

Sobre este aspecto, é perceptível uma maior dificuldade de aceitação entre aqueles que

tinham uma relação de apego ou de dependência com aquele que partiu. Uma reflexão bem

interessante de um participante remete à diferenciação entre amor e apego, e a conseqüência deste

segundo caso no momento de entendimento do sentido da perda:

Mas hoje eu sei que grande parte do que passa na vida é fruto dessa confusão que a gente faz de amor e de apego, de proteção, de achar que nós podemos vivenciar e sofrer pelos outros. Cada um passa aqui o que tem que passar e ninguém tira. A gente pode ajudar, confortar, mas tirar dele o fardo, a gente não consegue. Por mais amor que você tenha, você não consegue tirar. Então isso já

39 Expressão colocada constantemente pelos enlutados.

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devia ser o suficiente pra gente enxergar que não somos donos, nem vamos ter posse. [...]. Mas você tem que nunca se deixar depender emocional, psicológico. Tentar ter posse, no momento que você tem posse daquela pessoa você cria uma posse recíproca. Assim como um império não domina outro, um ser não domina outro sem ser dominado, sem sofrer reação daquela dominação. Então você vai criar um vínculo. Se você tiver aquela posse, no sentido de posse, de apego, a perda vai se multiplicar. Você vai perder, vai pensar que perdeu uma coisa de si mesmo, mas não perdeu. Perdeu um mundo que tava ao seu lado, você tava vendo desenvolver, você vai aprender com ele. Agora você quis mais do que isso, você quis fazer uma abordagem, jogar uma porção de correntes e amarras pra prender um ao outro. E a tempestade da vida sofre suas turbulências e numa hora dessa as amarras são fracas, essas amarras se rompem e aí cada um segue o seu trajeto. (Marcos)

Esta relação ideal proposta pelo enlutado Marcos, em que o amor sobrepõe-se ao apego,

abrandando, supostamente, a conseqüência da dor inominável daquele que sobrevive à morte, faz

lembrar Carlos Drummond de Andrade (1988, p. 1236), em seu poema Ausência:

Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

A ausência assimilada seria, portanto, a convivência pacífica do enlutado com sua dor,

através do laço baseado na afetividade, e não na “amarra” referida anteriormente por Marcos,

entre sobrevivente e falecido. Dessa forma, a ausência transforma-se em um estar em mim, em

que a história de ambos se entrelaça, mas não chega a confundir-se. Pois, como lembra o

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entrevistado, “não somos donos” daquele que partiu. Os momentos compartilhados, desta forma,

compõem histórias independentes, mas complementares pelo convívio mútuo. Neste sentido,

podemos então pensar como Drummond: “Não há ausência na falta”. Esta reflexão, contudo, não

é recorrente no discurso dos enlutados, pois o vínculo, o apego mantido em vida, reproduz-se na

relação mantida pelo luto, fazendo com que a maioria deles “lastime a falta”.

Pais que sepultam filhos

“Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu”.

Chico Buarque. Pedaço de mim.

Voltando a observar o perfil do grupo, vê-se que o parentesco com o falecido também se

revelou como fator distintivo. Existiam, entre os participantes, vínculos diferentes com os mortos.

Tratava-se da perda de sobrinha, marido, ex-marido, esposa, mãe, pai e filhos. A alteração mais

visível encontrava-se entre os pais e mães que perderam seus filhos. A freqüência de indivíduos

em estado de luto pela morte de filhos que visitavam assiduamente o Morada da Paz refletiu-se,

inclusive, na amostra40 – apontados como constituintes da maior parcela dos que permaneciam,

após a perda, visitando com mais constância o ambiente.

Isso se deve, à primeira vista, devido à dificuldade de elaboração e de aceitação da perda.

Para eles, declaradamente, sua dor era mais profunda que a dos demais, pois difere de qualquer

40 Entre os entrevistados, 50% deles são pais que perderam filhos, 30% filhos que perderam pais e 20% viúvos. É interessante ressaltar que, entre os pais que perderam os filhos, apenas um não tinha passado pela experiência da perda anteriormente. Todos os demais já tinham estado em luto em outro momento, e, ainda assim, ressaltaram de forma eloqüente que a dor da perda do filho era mais forte.

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outra perda, como nos lembra Guiomar Bernini, citando Schwartzenberg (2000, p. 23): “[...] em

todas as línguas existe uma palavra para dizer que perdeu um pai: - sou órfão. Um marido: - sou

viúva. Mas não há palavra para dizer que se perdeu um filho, porque este fato deixa de ser

natural”. Assim, os pais afirmavam nas reuniões - e também nas entrevistas - que a morte de um

filho é diferente de qualquer uma outra, sendo, portanto, impossível que alguém mais (exceto

outros pais na mesma situação) soubesse o que eles sentiam. Este fato demonstra, até mesmo, a

formação de uma sociabilidade diferenciada entre atores que passam especificamente por este

tipo de luto:

Eu só gosto de ouvir depoimentos de mães e de pais. Porque eu me identifico. E quando é de outro às vezes eu fico cansada. Por isso que eu digo que eu entendo quando a pessoa cansa. [...] Aí eu quero dizer isso à pessoa. Entendeu o que eu quero dizer? Pode até ser cada um, os sentimentos, é muito relativo, a pessoa pode ser apaixonada por uma mãe, mas pra mim, eu quero dizer a ela, eu não posso dizer, mas tenho vontade de dizer: “olhe, você não chega nem aos pés do meu sofrimento”. (Mariana)41

Ao afirmar que “cansa” ouvir sobre as dores dos enlutados cujo parentesco com o falecido

é outro, entende-se que existe para esta mãe uma noção de diferenciação de sua dor, e,

conseqüentemente, de sua experiência com relação aos outros. Contudo, sua afirmação de que

“entende quando a pessoa cansa”, revela uma concepção de aceitação para com a falta de

abertura dos outros indivíduos em ouvir o sofrimento do luto, sejam eles enlutados ou não. Pois,

como só “entende quem passa”, quem não tem a experiência não tem a dimensão da dor, e, por

41 Mariana, cujo filho morreu há dois anos, participa somente do grupo de apoio “Associação de Pais Amor Eterno”. Já participou do grupo do Morada, mas afirmou sair por não comparar sua dor com a dos demais.

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isso, não entende o sofrimento. Assim, para ela, é “compreensível” não ter “paciência”, poder

“cansar” diante de tais depoimentos.

Esta noção de variação da dor do luto relacionada ao parentesco, foi revelada a partir da

fala dos próprios informantes. O comportamento entre eles, durante as sessões, demonstrava a

cumplicidade entre os pais que sentiam dor semelhante, e, por sua vez, o respeito dos demais,

caracterizado pelo silêncio ou pelo consolo, por entenderem que sua dor, embora grande, não se

comparava àquela sentida pela perda de um filho.

A dificuldade encarada pela morte dos filhos foi inclusive desmembrada para uma outra

discussão: a constante discordância entre os casais que passam por esta perda. Grande parte dos

pais que freqüentavam a reunião iam sozinhos, sem a participação do cônjuge. Isso se dava, na

maioria das vezes, porque o outro passava por um processo diferente de elaboração do luto, em

que não acreditava ser possível amenizar a dor a partir da assistência profissional proposta pelo

grupo. Ficou notável nos diálogos, e principalmente nas queixas expostas, que sempre um dos

dois, marido ou mulher, cobrava do outro uma postura de sofrimento semelhante à sua, como se a

demonstração da dor da perda tivesse que acontecer de maneira igual para ambos. As

dificuldades na percepção da perda por duas pessoas que têm um morto em comum são bem

explicitadas por Koury (2003, p. 121):

A pessoa e o outro da relação são colocados em xeque pela morte de um terceiro comum a ambos. As atitudes de cada um e as leituras que fazem, ou que são lidas como realizadas, vêm à tona como tensão, interna às pessoas e entre elas, quando o que se queria mesmo era aconchego, conforto e demonstrações de carinho e afeto. A dificuldade de comunicação pela ambivalência das leituras de cada um e das margens de exclusão em que se coloca, ou coloca o outro da relação como vítima ou algoz, tendo o corpo morto como o referente principal, vem acompanhada de mágoas que, embora com o tempo amenizem, provocam afastamento e desconforto.

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Dessa maneira, as reclamações expostas pelos membros do grupo que perderam seus

filhos com relação a seus parceiros giravam em torno desta divergência na exposição da dor, e

comumente, se falava na possibilidade de separação após a perda, devido ao desgaste sofrido no

relacionamento. Nestes momentos, a psicóloga, sempre na intenção de apaziguar tais

pensamentos e fazê-los perceber que o processo da perda é diferente para cada indivíduo, falava

da importância da união e da compreensão do processo da dor do outro, e, principalmente, pedia

aos participantes que pensassem em seus filhos, que não gostariam em nenhuma hipótese de ser

motivo de discórdia entre seus pais. Apesar do esforço desprendido pela psicóloga, era

observável a intolerância dos membros do grupo com seus parceiros, salvo algumas exceções,

que admitiam tentar manter a calma para não causar conseqüências piores, embora também não

estivessem mais satisfeitos com o relacionamento.

A noção de quebra de um ciclo natural da vida a partir da perda dos filhos colocava

muitas vezes estes pais em confronto com sua crença em Deus. A ligação com a Igreja, desta

forma, se tornava muitas vezes fragilizada. “Antes eu era evangélica, hoje eu sou só Beatriz42”,

disse certa vez uma delas. Era perceptível que esta descrença se dava primordialmente no grupo

entre os pais que perdiam os filhos. Uma relação bem oscilante, por sinal, que variava entre a

raiva da ação de Deus e a confiança de que seu filho estava bem, nas mãos Dele. Este vínculo

com Deus, por parte das mães que perdem seus filhos, é retratado por Guiomar Bernini (2000, p.

105, grifo da autora):

42 Funcionária Pública, separada. Perdeu a filha de 8 anos há seis meses, após uma complicação cirúrgica para correção de deficiência física.

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Para o “projeto materno” que se vê desfeito, perdendo os sonhos e as esperanças exigindo o rompimento do vínculo, e que as mães não manifestam o desejo de obedecer, porque o curso da vida talvez é experimentado como fora de ordem, o filho morreu antes dela; e a partir daí as mães elaboram defesas demonstrando a revolta e o desespero contra o Ser Superior.

A demonstração da relação de revolta e de temor a Deus fica bem explícita no depoimento

desta participante:

[...] eu me revoltei com Deus. Porque eu achava, não sei se até hoje eu acho, sabe? Por que que ele fez isso comigo, com minha filha, que não tinha maldade nem em pensamento, com ninguém? Ela não tem, nem eu tenho. Não merecia isso. Hoje eu peço perdão por ter dito, por dizer. Às vezes eu paro, até recuo em dizer, com medo de ele me tirar outro. De perder outro, porque eu não tenho mais estrutura para perder ninguém. Não tenho. (Sandra)

Em oposição a isso, a freqüente revolta contra Deus por muitas vezes foi transformada

num sentimento de conformação da perda e de mudança da percepção da vida a partir da

religiosidade. Para a maioria dos enlutados existia a noção de que seu parente estava “ao lado de

Deus”, ou que partiu “a chamado Dele”. Neste aspecto, a morte, para muitos deles, se converteu

numa aproximação aos valores “divinos”:

É tanto que anteriormente eu, sinceramente, eu não vivia na estrada de Deus. E minha vida mudou. É por isso que eu digo, Deus tocou em mim, Deus tocou porque eu não era assim, eu não orava, não rezava, não ia à igreja. Hoje eu não falto uma missa aos sábados aqui na Morada da Paz, venho pra rezar, pra orar. (José)

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Esta relação conflituosa da percepção de Deus, variável entre revolta e resignação, a partir

da morte e da perda, pode remeter, mais uma vez, ao pensamento de Drummond (1988, p. 1244)

quando reflete, em seu poema, sobre “Deus e suas criaturas”:

Quem morre vai descansar na paz de Deus. Quem vive é arrastado pela guerra de Deus. Deus é assim: cruel, misericordioso, duplo.

Seus prêmios chegam tarde, em forma imperceptível. Deus, como entendê-lo?

Ele também não entende suas criaturas, condenadas previamente sem apelação a sofrimento e morte.

Relação entre enlutados, com o cotidiano e com os falecidos

“Pois seja o que vier Venha o que vier

Qualquer dia, amigo Eu volto, a te encontrar

Qualquer dia, amigo A gente vai se encontrar”.

Milton Nascimento e Fernando Brant. Canção da América.

A relação mantida entre os freqüentadores do grupo seguia a proposta de franqueza e de

abertura apresentada pela psicóloga. Desta forma, a discordância nos diálogos também esteve

presente, embora sempre mantida na maior discrição e com a menor exposição pessoal possível.

Conforme me alertou a psicóloga na entrevista anterior à observação: “aqui também tem uma

questão social, que eles acabam limitando muito o que fala (sic), o que pode e o que não pode

falar.”43 Dessa forma, era perceptível que tais divergências aconteciam em momentos raros,

43 Este limite entre o que se pode, e o que não se pode falar, em favor de uma conveniência da manutenção das relações e dos vínculos que estreitavam o grupo, será alvo de análise um pouco mais adiante.

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quando a discussão de tornava mais entusiasmada. O respeito e a manutenção da relação como

elemento mais importante na condução dos trabalhos, contudo, imperou em todas as reuniões.

Um exemplo pode indicar que as exposições dos companheiros eram contestadas

principalmente por aqueles que se sentiam atingidos diretamente em suas próprias experiências

de perda, a partir do fato mencionado pelo colega. Ainda no primeiro encontro, após uma

apresentação, revelou-se a discordância de uma viúva, que, após ouvir o depoimento de uma

enlutada que sofria pela perda de um ex-marido, mesmo já estando casada com outro há vinte

anos, desabafou: “Se você diz que gosta do seu atual marido, por que não o valoriza? Você tem

tudo para ser feliz, tem uma pessoa do seu lado! E eu que queria ter e não tenho mais, perdi!”.

(Elza)44 Nos momentos - repito, raros - em que tais colocações eram expostas, era comum um

profundo silêncio tomar conta da sala. Percebia-se, desta maneira, a intenção de manter a

harmonia no ambiente, fazendo prevalecer a relação entre os participantes.

Um outro aspecto interessante, que demonstrava a afinidade do grupo, era a maneira

como os integrantes se tratavam. Como conheciam com certa intimidade as perdas uns dos

outros, sabiam o nome e a causa da morte dos parentes falecidos, e, ainda, tinham informação do

local do jazigo que os colegas visitavam. Era comum que se referissem entre eles como: “Maria,

a mãe de João”; ou ainda, “Antônio, que a esposa está enterrada na quadra lá de cima”. Numa

reflexão realizada pelo próprio grupo acerca desse tratamento, estabelecido a partir da referência

da morte, os integrantes concluíram como uma “perda de identidade” que viviam após o luto.

Apesar disso, não demonstravam nenhum incômodo com o fato, ao contrário, pois, segundo eles,

tinham orgulho do vínculo que tinham com seus mortos, e isso, de certa maneira, não deveria ser

perdido.

44 Farmacêutica, 54 anos. Viúva, mãe de 3 filhos. Perdeu o marido há quatro anos e meio, vítima de enfarto.

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A manutenção deste vínculo com o parente falecido pôde ser percebida, sobretudo,

principalmente nas falas dos enlutados sobre o morto, referido muitas vezes por meio do verbo no

tempo presente, como “Gustavo gosta disso”; “Andréa é muito impaciente”. Além disso, algumas

atitudes, como manter na agenda do telefone celular o número do falecido, deixar sua voz

gravada na secretária eletrônica do telefone de casa, ou ainda comprar presentes que agradariam o

morto no dia de seu aniversário, eram reveladas pelos participantes do grupo como naturais. No

entanto, tais exposições preocupavam a psicóloga, pois soavam como uma demonstração de não

conformação com a perda. Nestas ocasiões, era comum ela intervir e tentar explicar aos

participantes que aquele comportamento podia trazer complicações, se não fosse bem refletido.

Esta necessidade de manutenção do vínculo é vista por Bernini (2003, p. 56) como uma não

aceitação da idéia da separação, do abandono, da “ruptura de um nicho que se acreditava seguro”.

Como o comportamento diante do luto, de alguma maneira, apresentava uma

reciprocidade entre os integrantes do grupo, se tornou relativamente comum que estes passassem

a conviver, embora ainda de maneira pouco mais tímida para os iniciantes, fora do ambiente do

grupo. Quando não se encontravam antes da reunião nos jardins do cemitério para conversar,

trocavam telefones para manter contatos durante a semana, ou ainda, como forma de cortesia,

traziam orações ou flores para o jazigo dos parentes daqueles colegas com quem tinham mais

afinidade.

A sensação de bem-estar experimentada pelos participantes do grupo no decorrer das

sessões foi tanta que se tornou comum encerrar os encontros com lanches trazidos pelos

enlutados. Datas festivas como Natal ou aniversário dos integrantes também foram celebradas

pelo grupo no ambiente da sala de estar do cemitério. Para alguns, essa amabilidade transformou-

se numa amizade, que embora não tenha a mesma freqüência e participação dos indivíduos que

compõem os grupos do cotidiano de cada um, assumiu grande importância, por ser um referencial

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daqueles que entendem o processo pelo qual estão passando. Como revela uma participante ao

falar sobre a importância das amizades feitas no grupo:

[...] elas são muito importantes, sabe? São bastante importantes. Porque é como eu lhe disse, é uma família. Uma família que se formou, e uma sempre dá apoio a outra. E é como se uma fosse seu braço, outra fosse sua perna e então vai ajudando a enfrentar as dificuldades, né? Pra mim eles são muito importantes, muito importantes mesmo. (Juliana)

Entende-se, assim, a inclusão do sentimento de pertença e de amizade como fator

importante para a elaboração do luto para estas pessoas. Sobre este aspecto, Koury (2003, p. 137-

138) observa a relação de amizade como uma forma de reintegração do indivíduo pelo

compartilhamento da dor:

A estrutura familiar e a tecedura de amizade demonstram, ainda, uma presença muito forte do outro no processo de reintegração do sujeito em um momento de crise. Parecem funcionar como um anteparo ao sofrimento, pela experiência mais ou menos comum de partilha, que permite aos sujeitos envolvidos situarem-se em um mapa comum, de interação. Mapa por onde os laços afetivos são renovados a cada ritual de passagem, de chegada, de avanço ou de despedida de um dos membros, bem como nas alegrias e tristezas compartilhadas.

É perceptível que este vínculo formado entre os participantes, principalmente entre os

mais antigos, provenientes de grupos anteriores, colabora bastante para a concepção do ambiente

do Morada da Paz como um lugar de sociabilidade, de tranqüilidade. Além disso, o contato com a

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natureza contribui para a sensação de acolhimento, conforme ilustra o depoimento desta

participante, quando questionada porque afirmava se sentir bem no local:

Eu acho que é a paisagem, né? As plantas, assim, não sei, é como se você tivesse num... Aqui quando você entra você já sente um ambiente diferente. Eu sinto. Eu sinto paz aqui dentro. Eu acho que é o verde, as árvores, sabe? Tudo bem igualzinho, tudo cortadinho, muitas flores. (Marcela)45

O que não acontece quando buscamos a comparação com outros cemitérios:

É, é porque a gente pensa no lugar, com aquelas gavetas, aquelas coisas horrorosas, então você, não, jamais, botar um filho ali! Me dá uma sensação de pavor. E ali [no jardim do Morada da Paz] não, a gente sabe que ele tá lá, embaixo da terra tudinho, o corpo, né? Mas não sente pavor dos outros, sabe? Pelo lugar. (Marcela)

Passa-se a perceber, portanto, a diferenciação dada na concepção sobre o cemitério, dentro

de uma perspectiva do que seriam os outros espaços e de como é considerado o Morada da Paz. O

sentimento de tranqüilidade, como já descrito anteriormente, é amplamente observado na maneira

como os enlutados do local se apresentam em suas visitas. O que torna esse grupo mais

homogêneo, porém, diz respeito ao processo de isolamento causado pelo luto, fato que de acordo

com a apropriação do espaço como lugar de troca de experiências, tem sido amenizado.

45 Professora, 43 anos, casada, mãe de um casal de filhos. Perdeu o filho de 20 anos há dois anos e seis meses, devido a uma dengue hemorrágica não diagnosticada pelos médicos.

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A partir das conversas observadas no grupo e das entrevistas, percebe-se que existe uma

necessidade dos enlutados em falar da sua perda, conversar sobre o parente falecido – contando

histórias de quando eram vivos, ou mesmo levando fotos para que todos saibam a fisionomia

daqueles que, de tanto ouvirem falar, já tratam como conhecidos.

A relação mantida entre os enlutados e as fotografias de seus mortos mostrou-se bastante

curiosa. A imagem fotográfica revela para o sobrevivente a memória, a lembrança dos tempos

compartilhados em vida com o falecido. A fotografia, desta forma, remonta e re-significa as

emoções proporcionadas pelo estado de luto, como diz Miriam Leite (2001, p. 44): “O tempo

fotográfico recompõe o tempo da memória, alheio ao tempo cronológico. [...] é a lembrança de

sentimentos e percepções que vem oxigená-lo e lhe dar novas dimensões”.

Assim, a fotografia do falecido pode despertar a tristeza no sobrevivente pela consciência

da ausência do ente, o que fazia com que alguns deles confessassem não suportar olhar tais

imagens. A situação mais comum, contudo, era de exposição das fotos pelos enlutados – que as

guardavam consigo e sempre as mostravam para os colegas, renovando as lembranças trazidas

pela fotografia. A noção de manutenção da “convivência” com o falecido a partir da “presença”

fotográfica mostrou-se recorrente, como uma espécie de “ressurreição simbólica” que transforma

a relação entre ambos. Através da memória suscitada pela fotografia a “vida parece permanecer

como situada em um outro estágio, onde a possibilidade do eterno se evidencia” (KOURY,

2002b, p. 76-77).

Neste aspecto, na intenção de manter uma relação de “convivência” com o falecido,

muitos enlutados afirmavam manter em casa um lugar dedicado ao ente, composto por objetos

pessoais e fotos daquele que morreu, conforme comentou uma entrevistada:

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Fiz o santuário, botei o retrato dele. [...]Porque quando eu passar eu vejo o retrato dele, eu não vou ficar um dia sem ver o retrato dele, eu vou ficar em pânico. Então pra eu não sentir essa parte de hoje e amanhã diferente, eu prefiro conviver sempre, ter sempre aquela convivência com ele. Mas que partiu, mas que ele estivesse presente com a gente, né? (Suzana)

A foto, desta forma, traz para os enlutados o sentimento de lembrança que pode se refletir

na convivência “pacífica”, ou na dor causada pela consciência da perda. Numa situação

interessante ocorrida no grupo de terapia, pude perceber os dois lados desta relação: a mãe,

impossibilitada de observar as fotografias do filho em casa, devido ao sofrimento que estas

imagens causavam ao seu marido, levou diversos porta-retratos, espalhou-os na sala de reuniões e

comentou: “Eu gosto de ver as fotos dele, mas não posso porque meu marido sofre se vê-las.

Então eu trouxe para cá, porque me sinto à vontade e vocês entendem o que eu tô passando”

(Ana)46.

Através de tal exemplo, percebe-se a cumplicidade existente entre os enlutados ao

compartilharem suas dificuldades e dores com os colegas que, devido à semelhança

proporcionada pelo luto, compreendem-se mutuamente. A necessidade de dividir o assunto da

perda se fortifica a partir da falta de oportunidade de introduzir este assunto no cotidiano,

principalmente com não-enlutados. Revela-se aí a importância dada ao grupo de apoio por parte

dos seus integrantes, que mesmo depois de encerrado um trabalho, voltam a freqüentá-lo na

formação seguinte. E ainda, levam esta relação de amizade para fora do ambiente do cemitério:

46 Comerciante, casada, mãe de dois filhos. Perdeu o filho de 30 anos há três anos, assassinado a tiros.

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[...] a gente liga, quase todo dia a gente se fala. “Como é que você tá hoje?”; “Como é que passou o dia?”. Mesmo quando eu tô em crise eu ligo pra eles, eles conversam muito comigo. [...] É porque eu acho assim que por aí a gente vê que tem pessoas que quer bem a gente, que se preocupa com a gente. Tanto quanto eu me preocupo com eles. Eu acho que é a mesma coisa. Eu me preocupo com eles, eu acho que do mesmo jeito eles se preocupam comigo. (Sandra)

Vê-se, então, que o sofrimento da perda, para estas pessoas, passou a ser compartilhado

entre “semelhantes”, que compreendem suas dores e são capazes de se confortarem pela

experiência mútua e pela afetividade que se construiu. Dessa forma, o interdito social imposto ao

assunto da morte, do luto, tem reflexo no silêncio destas pessoas nos outros grupos do cotidiano

que, para não incomodarem o outro, e também para não se sentirem mal, preferem não falar sobre

o assunto com quem não “entende” dele. Como é o caso do relato desta informante, participante

do grupo, ao ser indagada sobre o que fazia quando percebia que as pessoas não gostavam que

falasse de sua perda:

Não falo. Porque é como se torna: “essa mulher é chata demais, só fala nisso”. No meu ambiente de trabalho. Mas no meu ambiente de trabalho até que as pessoas tinham mais paciência comigo, assim, me escutavam. Mas eu percebia, por exemplo, eu gosto muito de vir pra o Morada, mas quando eu chegava, eu gosto muito de conversar, então quando eu ia contar as histórias, das amizades que eu fazia: “Eu conheci fulana, que perdeu o marido”... Aí era assim: “Só fala em morte, só fala em cemitério”, sabe? As pessoas não gostam de falar nisso. Agora se se juntar pra falar de besteira de moda, de vestido, de maquiagem, de não sei o quê, pode. De ginástica, de dieta, aí pode. Agora pra falar de uma coisa assim.. Mas eu ignoro porque hoje eu vejo a vida de uma outra forma. Mas antes eu também pensava como as outras pessoas. (Marcela)

Além do silêncio provocado pelo interdito à morte, percebe-se neste depoimento que

existe, para ela, uma diferença no sentido da vida, uma divisão de valores entre o antes e o depois

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da perda. Quando a informante afirma ignorar o comportamento alheio com relação ao assunto da

morte e, em seguida, diz que antes da perda também pensava como os outros, reforça a noção

dada pelos enlutados de que é preciso passar pela experiência do luto para poder compreendê-lo.

Esta noção de “respeito” ou de “compreensão” à falta de abertura das pessoas que não passaram

por perdas em ouvir os enlutados mostrou-se recorrente nas respostas. A maior parte dos

entrevistados afirma que, antes da perda, também não ouvia ou não dava importância ao que

falavam seus conhecidos em estado de luto. E dizem que, somente agora, após sua experiência

pessoal, entendem do que falavam tais enlutados.

Ao mesmo tempo em que estas pessoas deixam de falar de suas perdas, por acharem

inconveniente tal exposição, nos é apresentada uma situação ambígua, em que o enlutado, quando

abordado pelos que se aproximam para dar apoio, se sente incomodado com as condolências e

com os conselhos dados. Vejamos o depoimento desta mesma informante:

Não. Ninguém fala, porque vai dizer umas besteiras tão grandes que a gente tem até raiva. E como eu já tava com muita raiva. Mas no momento assim, você fica assim anestesiada, que você nem pensa. [...] Mas aí o povo diz assim: “Não, ele tá com Deus”. Você quer que o seu filho vá? Aí na hora eu mesmo perguntava no meu íntimo, sabe? Claro que eu não dizia, mas eu ficava olhando pra pessoa: “Você queria que seu filho fosse?”. Pensando em mim mesma: quem é que quer que o filho vá? Ninguém quer. (Marcela)

Existem alterações nas concepções dos enlutados procedentes da experiência da perda. O

próprio sentido da morte, e conseqüentemente da vida, é relatado pelos componentes do grupo

como transformado após o luto. Nas conversas mantidas durante as sessões, pôde-se perceber

com freqüência reflexões dos participantes que afirmavam não ter mais medo da morte, que

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entendiam, somente após a experiência do luto, que a vida é muito frágil, e que alguns valores

“materiais” se perdem. Isso fica mais claro na resposta dada por outra informante, participante do

grupo, quando questionada sobre a mudança de sua percepção sobre a morte:

De repente você tem um plano de vida, e então ela vem abruptamente e lhe tira tudo aquilo que você tá imaginando, que tá planejando. Então a gente tem sempre, coisas materiais a gente perde, porque você vê que você não leva nada daqui. Então o que você tem que fazer é cuidar da sua espiritualidade, fazer o bem, fazer aquilo que agrada, pra você ser lembrado pelas boas ações, pelas boas amizades. Mas a morte de qualquer maneira você vai passar por ela, nós estamos numa fila que ninguém sabe quem é o primeiro nem quem é o último. Todos nós vamos passar por este mesmo estágio. Então você tem que fazer por onde aproveitar o máximo, as suas boas coisas que você quer fazer, tudo, aproveite, porque você não sabe nem a hora, nada. Você não sabe a hora e de um momento pra outro, pronto, acabou-se. Vamos pensar em outra dimensão, vamos pra onde? Só Deus é quem sabe, ninguém sabe. Ninguém voltou ainda de lá pra dizer ainda como é o outro lado. (Elza)

Indagada se a morte lhe ensinou a pensar na vida, ela continua:

Ah, ensina, ensina a você botar mais os pés no chão. A você passar a não perder muito tempo com picuinhas, com intrigas, com coisas que tão minúsculas, diante das coisas que você tem que deixar pra que os outros lembrem de você, entendeu? Tem que caminhar, retamente, à sua maneira, pedir proteção a Deus e seguir em frente.

Esta concepção está diretamente ligada ao que nos diz Oliva-Augusto (1994, p. 95), ao

refletir acerca da necessidade de aproveitamento do tempo vivido a partir de ações que marquem

a existência do sujeito:

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A história única e irreparável resultante desse processo só pode ser construída no interior de um período de tempo determinado: o tempo de vida de cada pessoa. Para que cada um possa traçar seu próprio caminho e deixar marcas em sua passagem, garantias de uma vida bem sucedida, existem balizas, que não podem ser transpostas.

Estas balizas nada mais são do que os limites sociais que devem ser respeitados na execução das

ações significativas, marcantes para cada sujeito. Existe uma ordem social a ser mantida, e a

relevância da passagem do indivíduo, através de suas atitudes em vida, devem corroborar com

estas instâncias.

Um outro aspecto que aproxima estes enlutados é a relação que eles mantêm com seus

falecidos. A freqüência assídua ao cemitério, o constante cuidado com os jazigos, bem como as

conversas que eles afirmam estabelecer com os mortos, indicam uma noção de continuidade da

existência daqueles que se foram. Para muitos, se não todos, existe a crença de que o parente está

em um outro plano, e a certeza de um reencontro após a sua própria morte é, para a maioria, um

conforto. Entram aí concepções sobre o “mundo dos vivos” e o “mundo dos mortos”, para as

quais as relações entre enlutados e falecidos ganham expressividade, conforme afirma DaMatta

(1991, p. 152, grifos do autor):

(...) a morte no Brasil é concebida como uma passagem de um mundo a outro, numa metáfora de subida ou descida – algo verticalizado, como a própria sociedade [...]. Sendo assim, há obrigações diante dos mortos e de suas almas que são palpáveis: seus aniversários de nascimento e de morte são lembrados, sua memória deve ser cultuada e há até mesmo uma possibilidade curiosa, pois falar periodicamente com eles dá a quem o faz uma certa sabedoria, poder e aquela invejável e tranqüila resignação diante “deste mundo” .

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Entendo, desta maneira, que estudar a experiência dos enlutados e, em decorrência, as

dificuldades detectadas durante a elaboração do luto implica em tentar perceber a significação de

um processo que é dado socialmente, devido ao isolamento social deste grupo e à forma como as

concepções, também sociais, sobre a morte e o ambiente do cemitério se transformam a partir

desta experiência. Desta forma, observando a semelhança dos comportamentos que os designam

como grupo e a sociabilidade entre eles como alternativa para amenização do convívio com a

perda, optou-se por analisar as relações existentes entre os enlutados do Morada da Paz como

uma maneira de compreender a forma como se dão estas possíveis transformações.

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CAPÍTULO 4

Sociabilidade entre “semelhantes”: amenização ou reforço do isolamento no luto?

“Não sei porque você se foi Quantas saudades eu senti

E de tristezas vou viver E aquele adeus, não pude dar

Você marcou em minha vida Viveu, morreu na minha história

Chego a ter medo do futuro E da solidão, que em minha porta bate”.

Edson Trindade. Gostava tanto de você.

Para analisar a relação existente entre os enlutados do Morada da Paz, tomo emprestado

como base o conceito de sociabilidade desenvolvido por Georg Simmel (1983, p. 166), em que os

conteúdos - designados pelos impulsos, interesses e estado psíquico de cada sujeito - se tornam

fatores de sociação

[...] apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em formas específicas de ser com e para um outro – formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação. Desse modo, a sociação é a forma (realizada de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses.

Desta maneira, considera-se que os conteúdos das relações presentes entre os enlutados

são os elementos que os tornam semelhantes, tais como: seu estado psíquico diante da perda, seus

impulsos e suas inclinações com relação à morte e a seus mortos, seu interesse em quebrar o

isolamento social ao qual foram expostos. Tais conteúdos, portanto, tornam-se sociais a partir da

forma (princípio de sociabilidade) estabelecida através da reciprocidade da troca. Assim, o

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vínculo instituído, o estar “com e para um outro”, ou seja, a relação mantida entre os enlutados,

torna-se mais importante que o conteúdo a ser conversado.

É necessário lembrar que a noção de isolamento social e de sofrimento introspectivo dos

enlutados remetem ao campo da subjetividade, onde vigoram aspectos cognitivo-emocionais,

baseados em experiências singulares, em congruência com contextos sociais e culturais a que

estão submetidos estes sujeitos. Desta maneira, é preciso manter em perspectiva a observação

desta sociabilidade, a partir da troca intersubjetiva dos enlutados sob o ponto de vista da

sociologia da emoção, que

[...] não pode ser analisado sem se evocar os seus componentes psicológico e social da relação, onde atores se encontram envolvidos em uma situação intersubjetiva, e discute o processo analítico que evidencie os elementos do envolvimento interno (psicológico) e externo (social) como método capaz de aprofundar e compreender as origens e o processo formativo e de consolidação social de uma emoção específica e do conjunto das emoções. Vistas cada uma em sua unicidade e em sua utilidade para um social e para os indivíduos relacionais nele imersos, como base discursiva de uma sociologia da emoção. [...] não basta estudar a superfície exterior e o lado interior de atores em ação, mas também, e sobretudo, os vínculos que os conectam, para a análise das emoções no social. (KOURY, 2004, p. 66-67, grifos meus)

Percebe-se, desta forma, a pertinência em observar mais proximamente o vínculo que assegura

para os sujeitos a possibilidade de externar suas angústias provocadas pelo estar enlutado.

Possibilidade esta que pode ser notada como interesse, e, também, como projeções subjetivas dos

atores que investem na manutenção desta sociabilidade.

Seguindo a interpretação de Simmel (idem, p. 168), vêem-se alguns elementos que

estabelecem como sociabilidade a relação existente entre os enlutados integrantes do grupo de

apoio psicológico. Inicia-se pelo sentimento de sociação observado entre os componentes, a partir

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da semelhança de experiências que denotam a noção de pertença, e mais, indica a satisfação

gerada através deste sentimento de sociação. Tal contentamento fica bem explícito na

importância designada ao grupo por seus componentes, como nos depoimentos a seguir:

Então foi muito importante você estar ali, você saber que aquela dor não é só sua, que outras pessoas também passam por aquilo, todo mundo vai passar por aquilo. Então foi uma maneira da gente compartilhar essa dor, foi uma experiência muito valiosa. (Juliana) Estar aqui no grupo é bom demais! É importante porque aqui a gente faz tudo: ri, chora... E ninguém ia agüentar a gente lá fora não! Porque os outros não sabem o que a gente tá passando... (Ana)

Nota-se, então, o sentimento de pertença pela semelhança da experiência da perda, pelo

“compartilhamento da dor”. O conteúdo inicial para tal relação, que seria o impulso, a motivação

para a sociação, pode ser apontado pelo interdito à morte na esfera mais ampla do cotidiano de

cada um destes indivíduos, considerando que “os outros não entendem” o que eles estão

passando. Esta impossibilidade de expor a dor em público, por sua vez, produz outros conteúdos

como o estado psíquico e o interesse destes integrantes. Sendo este o próprio conteúdo, o

interdito à morte transfere sua importância para o vínculo instituído entre os enlutados, que é a

forma, que mantém tal sociabilidade válida. Desta maneira o processo de sociação assume seu

valor.

Considerando a relevância da participação da personalidade dos integrantes do grupo para

o processo de sociação, vê-se atributos de amabilidade, compreensão e cooperação como

elementos fundamentais para a instituição da “forma”, da manifestação da sociabilidade entre

eles. Contudo, seguindo ainda a proposta de análise de Simmel (ibidem, p. 170), percebe-se que

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traços da esfera mais íntima, que podem indicar uma diferenciação do indivíduo, ou mesmo

demonstração de um interesse pessoal, são retraídos em função do interesse coletivo, da própria

sociabilidade, conforme expuseram estas enlutadas:

E sinto também que tem pessoas que precisam mais de apoio do que eu. Que eu tenho que estar ali pra dar uma palavra de conforto a qualquer uma delas, uma ajuda, bem que eu não dê ali na hora, mas que depois eu possa ligar, possa estar junto. Às vezes quando é Beatriz que tá com crise, liga pra mim, e eu às vezes quero chorar e não choro, fortaleço ela. (Sandra)

E acaba que a gente forma uma família, né? [...] Eu me sinto muito à vontade quando eu venho pra cá, sinto falta quando não eu venho. Que eu vejo assim, pra mim a forma de encarar o problema da morte hoje, eu pra mim eu tô mais tranqüila, e eu vejo pessoas do grupo que ainda estão muito sofridas, ainda estão naquele processo de luto mesmo, aquela coisa mais dolorosa. Então assim, é como se eu me sentisse na obrigação de vir e de passar o meu exemplo. Sabe? Pras pessoas, de mostrar, de poder ajudar. Falar o que passei... [...]Mas assim como as pessoas ainda estão com aquilo muito recente eu procuro vir, dar meu exemplo, dizer que a dor vai passar. [...] É como se a gente viesse pra aqui, eu digo: “não, eu preciso ir pra reunião, eu preciso” pra dar uma sacolejada nas pessoas, né? Pra elas acordarem pra vida, né? (Juliana)

Nos depoimentos destas pessoas nota-se que existe, ao mesmo tempo, uma necessidade de

auxiliar o próximo, seja ouvindo seja falando palavras de apoio. Esta troca, incluindo a

“obrigação” de ajudar, nos lembra Marcel Mauss (1950, p. 69, grifos meus) em seu Ensaio sobre

a Dádiva, que elabora as três obrigações que acabam por dar um sentido de congruência aos

grupos - dar, receber e retribuir: “A obrigação de dar não é menos importante; o seu estudo

poderia fazer compreender como é que os homens se tornaram trocadores. [...] Recusar-se a dar,

negligenciar o convite, como recusar a receber, equivale a declarar guerra; é recusar a aliança

e a comunhão”.

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Dessa maneira, se opor a ouvir a angústia do outro, ou se negar a receber o consolo,

significa negar a sociação e, conseqüentemente, o vínculo que os une. Assim, percebe-se que é

mais vantajoso não chorar, mesmo quando se tem vontade, com o intuito de apoiar o próximo, ou

participar das reuniões mais para ouvir e passar a experiência do que expor a própria dor - tudo

com o propósito de manter o vínculo, a “forma”.

Mais ainda. É necessário notar que esta idéia de doação indica o sentido da retribuição

para si, incutida na proposição da dádiva. Como afirma um enlutado: “Porque quando a gente

socorre não está socorrendo só a pessoa, tá socorrendo a gente mesmo” (Marcos), concordando

diretamente com Mauss (1950, p. 67): “Donde se segue que apresentar qualquer coisa a alguém é

apresentar qualquer coisa de si”. Desta maneira, ao auxiliar um colega, um semelhante, a partir

do sentimento de sociação, de vínculo pela situação emocional similar, o sujeito em estado de

luto conforta também a si próprio.

Sobre a exposição das angústias nas falas dos enlutados, é preciso lembrar, também, da

discrição típica de seus depoimentos. Os relatos expostos, bem como os comentários acerca deles

feitos pelos demais integrantes, embora estejam sempre imbuídos de traços da personalidade

daquele que fala, são colocados a partir de uma normalização, instituída através de uma

adequação da postura dos participantes (que tanto falam quanto ouvem), obedecendo a limites

que ficam subentendidos no processo de sociação. Conforme explicita Koury (2004, p. 49, grifos

meus):

As trocas sociais trariam em si uma espécie de etiqueta social, ou conjunto de regras e normas sociais que coadunariam os indivíduos nelas relacionados à ação. A etiqueta social deste modo orientaria e conduziria os atores em suas ações. [...] O social dado, neste sentido, daria aos indivíduos a ele pertencentes uma espécie de código imaginário que os permitiria sentir, expressar e

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administrar sentimentos e comportar-se em determinadas situações, mesmo quando não diretamente envolvidos no ato onde uma emoção específica aflorasse.

Exemplificando: as histórias pessoais, relatadas várias vezes durante as sessões, são

colocadas como fator que demonstra a semelhança e institui o vínculo, que é a “forma”, a partir

da dor comum. A maneira como são contadas, mesmo incluindo detalhes, eximem as

interpretações pessoais mais profundas, limitando-se a um relato da experiência. Do mesmo

modo, a maneira como tais histórias são recebidas pelo restante dos enlutados, através de um

compreensivo silêncio ou de um comentário comparativo gerado a respeito do fato exposto, não

cabendo a interpretação pessoal acerca da experiência alheia, indica esta etiqueta social, estes

limites estabelecidos para a manutenção desta sociabilidade.

Desta maneira, apesar de existir um interesse pessoal na participação de cada integrante,

que é a amenização da dor de seu luto, a “forma” - vínculo estabelecido entre os enlutados para

manter a sociabilidade - assume maior importância que o conteúdo da conversa. Assim, a

pretensão pessoal da participação no grupo de apoio fica inibida de uma exposição, bem como as

individualidades dos comentários não são colocadas, sob pena de quebrar-se o processo de

sociação. São os “limiares da sociabilidade” descritos por Simmel, para os quais a discrição

consigo e com os demais formam a base estrutural. Esta discrição também pode ser interpretada

pelo que ele nomeia por tato, maneira encontrada para manter distante da conversação elementos

essencialmente pessoais, substituídos pelo interesse maior de manter a própria sociabilidade.

É importante recordar, neste ponto, que o princípio de restrição de críticas pessoais, bem

como a abstenção de manifestações mais explícitas de opiniões e de sentimentos privados,

reporta ao que Elias (1993) propõe como “processo civilizador”, em que a economia dos gestos e

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das emoções afeta o comportamento humano e as relações interpessoais. O que quero dizer é

que, diante da exigência da conservação da sociabilidade, ou melhor, do vínculo que mantém esta

sociabilidade, os indivíduos que nela estão imersos não expõem plenamente suas opiniões sobre

os casos expostos pelos colegas, bem como não dispõem de abertura suficiente para colocar sua

experiência – preservando assim a sociabilidade, o vínculo que os une, revestidos pela noção da

civilidade. Lembremos de Sennet (1998, p. 329): “A civilidade existe quando uma pessoa não se

torna um fardo para as outras”. Desta forma, a preservação de uma “certa” distância nos diálogos,

mantendo fora dos discursos excessos de cargas pessoais sobre a dor, como também a ausência

de avaliações individuais sobre histórias alheias, no intuito de não se tornar o enlutado um

“fardo” diante de seus colegas, exprime aquilo que a psicóloga (cf. pg 91) traduz como a questão

social delimitadora do que “pode e o que não pode” ser exposto no grupo.

Uma boa demonstração deste limite ficou latente numa dinâmica proposta pela psicóloga

em que os componentes do grupo de apoio deveriam analisar o processo de elaboração da perda

de cada um dos demais participantes. A dificuldade para expor a avaliação sobre os colegas foi

tamanha que o silêncio e o entreolhar-se imperaram na sala de reunião. A condução do trabalho,

desta forma, ficou a cargo somente da própria profissional – o que acabou estimulando cada

enlutado a falar sobre suas próprias angústias, sem, entretanto, conseguir opinar sobre a dor dos

outros presentes.

Não podemos desconsiderar, contudo, que a conversa mantida neste grupo, mesmo

respeitando os “limiares da sociabilidade”, tem a importância de sustentar a relação entre os

participantes através da reciprocidade, a partir da similaridade e do sentimento de pertença

comum aos membros do grupo. Como dito anteriormente, a relação, o vínculo entre eles é a

“forma” - fato relevante conservado pela sociabilidade. Sobre a conversação, uma observação de

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Simmel (ibidem, p. 177, grifo do autor) torna-se importante para a compreensão da experiência

vivenciada:

(...) a sociabilidade apresenta talvez o único caso em que a conversa é o legítimo propósito de si mesma. Conversar pressupõe duas partes: é um caminho de ida e de volta. De fato, entre todos os fenômenos sociológicos, com a possível exceção de “olhar um para o outro”, a conversa é a forma mais pura e elevada de reciprocidade. A conversa é desse modo a realização de uma relação que, por assim dizer, não pretende nada além de ser uma relação – isto é, na qual aquilo que usualmente é a mera forma de interação torna-se seu conteúdo auto-suficiente.

Pode-se imaginar que a intenção destes indivíduos ao estabelecer uma relação que “não

pretende nada além de ser uma relação”, está implícita no próprio conteúdo, que é o interdito à

morte. Ora, como este é o único espaço para aqueles indivíduos socializarem com outros os seus

impulsos, eles devem respeitar os limites da sociabilidade para sustentar aquele vínculo, que lhes

é tão caro. E mais, o interesse por manter a relação, a “forma”, sem deixar que o conteúdo se

sobreponha, está também previsto na dificuldade de explorar os impulsos, de abri-los

completamente, visto que o próprio interdito à morte permanece presente nas demais situações

vividas no cotidiano daqueles sujeitos.

Assim, mesmo sendo este um espaço facilitador para a demonstração do conteúdo, fica

subentendido nos “limiares da sociabilidade” que este conteúdo não pode superar a valorização

dada ao vínculo estabelecido, da “forma” que sustenta a sociabilidade, sob pena de, ao ultrapassar

estes limites, perdê-la. Como não parece ser de interesse destes enlutados perder tal relação, a

importância do conteúdo exposto se encontra na duração daquele momento de sociação. Como

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afirma uma entrevistada, quando questionada se o assunto em pauta nas conversas entre os

jardins era essencialmente sobre a perda:

Só fala. (risos) Só fala. Porque é no momento que a gente quer ouvir, pronto, são as pessoas que escutam. As outras não querem saber mesmo, né? Então a gente tem é que aproveitar, a gente aproveita essa oportunidade pra chorar, pra falar, pra tudo. Porque é a única oportunidade, porque as outras não querem saber. Entendeu? (Mariana)

Estabelece-se então a noção de troca na sociabilidade, circunstância em que, supondo uma

situação ideal, os valores oferecidos pelos indivíduos são compatíveis àqueles que eles têm a

receber no grupo. Trazendo para a situação observada, é a possibilidade de falar e ser ouvido,

tanto quanto a de ouvir o que se tem a ser dito, que torna a condição de participação dos

enlutados do grupo igualitária. É certo que esta situação, já classificada como ideal, não atinge

esta igualdade, visto que cada sujeito, no processo de sociação, não se apresenta como é de fato,

por tornar discretos traços mais íntimos de sua personalidade. Essa igualdade, portanto, faz parte

de um jogo de “faz de conta” que mantém a sociabilidade, como esclarece Simmel (ibidem, p.

173, grifos do autor):

Se a própria sociação é interação, sua expressão mais pura e mais estilizada se dá entre iguais (...) a sociabilidade demanda o mais puro, o mais transparente, o mais eventualmente atraente tipo de interação, a interação entre iguais. Devido à sua natureza, deve criar serem humanos que renunciem tanto a seus conteúdos objetivos e assim modifiquem sua importância externa e interna, a ponto de se tornarem socialmente iguais. Cada um deles deve obter valores de sociabilidade para si mesmo apenas se os outros com quem interage também os obtêm. A sociabilidade é o jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular.

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Seguindo este raciocínio, a sociabilidade entre os enlutados observados decorre do

estabelecimento de uma igualdade entre eles no processo de interação. Por isso, os conteúdos

individuais ficam em segundo plano, sobrepostos pelo vínculo grupal, que se torna mais

importante no processo. Com efeito, a dor pessoal e as experiências do luto, que caracterizam os

impulsos - os conteúdos - embora sejam sentidos e vividos para cada enlutado de maneira

singular, se tornam sociais a partir da condição de igualdade com que são expostos no processo

de interação, no qual a sociabilidade mantida a partir da conversa tem maior significado.

Considerando o propósito desta sociação, em que o interesse do grupo de apoio se foca,

trago para análise o possível avanço no processo de elaboração do luto alcançado pelos seus

integrantes. Segundo relato dos próprios participantes e também a partir de observações feitas no

decorrer das sessões, verifica-se que o apoio profissional na mediação dos diálogos e no estímulo

à reflexão das dificuldades comuns tem sido importante para os resultados alcançados. Tal fato é

melhor percebido, principalmente, na conformação daqueles que já estão sendo acompanhados

por este trabalho a mais tempo. Contudo, os níveis distintos deste avanço entre os participantes,

considerando as diferentes perdas e a experiência social de cada indivíduo, faz refletir que o

mesmo apoio profissional em grupo pode não ser suficiente para alguns integrantes.

Noutra perspectiva, vê-se que esta intervenção feita pela psicóloga, demonstra, ainda, uma

condução que favorece sociabilidade, o que retira, de certa maneira, a espontaneidade no

processo inicial da formação do vínculo. Contudo, prefiro atribuir à assiduidade e à freqüência

dos encontros entre os participantes a motivação para o fortalecimento da “forma”, do vínculo

estabelecido entre os integrantes do grupo de apoio psicológico.

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A espontaneidade e a superficialidade na socialização da dor

Além desta experiência com o grupo de apoio, analisou-se, através de visitas semanais, a

sociabilidade ocorrida de maneira espontânea nos jardins do Morada da Paz através de conversas

informais e da aplicação de entrevistas. Os exemplos coletados são expressivos por demonstrar a

freqüência e o conhecimento mútuo dos problemas acarretados pela perda e pelo luto entre os

enlutados mais assíduos. Como as conversas mantidas entre eles são mais esporádicas, e, porque

não dizer, mais evasivas do que as observadas no primeiro grupo, os momentos reservados para

exposição dos problemas tornam-se mais rápidos. Além disso, a troca de experiências diversas

com pessoas diferentes, em dias alternados e distintos, indica que as relações mantidas neste

segundo grupo são menos sólidas, pela descontinuidade dos encontros e, conseqüentemente, dos

assuntos expostos:

A gente conhece, fala um pouco, mas fica por aquilo mesmo. As pessoas não têm... muita gente que tá ali naquela sua dor, fica por ali e pronto. (Juliana) Essa menina assim [apontando para uma visitante], eu quase não converso. Mas eu gosto dela. (Mariana)

Eu nunca vi nem essa criatura [falando sobre uma visitante que conhecera naquele dia] porque ela é do outro quarteirão, do outro bloco, mas eu conversei com ela e dois minutos que a gente se encontra num canto, com qualquer um a gente puxa os assuntos. Se eu me sentar numa mesa, outra também que eu tava sentada na lanchonete, nesse mesmo pedacinho ali, um casal, eles puxaram assunto. Então dois minutos que a gente senta num canto a gente conversa. (Suzana)

Durante a aplicação de uma entrevista, surgiu a oportunidade de registro de um diálogo

ocorrido espontaneamente entre enlutados nos jardins do cemitério. Um rapaz aproximou-se e

iniciou uma conversa com a visitante que eu entrevistava. Deixei o gravador ligado, com o intuito

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de analisar a interação entre ambos posteriormente. A transcrição do diálogo seguinte tem,

portanto, a intenção de observar e exemplificar as relações mantidas entre enlutados do cemitério,

baseadas, como foi dito, a partir de encontros espontâneos e esporádicos entre os jazigos:

Visitante: Boa tarde, faz tempo que vocês estão aqui? Suzana: Faz. Visitante: Não veio ninguém nessa cova aqui não? Suzana: Não. Visitante: Isso é uma vergonha. Só quem vem é o sobrinho. Suzana: Apois eu não vi não de tarde ninguém não. Visitante: Tá certo, obrigado. Suzana: Mas vale a pena, você veio. Visitante: Ninguém quer saber... Suzana: É, mas você venha, você vindo aí ele vai agradecer você, ele vai botar a mão assim, em cima de você. Você vai reze pra ele, pra os outros. Aí pronto. Cada um faz a sua parte né? Eles não vêm, você é quem vai ser gloriado. É. Olhe porque quem parte desta vida para outra eles não morrem, eles vivem.. Visitante: Eu sei disso. Suzana: Aí eles olham pra aqueles que olham a gente. Pode acreditar. Eles não perdem o caminhar de jeito nenhum, não perdem. Certeza que eles não perdem o caminhar da gente. Todo canto que você estiver esse seu tio lhe acompanha. Esse tio lhe acompanha, certeza. Ele não vai deixar nunca você ficar sozinho. Visitante: A família mora bem pertinho, bem aqui... Suzana: Apois é isso que a gente fica preocupada, porque as pessoas não eram pra fazer isso. Visitante: Não vem, a mulher e os filhos, moram em Ponta Negra, bem pertinho, tem carro, tem tudo.. Suzana: Bem pertinho, é pra vir. Não existe isso de ninguém dizer que não vem fazer a visita porque pega um ônibus, vem, de qualquer jeito dá pra vir. Bem

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demais. Mas é isso, a gente pega e diz “Tá certo, não vem não, mas eu vim meu tio, tô aqui, tô dando a maior força ao senhor pra o seu espírito me ajudar, ajudar aos outros”, né? Visitante: Se tivesse vindo tinha rosas. O ano passado não vieram, esse ano também. Suzana: Pois é porque eles esquecem, tem gente que esquece, mas não é pra esquecer não. Aí você vai e não esqueça porque seu tio fica tão feliz porque você veio. Visitante: Olhe, meu pai morreu sexta-feira, vim de lá agora... Suzana: Foi mesmo, aonde é? Visitante: Em Recife. Vim de lá hoje, morreu sexta de noite e eu vim embora hoje, e eu chego aqui, pra ver meu tio e ele tá aqui abandonado, sozinho.. Suzana: É isso aí, ta vendo? Visitante: Visitei o túmulo dos meus avós, do meu pai que morreu, e aqui... Suzana: Isso meu filho vai lhe abençoar, viu? Você recebe tanta bênção, com essa parte que você faz. Visitante: Claro. Suzana: Você faz muito, muito. Visitante: Eu era pra estar chorando, mas eu tô equilibrado. Suzana: Apois sabe por que você está equilibrado? Porque olha, eles estão dando força pra você porque você dá atenção para eles... Você não esquece deles, é isso, porque eu perdi um filho. E por que que eu estou aqui? Se eu não fizesse, se eu não fosse boa, assim mesmo pra outras pessoas, como você faz... Você perdeu seu pai sexta-feira, quer dizer que é recente mesmo, mas você está “em pezinho”, veio fazer a visita, com o coração partido... Visitante: Estou mesmo. Suzana: Pois é, olhe, ta vendo. Mas é isso aí. Visitante: Aqui é bom demais de vir, no cemitério... Suzana: É uma paz, olha a entrevista que eu tô fazendo aqui. Ela chegou aqui pra mim fazendo essa entrevista, perguntando o que é que eu... É uma paz isso aqui. Aqui é uma paz. Visitante: Não, aqui é. Diferente daqueles cemitérios grandes.

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Suzana: É, puxa vida. A gente chega ali sente... ela perguntou isso agora mesmo pra mim. A gente sente aquela dor. Aí a gente chega aqui, a gente só vê essas rosas, vê esse vento, essa brisa assim ó... Daqui pra lá passa aquele, aquela chuvinha... Visitante: Eu quase que comprei o arranjo, aí eu achei que eles vinham trazer, e nada. Vai só contar a presença... Suzana: Vai mesmo, de coração, pode acreditar. E vai ter uma missa de 16h30, viu? Visitante: Eu sei. Vou ficar aqui rezando... Suzana: Fique, que a gente conversa. Visitante: Então tchau. Suzana: Tchau. Tá vendo como são as coisas? Aí as pessoas parecem que atraem, né? Por que tanta coisa aí, e ele veio perguntar a gente, a gente atrai, sabe por quê? Porque a gente tem aquele prazer de estar com as pessoas, de conversar. Aí atrai. (Assim que terminamos a entrevista, Suzana aproximou-se do visitante para dar continuidade ao diálogo iniciado).

A partir do exemplo exposto, vê-se a recorrência de alguns dos temas debatidos pelo

grupo de apoio, discutidos no capítulo anterior, tais como a importância da visita ao jazigo, a

crença na continuidade da existência dos falecidos em um outro plano, a relação de troca de

“favores” entre mortos e sobreviventes e o bem-estar sentido no ambiente do Morada da Paz.

Direcionando nosso olhar sobre o processo de interação colocado como exemplo, em que

devemos considerar se tratar de um primeiro encontro entre estes dois indivíduos, pode-se

perceber que existe uma espécie de superficialidade na relação, em que nem mesmo os nomes

dos interlocutores foram questionados. Este fato, inclusive, foi repetido durante a observação das

falas dos visitantes que mantinham relações espontâneas com outros enlutados entre os jazigos.

Fato que tornou comum a afirmação de que tinham feito amizades lá dentro, mas, ao tentarem

referir-se sobre seus amigos, diziam que não lembravam de seus nomes, salvo algumas exceções:

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Ah, eu tenho muitas amizades aqui. Tanto as pessoas que freqüentam o grupo de apoio, quanto as pessoas que freqüentam só aqui. Como José, e tem outras pessoas que eu não sei de nome, mas eu tenho amizade, converso com elas, eu gosto. (Bruna)

É preciso ter em mente, ainda, que além da forma esporádica como acontecem estes

encontros, existe, entre os visitantes, a noção de respeito pela visita ao jazigo sendo aquele um

espaço sacralizado, e o momento de seu culto uma oportunidade para manutenção da relação

entre enlutado e falecido – seja através da oração, de conversas ou do silêncio. Desta maneira, a

visita ao túmulo adquire a idéia de concentração, de momento valoroso que é respeitado pelo

enlutado, o que pode, de certa maneira, afugentar a possibilidade de uma interação maior entre os

visitantes dos jazigos:

[...] interessante que quando você tá no túmulo da sua pessoa, do seu ente querido, você fica ali e fica isolado, então você vê as outras pessoas nos outros túmulos visitando. Mas eu não sei se é receio de se aproximar, medo de você iniciar uma conversa e da outra pessoa rejeitar sua aproximação, você não se aproxima. Agora depois, com o passar do tempo, a gente se aproxima mais das pessoas... (Elza) Eles [os visitantes], modéstia à parte, mas me adoram mesmo. É homem, é mulher. Tem um cidadão aqui [...] Mas eu gosto de rezar e orar no jazigo, mas ele me quer tanto bem que eu sei que, devido também a idade dele, ele me abraça e eu rezando: “pai nosso que estás no céu...”. E ele: “José, não sei o quê, essa flor, o senhor comprou aonde?”; e eu: “ave Maria, pai nosso que estás no céu”. Eu digo: “amigo, eu tô rezando”, e ele diz: “ah, sim é mesmo”. Mas daqui a pouco ele vem, é porque ele não escuta aquilo, aí volta. (José)47

47 José é o visitante mais assíduo do Morada da Paz. Desde o falecimento de seu filho, há dois anos, ele visita o jazigo duas vezes por dia. Chegou inclusive a ter problemas de saúde proporcionados pela grande exposição ao sol.

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Vê-se, desta forma, que as relações mantidas pelos enlutados entre os jardins, muitas

vezes podem acontecer em momentos rápidos, propiciando diálogos de pouca profundidade.

Estas interações ocorridas da maneira transitória, especialmente na sociedade atual, são alvo de

reflexão de Maffesoli (1987, p. 175-176, grifos do autor), que também se refere ao conceito

simmeliano de “forma”:

[...] estou descrevendo uma “forma” matricial. Com efeito, esta tendência afetual é uma “aura” na qual nos embebemos, mas que pode se exprimir de maneira pontual ou efêmera. Este é, também, seu aspecto cruel. E não é contraditório, como diz Hannerz, ver que nela se efetuam “contatos breves e rápidos”. Conforme os interesses do momento, conforme gostos e ocorrências o investimento passional irá conduzir para tal ou qual grupo, para tal ou qual atividade. A isto chamei de “unicidade” da comunidade ou de união em pontilhado. O que, naturalmente, induz a adesão e o afastamento, a atração e a repulsa.

É certo que, no grupo observado, composto por visitantes que trocam experiências

espontaneamente, existe mais claramente o processo de “adesão” ou de “atração”, pela

similaridade da situação emocional e social vivida por estes sujeitos que experimentaram a dor da

perda. O “investimento passional” estaria exposto no interesse em compartilhar, mesmo que a

partir de encontros “breves e rápidos”, o sofrimento, as angústias e o sentimento de inadequação

social ao qual foram expostos em decorrência do luto:

Devido à sua assiduidade, quase todos os enlutados o conhecem e conversam com ele - por isso, José afirma que todos, naquele ambiente, “o adoram”.

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É bom. Sempre com gente que tem ali dentro é bom, porque às vezes, muitas vezes aconteceu de eu ta lá em desespero e vir gente de lá pra conversar comigo e dar uma palavra de apoio. Como também já aconteceu e eu estar lá e vir essa cena e ir pra lá, conversar... (Sandra)

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a relevância do vínculo (da “forma”) que sustenta

a sociabilidade estabelecida entre os visitantes do Morada da Paz, especialmente nas relações

mantidas de maneira espontânea, pode indicar uma certa superficialidade, o que não resolve o

problema de inadequação social dos enlutados.

É provável que a extensão de algumas destas relações para fora do ambiente do cemitério

pode, de alguma maneira, contribuir para a amenização deste conflito. Mas a partir do momento

em que o vínculo, a própria relação, entendida aqui como a “forma” que conserva a sociabilidade,

é, na maior parte do tempo, considerada frágil, o é também porque o próprio conteúdo, impulso

tomado através do interdito à morte, não fica exposto de maneira evidente. Assim, o caráter

superficial da sociabilidade mantida entre os enlutados que se encontram espontaneamente, pode

nos indicar o surgimento de um novo problema: o reforço do interdito à morte através da

sociação apenas parcial do conteúdo, das dificuldades com o luto que impulsionariam tal relação.

A impossibilidade de conseguir estabelecer vínculos mais fortes, a partir de encontros

mais prolongados, pode significar para estes indivíduos uma espécie de frustração, devido à

interação parcial, superficial, que não permite que os impulsos, os interesses, ou seja, os

conteúdos sejam satisfeitos, sejam submetidos ao processo de sociação. Tal situação também

estaria exposta numa explanação de Simmel (ibidem, p. 179):

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Certamente é de natureza da sociabilidade liberar as interações concretas de qualquer realidade e erigir seu reino aéreo de acordo com as leis da forma destas relações, que passam a mover-se por si mesmas e a não reconhecer qualquer propósito estranho a elas. No entanto, a fonte profunda que alimenta esse reino e sua representação não repousa nestas formas, mas exclusivamente na vitalidade de indivíduos concretos, com todos os seus sentimentos, encantos, convicções e impulsos. [...] Se a sociabilidade corta inteiramente os laços com a realidade da vida, da qual elabora sua própria estrutura (num estilo todavia diferente), deixa de ser um jogo e se transforma num namoro leviano com formas vazias, num esquematismo inanimado que inclusive se orgulha da sua falta de vida.

Ao lembrar que a suspensão da “realidade”, a partir de interações que satisfazem

primeiramente às “leis” que as sustentam, interfere diretamente na retração dos impulsos de

“indivíduos concretos”, percebe-se o quanto a manutenção de uma sociabilidade, ou melhor, de

um vínculo superficial neste grupo pode não amenizar o problema da angústia causada pelo

isolamento social a que estão sujeitos estes atores – que têm seus próprios “sentimentos,

encantos, convicções e impulsos” expostos parcialmente.

Contudo, se observarmos que este processo de interação, mesmo que sustentado por um

vínculo frágil, corresponde para os indivíduos a uma possibilidade de reconhecimento de um

“semelhante” a partir do luto, entende-se como esta sociabilidade, mesmo que efêmera, pode

adquirir relevância na ótica destes enlutados. É onde o “estranho” torna-se “próximo”, mesmo

que momentaneamente, pela condição emocional a que estão submetidos. Nos diz Maffesoli

(1984, p. 39; 44):

Existe uma perpétua tensão entre o social e a evasão do social, entre a relação fundadora e a disjunção destrutiva. É essa ambivalência assumida que explica a permanência da socialidade. [...] Essa comunhão de emoções ou sensações, difundida nos atos mais cotidianos ou cristalizada nos grandes acontecimentos pontuais [...] é, scritu sensu, o que funda a vida social ou que faz lembrar sua fundação.

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Comparação entre os dois casos e perspectivas individuais do estado de luto

Numa breve comparação entre os dois exemplos de sociabilidade aqui analisados, não

teria como afirmar se a primeira, formada no grupo de apoio, ou a segunda, realizada

espontaneamente, atende mais ou menos à amenização da elaboração do luto. Contudo, diria que,

no primeiro caso, o conteúdo, os impulsos, desenvolvem sua relevância no momento da e para

aquela sociação. Como diz o próprio Simmel (ibidem, p. 177):

Isso não implica que o conteúdo de uma conversação seja indiferente. Ao contrário, deve ser interessante, atraente e mesmo importante. Mas não pode se transformar no propósito da conversação, que nunca deve estar atrás de um resultado objetivo; este possui uma vida independente, fora, por assim dizer, da conversação. Portanto, de duas conversações exteriormente semelhantes, só é propriamente sociável aquela na qual o assunto, apesar de todo seu interesse e valor, encontra seu direito, seu lugar e seu propósito apenas no jogo funcional da própria conversação, que estabelece suas próprias normas e tem sua importância peculiar.

Entende-se, portanto, que para os dois casos o conteúdo, o interdito à morte e suas

conseqüências, possui vida própria fora desta sociação, pois, como já foi dito, permanece

presente nas demais esferas da vida social dos enlutados. A diferença estaria na relevância que o

conteúdo consegue estabelecer dentro do primeiro exemplo, que, apesar de respeitar os “limiares

da sociabilidade”, consegue desenvolver o seu propósito mesmo que “apenas no jogo funcional

da própria conversação”. Já no segundo caso, este conteúdo, de acordo com a observação, não

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chega a explorar este propósito, pois é colocado esporadicamente, diante de um vínculo

fragilizado justamente pela ausência de uma continuidade.

Embora a sociabilidade observada entre os enlutados, nos dois casos, nos apresente uma

modificação ainda muito sensível no processo da perda, inclusive com a possibilidade de

agravamento desta situação, de acordo com a condução individual desta interação para cada um

deles, imagino que este possa ser o princípio de uma nova maneira de inserir a morte no

cotidiano, o que, diante do luto na sociedade moderna, seria positivo.

Reforçando este quadro, devemos ainda refletir acerca da alteração espacial do cemitério

feita através das ações mercadológicas realizadas pelo Grupo Vila (cf. Capítulo 2). Sobre este

aspecto, proponho dois pontos significativos a serem pensados: 1) A modificação do ambiente a

partir de recursos que mascaram elementos da morte e lembram a vida (eventos, exposições

artísticas e a própria valorização da natureza, por exemplo) podem contribuir para o interdito à

morte, no sentido de que tal encobrimento não permite aos enlutados “sentirem” verdadeiramente

que aquele é um espaço da morte; 2) No outro extremo, para aqueles que vêem o Morada da Paz

como um local em que a morte pode ser recordada, o interdito também permanece, e pode ser

sentido mais dramaticamente, pois lembra que aquele é o “único” espaço no cotidiano daquelas

pessoas em que a morte e a dor podem ser externadas.

A partir de tais considerações, percebe-se que estas alterações, como também a própria

maneira como a socialização da dor e o enfrentamento do luto acontecem, podem não ser ideais,

e principalmente, que podem tomar o rumo contrário caso não sejam conduzidas e assimiladas

“adequadamente” por estes enlutados. E como quem conduz o processo de elaboração do luto,

apesar de qualquer esforço profissional ou comercial, são eles próprios, é importante ouvi-los a

partir de seus depoimentos para perceber como se dá de fato a apreensão destas alterações, desde

as ações mercadológicas até a apropriação do espaço exercida individualmente:

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Eu acho muito bem planejados [os eventos], são bem organizados. O Dia de Finados, aquelas músicas, aquelas coisas, é muito comovente. E faz com que as pessoas reflitam mais, todas as datas comemorativas aqui são bem feitas, bem organizadas. (...) Venho sempre, eu nunca deixo de vir não. Dia de Natal, de Ano Novo, sempre eu tô aqui, é tanto que às vezes me chamam pra ler e tudo, lá na missa. E eu gosto. É interessante que eu me sinto mais à vontade aqui do que se eu fosse pra uma outra festa em um outro lugar. (Elza)

Eu acho que contribuiu muito as amizades que eu fiz aqui, sabe? O grupo que eu fiz, as amizades, porque a gente já se tornou um ritual: você vir por Morada, se encontrar com aquelas pessoas, conversar. (Marcela)

Eu não fico sem meu cemitério de jeito nenhum, afe Maria! (Pedro)

Volto a pensar, portanto, que embora esta reflexão aponte para um limite tênue entre o

que seria favorável ou prejudicial a estas pessoas, são elas que dizem e demonstram, existir um

processo de amenização – o que seria positivo diante de uma comparação com um possível

estado inalterado aos processos de luto em outros ambientes “tradicionais”, se assim podemos

chamá-los. Isso, por conseguinte, nos coloca diante de um fato relevante, diferencial, que merece

ser observado cuidadosamente.

Ressaltando, mais uma vez, que a condição do estar enlutado, seja em âmbito externo ou

interno ao espaço do Morada da Paz, bem como a apropriação deste cemitério como local de

possibilidade de exposição das angústias por eles vividas, acontece na esfera cognitiva-emocional

destes sujeitos, pode-se, assim, entender porque, diante do campo subjetivo dos enlutados, a

incorporação das relações sociais nele experimentadas assume aspectos diferentes para cada ator

social. Deste modo, se para alguns a socialização da dor naquele ambiente assume uma

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perspectiva de amenização da angústia vivida no luto, para outros pode indicar uma espécie de

dependência das relações ali estabelecidas:

Pra mim era tão difícil vir aqui no início, logo que aconteceu. Mas hoje não é mais porque eu sei que eu venho rezar pra ele, botar flores pra ele, encontrar as pessoas, então isso me faz com que eu venha. [...] E eu acho que a tendência é melhorar. E o que me fez, por exemplo, eu antes eu passei acho que uns três meses andando com a mesma roupa. Eu tinha uma roupa pra ir trabalhar (risos) e uma roupa pra vir pra missa, eu tinha duas roupas. [...] Aí eu comecei a prestar atenção que o sofrimento, apesar de você sofrer, não precisa se entregar. Aí eu fui melhorando. (Marcela) Fico contando os dias que tem as reuniões [do grupo de apoio]. Fico contando os dias que tem, não perco por nada. Não tem compromisso nenhum que faça eu deixar de ir. [...] Mas eu acho que eu nunca vou abandonar o grupo não, eu acho que toda vida eu vou depender dele. Porque eu acho que sem ter o apoio lá de dentro eu acho difícil eu continuar a vida... (Sandra)

A compreensão desta relação de dependência do enlutado com o vínculo mantido com o

grupo de apoio, como forma de sustentação na condução da própria vida, faz lembrar Maffesoli

(1987, p. 169): “Há momentos em que o indivíduo significa menos do que a comunidade na qual

ele se inscreve”. Essa participação da existência do outro na construção de si recai sobre a

importância das relações intersubjetivas como “segurança ontológica”, na constituição do sujeito

social da modernidade. Nos diz Giddens (2002, p. 53, grifos do autor): “É a ‘fé’ na confiabilidade

e na integridade dos outros que está em jogo aqui. [...] As respostas do outro são necessárias na

sustentação de um mundo ‘que é observável’ e ‘que responde’, e no entanto não há como confiar

em termos absolutos”.

Percebe-se o quanto a entrega destas “respostas” vindas do outro necessita do

estabelecimento de uma confiança neste(s) outro(s). Mais além. Entendendo que “não há como

confiar em termos absolutos”, principalmente nesta situação extrema em que o indivíduo se

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assume como dependente do vínculo, vê-se o quão fragilizado e conflituoso é o discernimento do

enlutado sobre si próprio e sobre a situação de angústia social a qual está submetido.

Assim, percebendo o luto como um estado emocional a que estão sujeitos estes atores

sociais, e, mais uma vez, compreendendo a emoção como uma construção que envolve

experiências pessoais e aspectos sócio-culturais espacial e temporalmente determinados, entende-

se que a assimilação deste conflito emocional pode apresentar-se de forma diferente para atores

distintos. Isso porque os contextos que envolvem o âmbito social, intersubjetivo, não se

restringem, para os enlutados, às relações estabelecidas no Morada da Paz. Ao contrário, referem-

se também às suas experiências sociais nos mais diversos contextos de suas vidas cotidianas.

Como nos diz Koury (2004, p. 10):

Uma pessoa, assim, pode pensar as emoções de uma maneira própria, e essa maneira única ter sido construída e constituída cultural e socialmente. O que a torna, deste modo, possuidora de significado apenas no contexto cultural e social em que foi produzida e que foi por ela experienciada.

A partir desta consideração, percebe-se com mais facilidade como se constroem discursos

opostos sobre situações similares. Como podemos perceber, através da exposição contrária de

dois enlutados, a respeito da perspectiva de convivência com a dor da perda e o estado de luto:

É o que eu tô falando, é um universo de definições que a gente vê o mundo da forma que a gente quer ver. Aí a gente vê que todos ali vão reagir, esquecer não vão, mas vão reagir, encontrar novos meios de existência. É claro que é uma verdade dura pra gente, uma ausência muito trágica, uma pessoa que a gente quer próxima, e dá uma guinada na vida que você tem que buscar outras alternativas. Não são alternativas materiais, não são alternativas de refúgio. Você não vai encontrar materialmente nada que lhe dê alternativa. Mas ali eu acredito que todos vão encontrar uma saída, até porque se não encontrar vão

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se perder lá naquele estado. Vão se perder lá naquele estado de... e o ser humano se acostuma a tudo, você sabe que tem pessoas que podem ficar ali, viciadas naquele estado de sentido, podem ficar cultuando a dor. Mas não adianta você cultuar a dor, tem que se arrumar uma alternativa dentro de você, que cure aquilo. A morte é um fato inexorável. (Marcos)

Tudo que é pra dar prazer a mim eu não gosto. [...] Com a dor, eu vou conviver sempre. Vou conviver sempre porque é um conflito que eu vivo, eu quero uma coisa e não posso, eu quero ir pra uma clausura de contemplação. Eu queria ser religiosa pra ir pra um abrigo, que eu sei que eu ia estar fazendo bem ao próximo, que eu posso fazer isso como voluntária. Mas eu tô vendo o mundo. Eu não queria. Eu queria clausura, só pra orar, e eu não posso, então eu vivo em conflito. [...] Eu penso no meu filho da hora que acordo à hora que eu durmo. É a toda hora, não tem espaço. Ele era tudo pra mim. (choro) Tudo, tudo, tudo. (Mariana)

Este sentimento de não “querer ver o mundo”, exposto na segunda fala, demonstra o

sentido de inadequação social do estar enlutado bem como o sentimento de revolta com o social,

que permanece inalterado após a experiência daquele que vive a perda, e, além disso, continua a

interditar o assunto da morte em todas as suas esferas. Esta observação decorre da repetição deste

sentimento no discurso dos visitantes: “Mas até hoje eu tenho raiva. E a partir daí eu... É uma

coisa tão difícil de explicar o que a gente sente. Porque você vê as outras pessoas bem e você tá

mal” (Marcela).

É necessário ressaltar que esta mesma revolta com a continuidade do cotidiano na esfera

social, no momento em que o sujeito perde o sentido de sua própria vida a partir da dor

experimentada pelo luto, constitui-se ainda sobre o sentimento conflituoso de vontade vs.

impossibilidade de retomar à vida como era antes: “Eu quero me lembrar, eu quero viver como eu

vivia antes. Aí vem uns pensamentos de loucura mesmo, de depressão, não chego nem a tomar

um banho, nem trocar de roupa.” (Sandra). Neste ponto, é interessante recordar Maffesoli (1984,

p. 91):

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É essa tensão que se encontra na origem do que podemos chamar de melancolia. [...] A melancolia, a tristeza etc. não se deixam interpretar unicamente em termos psicológicos, pois se trata de um dado antropológico que é a conseqüência da tensão existente entre a consciência do limite e o irreprimível querer viver, constitutivo do social.

Assim, o cotidiano vivido pelos enlutados, que continua lhes reprimindo a partir do

interdito ao assunto da morte, do luto, transforma as atividades corriqueiras destes sujeitos, nas

suas próprias palavras, em acontecimentos “sem sentido”, contexto em que a amenização da dor e

o estabelecimento de uma tranqüilidade tornam-se difíceis. “A fragilidade das coisas, o sabor

amargo do nada, o drama da sobrevivência, eis todas as coisas que tecem a melancolia já

mencionada e que, ao mesmo tempo, impedem o nivelamento imposto pela ideologia da

felicidade” (MAFFESOLI, idem, p. 94)

Imagino, neste sentido, que enquanto o assunto da morte e do luto não for

verdadeiramente introduzido para discussão numa esfera social mais ampla, o problema do

interdito e da individualização da dor permanecerá latente, inclusive para estas pessoas que, de

alguma maneira, acreditam estar mais conformadas. Acredito que isto é tarefa difícil pois remete

a uma reflexão mais profunda, rejeitada pela sociedade atual, conforme alerta José de Souza

Martins (1983, p. 9):

A concepção da morte revela a concepção da vida. Uma sociedade para qual a morte já não tem sentido, é também uma sociedade, como dizia Weber, que perdeu o sentido da vida. Estamos vivendo esse momento, de perda, de falta de

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sentido. Já não sabemos mais o que é a morte, porque já não sabemos mais o que é a vida.

O que proponho a partir deste estudo, portanto, ao pensar o luto e o interdito à morte, é

tentar refletir sobre uma possível maneira de introdução destes assuntos no cotidiano destes

enlutados – sujeitos que, supostamente, sofrem mais diretamente com esta noção de não-reflexão

da vida. Sei que a noção de finitude, da morte, nos remete à certeza de transitoriedade da vida

(Freud, 1996b, p. 317). Contudo, pensar sobre este (nosso) estado de transitoriedade, nos reporta

a uma retomada de reflexão sobre o sentido da vida a que se refere Martins, o que, para mim,

parece ser um bom início.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No desenvolvimento deste trabalho tornou-se perceptível o quão conflitante é a relação

estabelecida entre o indivíduo em estado de luto e a sociedade. A angústia provocada reside no

afastamento da reflexão sobre a morte e da sensibilidade ao estado de luto, numa esfera mais

ampla do discurso social. Mais ainda. Na atualidade, o distanciamento entre os indivíduos, a não-

interferência no privado, a economia dos gestos e dos sentimentos que compõem as relações

sociais num âmbito mais abrangente só reforçam o isolamento e a interiorização da dor daqueles

que sofrem a perda (KOURY, 2003, p. 206).

As emoções provocadas são de angústia, de inquietação, de sofrimento. A dor da perda

como um sentimento individual põe os enlutados num estágio à margem, talvez até em uma

dimensão mais distanciada do coletivo do que a pensada por Van Gennep (cf. pg 26), na qual

estes sujeitos estariam entre o “mundo dos vivos” e o “mundo dos mortos” – se considerarmos

que existe uma dificuldade, para eles, de compreensão do que seria este mundo dos mortos e,

principalmente, que existe um sentimento ambíguo de inadaptação na reintegração ao social (que

fortalece a não-exposição da dor) e uma revolta pela falta de acolhimento de seu sofrimento.

Diante deste quadro, a sociabilidade analisada nesta dissertação aparece como

oportunidade de refúgio descoberta pelos enlutados – sendo o ambiente do Morada da Paz e as

relações lá instituídas a maneira encontrada por estes atores para falarem sobre sua dor e de

amenizarem seu isolamento imposto pelo luto. A importância dada à esfera espacial do cemitério,

e primordialmente, ao vínculo que mantém a relação entre “semelhantes” na dor, aparece para

estes sujeitos de forma diferenciada.

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Como foi visto, a sociabilidade desenvolvida no Morada da Paz, em alguns aspectos, pode

ser considerada como fator relevante por possibilitar a discussão sobre as conseqüências causadas

pelo estado de luto. Por outro lado, pode indicar um reforço do isolamento e do sofrimento, por

configurar o único espaço onde estes sentimentos podem ser expostos – visto que no âmbito

social, para cada um destes atores, o luto continua a ser encarado como circunstância a ser sentida

privativamente.

Não é demais lembrar que esta perspectiva considera o ponto de vista da sociologia da

emoção – para a qual a emoção é reatualizada pela experiência individual, mas também, como

representação comum, é sempre compreendida na esfera social que cerca o sujeito temporal e

localmente, o que insere a emoção na relação indivíduo vs. sociedade, conforme reflete Koury

(2004, p. 28):

Indivíduo e coletividade, deste modo, enfrentariam lugares comuns de expressão de emoções, no sentido de uma reintegração ou de uma desintegração potencial; isto é, da valoração do sofrimento ou do prazer como bem e como mau coletivamente estruturados em seu aspecto de dom (MAUSS, 1974b48), de troca simbólica.

Desta forma, esta possível reintegração ou, em oposição, a desintegração destes sujeitos

com o coletivo, deve compreender aspectos intersubjetivos nos quais a emoção se constrói a

partir de experiências singulares e da interferência do contexto social e culturalmente

determinados (idem, p. 89). Quero chamar a atenção justamente para a especificidade deste

contexto social, cultural, bem como espacial e temporalmente dados, em que se encontram estes

enlutados e onde se constituem os sentimentos por eles experimentados.

48 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva, s/p. IN: KOURY, Mauro. Introdução à Sociologia da Emoção. João Pessoa: Manufatura/GREM, 2004.

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Assim, torna-se mais compreensível a consideração de que a elaboração do luto, a partir

da reintegração do sujeito ao social, acontece de forma temporal gradativa, mesmo que lenta – na

medida em que vão se alterando os contextos sociais e culturais vividos pelos enlutados. Desta

maneira, a realidade da perda vai sendo, aos poucos, absorvida pelos enlutados, até o ponto em

que o sofrimento do luto é superado com a libertação da “libido pelo objeto perdido pelo ego”,

como afirma Freud (1996c, p. 260):

Cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade segundo o qual o objeto não mais existe; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se partilhará desse destino, é persuadido, pela soma de satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper sua ligação com o objeto abolido. Talvez possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual, que, na ocasião em que tiver sido concluído, o dispêndio de energia necessária a ele também tenha se dissipado.

Nesta perspectiva, entende-se como a construção das emoções vividas pelos enlutados,

expressas na sociabilidade analisada, pode se transformar com o passar do tempo e com alteração

dos contextos vividos por estes sujeitos – o que justifica a perspectiva de alguns de superação da

dor, do sofrimento, após a constatação da irreversibilidade da morte:

[...] e mesmo eu sou um pouco realista com os fatos. Por que você sofrer tanto se aquilo não vai reverter a situação? Não vai reverter. Eu sei que a dor é grande, o sofrimento é grande, mas acontece que você vai curtir aquilo pro resto da vida? Porque você tá vivendo. Não é que você queira voltar a vida que tinha antes, não volta. Não tem como. Mas pelo menos até agora eu não senti necessidade nenhuma de ficar assim... [...] Agora procuro me distrair. (Marecilda).

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Por que a gente se ficar só chorando, o que é que vai resolver na vida? Nada, né? (Suzana).

Sobre esta ótica, torna-se primordial perceber que a experiência estudada obedece a uma

conjuntura circunstancial que se constitui a partir dos aspectos temporal, social e culturalmente

oferecidos para estes enlutados, e que o quadro analisado, assim como tudo o que é socialmente

observado, não é estático, ao contrário, fundamenta-se na sua constante reorganização. Como

bem reflete Maffesoli (1984, p. 95, grifos meus):

[...] o instante vivido está acabado em sua própria atualização e é isso, em poucas palavras, que faz com que essa metáfora, a que chamamos social – condensação de instantes efêmeros -, não possa ser digerida, não possa ser planificada. E o interesse e a beleza do ritual consistem em nos fazer ver que, ao modo de uma bolha de sabão avermelhada ao sol, ou ainda de um sonho fragmentado e rico em saliências, o social brilha ou se evapora, no momento exato em que acreditamos tê-lo apreendido ou ter regulado seus desenvolvimentos.

Assim, considerando o luto um estado a ser temporalmente vivido e a emoção uma

construção que se formula também a partir de experiências sociais, e por isso também temporal,

espacial e culturalmente determinadas, entende-se como os sentimentos expressos pelos

enlutados e a sociabilidade observada tendem a estar em constante transformação. Até o

momento em que podem demonstrar-se modificadas – sendo o espaço do cemitério e os vínculos

lá estabelecidos re-significados, ou não, para cada um destes sujeitos – dependendo de como

estas circunstâncias e contextos vão se apresentar, ou se alterar, para eles, individualmente.

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O que fica demonstrado como fator distintivo destes enlutados, a partir da perda e,

conseqüentemente, de todas as experiências sociais e emocionais por eles vividas, é a re-

elaboração de suas significações sobre a vida. A perda, na maioria dos casos, lhes apresenta uma

nova perspectiva de valoração do tempo, das companhias e das experiências vividas – o que

corresponderia à manutenção da “segurança ontológica” proposta por Giddens (2002) através da

atribuição de respostas a questões existenciais, neste caso, a partir do enfrentamento do luto.

Como se pode ver neste depoimento:

Mas eu procuro assim não ser mais tão ansiosa como eu era antes, deixar as coisas acontecerem com a maior naturalidade. Deixar a vida... É igual àquela música “Deixa a vida me levar...”. Mas assim, eu digo muito às pessoas não perderam, aos meus amigos: “Aproveitem, seu pai, sua mãe, seus familiares. Abrace, beije, faça tudo o que você puder. Não brigue”. Pra que confusão, pra que briga, né? Se essa vida da gente é tão passageira. A gente nunca sabe o dia de amanhã, nunca sabe o que pode acontecer com a gente daqui a um minuto, há cinco minutos a gente não sabe se a gente vai estar aqui. Eu digo muito isso. Isso é uma coisa que é como se fosse, eu acho que seria um lema, não sei, de vida, né? Tem que aproveitar tudo o que você pode aproveitar, cada minuto, cada segundo que você puder, você tem que aproveitar. (Juliana)

Desta forma, pode-se perceber como se estabelece a relação vida vs. morte de forma

diferenciada a partir deste enfrentamento experimentado pela perda. O re-estabelecimento da

morte como maneira de entender e de valorizar o tempo a ser vivido, nos exemplos observados,

remontam a percepção da própria vida. Como nos diz Morin (1997, p 11): “o problema de

conviver com a morte vai se inscrever cada vez mais profundamente em nosso viver. Isto

desemboca num como-viver, cuja dimensão é a um só tempo pessoal e social.”

Vê-se, desta maneira, uma perspectiva mais abrangente para a observação da premissa,

tão repetida pelos enlutados, de que “só entende a dor quem passa por ela”. Poderíamos estender

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a reflexão (mantendo a noção de que as experiências emocionais e sociais do enlutado são de fato

ímpares – pelo menos da maneira como são observadas atualmente), compreendendo que não

somente os sofrimentos da perda são vivências únicas destes sujeitos, mas que, possivelmente, o

enfrentamento da morte de maneira mais aproximada, através do luto, re-significam, também sob

um aspecto diferencial, a sua forma de perceber a própria vida. Como afirma Dastur (2002, p. 8,

grifos meus):

Deixar ao nada que é a morte o governo da vida não implica, todavia, nem heroísmo niilista nem lamentação nostálgica, mas, na realidade, a conjugação, na tragicomédia de uma vida que não recua diante da morte, mas, ao contrário, aceita incluir em sua conta o luto a e alegria, o riso e as lágrimas.

E então volta-se a perceber, como foi dito no início deste trabalho, a esta altura visto

através do olhar do enlutado, que viu e sentiu a morte de maneira mais aproximada, o quanto a

consciência da finitude e o enfrentamento desta certeza, para o homem, recai sobre o

entendimento de si, da vida e do mundo. A morte é condição de nossa existência, e absorvê-la

desta forma pode fazer compreender o caráter transitório, mas não por isso menos valoroso, da

vida.

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Roteiro para entrevista com enlutados visitantes e com participantes do grupo de apoio psicológico. Nome:_____________________________________________ Idade: __________ Ocupação:___________________________ Religião:__________________________ Parentesco com o ente falecido: ________________ Tempo da perda:_________ Motivo do falecimento:____________________________________

AMBIENTE

1) Por que escolheu o Morada da Paz e não um outro cemitério? 2) Que sensações você sente no ambiente do Morada da Paz? Você acha que existe alguma diferença no

ambiente deste para outros cemitérios? Quais? 3) Com que freqüência você visita o cemitério? O ambiente influencia na freqüência de suas visitas?

4) O que você acha dos eventos (missas/ shows/ exposições/ reuniões de terapia) e da estrutura oferecida

pelo cemitério? Você freqüenta estes eventos e/ou utiliza esta estrutura?

5) Como você vê a morte?

6) Após a sua perda e a conseqüente freqüência ao Morada da Paz, alguma mudança ocorreu na sua percepção sobre o ambiente de um cemitério e sobre a morte? Quais mudanças seriam mais significativas?

7) O fato de os jazigos serem padronizados em um jardim, e não expostos como os túmulos dos cemitérios

tradicionais, altera a sua relação com o ambiente? Você faz alterações no jazigo? Quais?

SOCIABILIDADE

1) Conte um pouco da experiência com o grupo de apoio psicológico. Como lhe ajuda, o que você considera ter aprendido com esta experiência... *

2) Sua relação com a perda mudou após o seu ingresso no grupo de apoio? * 3) Após sua freqüência no Morada da Paz, você fez amizade com outros visitantes? 4) Se sim, qual a importância dessas relações e dessas amizades?

5) Quando os encontra, vocês sempre conversam? A perda é um assunto freqüente nessas conversas?

6) Para você, falar sobre a perda com outros enlutados, de alguma maneira, ameniza a dor?

7) Existe alguma relação com os outros visitantes fora do ambiente do Morada da Paz? Se sim, onde e com

que freqüência acontece esses encontros? Conversam sobre a perda também nesses encontros?

8) Você também conversa com as pessoas do cotidiano sobre a sua perda? Se sim, quem são essas pessoas (amigos/ parentes/ colegas de trabalho/ qualquer pessoa)?

9) Acha que existe dificuldade em conversar sobre a perda com pessoas que não passaram pela mesma

situação? Se sim, quais são as dificuldades que encontra? * Questões aplicadas somente para participantes do grupo de apoio psicológico.

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Roteiro para entrevista com a psicóloga Millena Câmara. Nome:_____________________________________________________________ Idade:_________ Formação:__________________________________________ TRABALHO Como aconteceu o seu primeiro contato com o trabalho voltado para o luto? E como foi dado o início do trabalho com o Grupo Vila? No que consiste a sua proposta de trabalhar a perda entre enlutados? Qual a importância do desenvolvimento do trabalho em grupo? Existe diferença com o trabalho realizado individualmente? Como você percebe a sociabilidade entre as pessoas do grupo de apoio psicológico? E entre os enlutados de uma maneira geral? Como você vê a percepção das pessoas sobre o seu trabalho dentro do ambiente do cemitério? Como você percebe o ambiente do cemitério para o trabalho? Quais os seus planos futuros com relação a este trabalho?

SOCIABILIDADE/ MORADA

Como você se relaciona com as pessoas dentro do cemitério? O que você acha da sociabilidade dentro do espaço do Morada da Paz? Esta sociabilidade contribui para o processo de luto? O que você acha que contribui para que as pessoas se sintam à vontade no Morada da Paz? Quais diferenças você apontaria entre este e outros cemitérios da cidade? Como você acha que as pessoas vêem o Morada da Paz e os serviços oferecidos pelo Grupo Vila? Você acredita numa mudança na percepção dos visitantes do Morada da Paz com relação à morte a ao ambiente do cemitério? Por quê?

PERFIL/ ENLUTADOS E FUNCIONÁRIOS

Seria possível elaborar um perfil dos enlutados do Morada da Paz? Existe alguma diferença com relação aos visitantes de outros cemitérios? E com relação aos funcionários do cemitério, como você percebe a relação deles com os visitantes e com o trabalho diário com a morte?

MORTE

Como você encara a (sua) morte? Como você observa os ritos que envolvem a morte (velório/ missa/ sepultamento)? Qual a importância da manutenção destes ritos para o processo de luto?

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Mapa do Cemitério Morada da Paz49

49 Disponível em http://www.grupovila.com.br/mapa_morada_vis.html. Acessado em 21 de janeiro de 2005.