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142 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEAN JAURÈS E JULES GUESDE 2 Tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro. DEBATE 2 DISCURSO DE JEAN-JAURÈS Cidadãos, O maior prazer que vocês nos po- deriam dar, não é aplaudir-nos, é escutar- nos. É uma grande honra para o Partido Socialista instituir debates como o desta noite, e creio poder dizer que é o único partido que tem suficiente fé no poder de seus princípios para instituir assim entre seus militantes um debate político. Não temos nada a esconder, somos o partido da disciplina na ação, sempre prontos a nos inclinar quanto à conduta a observar perante a decisão regular do partido organizado, mas somos ao mes- mo tempo o partido da liberdade, sem- pre alerta quanto aos melhores meios de emancipar o proletariado. Vim explicar-me aqui sem nenhu- ma violência, mas sem nenhuma reti- cência. A origem da dissensão De onde nasceu, quando e como, a dissensão entre mim e Guesde? E quando digo “entre mim e Guesde”, é evidente que não se trata de uma mise- rável querela pessoal. O debate, a dis- sensão entre nós é muito mais nobre e ao mesmo tempo mais grave, já que se trata não de velhas e odiosas rivalidades de que falaram nossos inimigos comuns, mas de uma dissensão de tática e de método que temos o dever de submeter ao partido e que o partido julgará sobe- ranamente! (Bravos.) Pois bem! Quan- do, portanto, nasceu esta dissensão? Disse-se, repetiu-se que nasceu com a entrada de um socialista num ministé- rio burguês, e, com efeito, este aconte- cimento agravou, acentuou as dissen- sões de método que já existiam, e expli- car-me-ei em breve sobre isso, mas não a criou. A dissensão já existia, já se ma- nifestara a propósito do caso Dreyfus. O socialismo francês em 1900: o grande debate entre Jean Jaurès e Jules Guesde

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142 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

2 Tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro.

DEBATE 2

DISCURSO DE JEAN-JAURÈS

Cidadãos,O maior prazer que vocês nos po-

deriam dar, não é aplaudir-nos, é escutar-nos. É uma grande honra para o PartidoSocialista instituir debates como o destanoite, e creio poder dizer que é o únicopartido que tem suficiente fé no poder deseus princípios para instituir assim entreseus militantes um debate político.

Não temos nada a esconder, somoso partido da disciplina na ação, sempreprontos a nos inclinar quanto à condutaa observar perante a decisão regular dopartido organizado, mas somos ao mes-mo tempo o partido da liberdade, sem-pre alerta quanto aos melhores meios deemancipar o proletariado.

Vim explicar-me aqui sem nenhu-ma violência, mas sem nenhuma reti-cência.

A origem da dissensãoDe onde nasceu, quando e como,

a dissensão entre mim e Guesde? Equando digo “entre mim e Guesde”, éevidente que não se trata de uma mise-rável querela pessoal. O debate, a dis-sensão entre nós é muito mais nobre eao mesmo tempo mais grave, já que setrata não de velhas e odiosas rivalidadesde que falaram nossos inimigos comuns,mas de uma dissensão de tática e demétodo que temos o dever de submeterao partido e que o partido julgará sobe-ranamente! (Bravos.) Pois bem! Quan-do, portanto, nasceu esta dissensão?Disse-se, repetiu-se que nasceu com aentrada de um socialista num ministé-rio burguês, e, com efeito, este aconte-cimento agravou, acentuou as dissen-sões de método que já existiam, e expli-car-me-ei em breve sobre isso, mas nãoa criou. A dissensão já existia, já se ma-nifestara a propósito do caso Dreyfus.

O socialismo francêsem 1900: o grande

debate entre JeanJaurès e Jules Guesde

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Vocês se lembram, com efeito, queenquanto vários companheiros de luta eeu estávamos engajados nesta batalha,decididos a levá-la até o fim, apareceu, apartir do mês de julho de 1898, um ma-nifesto do Conselho Nacional de nossoscamaradas do Partido Operário Francês3,e esse manifesto alertava os trabalhadores,alertava os proletários para não seengajarem demais nessa batalha e para re-servarem suas forças para a luta de classes.

Mais tarde, quando saiu o mani-festo retumbante, no dia seguinte à en-trada de Millerand no ministério4, omanifesto declarava que era dever dossocialistas, não só enfrentar esse acon-tecimento particular, mas corrigir,emendar desvios que, segundo o mani-festo, remontavam a dois anos pelomenos. Era ainda uma nova condena-ção da tática que vários de nós seguíra-mos a respeito do caso Dreyfus.

E mais recentemente, no discursoque pronunciava pela morte deLiebknecht5, na sala Vantier, Guesde,voltando a essa questão temível, decla-rava uma vez mais que erráramos ao

entrar numa batalha mal engajada – queservíramos assim aos interesses do naci-onalismo, que cabia à burguesia repa-rar os erros da sociedade burguesa e queenfim, por essa luta, desertáramos docampo da luta de classes. Tenho, por-tanto, o direito de dizer, sem que nin-guém me possa desmentir, que não foia respeito da questão Millerand que adissensão dos métodos se produziu pelaprimeira vez entre nós, mas que foi arespeito do caso Dreyfus e que foi a par-tir desse momento... (Gritos de: VivaGuesde! Silêncio, silêncio.)

Delory. Vejamos, cidadãos, pedi-ram-lhes para não interromper. Escutem,vocês terão então liberdade para julgarqual é o método que querem adotar.

Jaurès. Creio que minhas palavrasnão podem ferir ninguém. Resumi pre-cisamente as objeções dirigidas contranós pelos contraditores e disse imedia-tamente: já que, a respeito desse confli-to que comoveu toda a humanidadepensante e no qual achamos dever to-mar partido, não só para defender a

3 Extratos da declaração do Conselho Nacional do POF de 24 de julho de 1898: “Os proletá-rios não têm nada a fazer nesta batalha que não é a sua... Só têm que, de fora, contar os golpes...O POF não poderia sem logro e sem traição se deixar um único instante desviar de seu cami-nho, suspender sua própria guerra..., perder-se em correções de erros individuais.”4 Manifesto assinado pelo POF, PSR e AC de 14 de julho de 1898 denunciando a presençade Millerand “de mãos dadas com o fuzilador de Maio (Galliffet)”, pois “o Partido Socia-lista, partido de classe, não poderia ser ou tornar-se, sob pena de suicídio, um partidoministerial. Ele não tem que dividir o poder com a burguesia, nas mãos da qual o Estadopode ser apenas um instrumento de conservação e de opressão social.”5 Wilhelm Liebknecht (1826-1900), muito próximo de Marx cujo exílio compartilhoupor dez anos em Londres, foi um dos principais fundadores do Partido Social-Democrataalemão em 1869. Foi depois um defensor intransigente do marxismo, correspondenteprivilegiado de Jules Guesde.

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pessoa humana ultrajada, mas no pró-prio interesse do proletariado; já que, arespeito desse conflito se disse que aban-donáramos o campo do socialismo, ocampo da luta de classes, digo que aprimeira pergunta que devemos fazer éesta: o que é então a luta de classes? O quesignifica esse princípio tão freqüentementeinvocado e tão raramente definido?

A luta de classesA meu ver, cidadãos, a idéia da

luta de classes, o princípio da luta declasses é formado de três elementos, detrês idéias. Primeiramente, e na própriaraiz, há uma constatação de fato, é queo sistema capitalista, o sistema da pro-priedade privada dos meios de produ-ção, divide os homens em duas catego-rias, divide os interesses em dois amplosgrupos, necessária e violentamente opos-tos. Há, de um lado, aqueles que detêmos meios de produção e que podem as-sim fazer a lei para os outros, mas há dooutro lado aqueles que, não tendo, nãopossuindo senão sua força de trabalho enão podendo utilizá-la a não ser pelosmeios de produção detidos precisamen-te pela classe capitalista, estão à mercêdessa classe capitalista.

Entre as duas classes, entre os doisgrupos de interesses, é uma luta inces-sante do assalariado, que quer elevar seusalário, e do capitalista, que quer redu-zi-lo; do assalariado que quer afirmarsua liberdade e do capitalista que quermantê-lo na dependência.

Eis, portanto, o primeiro elemen-to da luta de classes. A condição de fato

que o funda, que o determina, é o siste-ma da propriedade capitalista, da pro-priedade privada. E notem bem! Comoaqui se trata dos meios de trabalho e,por conseguinte, dos meios de vida, tra-ta-se do que é essencial para os homens,trata-se da vida privada, da vida de to-dos os dias. E, por conseguinte, um con-flito que tem, por princípio, a divisãode uma sociedade em possuidores e nãopossuidores não é superficial; ele vai atéas próprias raízes da vida. (Aplausos ca-lorosos.)

Mas, cidadãos, para que haja lutade classes não basta que haja este anta-gonismo entre os interesses. Se os pro-letários, se os trabalhadores não conce-bessem a possibilidade de uma socieda-de diferente, se constatando a depen-dência em que são mantidos, a precari-edade de que sofrem, não entrevissem apossibilidade de uma sociedade nova emais justa; se acreditassem, se pudessemacreditar na eterna necessidade do sis-tema capitalista, se pouco a pouco, estanecessidade se impusesse a eles, renun-ciariam a emendar um sistema de in-justiças. Esta tarefa não mais lhes apa-receria como possível. (Interrupções.)

Delory. Sem interrupções, cidadãse cidadãos. Se houver mais interrupções,vou ser obrigado a pedir aos encarregadosda segurança que façam sair os que inter-rompem. (Aplausos e novas interrupções.)

Cidadãs e cidadãos, vocês nãoacham que seria mais digno para as duaspessoas que têm que falar não fazer in-terrupções? Se vocês interrompem, pa-

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recem supor que Guesde não é capaz deresponder a Jaurès; se interromperemGuesde, parecerão supor a mesma coisapara Jaurès.

Creio que os dois camaradas quetemos à nossa frente têm suficiente talen-to para poder nos explicar as duas teoriasem confronto, sem que haja interrupçõesque, assim como disse no início, só pode-rão atrapalhar a discussão. (Aplausos.)

Jaurès. Portanto, para que hajaverdadeiramente luta de classes, paraque todo o proletariado organizado en-tre em luta contra o capitalismo, nãobasta que haja antagonismo de interes-ses entre os capitalistas e os assalariados,é preciso que os assalariados esperem,em virtude das próprias leis da evolu-ção histórica, o advento de uma novaordem na qual a propriedade, deixandode ser monopolista, deixando de ser par-ticular e privada, se tornará social, a fimde que todos os produtores associadosparticipem ao mesmo tempo da dire-ção do trabalho e do fruto do trabalho.

É preciso então que os interessesem confronto tomem consciência de simesmos, como sendo já duas sociedadesopostas, em luta, uma, a sociedade dehoje, inscrita no título da propriedadeburguesa, a outra, a sociedade de ama-nhã, inscrita no cérebro dos proletários.

É esta luta das duas sociedades nasociedade de hoje que é um elementonecessário à luta de classes.

E enfim, é preciso uma terceiracondição para que haja luta de classes.Se o proletariado pudesse esperar sualibertação, se pudesse esperar a trans-formação da ordem capitalista em or-dem coletivista ou comunista de umaautoridade neutra, arbitral, superior aosinteresses em conflito, não se encarre-garia ele mesmo da defesa da causa.

É o que pretendem, como sabem,os socialistas cristãos dos quais algunsreconhecem a dualidade, o antagonis-mo dos interesses, mas que dizem aopovo: “Não se revoltem, não se organi-zem, há uma autoridade benfazeja e ce-leste, a autoridade da Igreja, que farádescer entre nós, sem que vocês se re-voltem, a justiça fraternal.” Bem, se ostrabalhadores acreditassem nisso, sub-meter-se-iam à direção dessa autorida-de do alto e não haveria luta de classes.Não haveria luta de classes ainda se ostrabalhadores pudessem esperar sua li-bertação da própria classe capitalista, daprópria classe privilegiada cedendo auma inspiração de justiça.

Vocês sabem, cidadãs e cidadãos,que, enquanto durou o período do queMarx e Engels chamaram de “socialis-mo utópico”, os socialistas acreditavamque a libertação do proletariado far-se-ia pelo alto.

Robert Owen6, o grande comu-nista inglês, apelava, para realizar a jus-

6 Robert Owen (1771-1853), jovem patrão filantropo, tentou em 1815 convencer os che-fes de Estado europeus a estabelecer uma legislação social. Foi em seguida um dos primei-ros fundadores de colônias socialistas nos Estados Unidos, e depois esteve na origem dosindicalismo e das cooperativas britânicas.

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tiça social, para as potências da SantaAliança reunidas no Congresso de Vie-na. Fourier, nosso grande Fourier7, es-perava todos os dias, na hora que mar-cara, a vinda do doador generoso quelhe traria o capital necessário para fun-dar a primeira comunidade, e acredita-va que o simples exemplo dessa comu-nidade radiosa se propagaria gradual-mente estendendo por assim dizer oscírculos de organização e de harmonia,e bastaria para emancipar e regozijar oshomens.

E, mais tarde, de outro ponto devista, Louis Blanc8 imaginava que era aburguesia, com a condição de que vol-tasse a certas inspirações de 1793, quepoderia libertar os proletários. No fimde sua Histoire de dix ans, convidava aclasse burguesa a se constituir tutora doproletariado.

Enquanto o proletariado pôde es-perar assim tutores, tutores celestes oututores burgueses, enquanto pôde espe-rar sua libertação de outras potênciasque não a sua, de outras forças que nãoa sua, não houve luta de classes.

A luta de classes começou no diaem que, como na experiência das Jor-nadas de Junho9, o proletariado apren-

deu que era somente de sua própria for-ça, de sua organização, que lhe advinhaa esperança de salvação.

Foi assim que o princípio da lutade classes, que supõe primeiramente adivisão da sociedade em duas grandescategorias contrárias, os possuidores eos não-possuidores, que supõe em se-guida que os proletários tomaram cons-ciência da sociedade de amanhã e daexperiência coletivista, foi assim que aluta de classes se completou pela con-vicção adquirida pelo proletariado deque ele próprio devia se emancipar e sóele podia se emancipar. (Aplausos pro-longados. Bravos.)

A questão de táticaEis, cidadãos, como me aparece,

como eu defino a luta de classes e ima-gino que neste ponto não poderá havercontradição grave entre nós. Mas digoque, quando vocês a analisaram assim,quando a definiram assim, é impossívelusá-la para determinar de antemão, emdetalhe, a tática de cada dia, o métodode cada dia.

Sim, o princípio da luta de classesobriga vocês a fazer sentir aos proletáriossua dependência na sociedade de hoje.

7 Charles Fourier (1772-1837), filósofo, autor da célebre teoria das paixões, defendeu aconstituição dos falanstérios, espécie de comunidades tanto de cooperativas de produçãoquanto de consumo, mas que precisavam de capital privado ou público inicial.8 Louis Blanc (1811-1882), político de tendência socialista, autor em 1841 de Histoire de dixans, crítica da monarquia de Louis-Philippe. Ligado ao direito e à organização do trabalho,membro do governo provisório em fevereiro de 1848, defendia a criação de oficinas sociaisde capital público que afirmariam sua superioridade em relação às oficinas privadas.9 Alusão às Jornadas de Junho de 1848, insurreição dos operários parisienses que foi esmagadade modo sangrento.

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Sim, ele obriga vocês a explicar-lhes aordem nova da sociedade coletivista. Sim,ele obriga vocês a se organizarem em sin-dicatos operários, em grupos políticos,em cooperativas operárias, a multiplicaros organismos de classe.

Mas não lhes é possível, unica-mente pela idéia da luta de classes, de-cidir se o proletariado deve tomar partena luta eleitoral e em que condições eledeve tomar parte nela; se ele pode ou seele deve, e em que condições pode oudeve, interessar-se pelas lutas das dife-rentes facções burguesas. Não lhes épossível dizer, em virtude unicamente doprincípio da luta de classes, se lhes é pos-sível realizar ou se vocês são obrigados arepudiar todas as alianças eleitorais.

Este princípio tão geral indica-lhesuma direção geral, mas é tão possíveldeduzir daí a tática de cada dia, a solu-ção dos problemas de cada dia, quantobastaria conhecer a direção geral dosventos para determinar de antemão omovimento de cada árvore, o estreme-cimento de cada folha na floresta.

Do mesmo modo, por mais quevocês conheçam todo o plano de cam-panha de um general, será impossível,pelo conhecimento desse plano de cam-panha, determinar de antemão todos osmovimentos particulares de ofensiva oude defensiva, de escalada ou de retiradaque deverá realizar cada uma das uni-dades táticas que compõem o exército.

Por conseguinte, em nome da lutade classes, podemos nos reconhecer en-tre nós para as direções gerais da bata-lha a travar; mas, quando se tratar de

determinar em que medida devemos nosengajar, no caso Dreyfus, ou em quemedida os socialistas podem penetrarnos poderes públicos, será impossível re-solver essa questão se vocês se limita-rem a invocar a fórmula geral da luta declasses.

Em cada caso particular, será pre-ciso que vocês examinem o interesseparticular do proletariado. É, portanto,uma questão de tática e nós não dize-mos outra coisa. (Aplausos repetidos.)

Do mesmo modo, não é possívelque vocês pretendam introduzir o prin-cípio da luta de classes dizendo, comofazem freqüentemente nossos contradi-tores, que o Partido Socialista deve sersempre um partido de oposição. Eu digoque semelhante fórmula é singularmen-te equívoca e singularmente perigosa.

Sim, o Partido Socialista é umpartido de oposição contínua, profun-da, a todo o sistema capitalista, ouseja, que todos os nossos atos, todosos nossos pensamentos, toda a nossapropaganda, todos os nossos votosdevem ser dirigidos para a supressãomais rápida possível da iniqüidadecapitalista. Mas do fato que o PartidoSocialista é por natureza, essencial-mente, um partido de oposição a todoo sistema social, não resulta que nãotenhamos que fazer nenhuma diferen-ça entre os diferentes partidos burgue-ses e entre os diferentes governos bur-gueses que se sucedem.

Ah sim! A sociedade de hoje estádividida entre capitalistas e proletários;mas, ao mesmo tempo, está ameaçada

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pelo retorno ofensivo10 de todas as for-ças do passado, pelo retorno ofensivo dabarbárie feudal, da onipotência da Igre-ja, e o dever dos socialistas é, quando aliberdade republicana está em jogo, quan-do a liberdade de consciência é ameaçada,quando os velhos preconceitos que res-suscitam os ódios raciais e as atrozes que-relas religiosas dos séculos passados pa-recem renascer, o dever do proletariadosocialista é marchar com aquela das fac-ções burguesas que não quer voltar atrás.(Aplausos barulhentos e prolongados.)

Estou espantado, verdadeiramen-te, de ter que relembrar estas verdadeselementares, que deveriam ser opatrimônio e a regra de todos os socialis-tas. Foi o próprio Marx que escreveu es-tas palavras de admirável clareza: “Nós,socialistas revolucionários, estamos como proletariado contra a burguesia e coma burguesia contra os fidalgotes provin-cianos e os padres.” (Aplausos calorosos.)

Um cidadão. Não é verdade!Delory. Cidadãos, é lamentável que

semelhante interrupção tenha acontecidopelas razões que indiquei há pouco.

Jaurès. Cidadãos, reconheci o ca-marada que me dirigiu esta interrupçãodescortês, e limito-me a dizer-lhe o seguin-te: você verificará com seus amigos, veri-ficaremos a exatidão da citação que fiz e,se ela estiver correta, não lhe pedirei senãouma coisa como reparação: vir, numa denossas próximas reuniões, testemunharlealmente nesta tribuna. (Bravos.)

E assim como é impossível para oproletariado socialista, sem faltar a to-dos os seus deveres, a todas as suas tra-dições e a todos os seus interesses, nãofazer uma diferença entre as facçõesburguesas mais violentamente retrógra-das e aquelas que querem ao menos sal-var alguns restos ou algum começo deliberdade, é impossível, particularmen-te para os políticos eleitos socialistas, nãofazer uma diferença entre os diversosgovernos burgueses.

Não preciso insistir sobre isso, e obom senso revolucionário do povo faz,de sua parte, uma diferença entre o mi-nistério Méline e o ministério Bour-geois11; ele faz uma diferença entre oministério de hoje e as combinações

10 A ameaça evocada por Jaurès é tão grave? Suas principais manifestações foram as reaçõesque se seguiram durante alguns meses ao suicídio de Henry em agosto de 1898, quando foiprovada sua culpa. Em fevereiro de 1899, Déroulède tenta arrastar uma parte do exércitocontra o palácio do Élysée, sem sucesso. Culminam no início de junho de 1899 quando opresidente da República Émile Loubet é agredido no campo de corridas de Auteuil. O minis-tério Millerand é criado em reação a essas ameaças graves contra a República. Dezoito mesesmais tarde, no momento dos discursos, a ameaça parece passada. Restam, todavia, o impulsonacionalista, sensível nas eleições municipais do ano (a direita ganha a capital, bastião tradi-cional da esquerda então) e bastiões sólidos anti-republicanos na Igreja e no exército.11 Jules Méline (1838-1935), republicano oportunista, foi presidente do Conselho de abrilde 1896 a maio de 1898. Opôs-se a toda revisão do processo de Dreyfus.Léon Bourgeois (1851-1925), político radical, foi presidente do Conselho de novembrode 1895 a abril de 1896. Defendia o solidarismo, doutrina social de programa radical.

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nacionalistas que o espreitam, e nãoquero outra prova disso senão o votounânime do grupo socialista, que, nooutro dia...12

Um cidadão, ironicamente. ParaChalon?

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Jean Jaurès. Cuidado, você crê em-baraçar-me lançando-me essa palavra.

Delory. Cidadãs e cidadãos, per-mitam-me dirigir-me a um velho cama-rada, fundador do partido, ou seja, emnossas fileiras há mais de vinte anos, paralhe dizer que ele deveria ser o primeiroa ter a paciência de esperar a respostado camarada Guesde.

Vocês sabem as conseqüências dasinterrupções; apelo para o testemunhodos camaradas sinceros do partido; queevitem, ao começar as interrupções, fa-vorecer adversários, continuá-las paraperturbar a reunião. (Aplausos.)

O caso DreyfusJaurès. Acrescento, cidadãos, para

ir até o fim do meu pensamento: háhoras em que é do interesse do proleta-riado impedir uma degradação intelec-tual e moral excessivamente violenta daprópria burguesia, e eis porquê, quan-do, a propósito de um crime militar, selevantou entre as diversas facções a lutaque vocês sabem, e quando uma peque-na minoria burguesa, contra o conjuntode todas as forças de mentira desencadeadas,tentou gritar por justiça e fazer ouvir averdade, era dever do proletariado nãopermanecer neutro, ir para o lado em

que a verdade sofria, em que a huma-nidade gritava.

Guesde disse na sala Vantier: “Queaqueles que admiram a sociedade capi-talista se dediquem a corrigir seus er-ros; que aqueles que admiram o sol ca-pitalista, dizia ele, se apliquem a apagarsuas manchas.”

Pois bem! Que ele me permita di-zer-lhe: no dia em que contra um ho-mem se comete um crime; no dia emque ele se comete pela mão da burgue-sia, mas em que o proletariado, inter-vindo, poderia impedir esse crime, nãoé mais unicamente a burguesia que éresponsável por ele, é o próprio prole-tariado; é ele que, não detendo a mãodo carrasco prestes a golpear, se torna ocúmplice do carrasco; e então não é maisa mancha que obscurece, que marcacom o ferro em brasa o sol capitalistadeclinante, é a mancha que vem difa-mar o sol socialista nascente. Nós recu-samos essa marca vergonhosa na aurorado proletariado. (Aplausos e bravos pro-longados.)

O que há de singular, o que é pre-ciso que todo o Partido Socialista, naEuropa e aqui, saiba bem, é que no iní-cio deste grande drama, eram os socia-listas revolucionários que mais me en-corajavam, que mais me exortavam aentrar na batalha.

É preciso que vocês saibam, cama-radas, como, perante o grupo socialista daúltima legislatura, a questão se colocou.

12 Ver a nota 21.13 Ver a nota 18.

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Quando ela ocorreu pela primeiravez, quando tivemos que nos perguntarque atitude tomaríamos, o grupo socia-lista cindiu-se aproximadamente em dois.

De um lado, havia aqueles quevocês me permitirão chamar, aquelesque se chamavam então os moderadosdo grupo. Eram Millerand, Viviani,Jourde, Lavy14, que diziam:

“Eis uma questão perigosa, e naqual não devemos intervir.”

Do outro lado, havia aqueles que sepodia chamar então a esquerda revoluci-onária do grupo socialista. Havia Guesde,Vaillant15 e eu que dizíamos: “Não, é umabatalha que é preciso travar.”

Ah! Lembro-me da expressão admi-rável de Guesde quando saiu a carta deZola. Nossos camaradas moderados dogrupo socialista diziam: “Mas Zola não ésocialista; Zola é, afinal de contas, umburguês. Vai-se pôr o Partido Socialista areboque de um escritor burguês?”16.

E Guesde, levantando-se como sesufocasse de ouvir essa linguagem, foiabrir a janela da sala onde o grupo deli-berava, dizendo: “A carta de Zola é omaior ato revolucionário do século!”(Aplausos prolongados e repetidos.)

E depois, quando, animado por es-sas palavras, e ao mesmo tempo pela mi-nha própria convicção, quando fui teste-munhar no processo de Zola; quando,perante a reunião dos coronéis, dos gene-rais de cujos crimes se começava então asuspeitar, sem os ter profundamente ex-plorado; quando eu começara a testemu-nhar, a depor e voltei à Câmara, Guesdeme disse estas palavras de que me lembra-rei enquanto viver: “Jaurès, gosto de você,porque, em você, o ato segue sempre opensamento.”

E, como os canibais do estado-maior continuavam a encarniçar-se so-bre o vencido, Guesde me dizia: “Quefaremos um dia, que farão um dia os

14 René Viviani (1863-1925), socialista moderado, foi várias vezes deputado. Após areunificação de 1905, afastou-se do Partido Socialista proclamando-se socialista indepen-dente. Várias vezes ministro, foi presidente do Conselho em 1914.Antoine Jourde (1848-1923) era deputado socialista de Bordeaux. Membro do POF, situ-ava-se, porém, na ala moderada do grupo socialista. Juntou-se à corrente de Jaurès em1900, em seguida afastou-se do Partido Socialista após a reunificação de 1905.Jean-Baptiste Lavy (1850-1921), professor primário e deputado socialista do 18º distritode Paris, era membro da FTSF, o grupo mais moderado do socialismo francês. Seguiudepois a carreira de Millerand, do qual foi chefe de gabinete.15 Édouard Vaillant (1840-1915) era na época o terceiro dos grandes líderes do movimen-to socialista com Guesde e Jaurès. Responsável pelo PSR, ex-membro da Comuna – o quelhe dá enorme popularidade –, é o portador da tradição revolucionária de Blanqui, maspróximo de Guesde sobre a questão do ministerialismo.16 A celebérrima carta de Émile Zola ao presidente da República, “J’accuse...”, saiu em 13de janeiro de 1898. Desemboca num processo civil e na condenação de Zola em 23 defevereiro de 1898. Doravante o caso se torna público.

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socialistas de uma humanidade assimrebaixada e assim aviltada? Viremos tar-de demais, dizia ele, com eloqüenteamargura; os materiais humanos esta-rão podres quando chegar a nossa vezde construir a nossa casa.”

Pois bem, por que depois destaspalavras, por que depois destas declara-ções, o conselho nacional do Partido,alguns meses depois, no mês de julho,tentou fazer sair o proletariado destabatalha?

Talvez, tentei explicar a mim mes-mo muitas vezes, os revolucionáriosachassem que nos demorávamos demaisnesse combate, que despendíamos de-mais a nossa força e a força do povo?

Mas que eles me permitam dizer-lhes: onde estará, nos dias decisivos, aenergia revolucionária dos homens se,quando uma batalha como essa é mo-bilizada contra todas as forças da men-tira, contra todas as forças da opressão,nós não vamos até o fim?

Por mim, quis continuar, quisperseverar até que o bicho venenoso ti-vesse sido obrigado a vomitar seu vene-no. (Bravos, bravos.) Sim, era precisoperseguir todos os falsários, todos osmentirosos, todos os carrascos, todos ostraidores; era preciso persegui-los naponta da verdade, como na ponta dogládio, até que tivessem sido obrigadosperante o mundo inteiro a confessar seuscrimes, a ignomínia de seus crimes.(Longos aplausos e bravos.)

E, notem bem, o manifesto pelo qualnos notificavam que devíamos abandonaressa batalha, saído em julho, antecedeu dealgumas semanas a confissão que, perseve-rando, arrancamos ao coronel Henry17.

Pois bem, deixem que me congra-tule por não ter dado ouvidos ao toquede retirada que faziam soar aos nossosouvidos; por ter posto a marca do pro-letariado socialista, a marca da revolu-ção na descoberta de um dos maiorescrimes que a casta militar já cometeucontra a humanidade. (Aplausos.)

Não era tempo perdido, pois, en-quanto se expunham seus crimes, en-quanto vocês aprendiam a conhecer to-das as suas vergonhas, todas as suasmentiras, todas as suas maquinações, oprestígio do militarismo decaía todos osdias no espírito dos homens e, saibam-no, o militarismo não é perigoso unica-mente porque é o guardião armado docapital, é perigoso também porque se-duz o povo por uma falsa imagem degrandeza, por alguma mentira de dedi-cação e de sacrifício.

Quando se viu que esse ídolo pin-tado tão gloriosamente e tão soberbo;que esse ídolo que exigia para o serviçode seus apetites monstruosos sacrifíciosde gerações; quando se viu que ele esta-va podre, que não continha senão de-sonra, traição, intriga, mentira, então omilitarismo recebeu um golpe mortal,e a revolução social não perdeu nadacom isso. (Aplausos calorosos.)

17 O manifesto do POF é de 24 de julho de 1898 (ver nota 1). O autor de uma peça falsa,coronel Henry, é desmascarado em agosto de 1898; ele confessa e se suicida em 31 deagosto de 1898, o que abre o caminho para a revisão.

152 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

Um cidadão. Viva Galliffet!Jaurès. Digo que assim o proleta-

riado cumpriu duplamente seu deverpara consigo mesmo. E é porque, nessabatalha, o proletariado cumpriu seudever para consigo mesmo, para com acivilização e a humanidade; é porque elelevou tão longe sua ação de classe queem vez de ter, como dizia Louis Blanc,a burguesia por tutora, foi ele que setornou nessa crise o tutor das liberda-des burguesas que a burguesia era inca-paz de defender; é porque o proletaria-do desempenhou um papel decisivonesse grande drama social que a partici-pação direta de um socialista num mi-nistério se tornou possível.

A questão MillerandSeja qual for a maneira de vocês

julgarem a entrada de Millerand noministério Waldeck-Rousseau; seja qualfor a maneira de vocês julgarem a táticaassim inaugurada e os resultados que elaproduziu, vocês todos concordam emdizer que em todo caso a entrada de umsocialista num ministério burguês é umsinal incontestável do crescimento, dapotência do Partido Socialista.

Vocês se lembram que era isso oque o próprio cidadão Lafargue18 pro-clamava há um ano. Contrário, desde o

primeiro momento, à entrada deMillerand no ministério, ele declarava,entretanto, que esse era um sintomadecisivo da força crescente do nossopartido.

Lembro-me de que há algumas se-manas, no encerramento do CongressoInternacional19, quando os delegados dosocialismo internacional foram levar umacoroa ao muro dos Federados, apesar doestúpido policiamento ostensivo do pre-feito Lépine, o socialista alemão Singer,que representa entretanto a extrema es-querda do movimento alemão, que forao único de seus camaradas a votar contraa moção transacional de Kautsky, o ci-dadão Singer dizia: “Não se pode apro-var a entrada de um socialista num mi-nistério burguês; mas não posso entre-tanto não dizer que, enquanto há trintaanos, a burguesia fuzilava aqui os prole-tários, o Partido Socialista cresceu tanto,que numa hora de perigo, para salvar asliberdades elementares, a burguesia éobrigada a chamar um dos nossos.”

Portanto, não haverá sobre esteponto dúvida entre nós. Seja qual for ojulgamento que fizermos sobre o fundomesmo da coisa, seremos unânimes emproclamar perante todos os partidosburgueses que ela atesta a força crescen-te de nosso partido.

18 Paul Lafargue (1842-1911), genro de Karl Marx, médico, foi com Jules Guesde o funda-dor do POF.19 O Congresso Internacional Socialista de Paris (23-27 de setembro de 1900) aprovou por29 votos (contra 9 para a moção Guesde) a moção Kaustsky que, embora estimando quetoda participação ministerial socialista no âmbito de um governo burguês (mesmo demo-crático) comportava graves riscos, admitia-a como um expediente tático possível.

CRÍTICA MARXISTA • 153

Agora, é justo, é sábio, é confor-me aos princípios que um socialista par-ticipe do governo da burguesia?

Cidadãos, é chegada a hora, pare-ce-me, de discutir esta questão com cal-ma. Até aqui, só a discutimos nas tem-pestades e, da minha parte – não se abor-reçam com esta rememoração –, se mereporto ao congresso de dezembro, háum ano, e ao congresso mais recente dofim de setembro, lembro-me de ter ou-vido estes argumentos com toda a certe-za, mas também muitos gritos variadosde “Galliffet! Chalon! Martinica!...”

20

Imagino que paramos de discutirdessa maneira, porque, tomem cuidado,esses processos de discussão, por meio dosquais se pretendeu atingir-nos, poderi-am ferir os seus próprios amigos. Vocêsnos gritaram “Galliffet” para significarque aprovando a entrada do Sr. Millerandno ministério nós éramos assim, por as-sim dizer, responsáveis e solidários detodos os atos passados de Galliffet.

Tome cuidado, camarada, que mefaz um sinal de interrupção silencioso,que lhe agradeço, já que me adverte semperturbar a ordem da assembléia, tomecuidado.

Vocês, aqui em Lille, trabalhadoresde Lille, dois meses depois da entrada deMillerand no ministério, vocês o recebe-ram aqui, festejaram-no aqui, aclamaram-no aqui, e imagino, embora ele fosse des-

de então o colega de Galliffet, que vocêsnão queriam aclamar ao mesmo tempo opróprio Galliffet. Por conseguinte, não nosenviem uma flecha que ricochetearia paravocês. (Muito bem! Muito bem! Bravos.)

E agora, quero dizer apenas algumaspalavras sobre os dolorosos acontecimen-tos da Martinica e de Chalon, mas deixem-me lembrar àqueles de nossos companhei-ros que se deixam levar até nos acusaremque cometem uma estranha confusão.

Quando se apóia um ministério nasociedade burguesa, mesmo um minis-tério em que há um socialista, isso nãoimplica que se tenha a ingenuidade deesperar desse ministério, e de nenhumministério burguês, a justiça integral e adeferência integral para com os interes-ses do proletariado. Sabemos muito bemque a sociedade capitalista é a terra dainiqüidade e que não sairemos da iniqüi-dade a não ser saindo do capitalismo.

Mas sabemos também que há ini-migos furiosos na sociedade burguesa,adversários odientos e violentos, cada qualmais do que o outro; e quando apoiamosum ministério, não é por esse ministério,é contra os outros piores que gostariamde substituí-lo para fazer mal a vocês.

Então, é uma injustiça assassina acu-sar-nos das faltas, dos erros ou dos crimesdaqueles que apoiamos apenas para im-pedir crimes maiores. (Aplausos calorosos.)

20 A greve geral dos operários do açúcar da Martinica é desencadeada em 6 de fevereiro de1900 por reivindicações salariais. É um movimento em que os operários vão de fazendaem fazenda e de usina em usina para desenvolver a greve. Em 8 de fevereiro, no François,na frente da usina, a tropa atira nos grevistas, matando nove deles. Esse drama suscitougrande emoção na França.

154 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

Deixem-me dizer-lhes quanto àMartinica que logo que se soube domassacre dos franceses na Europa equando chegaram as primeiras cartas anossos amigos e os primeiros relatóriosao governo, o grupo socialista das Anti-lhas, reunido em Paris, fez uma requisi-ção ao ministro.

Pediu-lhe três coisas: pediu-lhe atransferência dos magistrados que con-denaram os grevistas mais brutalmen-te; pediu-lhe a destituição, a pena disci-plinar mais forte, do oficial Kahn, dooficial assassino.

Uma voz. Devia ser fuzilado!Jaurès. E pediu enfim a liberta-

ção imediata de todos os proletáriosnegros condenados devido à greve.

O oficial foi punido, os juízestransferidos e, por fim, foi dada a or-dem de libertar todos os operários gre-vistas condenados. (Bravos.)

No que se refere às greves da Fran-ça, digo apenas: o governo adotou umatática, da qual, apesar de tudo, no futu-ro, se continuarem a impô-la, os pro-letários poderão beneficiar-se: não tirara polícia dos municípios.

Vocês sabem bem que os patrões deMarselha, como o Sr. Thierry, censuraramo governo por este não ter tirado a políciado prefeito socialista de Marselha, do nos-so amigo, cidadão Flaissières21.

Em Chalon, foi o crime da muni-cipalidade proibindo o cortejo a causada briga e a ocasião do assassinato.

Apesar de tudo, porque sabemosque os proletários terão mais garantias,se forem as municipalidades eleitas poreles, vivendo no meio deles, que manti-verem a polícia, é preciso persistir empedir que a polícia seja deixada nas mãosdas municipalidades.

E deixem-me dizer-lhes, se vocêstivessem o direito, porque apoiamoscontra o nacionalismo, contra a reação,o ministério Waldeck-Rousseau, sevocês tivessem o direito de nos acusarde alguma cumplicidade nos crimes daMartinica e de Chalon, o que vocês di-riam a seus próprios amigos?

O quê! Vocês reuniram neste pa-lanque, e peço-lhes a permissão de falarcom toda a liberdade, vocês reuniramneste palanque os prefeitos do PartidoOperário Francês. Pois bem! Eu lhes

Após quarenta dias de greve de uma pequena fábrica de Chalon-sur-Saône, a cidade ocu-pada pela polícia e a guarda foi percorrida por uma manifestação de apoio de algumascentenas de pessoas, em 2 de junho de 1900. Detidos na frente da fábrica por sessentaguardas a cavalo e a pé, os manifestantes foram fuzilados por um tiro após algumas pedrasatiradas. Contaram-se três mortos. Nos dois casos, a justiça se encarregou do caso e san-ções, mínimas, foram adotadas.21 Siméon Flaissières (1851-1931), filho de pastor protestante, tornou-se médico no bairro deEndoume, em Marselha. Aderiu ao POF em 1891 sem, todavia, compartilhar suas convicçõesmarxistas. Suas idéias pragmáticas e moderadas conduziram-no a juntar-se aos socialistas inde-pendentes em 1895. Não participou do Partido Socialista reunificado em 1905. Em 1892,tornara-se prefeito de Marselha, perdeu a prefeitura em 1905 e reconquistou-a em 1919.

CRÍTICA MARXISTA • 155

pergunto, se a política do governo pu-desse caracterizar-se pela Martinica e porChalon, se esses crimes fossem sua ex-pressão verdadeira e sua característica,o que diriam vocês das municipalidadeseleitas que tivessem aceitado, como fi-zeram as suas – e tiveram razão – ir par-tir o pão da hospitalidade no mesmobanquete que os governantes assassinos?

O quê! O prefeito de Lille, o cida-dão Delory, o prefeito de Fourmies – deFourmies! a cidade assassinada – 22, to-dos esses prefeitos eleitos, todos os quecarregam a responsabilidade da cidadevão sentar-se à mesma mesa queWaldeck-Rousseau, e quando a Câmaravoltou, quando o Parlamento está reuni-do, quando há uma interpelação sobre apolítica geral, quando não se trata maisapenas de Chalon e da Martinica mas deSipido, ignominiosamente expulso, masda expulsão de Morgari 23; quando se tra-ta de tudo isso, tal é contudo a força dascoisas, tal é o interesse supremo do pro-letariado de não se entregar à reação na-cionalista e clerical, que todos os políti-cos eleitos por vocês, todos, todos, Zévaèsque está aqui, como Vaillant, todos de-ram um voto de confiança ao governo.

Tomem cuidado, se disserem Chalone Martinica, não é só a mim que vocês gol-peiam! (Aplausos calorosos e bravos.)

Podemos, portanto, elevando-nosacima dessas polêmicas pessoais e des-sas lutas fratricidas, podemos olhar aquestão de princípio em si mesma e porsi mesma.

Permito-me dizer-lhes, com a se-gurança talvez presunçosa de não serdesmentido pelos anos vindouros, per-mito-me dizer-lhes que todas as vezesque ele tentou uma forma nova de ação,todas as vezes que renunciou à sua abs-tenção inicial, qualificada de revolucio-nária, para entrar na ação e tomar partenos acontecimentos, sempre houve in-transigentes que dirigiram ao PartidoSocialista as objeções que alguns devocês dirigem hoje à participação de umsocialista num governo burguês.

TáticaAh! Cidadãos, há trinta anos que

o Partido Socialista avança no mundo.Tomou parte em muitos acontecimen-tos, em muitas instituições fora das quaisse mantinha inicialmente. Discutíamos

22 Alusão ao massacre de Fourmies, em 1º de maio de 1891.23 Jaurès faz alusão à expulsão de Oddino Morgari (1865-1944). Morgari, deputado do PartidoSocialista Italiano, viera a Marselha em setembro de 1900 apoiar a greve geral do porto eencorajar seus compatriotas imigrados a participar. O prefeito do departamento de Bouches-du-Rhône mandou expulsá-lo, sob a pressão dos meios patronais e nacionalistas de Marselha.Jean-Baptiste Sipido era um jovem anarquista belga de dezesseis anos que atirou no prín-cipe de Gales, o futuro Eduardo VII, de passagem por Bruxelas em 4 de abril de 1900.Refugiado por algum tempo na França, foi extraditado pelo Ministro da Justiça, apesar dacampanha da Liga dos Direitos do Homem que se opunha a toda extradição vinculada auma causa política.

156 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

hoje para saber se o Partido Socialistadeve participar da ação parlamentar.

Não imaginem, entretanto, cama-radas, que sempre foi assim. Houve nahistória do Partido Socialista, há trintaanos, um momento em que aqueles queaconselhavam a entrada dos socialistasno Parlamento eram combatidos tãoviolentamente, denunciados tão aspera-mente quanto nós o somos hoje.

Escutem, por favor, o que escrevia,em 1869, o grande socialista democratacuja morte a humanidade socialista cho-rou, o cidadão, o companheiro WilhelmLiebknecht.

Em 1869, no momento em que aca-bava de ser criado há já dois anos o sufrá-gio universal na Alemanha, para o Parla-mento da Confederação da Alemanha doNorte, Liebknecht escreveu uma brochurapara pesquisar o que os socialistas podiame deviam fazer no Parlamento24.

Não só ele não queria que se ocu-passem com ação reformadora, mas con-siderava que a tribuna parlamentar erainútil, mesmo para os discursos de purapropaganda, e dizia:

“Nossos discursos não podem ter ne-nhuma influência direta sobre a legislação;não convertemos o Parlamento com pala-vras, com nossos discursos não podemosjogar na massa verdades que não seja possí-vel divulgar melhor de outra maneira.

Que utilidade prática oferecementão os discursos no Parlamento? Ne-nhuma; e falar sem objetivo constitui asatisfação dos imbecis.

Nem uma única vantagem.

E eis do outro lado as desvanta-gens: sacrifício dos princípios, rebaixa-mento da luta política, reduzida a umaescaramuça parlamentar; fazer o povoacreditar que o Parlamento bismarkianoé chamado a resolver a questão socialseria uma imbecilidade ou uma traição.”

Eis como, em 1869, aparecia aossocialistas democratas a própria ação, aação de propaganda de nossos políticoseleitos no Parlamento. Imagino quevocês reconheceram aí, aplicadas a umobjeto diferente, as condenações que nossão feitas a propósito da entrada de umsocialista num ministério burguês. Al-guns anos depois, entretanto, arrastadopelo irresistível movimento das coisas,não só Liebknecht continuava sendo umcombatente na Assembléia do império,mas entrava no Landtag saxão, em quenão se pode entrar a não ser prestandoo juramento de fidelidade à constitui-ção real e burguesa “Juro perante Deus.”(Exclamações irônicas de vários lados.)

Delory. Cidadãs e cidadãos, a ne-cessidade de interrupção coloca os queinterrompem em má posição já queJaurès fez apenas uma citação. (Risos.)

Jaurès. Mas, vejam, cidadãos, aque mal-entendido extraordinário po-dem conduzir as prevenções que temosuns contra os outros. Acabo de lhesanunciar que não se podia entrar noLandtag sem prestar um juramento defidelidade ao rei da Saxônia; lembro-lhes, descrevo-lhes a fórmula do jura-mento prestado por Liebknecht para

24 Ver nota 3.

CRÍTICA MARXISTA • 157

entrar no Landtag da Saxônia, e eis ca-maradas um pouco apressados que nãose aborrecem de me tachar de clericalis-mo. (Hilaridade.) Lembrem-se bem queé Liebknecht quem fala.

“Juro perante Deus ser inabalavel-mente fiel à Constituição e servir, se-gundo minha consciência, por minhaspropostas e meus votos, o interesseinseparável do rei e da pátria. AssimDeus me ajude.”

Houve nesse momento camara-das, puros, intransigentes com a demo-cracia socialista, que acusaramLiebknecht de ter prestado esse jura-mento com vistas a ocupar uma cadeirano Landtag, e Liebknecht, o admirávelrevolucionário, respondia com razão:“Mas então seremos eternamente enga-nados pelos dirigentes se lhes bastar pôrno nosso caminho esse obstáculo depapel com uma fórmula de juramento?”

E eu lhes pergunto, quando seacusa de um crime um ministro socia-lista por ter aceitado o que eu chamareia formalidade ministerial da aparentesolidariedade de voto com seus colegasdo gabinete, eu lhes pergunto se essaformalidade é mais humilhante para oPartido Socialista da França do que era,para os revolucionários socialistas daAlemanha, o juramento prestado peran-te Deus de ser fiel ao rei?

Eu lhes pergunto se nós tambémnos deteremos perante esses obstáculos

de papel, perante essas formalidades eessas chinesices, e se hesitaremos, quan-do for necessário para a nossa causa, emjogar um dos nossos na fortaleza dogoverno burguês. (Não! Não! Bravos.)

Mas isso não é tudo, e uma outraquestão, também muito delicada... Masesqueço a hora... Cidadãos, tenho re-morso por me alongar. (Fale! Fale!) Vouceder a palavra a Guesde.

Delory. Num quarto de hora vocêterá acabado. Camaradas, pedimos-lhesum pouco de paciência. É certo que aquestão é suficientemente grave para quesacrifiquemos alguns minutos do nossotempo. O camarada Jaurès vai tentar re-sumir o mais brevemente possível parapermitir a Guesde responder. (Bravos.)

Jaurès. Eu disse que uma questãoigualmente difícil se colocara aos socia-listas alemães a propósito da participa-ção nas eleições ao Landtag da Prússia.

Lá, não há sufrágio universal, hátrês classes de eleitores; é um verdadei-ro censo e o sistema eleitoral é combi-nado de tal forma que os socialistas so-zinhos nunca podem fazer entrar umdos seus na assembléia eletiva da Prússia.Podem-no apenas contraindo aliançasou, como eles dizem, compromissoscom os partidos burgueses.

Em 1893, sobre um relatório deBebel25, os democratas socialistas ale-mães declararam o que se segue no con-gresso de Colônia.

25 August Bebel (1849-1913) é um dos fundadores, com Liebknecht, do Partido Social-Democrata Alemão. Como ele e Kautsky, é partidário do marxismo que domina a social-democracia alemã. Esta tende, porém, a conceder às eleições um lugar cada vez maior emsua estratégia, tanto mais que os sucessos eleitorais do partido são consideráveis.

158 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

“Considerando que é contrário aosprincípios observados até aqui pelo par-tido envolver-se em compromissos compartidos inimigos, porque estes condu-ziriam necessariamente à desmoralização,às querelas e às divisões em suas própriasfileiras, o congresso declara:

‘É dever dos membros do partidona Prússia abster-se inteiramente de par-ticipar das eleições para o Landtag, sobo regime atual.’”

Mas não tardaram a se aperceber deque ao se absterem de participar das elei-ções, deixavam esmagar a burguesia liberalpelos partidos retrógrados e que os direitosdo proletariado, direitos de associação, di-reitos de coligação, estavam ameaçados.

Em 1897, em Hamburgo em 1898,em Stuttgart em 1899, começavam a per-mitir aos socialistas da Prússia participardas eleições do Landtag prussiano.

E por fim isso não bastou e o mes-mo Bebel que, em 1893, pedira ao par-tido para proibir a todos os seus mem-bros a participação nas eleições doLandtag da Prússia, o mesmo Bebel,compreendendo o engano que fora co-metido, o erro de tática que fora feito,pediu em 1900, no congresso de Mainz,um voto firme.

No congresso de Mainz, sete anosapós a proibição feita, o Partido Socia-lista Alemão deu aos socialistas prus-sianos a ordem de participarem das elei-ções do Landtag da Prússia.

E, contudo, era em nome da luta declasses, era em nome da tática de partidoque, em 1893, se proibia aos socialistas ale-mães de participar das eleições do Landtag.

Depois viu-se que a luta de classesobrigava o proletariado a defender suasliberdades elementares mesmo, se preci-so, coligando-se com a fração liberal daburguesia e onde se dissera não disse-sesim e deu-se uma ordem. Vocês os acusa-rão de terem traído? (Aplausos calorosos.)

E eu lhes digo, sem poder dar-lhesagora todas as minhas razões, que do mes-mo modo a hora virá em que o PartidoSocialista Unificado, organizado, dará aordem, a um dos seus ou a vários dosseus, de ir sentar-se nos governos da bur-guesia para controlar o mecanismo da so-ciedade burguesa, para resistir o máxi-mo possível aos arrebatamentos das rea-ções, para colaborar o máximo possívelnas obras de reforma.

A unidadeCidadãos e amigos, abusei da sua

atenção benevolente e não me consola-ria de interromper assim minha demons-tração, de deixá-la incompleta, para ce-der a Guesde a minha vez de falar, se nãome dissesse que afinal de contas, quais-quer que sejam as dissensões, quaisquerque sejam as dificuldades, quaisquer quesejam as polêmicas de um dia entre soci-alistas, nós nos reencontramos.

Nós voltaremos, não mais para ba-talhar, não mais para polemizar, mas quan-do o partido estiver organizado, parapesquisar juntos, como leais camaradas,qual é o melhor meio de servir os interessesdo partido. Ah! Diz-se ao partido: “Perma-neça isolado, permaneça afastado, não semeta na ação governamental; fique tão lon-ge quanto possível do Estado burguês.”

CRÍTICA MARXISTA • 159

E eu lhes digo que todas as gran-des revoluções foram feitas no mundoporque a sociedade nova, antes de desa-brochar, penetrara por todas as fissuras,por todas as suas menores raízes, no soloda sociedade antiga.

No outro dia, Kautsky26, zomban-do um pouco de nós, dizia-nos: “Masvocês imaginam conquistar o poder go-vernamental do Estado conquistandopasta por pasta? É como se, no tempoda Reforma, os protestantes imaginas-sem que iam conquistar o mundo con-quistando um cardeal depois do outro,no Sacro Colégio.”

Peço perdão a Kautsky; o que feza força das heresias, das grandes revol-tas da consciência religiosa independen-te, nos séculos XII e XIII, o que fez emseguida a força da Reforma, foi precisa-mente que ela surgiu apossando-se deuma parte até do poder da antiga Igre-ja; é que houve, no século XVI, um pe-ríodo em que os fiéis não sabiam maisexatamente se seus cardeais, bispos oumonges haviam ficado com o papa ouhaviam acompanhado Lutero.

A Igreja sentiu-o tão bem, com-preendeu tão bem que para ela o perigoestava nessa penetração, que a ordemdos jesuítas, que se constituiu para salvá-la, estabelecera como palavra de ordempenetrar em toda a parte e ser, por suavez, impenetrável a todos.

A Igreja salvou-se por séculos fe-chando-se à ação da sociedade nova.

Mas o que a Igreja pôde fazer, a demo-cracia burguesa não pode fazer; ela nãose poderá fechar; ela já deixou vocêspenetrarem nas municipalidades.

Fala-se das responsabilidades queum ministro socialista assume num mi-nistério burguês; mas seus representan-tes municipais não assumem responsa-bilidades?

Não são eles uma parte do Estadoburguês? Mas o sufrágio universal queos nomeia é regulamentado, é limitadopela lei burguesa.

E se eu quisesse triunfar do pontode vista intransigente no qual se colo-cam alguns dos amigos de vocês, eupoderia lembrar-lhes que vocês aceitamassim o poder municipal de um sufrá-gio universal, do qual a lei burguesa, aoexcluir os assistidos ou os operários er-rantes, excluiu os proletários mais po-bres; poderia dizer-lhes que o prefeitosocialista, por mais socialista que seja,pode ser suspenso pelo poder central, epor um ano não ser reelegível; poderiadizer-lhes que ele aceita forçosamente,já que é prefeito, aplicar, administrar umgrande número de leis burguesas; po-deria dizer-lhes que, se ocorrerem con-flitos violentos nas suas ruas, ele tam-bém é obrigado, sob pena de deixar di-zer que o socialismo é pilhagem e ho-micídio, a apelar para a força pública.

E vejam, em Marselha, há poucosdias, que responsabilidade pesava sobreo prefeito socialista. Assistindo ao de-

26 Karl Kautsky (1854-1938), importante dirigente do SPD, foi um grande teórico do soci-alismo. Situando-se na ala esquerda do partido, combateu, de um ponto de vista marxista, orevisionismo dentro dele. Mas colocou sempre a unidade do partido acima de tudo.

160 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

sembarque de Krüger27 e protegendo osestrangeiros ingleses contra as violênci-as possíveis da multidão, ele não era maiso prefeito socialista de Marselha, estavaencarregado da segurança, da reputaçãoda França inteira.

Ah! Seria cômodo demais ser pre-feito socialista perante o mundo, se nãose fosse obrigado ao mesmo tempo acontar com todas essas responsabilida-des! Mas é porque a tarefa é pesada, éporque se é em conjunto uma fração doproletariado conquistador e uma fraçãodo Estado burguês.

É por isso que não basta um me-canismo para fazer andar a casa socia-lista, é preciso cabeças pensantes, ho-mens de prudência, pensamento e re-flexão, de equilíbrio e vontade, homenscomo Flaissières, homens como Delory.(Bravos repetidos. Gritos: Viva Delory!)

Sim, à medida que cresce o poderdo Partido Socialista aumenta sua res-ponsabilidade.

Mas desta responsabilidade nós nãotemos medo, o Partido socialista não temmedo dela; ele tem confiança na classeoperária, com uma condição, é que elaseja organizada, é que ela seja unificada; éque perante todos os outros partidos anár-quicos e discordantes ela forme apenas umpartido, como forma apenas uma classe.

Pois bem! Sim, haverá entre nós,por muito tempo talvez, dissensões demétodo e de tática. Mas há dissensõesna Bélgica, na Alemanha; isso não osimpede de ser unidos, de discutirem le-almente, como camaradas.

E é assim que queremos discutirainda; e queremos preparar à luz do diaa grande unidade socialista, a grandefraternidade socialista, pela luz, pela ra-zão, pela organização; e isso, para fazerinicialmente obra de reforma e, na re-forma, iniciar a obra da revolução; poisnão sou um moderado, sou com vocêsum revolucionário. (Aplausos e bravosrepetidos.)

Discurso de Jules GuesdeCidadãs,Cidadãos,Camaradas,Deixem-me, primeiramente, agra-

decer a Jaurès por ter colocado tão bema questão, a única questão para a solu-ção da qual vocês estão reunidos estanoite. Jaurès disse a verdade, do pontode vista histórico de nossas divergênci-as, quando, indo além da participaçãode um socialista num governo burguês,remontou até o que se chamou de o casoDreyfus.

27 A Segunda Guerra dos Bôeres começada em 1899 entre o governo semi-autônomo doTransvaal (cujo presidente era Krüger) e o poder imperial britânico acabou com a derrotados bôeres (ou africânderes). Krüger foi obrigado a fugir da África e começou na Europauma turnê de propaganda pela independência da África do Sul. Desembarcou em Marselhaem 22 de novembro de 1900 e estava em Paris no dia do embate Guesde-Jaurès. Os socia-listas defendiam então os bôeres contra o imperialismo britânico, e isso num contexto deviva anglofobia.

CRÍTICA MARXISTA • 161

Sim, está aí o princípio, o come-ço, a raiz de uma divergência que desdeentão apenas se agravou e se estendeu.

A luta de classesJaurès teve razão igualmente quan-

do começou por lhes fornecer o elemen-to indispensável a todo julgamento,quando lhes lembrou a sociedade atualdividida em classes necessariamente an-tagonistas e em luta; teve razão em lhesdizer que era colocando-os neste camposocialista que vocês podiam pronunciar-se entre ele e nós. Somente, em minhaopinião, ele foi imprudente invocando oque ele chama um princípio, e que euchamo, de minha parte, um fato: a lutade classes. Oh! Ele definiu-a muito bema vocês, mostrou-a maltratada em todasas oficinas, no campo econômico; mos-trou-a como meio indispensável, no diaem que é transportada e sistematizadapara o campo político, para acabar comas classes, para libertar o trabalho e paralibertar a sociedade; mas em seguida elelhes disse: “Esta luta de classes que aca-bamos de reconhecer positivamente e deproclamar teoricamente; esta luta de clas-ses, vamos começar por deixá-la de ladocomo não podendo determinar nossaconduta, nossa política, nossa tática detodos os dias.” De tal modo que assimi-lava a luta de classes ao paraíso dos cris-tãos e dos católicos, que se coloca tãolonge, tão fora de tudo, que não influina vida cotidiana, não dirigindo nem asvontades nem os atos dos cristãos e doscatólicos de hoje, reduzido como está aum simples ato de fé no vazio.

A luta de classes, tal como Jaurèsa definiu tão bem, se ela não devessedeterminar a sua conduta de todos osdias, a política da classe operária, a táti-ca necessária do proletariado organiza-do em partido de classes, seria umamentira e um logro: ela é para nós, eladeve ser ao contrário a regra de nossoagir de todos os dias, de todos os minu-tos. (Bravos calorosos e repetidos.)

Quanto a nós, nós não reconhe-cemos a luta de classes, para abandoná-la uma vez reconhecida, uma vez pro-clamada; este é o campo exclusivo emque nos colocamos, no qual o partidooperário se organizou, e no qual precisa-mos nos manter para considerar todosos acontecimentos e para classificá-los.

Primeiro desvioDisseram-nos: “a luta de classes

existe”; mas ela não proibia, ela manda-va pelo contrário o proletariado, no diaem que uma condenação iníqua vieraatingir um membro da classe dirigente,ela erigia em dever, em lei para os tra-balhadores esquecer as iniqüidades deque são vítimas todos os dias, esqueceras monstruosidades que se perpetramtodos os dias contra suas famílias, con-tra suas mulheres e contra seus filhos.

Eles deviam esquecer tudo isso;eram injúrias anônimas, iniqüidadesanônimas, pesando apenas sobre a clas-se operária – que não conta. Mas no diaem que um capitão de estado-maior, nodia em que um dirigente da burguesiaera atingido pela própria justiça da suaclasse, nesse dia, o proletariado devia

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abandonar tudo, devia precipitar-secomo reparador da injustiça cometida.

Digo que a luta de classes assimentendida – retomo minha expressão dehá pouco – seria um verdadeiro logro.

Ah! Jaurès apelou para lembran-ças pessoais, contou-lhes o que se pas-sara no grupo socialista da Câmara dosDeputados no fim da legislatura de1893-1898; naquele momento, era oinício do caso, ele estava, pode-se dizer,ainda no ovo, Jaurès lhes disse que ha-via os moderados – dos quais ele nãofazia parte – e que havia a extrema es-querda, os avançados, dos quais ele fa-zia parte, e que naquele momento mes-mo Guesde pressionava para uma in-tervenção do grupo socialista num casoque não revestira o caráter individual oupessoal.

Foi então, como lhes disse Jaurès,que protestei contra a atitude dos mo-derados: mas sabem qual era sua lingua-gem? Jaurès devia tê-la trazido a esta tri-buna. Os moderados não queriam quenos metêssemos no caso porque, dizi-am eles, estamos na véspera das eleiçõesgerais e poder-se-ia assim comprome-ter nossa reeleição. E acrescentavam:“Ah! se tivéssemos ainda pela frente umou dois anos antes que o sufrágio uni-versal tenha a palavra, poderíamos en-tão examinar a questão em si mesma edecidir se o interesse, se o dever do par-tido é intervir.”

Foi contra essa covardia eleitoral,contra esses homens que não pensavamsenão em sua cadeira de deputado queeu protestei (aplausos calorosos) e que eu

disse outra coisa ainda, pois fui maislonge: disse que se o sufrágio universal,utilizado pelo proletariado, devia de-sembocar numa simples questão de re-eleição, de cadeiras a manter, disse quemais valeria romper com o método par-lamentar e nos limitarmos à ação exclu-sivamente revolucionária.

É verdade, Jaurès? Não falei dessemodo? (Bravos repetidos. Movimentos diver-sos.) Permitam, camaradas, que eu entre emdetalhes. Jaurès estava comigo então...

Jaurès. Está muito bem, estácertíssimo.

Nossa atitudeGuesde. Mas naquele momento,

camaradas, do que se tratava? Tratava-se de dividir o proletariado em pró-Dreyfus e contra Dreyfus, de colocarperante a classe operária essa charada dainocência ou da culpa de um homem?Pois, nesses termos, era e permaneceuuma verdadeira charada, uns jurandopela palavra de fulano, outros pela pa-lavra de beltrano, sem que jamais vocêstenham podido penetrar nesse amon-toado de contradições e de obscurida-des para formar, por si mesmos, umaopinião. Não se tratava de afirmar, dejurar que Dreyfus era inocente; não setratava, sobretudo, de impor ao prole-tariado realizar a salvação de um ho-mem, quando o proletariado tem quesalvar sua classe, tem que salvar a hu-manidade inteira! (Longos aplausos.)

Era a respeito do processo Zola,quando assistimos a esse escândalo de umchefe de estado-maior geral, de gradua-

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dos superiores, que vinham perante ajustiça de seu país e jogavam na balançasua espada ou sua demissão dizendo:“Não ficaremos nem mais um minutoem nosso posto, abandonaremos, entre-garemos a defesa nacional, da qualestamos encarregados, se os jurados re-cusarem o veredicto que lhes exigimos.”

Nessas circunstâncias, disse aJaurès que, se uma República, mesmoburguesa, se inclinava perante semelhan-te ultimato do alto militarismo, estavaacabada a República; e acrescentei: “Pre-cisamos subir à tribuna; precisamos pe-dir a prisão imediata, não por seu papelno caso Dreyfus, mas por sua insurreiçãoperante o júri do Sena, do Boisdeffre28 ede seus seguidores.”

É verdade, ainda, cidadão Jaurès?(Aplausos calorosos.)

Eis como fui pró-Dreyfus, ou seja,no limite da luta contra o militarismodescontrolado, que chegou até a amea-çar, sob a cobertura de um governocúmplice, com um verdadeiro golpe deEstado. E ficamos assim até as eleições;e nas eleições – se houver aqui camara-das de Roubaix, eles poderão testemu-nhar –, nos muros fui denunciado comodedicado, como vendido a Dreyfus. Eume defendi de semelhante acusação?29

(Não! Não!) Pensei um instante que ha-via ali certo número de votos a perder eque iam assegurar o sucesso de meu ad-versário? Não, camaradas, nem entãonem nunca me preocupei com as con-seqüências pessoais que meus atos po-diam ter, os quais sempre foram dirigi-dos, determinados, comandados pelointeresse da classe operária que eu re-presentava – e a única que eu entendiarepresentar, pois nas muralhas deRoubaix havia, ninguém pode esquecê-lo: “Que nenhum patrão vote em mim,que nenhum capitalista vote em mim;não quero nem posso representar as duasclasses em luta, não quero e não possoser senão o homem de uma contra aoutra.”

Eis o mandato que lhes pedia, quevocês me tinham dado, e ao qualcorrespondi. (Calorosos aplausos e bravos.)

Dreyfus e o partido socialistaMas no dia seguinte às eleições,

tudo mudara; não se tratava mais, destavez, de refrear o militarismo, não se tra-tava mais de agarrar pela gola os gene-rais ou os coronéis insurgidos; tratava-se de engajar profundamente o proleta-riado numa luta de pessoas.

28 Raoul Le Mouton de Boisdeffre (1839-1919), chefe de estado-maior geral do exércitoentre 1893 e 1898, opôs-se à reabilitação de Dreyfus, não hesitando em proteger seussubordinados comprometidos testemunhando a seu favor por ocasião do processo de Zola.Foi obrigado a pedir demissão alguns meses depois.29 Jules Guesde fora eleito deputado da circunscrição de Roubaix em 1893. Após umacampanha eleitoral em que seu apoio a Dreyfus lhe valeu vivas críticas da direita, foi batidoem maio de 1898 pelo grande patrão do têxtil Étienne Motte (recuperou sua cadeiraapenas em 1906).

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Há, dizia-se – e disse-se e escre-veu-se, não uma vez, mas cem, não cemvezes, mas mil –, há uma vítima parti-cular que tem direito a uma campanhaespecial e a uma libertação isolada: essavítima é um dos membros da classe di-rigente, é um capitão de estado-maior– é o homem que, em plena juventude,amparado numa riqueza produzida peloroubo feito aos operários exploradospela sua família e livre para tornar-se umhomem útil, livre para pôr a ciência queele deve a seus milhões a serviço da hu-manidade, escolheu o que ele chama acarreira militar. Disse a si mesmo: “Odesenvolvimento intelectual que recebi,os conhecimentos múltiplos queencarnei, vou empregá-los para degolarmeus semelhantes.” Essa vítima era beminteressante. (Aplausos calorosos.)

Ah! Compreendo bem que vocês,operários, vocês, camponeses, que sãoarrancados à oficina, que são arranca-dos ao arado, para lhes pôr um unifor-me nas costas, para lhes pôr uma espin-garda nas mãos, com o pretexto da pá-tria a defender, vocês tenham o direitoe o dever de gritar para nós, para o pro-letariado organizado, quando vocês sãoatingidos por essa medonha justiça mi-litar, porque vocês não estão na casernapor sua vontade – porque vocês jamaisaceitaram as regras, nem a organização,nem a pretensa justiça militar que so-frem. Mas ele, ele sabia o que tinha pelafrente quando escolheu o ofício das ar-mas; foi de caso pensado que se engajounesse caminho, adepto dos conselhos deguerra enquanto acreditou que eles atin-

giam apenas os proletários e que seriaele, dirigente, oficial, que poria em mo-vimento contra eles essa justiça cega eentre quatro paredes. Tal era a vítima pelaqual se ousara a pretensão de mobilizartodo o esforço proletário e socialista...

Ah! Camaradas, apelou-se paralembranças. (Aplausos.) Oh! Não aplau-dam, por favor, deixem-me ir até o fimsem aumentar, com vossos bravos, meucansaço, apelou-se para lembranças pes-soais, peço para completá-las.

Jaurès falou-lhes não de um mani-festo, mas de uma declaração do conselhonacional do Partido Operário Francês.

O que ele não lhes disse, é queantes houvera uma espécie de conselhodo socialismo; houvera, organizado porMillerand e Viviani, um encontro en-tre Jaurès, que queria não só entrar nes-se caso Dreyfus, mas também engajarnisso o partido inteiro, e nós, que éra-mos de opinião contrária.

Foi nos arredores de Paris, numacasa de campo de Viviani, que nos reu-nimos todos, uma noite; e como Vaillantnão pudera vir ao encontro, escrevera aJaurès, avisando-o – apelo aqui aindapara a memória de Jaurès...

Jaurès. Mas eu não contesto a car-ta de Vaillant, constato que ela não meera dirigida.

Guesde. De acordo. Deixando delado a intervenção de Vaillant sob a for-ma de uma carta a Jaurès, digo que hou-ve, naquela noite, muito antes da decla-ração do conselho nacional, uma reuniãona qual Millerand e Viviani, que, tantoquanto Vaillant e eu, não queriam então

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que se pusesse o partido socialista atrásde Dreyfus, se juntaram a mim para lhedizer: “Cidadão Jaurès, você não podeengajar o partido, você não tem o direi-to de engajar o partido” –, e você nosdeu sua palavra de fazer unicamente umacampanha pessoal. (Bravos.)

Jaurès. Eu sempre disse isso.Guesde. Jaurès reconhece que o

que eu relato é a verdade exata; se evo-quei esses fatos, foi, aliás, apenas paraestabelecer as responsabilidades. Quan-do ele lhes falava há pouco da declara-ção do conselho nacional do PartidoOperário como tendo retirado, por as-sim dizer, nossas tropas engajadas – oque constitui um ato de deserção e detraição em todos os campos de batalha–, Jaurès esquecia-se de dizer-lhes quea totalidade dos socialistas e das orga-nizações consultadas lhe ordenara nãoengajar o Partido Socialista atrás dele.

Quando nossa declaração saiu,mantinha apenas, portanto, uma deci-são que sempre fora a nossa e que ex-pressava a vontade concordante das di-ferentes facções socialistas.

Oh! Poderia ir mais longe nestesdetalhes pessoais, mas detenho-me, es-

timando que o que relembrei é suficien-te, e volto a nosso terreno de classe. Digoque não devemos reconhecer à burgue-sia, quando uma injustiça atinge um dosseus, o direito de se dirigir ao proletaria-do, de lhe pedir para cessar de ser elemesmo, de combater seu próprio com-bate, para se pôr a reboque dos dirigen-tes mais comprometedores e mais com-prometidos; pois é impossível não se lem-brar de que o principal condutor dessacampanha contra uma iniqüidade indi-vidual propusera um projeto de lei queera a pior iniqüidade contra uma classe;revoltado por um julgamento de conse-lho de guerra que teria atingido um ino-cente, não temera atingir sem julgamentotodos os operários e empregados das fer-rovias, querendo que com o direito degreve lhes retirassem o meio de defenderseu pão: era esse o homem da verdade,era esse o homem da justiça! E teria sidopreciso que mesmo os servos das estra-das de ferro esquecessem o crime proje-tado contra sua classe para fazer acordocom o Sr. Trarieux, com o Sr. Yves Guyot,com a fina flor dos burgueses explora-dores30 (risos e aplausos) ou tendoteorizado a exploração dos proletários;

30 Ludovic Trarieux (1840-1904) foi um político que ilustra bem as contradições do período.Muito conservador, Trarieux foi no Senado o homem que defendeu as célebres “leis celeradas”em 1893 e 1894, leis que restringiam as liberdades individuais e as liberdades políticas peran-te a ameaça dos atentados anarquistas. Ministro da Justiça em 1895, tentou fazer passar umalei proibindo o direito de greve aos ferroviários e limitando seu direito sindical. Vê-se quãoimpopular era o homem no movimento socialista e sindical! Mas foi um dos políticos que seenvolveram mais precoce e completamente a favor de Dreyfus. Seu papel foi essencial porocasião do processo de Zola e por ocasião da apelação do processo de Rennes em setembro de1899. Foi também o fundador da Liga Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em4 de junho de 1898, da qual se tornou o primeiro presidente. Yves Guyot (1843-1928),

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teria sido preciso, e ter-se-ia podido –mantendo a luta de classes – costurar oproletariado a essa cauda da burguesiaaprisionadora que tinha atrás de si a bur-guesia fuziladora de 1871.

Ah! Não, camaradas. Naquelemomento, o Partido Operário gritoualto lá! Naquele momento, ele chamouos trabalhadores a seu dever de classe;mas não lhes pregava o desinteresse oua abstenção. A declaração ostentava comtodas as letras: “Preparem-se para vol-tar, contra a classe e a sociedade capita-lista, os escândalos de um Panamá mili-tar juntando-se aos escândalos de umPanamá financeiro. O que nós víamos,com efeito, no caso Dreyfus, eram asvergonhas expostas que atingiam e ar-ruinavam o próprio regime. Havia aliuma arma nova e poderosa, com a qualse podia e se devia atingir toda a bur-guesia, em vez de mobilizar e imobili-zar o proletariado atrás de uma facçãoburguesa contra a outra...”

Você evocava há pouco o admirá-vel revolucionário que era Liebknecht.Ora ele tomou a palavra nesse casoDreyfus, e foi, como nosso Partido Ope-rário, para desaprovar sua campanha:

“Não o aprovo, escrevia-lhe ele.Não posso aprová-lo, porque você le-vou água ao moinho do militarismo, donacionalismo e do anti-semitismo.” É averdade, camaradas; no fim do caso

Dreyfus, não houve supressão dos con-selhos de guerra, não houve a menormodificação na justiça militar, não hou-ve nada do que lhes prometiam; houveum homem que foi arrancado a seu ro-chedo da Ilha do Diabo; campanha pes-soal, não teve senão um resultado pes-soal. (Movimentos diversos.)

O emburguesamentoOh! Engano-me, houve alguma

coisa, e essa alguma coisa, foi o próprioJaurès quem teve a coragem de confessá-lo. Ele lhes disse: “Do caso Dreyfus, dacampanha que conduzi com certo nú-mero de socialistas pró-Dreyfus, saiu acolaboração de um socialista num go-verno burguês.” Isso é verdade, cidadãoJaurès, e isso bastaria, fora o resto, paracondenar toda espécie de colaboraçãoda qual você se vangloria.

Sim, foi preciso essa primeira de-formação, foi preciso o abandono de seucampo de classe por uma parte do prole-tariado para que num dado momento setenha podido apresentar como uma vi-tória a penetração num ministério de umsocialista que não podia aí fazer a lei, deum socialista que devia aí ser prisionei-ro, de um socialista que era aí apenas umrefém, de um socialista que o Sr.Waldeck-Rousseau, muito bom tático,foi buscar nas fileiras da oposição, paradele fazer uma cobertura, um escudo, de

economista e publicista liberal próximo de Gambetta, foi diretor do Siècle, presidente daSociedade de Economia Política e ministro das Obras Públicas. Liberal feroz em econo-mia, era também livre-pensador, partidário da separação das Igrejas e do Estado e pró-Dreyfus desde o início. Em 1893, escrevera a Tyranie socialiste, verdadeiro libelo contra osocialismo.

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maneira a desarmar a oposição socialista(bravos), de maneira a impedir os traba-lhadores não só de atirar em Waldeck-Rousseau, mas de atirar em Galliffet,porque entre eles e Galliffet havia a pes-soa de Millerand. (Novos aplausos.)

Ah! Você diz e conclui que tinharazão na campanha Dreyfus porque elaconduziu Millerand ao gabineteWaldeck-Rousseau-Galliffet. Quanto amim, digo que está aí a condenaçãodefinitiva dessa campanha. Bastou queuma primeira vez o Partido Socialistadeixasse, fragmentariamente, seu cam-po de classe; bastou que um dia estabe-lecesse uma primeira aliança com umafacção da burguesia para que, nessa en-costa escorregadia, ameace rolar até ofim. Para uma obra de justiça e de repa-ração individual, misturou-se à classeinimiga, e ei-lo agora arrastado a fazergoverno em comum com essa classe.

E a luta de classes desembocandoassim na colaboração de classes, esta novaforma de cooperativa que reúne no mes-mo governo um homem que, se for soci-alista, deve perseguir a derrubada da so-ciedade capitalista, e outros homens,majoritários, cujo único objetivo é a con-servação da mesma sociedade, dão-nacomo um triunfo do proletariado, comoindicando a força adquirida pelo socia-lismo. Numa certa medida, sim, comodizia Lafargue. É porque o socialismo setornou uma força e um perigo para aburguesia, à qual ele mete medo, que estapensou em introduzir-se no proletaria-do organizado para dividi-lo e aniquilá-lo; mas não é a conquista dos poderes

públicos pelo socialismo, é a conquistade um socialista e de seus seguidores pe-los poderes públicos da burguesia.

E então, nós vimos, camaradas, oque de minha parte eu esperava jamaisver, nós vimos a classe operária, que temque fazer a sua República, como temque fazer sua revolução, chamada a mon-tar guarda em volta da República de seussenhores, condenada a defender o que sechamou a civilização capitalista.

Eu acreditava, quanto a mim, quequando havia uma civilização superiorno horizonte, que quando essa civiliza-ção dependia de um proletariado res-ponsável por sua libertação e pela liber-tação geral, era para essa civilização su-perior que se devia ter os olhos obstina-damente voltados; eu acreditava que erapreciso estar pronto a espezinhar apretensa ordem de hoje para fazer as-sim lugar para a outra.

Parece que não; parece que osgrandes burgueses de 1789 deveriam terse preocupado em defender o AntigoRegime, sob pretexto das reformas rea-lizadas no século XVIII; eu acreditavaque eles marcharam contra aquele regi-me, que varreram tudo, o mau e o bom,o bom com o mau, e acreditava que oproletariado não seria menos revoluci-onário, que, classe providencial por suavez, chamada a realizar, a criar uma so-ciedade nova, emancipadora, não maisde alguns, mas de todos, ele devia nãoter outro móbile senão seu egoísmo declasse, porque seus interesses se confun-dem com os interesses gerais e definiti-vos de toda a espécie humana!

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A nova política que se preconizaem nome da luta de classes consistiria,portanto, em organizar à parte, em seupróprio campo, o proletariado, e emtrazê-lo em seguida, como um exércitopronto, a qualquer um dos estados-mai-ores burgueses. Enquanto, abandonadapelos assalariados, que saíam de suas fi-leiras à medida que despertava sua cons-ciência de classe, a burguesia se sentiaperdida, impõem-nos hoje um deverpara amanhã, de irmos em seu socorrocada vez que se produzir uma injustiça,cada vez que uma mancha vier obscu-recer seu sol.

Ah! Camaradas, se vocês precisas-sem fazer desaparecer uma após outratodas essas manchas, não só os seus dias,mas as suas noites não bastariam paraisso, e vocês não conseguiriam limpar oque não se pode limpar; mas nesse tra-balho de Penélope, vocês teriam prolon-gado a dominação que os esmaga, teri-am eternizado a ordem de coisas de hojeque pesa sobre os seus ombros, apósdezoito meses de colaboração socialistano poder burguês, tão pesadamentequanto na época dos Méline, dosDupuy e dos Périer 31.

Coletivismo e revoluçãoNada mudou e nada pode mudar

na sociedade atual enquanto a proprie-dade capitalista não tiver sido suprimi-da e não tiver dado lugar à propriedadesocial, ou seja, à propriedade de vocês.

Essa idéia que, há vinte e poucosanos, introduzimos nos cérebros operá-rios da França deve permanecer a únicadiretriz dos cérebros conquistados e deveser estendida aos cérebros do lado, ondea luz socialista ainda não se fez. Esta énossa tarefa exclusiva; trata-se de recru-tar, de aumentar a coluna de assalto queterá, com o Estado tomado à viva força,que tomar a Bastilha feudal; e ai de nósse nos deixarmos deter durante o cami-nho, esperando como uma esmola aspretensas reformas que é do próprio in-teresse da burguesia, algumas vezes, jo-gar ao apetite da multidão, e que po-dem apenas entreter a fome. Somos esó podemos ser um partido de revolu-ção, porque nossa emancipação e aemancipação da humanidade só podemoperar-se revolucionariamente.

Desviar-nos dessa luta, camaradas,é trair, é desertar, é fazer o jogo dos bur-gueses de hoje, que sabem bem, comodizia Millerand em Lens, que o salariado

31 Méline: ver nota 9.Charles Dupuy (1851-1929), republicano moderado, tornou-se célebre em 1893 pelabrutalidade da polícia e sua repressão contra os sindicatos operários. Foi outras duas vezespresidente do Conselho.Jean-Casimir Périer (1847-1907) era mais orleanista do que republicano, proprietário dasminas de Anzin. Esse presidente do Conselho, depois presidente da República em 1894,opôs-se à separação das Igrejas e do Estado e reprimiu o movimento operário. Foi obrigadoa demitir-se em 1895.

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não é eterno, que sabem bem, comorepetiu, como um eco, Deschanel emBordeaux32, que o proletariado é umfenômeno provisório... mas que reme-tem o desaparecimento desta últimaforma de escravidão a sabe-se lá que datamais distante do que o próprio paraísodas religiões, que pelo menos deve se-guir imediatamente a sua morte. Vocêsnão aceitarão ser pagos nesta moeda depromessas, vocês estão atualmente cons-cientes demais e fortes demais.

Sem confusãoMas Jaurès foi mais longe; tentou

confundir a ação eleitoral do socialis-mo sustentando o sufrágio universalcomo um meio de combate à ação mi-nisterial pela burguesia governamental.Foi ainda mais longe, pretendeu que aoinstalar, com as forças de vocês, Carette33

na prefeitura de Roubaix e Delory naprefeitura de Lille, vocês autorizaramMillerand a aceitar um pedaço de po-der da classe contra a qual vocês sãoobrigados a lutar até à vitória final. Ci-tou-lhes, por outro lado, certas palavrasde Liebknecht, que teria condenado em1869 a entrada dos socialistas nos par-lamentos burgueses, enquanto no mes-mo ano ele se deixava levar com Bebelao Reichstag da Confederação da Ale-manha do Norte; lembrou-lhes que

Liebknecht penetrou igualmente noLandtag da Saxônia embora houvesse umjuramento a prestar e que Liebknechtdizia: “Se não fôssemos capazes de pas-sar por cima deste obstáculo de papel,não seríamos revolucionários.”

Que relação é possível estabelecerentre as duas situações? Para entrar noReichstag da Confederação da Alema-nha do Norte, era preciso ser levadopelos camaradas operários organizados;era preciso entrar lá pela brecha abertada democracia socialista; era-se o pro-curador de sua classe. Era preciso parao Landtag da Saxônia prestar um jura-mento irrisório, como o que Gambetta34

devia prestar ao império não impediaque fosse como inimigo que nos in-troduzíamos na Assembléia eletiva,como uma bala enviada pelo canhãopopular... E você ousa sustentar que ascondições seriam as mesmas deMillerand aceitando uma pasta deWaldeck-Rousseau? Foi o proletariado,parece, que, no ano passado, deu umtal empurrão eleitoral que se fez a bre-cha pela qual passou Millerand? Seme-lhante tese não é sustentável. Ele che-gou ao poder chamado pela burguesiagovernamental. (Aplausos e bravos.) Elechegou lá pelo interesse da burguesiagovernamental que, de outra forma nãoteria apelado para sua ajuda. Podia-se

32 Paul Deschanel, republicano radical moderado, presidente da Câmara dos Deputadosentre 1898 e 1902, foi presidente da República em 1920.33 Henri Carette (1846-1911), operário tecelão, foi prefeito (POF) de Roubaix de 1892 a1902.34 Gambetta (ver nota 34).

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constituir um ministério, mesmo demais defesa republicana do que este deque gozamos há dezoito meses, sem queum socialista dele fizesse parte. Você fa-lou do gabinete Bourgeois; não haviasocialista nesse gabinete e ele fez, pode-se afirmá-lo, uma obra mais republica-na do que o gabinete de hoje. Uma pro-va, entre outras, é que a lei sobre as su-cessões, votada então, não caiu nas gra-ças do governo de defesa republicana dopresente momento, que conta com umsocialista, e que abandonou uma parteda reforma de então. (Bravos.)

Camaradas, no dia em que o Parti-do Socialista, no dia em que o proletaria-do organizado compreendesse e praticas-se a luta de classes sob a forma docompartilhamento do poder político coma classe capitalista, nesse dia não haveriamais socialismo; nesse dia não haveria maisproletariado capaz de libertação; nesse dia,os trabalhadores teriam voltado a ser o queeram, há vinte e dois anos, quando res-pondiam, ora ao apelo da burguesia opor-tunista contra a burguesia monarquista,ora ao apelo da burguesia radical contra aburguesia oportunista; eles não seriammais do que uma classe, do que um parti-do a reboque, domesticado sem razão deser e, sobretudo, sem futuro.

35 Émile Ollivier (1825-1913), um dos cinco deputados republicanos eleitos em 1857 sobo Segundo Império, aceitou em 1870 formar um gabinete para conduzir uma política dereformas no âmbito da evolução liberal do regime imperial.36 Léon Gambetta (1838-1882). Grande figura republicana, organizou a resistência contraos prussianos em 1870-1871 e contribuiu para a evicção de Mac-Mahon em 1879. Em 24de maio de 1869, pronunciou o discurso de Belleville estabelecendo o programa republi-

CombatendoEu me lembro de um partido re-

publicano de que fiz parte, o velho par-tido republicano, que recusava o gêne-ro de compromisso que se gostaria deimpor hoje a nosso Partido Socialista.Tendo o Império apelado, realmenteapelado para um dos Cinco, para ÉmileOllivier35, embora se tratasse então detransformar, o que era possível, o Im-pério ditatorial em Império liberal, em-bora houvesse ao cabo dessa colabora-ção de um republicano no governo deBonaparte a liberdade de reunião e deimprensa e o direito de coligação ope-rária, apesar de tudo, por unanimida-de, a burguesia republicana, mais intran-sigente, possuindo sobre seus políticosum domínio mais completo, não hesi-tou em executar como traidor o Sr.Émile Ollivier.

Não teríamos nós, portanto, nema energia nem a consciência dos republi-canos burgueses do fim do Império? Essaé, aliás, apenas a parte incidente de mi-nha evocação do passado. O que eu que-ria ilustrar, é que o partido republicanosob o Império, como o Partido Socialis-ta hoje, dizia: “É preciso fazer a Repúbli-ca, mas é preciso marchar combatendo.”

Isso não durou muito tempo. Veioum homem, era Gambetta36, e eu me

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recordo de que em 1876, em Belleville,ele pronunciava as seguintes palavras:“Não conheço senão duas maneiras dechegar ao meu objetivo, negociando oucombatendo; não sou pela batalha.”

Era o decreto de morte do velhopartido republicano; o oportunismonascera, e o oportunismo republicanoera a esterilidade republicana, era o abor-to republicano, incapaz em trinta anosde chegar mesmo às reformas políticasque são um fato consumado além denossas fronteiras, nos Estados Unidosda América ou na República Helvética;era, repito-o, a morte do partido repu-blicano burguês! Pois bem, hoje, nós nosencontramos, nós, Partido de classe,nós, Partido Socialista, com responsa-bilidades maiores, com necessidades quese impõem mais imperiosamente, pe-rante as mesmas duas políticas: uns pre-conizando a tomada do poder políticocombatendo, os outros prosseguindoessa tomada do poder parcialmente,fragmentariamente, homem por ho-mem, pasta por pasta, negociando.

Nós não somos a favor do negó-cio: a luta de classes proíbe o comérciode classes; não queremos esse comércio;e se vocês quisessem isso, camaradas dafábrica, camaradas da oficina, proletá-rios que têm uma missão a cumprir, amais alta missão que jamais se tenha im-posto a uma classe, no dia em que vocêsaceitassem o método novo, nesse dia nãosó vocês teriam feito um mau negócio

mas teriam apagado a grande esperançade renovação que põe hoje em pé omundo do trabalho.

Classe contra classeHoje o que faz a força, a irresisti-

bilidade do movimento socialista, é acomunhão de todos os trabalhadores or-ganizados perseguindo, através das for-mas governamentais mais divergentes, omesmo objetivo pelo mesmo meio: a ex-propriação econômica da classe capita-lista pela sua expropriação política.

Esta unidade socialista, brotada dasmesmas condições econômicas, seria que-brada para sempre no dia em que, em vezde contar apenas consigo mesmos, vocêssubordinassem sua ação a um pedaço daclasse inimiga, que só poderia se juntar anós para nos arrancar de nosso verdadei-ro e necessário campo de batalha.

A revolução que lhes incumbe sóé possível na medida em que vocês per-manecerem vocês mesmos, classe con-tra classe, não conhecendo e não que-rendo conhecer as divisões que podemexistir no mundo capitalista. É a con-corrência econômica que é a lei da suaprodução e é a concorrência política ouas divisões políticas que, cuidadosamen-te mantidas, lhe permitem prolongar suamiserável existência.

Se a classe capitalista formasse ape-nas um único partido político, teria sidodefinitivamente esmagada na primeiraderrota em seus conflitos com a classe

cano: as liberdades individuais e coletivas, a separação das Igrejas e do Estado, a instruçãoprimária gratuita, laica e obrigatória, a supressão dos exércitos permanentes...

172 • O SOCIALISMO FRANCÊS EM 1900: O GRANDE DEBATE ENTRE JEANJAURÈS E JULES GUESDE

proletária. Mas dividiu-se em burgue-sia monarquista e em burguesia repu-blicana, em burguesia clerical e em bur-guesia livre-pensadora, de modo que umafacção vencida pudesse sempre ser substi-tuída no poder por uma outra fração damesma classe igualmente inimiga.

É o navio de compartimentos es-tanques que pode fazer água de um ladoe que não deixa, entretanto, de flutuarinsubmersível. E esse navio, são as gale-ras do proletariado, nas quais são vocêsque remam e que penam e que penarãoe que remarão sempre, enquanto nãotiver sido afundada, sem distinção depiloto, a nau que leva a classe capitalis-ta e sua fortuna, ou seja, os lucros reali-zados em cima da miséria de vocês e emcima da servidão de vocês. (Aplausos ebravos repetidos.)