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o SIGNO LINGüíSTICO EM BAKHTIN ( THE LlNGUISTIC SIGN OF BAKHTIN) RESUMO Este estudo tem por objetivo uma leitura da con- cepção de signo lingüistico sob a perspectiva da obra Marxismo efilosofia da linguagem, de M. M. Bakhtin. Fundamentado no principal aspecto que se apresen- ta ao longo de todos os seus trabalhos - a relação entre os usos da linguagem e as estruturas sociais - Bakhtin coloca a consciência individual e os fenôme- nos ideológicos, os quais são reproduzidos pelo dis- curso, como produtos influenciados pelas formações sociais e econômicas. Assim, para Bakhtin, o signo lingüistico deixa de ser um sinal imóvel, neutro e univalente para se efetivar como um signo sócio-ide- ológico, no qual se destaca: sua natureza dialética - a partir de uma realidade material (uma imagem so- nora) ele refrata uma outra realidade (representações e avaliações de um campo ideológico); sua natureza dialógica - porque encerra em si interações verbais dos indivíduos e dos grupos que o constitui, bem como diálogos entre diversos discursos - e de natureza polifônica - por sustentar diferentes temas, conforme o horizonte social e ideológico que se insurge no ato de enunciação. Palavras-Chaves: enunciação; polifonia; signo lingüístico; dialógico ABSTRACT The objective of this study is a conceptual reading of the linguistics of M. M. Bakhtin 's Marxism and Philosophy of Language. Based on the cha- racteristic that pervades all his works - the re- lationship between the use of language and social constructions - Bakhtin considers individual conscience and ideological phenomena, which are reproduced throughout his discourse, asfactors being significantly influenced by social and economic 70 CELLINA RODRIGUES MUNIZ factors. Thus,for Bakhtin, linguistic signs cease being immobile signs - neutral insofar as they effect a socio-ideological sign, which is separated in the following manner: dialectic nature - insofar as mate- rial reality (a sonorous image) is concerned, another reality is reflected (representations and evaluations from the ideological perspective); and dialogic nature - because it is enclosed by verbal interactions of groups and individuals of which it is composed, like dialogues between diverse discourses - and natural polyphony - to sustain several themes confirming the social and ideological horizon from which surges enunciation. Keywords: enunciation, polyphony, linguistic signs, dialogism INTRODUÇÃO Uma indagação que sempre se fez presente ao longo de toda a história da reflexão lingüística, desde mesmo a antigüidade clássica, é: a língua (gem) é uni- versal ou é particular? As atividades lingüísticas di- zem respeito a regras gerais e imanentes de seu próprio sistema ou seu percurso se orienta de acordo com o sujeito emissor numa situação particular? Em outras palavras, de que forma os atos de linguagem são de- terminados? A princípio, diga-se que ambas as considerações são pertinentes e até mesmo que se complementam reciprocamente. Elas sempre direcionaram os estudos da linguagem, em graus diferentes, dos neogramáticos até os analistas da conversação, uns enfatizando prin- cípios e critérios unívocos, outros priorizando a pecu- liaridade dos indivíduos envolvidos. Porém, sem querer negar os aspectos puramen- te lingüísticos e os cognitivos, o que este trabalho quer enfatizar é o aspecto social da linguagem, o que cons- titui o preceito máximo do pensamento de Mikhail • -.JU'LJ"\LJ\O E DEBATE' FORTALEZA· ANO 21 • V 1 • NQ39 • p. 70-76 • 2000

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o SIGNO LINGüíSTICO EM BAKHTIN( THE LlNGUISTIC SIGN OF BAKHTIN)

RESUMO

Este estudo tem por objetivo uma leitura da con-cepção de signo lingüistico sob a perspectiva da obraMarxismo efilosofia da linguagem, de M. M. Bakhtin.Fundamentado no principal aspecto que se apresen-ta ao longo de todos os seus trabalhos - a relaçãoentre os usos da linguagem e as estruturas sociais -Bakhtin coloca a consciência individual e os fenôme-nos ideológicos, os quais são reproduzidos pelo dis-curso, como produtos influenciados pelas formaçõessociais e econômicas. Assim, para Bakhtin, o signolingüistico deixa de ser um sinal imóvel, neutro eunivalente para se efetivar como um signo sócio-ide-ológico, no qual se destaca: sua natureza dialética -a partir de uma realidade material (uma imagem so-nora) ele refrata uma outra realidade (representaçõese avaliações de um campo ideológico); sua naturezadialógica - porque encerra em si interações verbaisdos indivíduos e dos grupos que o constitui, bem comodiálogos entre diversos discursos - e de naturezapolifônica - por sustentar diferentes temas, conformeo horizonte social e ideológico que se insurge no atode enunciação.

Palavras-Chaves: enunciação; polifonia; signolingüístico; dialógico

ABSTRACT

The objective of this study is a conceptualreading of the linguistics of M. M. Bakhtin 's Marxismand Philosophy of Language. Based on the cha-racteristic that pervades all his works - the re-lationship between the use of language and socialconstructions - Bakhtin considers individualconscience and ideological phenomena, which arereproduced throughout his discourse, asfactors beingsignificantly influenced by social and economic

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CELLINA RODRIGUES MUNIZ

factors. Thus,for Bakhtin, linguistic signs cease beingimmobile signs - neutral insofar as they effect asocio-ideological sign, which is separated in thefollowing manner: dialectic nature - insofar as mate-rial reality (a sonorous image) is concerned, anotherreality is reflected (representations and evaluationsfrom the ideological perspective); and dialogic nature- because it is enclosed by verbal interactions ofgroups and individuals of which it is composed, likedialogues between diverse discourses - and naturalpolyphony - to sustain several themes confirming thesocial and ideological horizon from which surgesenunciation.

•Keywords: enunciation, polyphony, linguistic signs,dialogism

INTRODUÇÃO

Uma indagação que sempre se fez presente aolongo de toda a história da reflexão lingüística, desdemesmo a antigüidade clássica, é: a língua (gem) é uni-versal ou é particular? As atividades lingüísticas di-zem respeito a regras gerais e imanentes de seu própriosistema ou seu percurso se orienta de acordo com osujeito emissor numa situação particular? Em outraspalavras, de que forma os atos de linguagem são de-terminados?

A princípio, diga-se que ambas as consideraçõessão pertinentes e até mesmo que se complementamreciprocamente. Elas sempre direcionaram os estudosda linguagem, em graus diferentes, dos neogramáticosaté os analistas da conversação, uns enfatizando prin-cípios e critérios unívocos, outros priorizando a pecu-liaridade dos indivíduos envolvidos.

Porém, sem querer negar os aspectos puramen-te lingüísticos e os cognitivos, o que este trabalho querenfatizar é o aspecto social da linguagem, o que cons-titui o preceito máximo do pensamento de Mikhail

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akhtin sobre o signo lingüístico, particularmente em~ rxismo e Filosofia da Linguagem. Ao diferir da

enciosidade extrema das duas correntes citadas por=: e orno "objetivismo abstrato" (o estruturalismo que

a língua apenas como uma estrutura abstrata de: nuas e relações) e "subjetivismo idealista" (o- - logismo que focaliza a linguagem como um ato- cofisiológico, centrado no indivíduo), Bakhtin pro-- uma nova concepção de estudo da linguagem que_ . o que há de fundamental nas duas posições: 1-)

lado, apesar da língua ser um sistema de unida-e relações próprias e autônomas, a análise de seus: não se deve restringir somente a uma simples des-

_- de formas e funções, acima da realidade prag-ca de seus usuários; 2-) Por outro lado, esses

os usuários não devem ser vistos como sujeitos.vos, conscientes e senhores de suas atividadesivas e nem estas devem ser encaradas apenas

aros verbais particulares e irreiteráveis.Em linhas gerais, o que Bakhtin coloca é que as

festações lingüísticas não sejam analisadas so--'" orno usos de critérios universais e absolutos: ao sistema lingüístico ou como usos acidentais

: íficos que dizem respeito ao consciente psí-e cada um, mas sim como práticas. que inte-

::!II1 todo coletivo, contextualizado historicamente.::C.::.rral,social e ideologicamente. Surge, assim, o

-,,-,-.;;.~-.ode enunciado - cujo estudo se dá a partir da-'" das condições de enunciação, bem como as

-==e:::as noções de texto (produto da criação ideoló-anifestado numa situação concreta) e de

.zr.:;:!:l"""w!~talidade(referência a outros textos).?riorizando o estudo da linguagem em seus

~-~~ns reais de uso, este trabalho apresenta o sig-f;-- tico em Bakhtin como um signo sócio-ideo-

e destaca suas principais características, taiscialogismo e polifonia.

s;:tEmE"MARXISMO E FILOSOFIA DA-........•.•._.AGEM"

Embora Bakhtin nunca tenha reconhecido ofi-_~~'u:;. a autoria desse livrol, publicado pela pri-

ez em 1929 sob o nome de Volochínov, adeptom::~~~te do chamado "Círculo de Bakhtin" , é in-

.::::::.:::;!!!~.• '''1 a presença de traços teóricos que permeiam_ njunto de obras de Bakhtin, obras nas quais

~ Acerca da filosofia do acto (publicadoportuguesa pela primeira vez em 1987 e

o período entre 1919 a 1921), e O métodoestudo literário: uma introdução crítica à

poética sociológica (assinado por Medviédiev e quedata de 1928). Nesse conjunto de obras que reúnemum mesmo pensamento a respeito da linguagem, in-cluem-se ainda Problemas da poética de Dostoiévskie Estética da criação verbal, o que estende o domíniode Bakhtin em lingüística à crítica literária e à estética.

Como o próprio subtítulo faz prever - Tentati-va de aplicação do método sociológico em lingüísti-ca e como afirma Marina Yaguello no prefácio daoitava edição (Bakhtin, 1997: 13): ... trata-se, princi-palmente, de um livro sobre as relações entre lingua-gem e sociedade, colocado sob o signo da dialéticado signo, enquanto efeito das estruturas sociais.

Bak:htin elabora um estudo dos usos da lingua-gem - os quais ele classifica como enunciados - emque esteja presente a análise das condições sociais deprodução ou, em outras palavras, uma análise que leveem conta:

...a natureza social dos fatos lingidsticos, oque significa entender a enunciação indis-soluvelmente ligada às condições de comuni-cação, que por sua vez estão sempre ligadasàs estruturas sociais (Brait, 1997: 98).

Sobre este pressuposto - a íntima relação entrelinguagem e sociedade - que, como foi dito, se apre-senta ao longo de toda sua obra, Bak:htin fundamentasua abordagem de estudo da linguagem na tese de queo signo lingüístico é um signo sócio-ideológico, noqual se destaca sua natureza dialógica e polifônica:

Na realidade, não são palavras o quepronunci-amos ou escutamos, mas verdades ou mentiras,coisas boas ou más, importantes ou triviais,agradáveis ou desagradáveis, etc.A palavra estásempre carregada de um conteúdo ou de umsen-tido ideológico ou vivencial (Bakhtin 199 :9-).

o autor faz, ao afirmar que a enunciação é denatureza social (Bakhtin, 1997: 103) uma crítica aosmétodos do "objetivismo abstrato" e do 'subjeti ismoidealista" porque ambas as posições não consideramo contexto social e concreto em que se efetivam asenunciações: a primeira por categorizar o sistemalingüístico (langue) como um conjunto abstrato de"sinais" e a segunda por considerar os enunciados, ouatos de fala., como ocorrências que se explicam nascondições da vida psíquica e individual.

Bakhtin combate os principais pontos presentesnessas concepções de estudo da linguagem tais comosistematização abstrata, estabilidade e univocidade ao

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ressaltar outros pontos como verdade histórica, dinâmi-ca e plurivalência. A partir do clássico princípio dialógicodo enunciado - em que cada enunciado internaliza em siuma réplica a outros enunciados, concebe-se o signolingüístico em Bakhtin: o signo deixa de ser uma entida-de exclusivamente una, de uma única significação e passaa ser de natureza dialética e polifônicaê- ele tanto refletequanto refrata diversas realidades e diversos temas, tan-tos quantos forem os tipos de diálogos entre indivíduose entre discursos aos quais remete, baseados nos tipos deestruturas e relações sociais e de campos ideológicos,que, por sua vez, se associam às condições econômicas.O signo lingüístico se efetiva assim como signo sócio-ideológico, bem diferente do sinal imóvel idealizado ouda manifestação psicofísiológica que propunham astentências vigentes na época:

A língua vive e evolui historicamente na"comunicação verbal concreta", não no sis-tema lingüístico abstrato das formas da lín-gua nem no psiquismo individual dos falantes(Bakhtin, 1997: 124).

Brait (1997: 95) observa, a propósito de Acer-ca da filosofia do acto, já essa mesma tônica encon-trada em Marxismo e filosofia da linguagem:

... o autor opõe a uma filosofia baseada na"pureza teórico-abstrata do procedimen-to"(. ..}umafilosofia que possibilite a descri-ção de um evento em sua forma ativa.

O trabalho de Bakhtin, lançando as bases da Te-oria da Enunciação, não pretende negar a autonomiado sistema lingüístico através de uma tese mecanicistade que todas as formações lingüísticas são condiciona-das por fatores sociais: Bakhtin apenas alerta sobre anecessidade de se estabelecer um paralelo entre os enun-ciados, principalmente no que diz respeito à sua se-mântica discursiva, e os contextos imediatos (situação)e amplos (realidade histórica) de produção.

o SIGNO LlNGüíSTICO COMO SIGNOSÓCIO-IDEOLÓGICO

Apesar da língua ser uma estrutura de relaçõese regras próprias, e apesar da linguagem ser uma pro-priedade intrínseca do homem, não há como negar queseus usos se baseiam sobre a convenção social, comoo próprio Saussure enfatízou''. É através da ação entreos homens que se constitui a língua como um sistemade signos:

Os signos são, por um lado, suportes exterio-res e materiais da comunicação entre as pes-soas e, por outro lado, são o meio pelo qualse exprime a relação entre o homem e o mun-do que o cerca (Lopes, 1980: 16).

Tratando-se de uma abordagem marxista de estu-do da linguagem, ao se referir ao signo lingüístico comoum signo sócio-ideológico, o sentido que se pretendeaplicar a ideológico não implica necessariamente asconotações negativas subjacentes às concepções marxis-tas para o fenômeno ideológico". Não é necessariamentea colocação de ideologia como uma distorção da reali-dade que interessa aqui. O que se quer ressaltar do pen-samento de Marx no trabalho de Bakhtin é que ...

O modo de produção da vida materialcondiciona o processo em geral de vida soci-al, político e espiritual. Não é a consciênciados homens que determina o seu ser, mas, aocontrário, é o seu ser social que determina asua consciência (Marx, 1987:22).

As condições de produção material influenci-am as estruturas sociais e suas conseqüentes forma-ções ideológicas. Por ideologia entende-se

...um conjunto lógico, sistemático e coerentede representações (idéias e valores) e de nor-mas ou regras (de conduta)(ChauÍ, 1998: 113).

2De acordo com Tezza (1998) Bakhtin utiliza o termo polifônico para definir a narrativa de Dostoiévski, em Problemas da poética deDostoiévski. No próprio Marxismo efilosofia da linguagem Bakhtin faz referência a uma passagem de uma obra célebre do romancis-ta russo para exemplificar a característica polissêmica do signo lingüístico (P. 133).J A semiologia proposta por Saussure, como estudo dos signos, se restringe ao âmbito da Psicologia Social, em razão das caracterís-ticas fundamentais do signo: arbitrariedade e convencionalidade. Porém, com a dicotomia langue/parole, Saussure considera a falacomo uma categoria totalmente distinta da língua: a primeira se caracteriza como uma atividade individual e acidental enquanto asegunda se restringe a uma abstração. A lingüística, dessa forma, para se firmar como ciência autônoma, não deveria, na leiturasaussureana, levar em conta os usos da linguagem (ou atos de fala) particulares, pois estes não exerceriam nenhuma influência naestrutura da língua. E por não analisar a língua em seus usos reais que Bakhtin critica a lingüística estruturalista.• Segundo Thompson (1995: 45-74), as concepções de ideologia em Marx, particularmente em A ideologia alemã e Para a crítica daeconomia política, carregam critérios pejorativos, como abstrata e impraticável (no que se refere a uma ciência das idéias que "descedo céu para a terra" - ao sustentar que são as idéias que modelam a realidade material) e errônea e ilusória (como conjunto de idéiasimpostas pelas classes dominantes que, num falseamento da realidade, sustentam relações de poder).

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E, ainda... conjunto de idéias, (...) representações queservem para justificar e explicar a ordem so-cial, as condições de vida do homem e asrelações que ele mantém com os outros ho-mens ... (Fiorin, 1998: 28).

Braga (1980: 50-51) acrescenta:

...não são representações objetivas do mun-do mas representações cheias de elementosimaginários. Mais do que descrever uma rea-lidade, expressam desejos, esperanças, nos-talgias. (...)Os homens interagem entre si ecom o mundo dentro da ideologia. É ela queforma e conforma nossa consciência, atitu-des, comportamentos, para amoldar-nos àscondições de nossa existência social.

De acordo com o pensamento marxista, em pri-meiro lugar, ressalta Bakhtin que a consciência indi-·idual é um fato social (Bakhtin, 1997: 35). Ao se

materializar através dos signos criados e conven-ionalizados pela sociedade

É fundamental que (. .. ) dois indivíduosestejam socialmente organizados, que for-mem um grupo (uma unidade social): só as-sim um sistema de signos pode constituir-se(Bakhtin, 1997: 35)

o pensamento individual é, na verdade, umaexpansão, uma reprodução do pensamento do grupo:

A consciência adquire forma e existência nossignos criados por um grupo organizado no cur-so de suas relações sociais (Bakhtin,1997:36).

Sendo assim, um fenômeno ideológico nãopode ser fruto exclusivo da consciência individual,e nem, portanto, uma formação discursiva. Comoressalta Fiorin (1998), o indivíduo não é senhor ab-oluto do seu discurso. Os textos' não são produtos

exclusivos da consciência individual, haja vista que

a própria consciência é um conjunto de discursosintemalizados no indivíduo ao longo da história .Esses discursos estão repletos de avaliações ideoló-gicas e sociais cultivadas historicamente e que serelacionam intimamente com as condições materiaisem que se sustenta a comunidade lingüística ( ou clas-se social, numa acepção mais marxista) a qual per-tence o sujeito". Eis outro aspecto básico dopensamento marxista presente no trabalho deBakhtin: um fenômeno ideológico é determinado pelotipo de interações e relações sociais que, por sua vez,são influenciadas pelo tipo de condições materiaisde existência:

Para que o objeto, pertencente a qualqueresfera da realidade, entre no horizonte socialdo grupo e desencadeie uma reação semiô-tico-ideolágica, é indispensável que ele este-ja ligado às condições sócio-econômicasessenciais do referido grupo, que concerne dealguma maneira às bases de sua existênciamaterial (Bakhtin, 1997:45).

E afirma que este conjunto de relações recí-procas entre uma infra-estrutura econômica e umasuperestrutura social pode ser comprovado pela aná-IÍ'Se da matéria verbal:

As relações de produção e a estrutura sócio-política que deLas deriva determinam todosos contatos verbais possíveis entre indivídu-os, todas as formas e os meios de comunica-ção verbal (...)Por sua vez, das condições,formas e tipos de comunicação verbal deri-vam tanto as formas como os temas dos atosde fala' (Bakhtin, 1997:42).

Para Bakhtin, o domínio dos signos coincidecom o domínio ideológico, são mutuamente corres-pondentes porque sem signos não existe ideologia(Bakhtin, 1997: 31) e todo signo está sujeito aos cri-térios de avaliação ideológica:

Um signo não existe apenas como parte de

5 Sobre a distinção entre discurso e texto, Fiorin (1998) esclarece que discurso é o conjunto de combinações lingüísticas que possibi-item ao falante expressar sua maneira de pensar e agir sobre o mundo, enquanto texto é a exteriorizaçâo, a concretização, no plano de

expressão, do discurso, podendo ser oral ou escrito.Como bem diz Orlandi (1987: 19): O sujeito que produz linguagem também está reproduzido nela.

- Segundo Koch (1998: 19-20), a teoria dos atos de fala, ou atos de linguagem propriamente ditos, originou-se com a filosofia dalinguagem e estendeu-se ao campo da lingüística pragmática. Concebe-se a atividade lingüística como reflexo de diversos tipos deações humanas, impregnada de diferentes "forças": locucionária (o ato de referência), ilocucionária (a maneira como se pratica aproposição, se uma assertiva, uma interrogação etc.) e perlocucionária (o efeito que se deseja causar na audiência).

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uma realidade; ele também reflete e refratauma outra. Ele pode distorcer essa realida-de, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um pontode vista específico, etc. (...). Ali onde o signose encontra, encontra-se também o ideológi-co (Bakhtin, 1997: 32).

Um produto ideológico se firma a partir deum produto da realidade material carregado de umarepresentação simbólica. O universo dos signos,como expressão de uma dada realidade material,seja natural ou social, remete a uma outra realida-de, um campo ideológico. Sendo o signo uma for-mação criada a partir da convenção entre osindivíduos de um grupo, os signos carregam em sia representação de valores e juízos cultivados pelogrupo social que os constituem. A língua, encaradacomo um conjunto de signos, também concentra emsuas formas e suas significações conotações ideo-lógicas, o que faz da linguagem também um objetosujeito a avaliações sociais:

lnternalizada como mecanismo de primeirasociabilização no psiquismo de cada indiví-duo na fase de sua aprendizagem, a línguanatural carrega consigo os valores da socie-dade de que esse indivíduo é membro; assim,ao aprender a língua do seu grupo, cada in-divíduo assimila também a sua ideologia i=sistema de valores grupalmente compartilha-dos) (Lopes, 1980: 16).

Dessa forma, em síntese, pode-se dizer que háuma unidade entre as formações sociais, as formaçõesideológicas e, finalmente, as formações discursivas.O signo lingüístico é, assim, um signo sócio-ideoló-gico = criado pela convenção social e concentrandoem si os valores do grupo que o constituiu - e todaatividade lingüística é antes de tudo uma expressãoda atividade mental do nós:

Realizando-se no processo da relação social,todo signo ideológico, e portanto também osigno lingidstico, vê-se marcado pelo "hori-zonte social" de uma época e de um gruposocial determinados (Bakhtin, 1997:44).

DIALOGISMO E POLlFONIA DO SIGNOLlNGüíSTICO

Bakhtin, com sua teoria da enunciação, afirmaque a língua deve ser analisada em seus contextosconcretos de uso, contextos esses que situam os sujei-tos envolvidos historicamente (contextos imediatos eamplos). Dentro dessa perspectiva, configuram-se osusos da linguagem ou enunciados: A situação socialmais imediata e o meio social mais amplo determinam(...) a estrutura da enunciação (Bakhtin, 1997: 113).

Primeiramente, os usos de linguagem implicamfundamentalmente numa interação verbal, haja vistaa existência básica de um emissor com um objetivosociocomunicativo em relação a um receptor (sejamesses usos textos escritos ou orais):

o homem usa a linguagem perante outro ho-mem para comunicar-se com ele e usa a lin-guagem, estando a sós, para "comunicar-seconsigo mesmo"(Lopes, 1980:22).

Vale lembrar que o que se faz presente no pro-cesso de comunicação não é apenas "conhecer" umobjeto de informação e sim a "compreensão" e a "in-terpretação" entre os sujeitos (Barros, 1997: 29)8:..

...a enunciação é produto da interação de doisindivíduos socialmente organizados e, mesmoque não haja um interlocutor real, este pode sersubstituído pelo representante médio do gruposocial ao qual pertence o locutor. A palavra di-rige-se a um interlocutor (Bakhtin,1997:112).

Nesse diálogo mais imediato (a interação de doisindivíduos numa dada situação) está subjacente arecorrência a outros textos e outros discursos, que pro-duziram e foram produzidos pelos sujeitos sociais.Embora a enunciação seja uma situção singular e ja-mais repetida, em cada novo enunciado há uma refe-rência implícita a discursos que se intemalizaram noindivíduo. Assim, a enunciação se estabelece a partirda relação dos sujeitos entre si e destes perante a soci-edade. Por isso ...0 texto é (. ..) constituitivamentedia lógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutorese pelo diálogo com outros textos (Barros, 1997: 29).9

8 A este respeito, Bakhtin afirma: o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer aforma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular (Bakhtin, 1997: 93).9 Essa natureza essencialmente dialógica é apontada por Orlandi (1987) ao se referir à existência subjacente, para urna dada formaçãodiscursiva, de urna formação imaginária (as projeções representativas dos sujeitos sociais envolvidos na enunciação) e de um contiinumentre um discurso originário e um futuro discursivo.

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o signo lingüístico, como um signo sócio-ide-ológico de natureza dialógica, deixa de ser uma enti-dade abstrata, neutra e mono valente para se apresentarcomo uma arena de diferentes vozes, uma entidadefundamentalmente polifônica:

... a linguagem é, por constituição, dialágicae a língua não é ideologicamente neutra e simcomplexa, pois, a partir do uso e dos traçosdos discursos que nela se imprimem, insta-lam-se na língua choques e contradições (Bar-ros, 1997: 34).

Sobre o preceito de polifonia do signo lingüís-tico, Bakhtin utiliza a distinção entre significação etema. O signo lingüístico dentro do sistema da línguatem uma significação geral, mas para cada enunciação,ele pode apresentar diferentes temas 10. Enquanto asignificação corresponde a um elemento abstrato deentido, o tema é uma significação particular de cada

enunciação. Um forma lingüística tem uma significa-•ão total que se restringe ao sistema da língua, masdentro de uma realização concreta ela pode adquiririnumeráveis temas:

o tema é um sistema de signos dinâmico e com-plexo, que procura adaptar-se adequadamenteàs condições de um dado momento da evolu-ção(...)A significação é um aparato técnicoparaa realização do tema (Bakhtin,1997: 129).

O que determina o tema nas enunciações dizrespeito à apreciação social: Toda enunciação com-preende antes de mais nada uma orientação aprecia-riva (Bakhtin, 1997: 135) ll. São as visões de mundoompartilhadas, as avaliações de ordem social e ideo-

lógica que determinam quais os usos e comportamen-os lingüísticos pertinentes ou não em determinadaituação de locução--.

É também nesse aspecto que as enunciações eos discursos constituem os sujeitos: estes são inferidose categorizados conforme se posicionam lingüis-ricamente - econômica, social e ideologicamente.

Dessa polifonia de significações - temas e apre-iações diversos postos em prática nas enunciações -

decorrem as mudanças de significação:

A evolução semântica na língua é sempre li-gada à evolução do horizonte apreciativo deum dado grupo social e a evolução do hori-zonte apreciativo - no sentido da totalidadede tudo que tem sentido e importância aosolhos de um determinado grupo - é inteira-mente determinada pela expansão da infra-estrutura econômica (Bakhtin, 1997: 136.

É sob essa visão que Bakhtin questiona o con-ceito de sincronia lingüística. Para ele não há equilí-brio e estabilidade na língua a não ser na consciênciasubjetiva de um usuário, de uma dada comunidade lin-güística, num dado momento histórico. Objetivamen-te, a língua se constitui, na verdade, de diferentesvariações de ordem puramente lingüística (processostais como analogia, menor esforço, etc.) ou extra-lin-güísticas (diatópicas, diastráticas e diafásicas) e vari-antes (dialetos, socioletos, idioletos) realizadas emdiferentes situações enunciativas. Cada uma dessasunidades de variantes encerra em si um conjunto derepresentações e apreciações dos grupos dos quaisemergem os locutores.

Um exemplo de como as significações da lín--gua estão intimamente ligadas aos juízos de valor deordem convencional é a chamada Tradição Gramati-cal, que remonta à antigüidade clássica: através dasegregação entre trabalho manual e trabalho intelec-tual, um grupo de mentes "privilegiadas" (inclusivesocial e economicamente) compilou de obras literári-as um conjunto de regras que, sob os critérios de seugosto pessoal, determinassem o que fosse retórica eesteticamente agradável e belo, padronizando einstitucionalizando assim uma "norma culta".

Para Bakhtin, "compreender" e "interpretar" taisrepresentações e apreciações presentes nos temas e nasformas dos textos, das interações, dos enunciados e, demaneira mais abrangente, das diferentes normas lin-güísticas, enfim, é o que deve consistir o verdadeiroobjetivo dos estudos da língua e da linguagem:

...aquilo que constitui a descodificação da for-ma lingüística não é o reconhecimento do sinal,

Como lembra Fiorin (1998: 32): ...a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temase de figuras que materializa uma dada visão de mundo.I A esse propósito, Orlandi (1987) fala sobre a tensão na istância da linguagem (no que se refere a formas e sentidos) entre o MESMOegitimado pelo poder) e o DIFERENTE (tentativa de ruptura com o institucionalizado). Em outras palavras, seria o palco de luta

entre classes que Bakhtin aponta no signo lingüístico.'Sobre isso, há um fio condutor com o estudo de Goffman (1998) sobre a conversação, no qual a interação verbal se manifesta como

am encontro social e, dessa forma, traça-se um paralelo entre usos da linguagem e regras culturais - as marcas textuais (formas e:emas) utilizadas pelos interlocutores indicam como estes se projetam no discurso e se enquadram cultural, social e ideologicamente.

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mas a compreensãoda palavra no seu sentidoparticular,istoé, a apreensãodaorientaçãoqueé conferidaà palavra por um contextoe umasituaçãoprecisos (Bakhtin,1997:94).

CONCLUSÃO

o signo lingüística em Bakhtin, sob leitura daobra Marxismo e filosofia da linguagem, vai além daconcepção saussureana de imagem acústica acrescidade um conteúdo, de significações cristalizadas: ele seapresenta como um signo dialético - porque é indica-do por uma realidade (material) e reflete uma outra(ideológica); dialógico - porque nasce de um proces-so de interação entre indivíduos e faz referência a di-álogos entre formas e sentidos historicamenteinternalizados; e polifônico - porque sustenta temasdiversos, associados aos contextos imediatos e am-plos de produção.

Bakhtin contribui, assim, com as teorias do dis-curso: ao colocar a importância de um estudo da lin-guagem em seus contextos imediatos (situação) eamplos (meio histórico, social e ideológico) demons-tra que linguagem se constitui não em um 'Produtoacabado mas sim por suas condições de produção.Sugere também a mútua formulação entre sociedadee linguagem: por um lado, as interações verbais sãoexpressão de ralações humanas (econômicas e soci-ais) e estruturadas através de avaliações ideológicasque se insurgem no ato de enunciação; por outro lado,é através dessas mesmas enunciações contextualizadasque se constituem os sujeitos interlocutores, indiví-duos situados historicamente. Enfatiza-se, portanto, aimportância de um estudo da linguagem em seus usosreais e sociais, privilegiando elementos como diversi-dade lingüística (tanto no que se refere aos temas quan-to às formas) e pluridiscursividade.

Dessa maneira, Bakhtin prevê antecipadamen-te premissas básicas que irão nortear os estudos desdea Teoria da Enunciação até a Análise do Discurso, decontribuição vital também para a Sociolingüística.

Com suas idéias, antecipou em anos a lingüística con-temporânea e sua presença é de relevância capital parao estudo da estreita relação entre língua(gem) esociedade.

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76 • EDUCAÇÃO EM DEBATE· FORTALEZA • ANO 21 • V 1 • NQ 39 • p. 70-76 • 2000