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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 91-103, jan-abr. 2007 91 O significado da variabilidade artefatual: a cer O significado da variabilidade artefatual: a cer O significado da variabilidade artefatual: a cer O significado da variabilidade artefatual: a cer O significado da variabilidade artefatual: a cerâmica dos Asurini do Xingu âmica dos Asurini do Xingu âmica dos Asurini do Xingu âmica dos Asurini do Xingu âmica dos Asurini do Xingu e a plumária dos K e a plumária dos K e a plumária dos K e a plumária dos K e a plumária dos Kayapó- ayapó- ayapó- ayapó- ayapó-Xikrin do Cateté Xikrin do Cateté Xikrin do Cateté Xikrin do Cateté Xikrin do Cateté The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xingu The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xingu The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xingu The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xingu The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xingu and the featherwork of K and the featherwork of K and the featherwork of K and the featherwork of K and the featherwork of Kayapó- ayapó- ayapó- ayapó- ayapó-Xikrin Xikrin Xikrin Xikrin Xikrin Fabíola Andrea da Silva I Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Aspectos relativos à variabilidade encontrada em diferentes conjuntos artefatuais etnográficos: nos vasilhames cerâmicos Asurini e em alguns adornos plumários (braçadeiras) Xikrin. Mostra como diferentes atributos podem ser melhor definidores das tradições tecnológicas em termos culturais. Ressalta aqueles que podem ser indicativos de identidades sociais ou pessoais. São discutidas questões relativas à relação da variabilidade artefatual com as noções de identidade étnica e identidade social. Palavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: Variabilidade artefatual. Identidade. Kayapó-Xikrin. Asurini do Xingu. Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Aspects of the variability found in different artefactual ethnographic assemblages: in the Asurini ceramic and Xikrin adornments (featherwork braces). Show as different attributes can better define technological traditions in cultural terms. At the same time, I intend to stand out those that can be indicative of social or personal identities. In other words, I will argue about the relation of the artefactual variability with ethnic and social identities. Keywords eywords eywords eywords eywords: Artefactual Variability. Identity. Kayapó-Xikrin. Asurini of Xingu. I Universidade de São Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. Professora e pesquisadora. São Paulo, São Paulo, Brasil ([email protected]).

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 91-103, jan-abr. 2007

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O significado da variabilidade artefatual: a cerO significado da variabilidade artefatual: a cerO significado da variabilidade artefatual: a cerO significado da variabilidade artefatual: a cerO significado da variabilidade artefatual: a cerâmica dos Asurini do Xinguâmica dos Asurini do Xinguâmica dos Asurini do Xinguâmica dos Asurini do Xinguâmica dos Asurini do Xingue a plumária dos Ke a plumária dos Ke a plumária dos Ke a plumária dos Ke a plumária dos Kayapó-ayapó-ayapó-ayapó-ayapó-Xikrin do CatetéXikrin do CatetéXikrin do CatetéXikrin do CatetéXikrin do Cateté

The meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of XinguThe meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of XinguThe meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of XinguThe meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of XinguThe meaning of artefactual variability: the ceramic of Asurini of Xinguand the featherwork of Kand the featherwork of Kand the featherwork of Kand the featherwork of Kand the featherwork of Kayapó-ayapó-ayapó-ayapó-ayapó-XikrinXikrinXikrinXikrinXikrin

Fabíola Andrea da Silva I

Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: Aspectos relativos à variabilidade encontrada em diferentes conjuntos artefatuais etnográficos: nos vasilhamescerâmicos Asurini e em alguns adornos plumários (braçadeiras) Xikrin. Mostra como diferentes atributos podem sermelhor definidores das tradições tecnológicas em termos culturais. Ressalta aqueles que podem ser indicativos deidentidades sociais ou pessoais. São discutidas questões relativas à relação da variabilidade artefatual com as noções deidentidade étnica e identidade social.

PPPPPalavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: Variabilidade artefatual. Identidade. Kayapó-Xikrin. Asurini do Xingu.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: Aspects of the variability found in different artefactual ethnographic assemblages: in the Asurini ceramic and Xikrinadornments (featherwork braces). Show as different attributes can better define technological traditions in culturalterms. At the same time, I intend to stand out those that can be indicative of social or personal identities. In other words,I will argue about the relation of the artefactual variability with ethnic and social identities.

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I Universidade de São Paulo. Museu de Arqueologia e Etnologia. Professora e pesquisadora. São Paulo, São Paulo, Brasil([email protected]).

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O significado da variabilidade artefatual: a cerâmica dos Asurini do Xingu e a plumária dos Kayapó-Xikrin do Cateté

O PROBLEMA DA VARIABILIDADE ARTEFATUAL

Compreender o signif icado da variabil idadeartefatual encontrada no registro arqueológico éuma das principais preocupações dos arqueólogos.Estes direcionam o estudo levando em consideraçãosuas quatro dimensões, ou seja, a formal, aquantitativa, a espacial e a relacional. Cada umadestas dimensões da variabilidade é entendida comoresultado de diferentes processos de formação, quesó podem ser identificados quando se considera ociclo de vida dos artefatos ou, em outras palavras,toda a seqüência de atividades e acontecimentos aque eles foram submetidos, tanto no contextosistêmico, quanto no contexto arqueológico(SCHIFFER, 1983, 1987).

Vários estudos etnoarqueológicos têm sidodesenvolvidos com o objetivo de identificar osdiferentes processos culturais que resultam navariabilidade dos conjuntos artefatuais, procurandoa partir disso trazer à luz os seus significados. Opresente trabalho é um exemplo deste tipo deestudo, com o objetivo de discutir aspectos relativosà variabilidade formal encontrada em dois conjuntosartefatuais etnográficos: nos vasilhames cerâmicos dosAsurini do Xingu1 e nos adornos plumários(braçadeiras) dos Kayapó-Xikrin do Cateté2. Maisprecisamente, procurarei demonstrar comodiferentes atributos formais destes conjuntosartefatuais são indicativos de identidade étnica, sociale individual. Estes exemplos, por sua vez, servirãopara discutir a questão da elaboração das tipologiasdos conjuntos artefatuais arqueológicos e,conseqüentemente, das categorias analíticasconhecidas como Tradições e Fases.

A variabilidade formal dos artefatosA variabilidade formal dos artefatosA variabilidade formal dos artefatosA variabilidade formal dos artefatosA variabilidade formal dos artefatosA variabilidade formal se refere às propriedadesfísicas de um artefato e sua análise deve levarem consideração aspectos como tamanho,espessura, peso, profundidade, textura, cor,consistência e contorno formal do mesmo. ParaSchiffer e Skibo (1997) a variabilidade formal dosartefatos é resultante das escolhas tecnológicaslevadas a cabo pelo artesão durante o processoprodutivo. Estas escolhas são motivadas pelaperformance do artefato, pelo conhecimento eexperiência do artesão, bem como por diferentesfatores situacionais, definidos como “asexternalidades comportamentais, sociais e ambientaisque atuam sobre a cadeia comportamental de umartefato e são incorporadas em cada componenteespecífico da atividade”. Neste sentido, aspectoscomo as características físico-químicas das fontesde matér ia -pr ima e a sua f ac i l idade oudificuldade de exploração, os procedimentos demanufatura, os mecanismos de transporte edistribuição dos artefatos, sua utilização, reuso,padrões de armazenagem e descarte, bem comoas di ferenças indiv iduais de conhecimentotecnológ ico e as estruturas de ens ino-aprendizagem, são elementos que precisam serlevados em conta nas análises sobre o tema. Aomesmo tempo, autores como Lemonnier(1993), Mahias (1993) e van der Leeuw (1993),procuram demonstrar que as escolhastecnológicas também estão relacionadas a fatoresde ordem social e simbólica, sal ientando aimportância de se considerar a organização sociale as representações sociais como elementosinter-relacionados com as mesmas.

1 Os Asurini do Xingu são falantes de uma língua da família lingüística Tupi-Guarani, do tronco lingüístico Tupi. Trata-se de um grupoceramista e agricultor que atualmente ocupa uma aldeia às margens do rio Xingu, próxima à cidade de Altamira, no estado do Pará.

2 Os Kayapó-Xikrin são um sub-grupo dos Kayapó Setentrionais. Eles são falantes de uma língua pertencente à família lingüística Jê. Sãoagricultores e atualmente ocupam duas aldeias localizadas às margens do rio Cateté, próximas de Marabá, no estado do Pará.

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Entre os Asurini e Xikrin, a variabilidade formalda cerâmica e da plumária é, sem dúvida,resultante das escolhas tecnológicas feitas pelosartesãos desde a seleção da matéria-prima até aelaboração do acabamento final dos artefatos. Estasescolhas, por sua vez, são conduzidas a partir deuma prerrogativa sócio-cultural ou de decisõesindividuais e as motivações das mesmas são tantopragmáticas quanto simbólicas. Além disso, épossível dizer que o significado da variabilidadeformal da cerâmica e da plumária Xikrin éeminentemente plurissemântico.

O significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadeda cerda cerda cerda cerda cerâmica Asuriniâmica Asuriniâmica Asuriniâmica Asuriniâmica AsuriniA cerâmica Asurini possui ampla variedade decontornos formais, tamanhos e motivos decorativose a sua produção é uma atividade zelosa executadacom extremo rigor pelas ceramistas e a partir deuma seqüência operatória extremamente detalhada.Cabe ressaltar, ainda, que esta variabilidade do

conjunto cerâmico é resultante de diferentes fatores,como funcionalidade das vasilhas, estrutura de ensino-aprendizagem, organização social, cosmologia,contingências históricas, expressando diferentessignificados de ordem prática, social e simbólica.

Nos trabalhos de Müller (1987, 1990) e Ribeiro(1982) foi definido um conjunto básico de sete tiposdiferentes de vasilhas usadas respectivamente paracozinhar, servir, armazenar e transportar alimentose líquidos (japepa´, jpapepa´i/jaeniwa, ja´e, ja´ekuia,japu, yawa, yawi). Além destes, mencionam aindaoutros treze tipos que são variações destas formasbásicas e que seriam utilizadas com os mesmos fins(jape´e, japeparakynga, ja´eniwa, ja´e, kume,japuryna, yajuruwa, yajuruwiho, yawijuruva, indajiwa,pupijanekanawa, kavioi, kavioi apua). Atualmente,este conjunto de vasilhas apresenta uma diminuiçãona variabilidade de formas, ou seja, são encontradosespecificamente os tipos jape´ei, ja´ekuia, kume,uira, jarati, pekia, uã, kavioi, piriapara, ywua,pupijanekanawa (Figura 1).

Figura 1. Formas cerâmicas.

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Este conjunto de vasilhas pode ser dividido em quatrocategorias gerais utilizadas no processamento,consumo e armazenagem de alimentos e líquidos:vasilhas de cozinhar (japepa´i, japepa´i/jaeniwa,jape´e e jape´ei); vasilhas de servir (ja´e, ja´ekuia,piriapara e ywua); vasilhas de consumir (kume, uira,jarati, pekia e uã); e vasilhas de transportar earmazenar líquidos (japu, yawa, yawi, kavioi,jukupyapyra e pupijanekanawa).

Esta diferenciação das vasilhas cerâmicas relacionadacom a sua funcionalidade pode ser visualizada,principalmente, no contorno formal e noacabamento de superfície das mesmas. Assim, asvasilhas de cozinhar possuem contornos maisarredondados, bordas refletidas, diâmetro deabertura da boca semelhante ao diâmetro do corpoe não são pintadas na superfície externa. As vasilhasde servir apresentam, na sua maioria, a bordarefletida com um diâmetro de tamanho semelhanteou superior ao diâmetro do corpo e todas recebempintura na superfície externa. As vasilhas de consumir

alimentos têm contornos formais muitodiversificados, mas a maioria dos mesmos é do tipoplatiforme – com exceção do tipo uira – e comdecoração na superfície externa. E, finalmente, asvasilhas de transportar e armazenar líquidos exibem,na sua maioria, bordas infletidas com diâmetromenor do que o corpo, gargalo e são pintadas nasuperfície externa.

As vasilhas usadas durante os rituais possuemcontornos formais, tamanhos e motivos decorativossemelhantes àquelas usadas no cotidiano. Na maioriadas vezes, inclusive, as vasilhas usadas nos contextosrituais são aquelas usadas no contexto cotidiano. Noentanto, as vasilhas usadas no contexto ritual,normalmente, são aquelas de tamanho maior, comoé o caso das grandes vasilhas do tipo japepa’i e já’e,empregadas respectivamente para cozinhar e servir omingau ritual. O único vasilhame totalmente distintodos demais é o grande japepá ritual, chamado tauvarukaia. Este é o receptáculo do sobrenatural tauvadurante o ritual tauva do ciclo ritual do turé (Figura 2).

Figura 2. Tauva rukaia grande.

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Aqui abra-se um espaço para outras informaçõessobre este ritual. O tauva é um conjunto ritual quefaz parte do complexo ritual do ture, que estárelacionado com “diferentes instituições como ainiciação dos jovens, a guerra e a celebração dosmortos”. Ele está relacionado ao mito de tauwuma,personagem mítica que é identificada pelos Asurinicomo a oleira primordial e que no mito teve seumarido morto pelo irmão e por isso vai embora domundo dos humanos jogando-se ao rio e setransformando no sobrenatural tauva.

A organização social dos Asurini e a sua estrutura deensino-aprendizagem da arte da olaria também sãofatores que geram variabilidade no conjunto artefatualcerâmico. Conforme salientou Müller (1990, p. 64),entre os Asurini, o grupo doméstico é a “unidadebásica da estrutura social tanto por ser uma unidadesocial e política (tradicionalmente identificada como grupo local) quanto por suas atividades desubsistência”. Ela se constitui, também, numa unidadeeconômica de produção e consumo cujos membrosmantêm relações de cooperação diária para aexecução das diferentes tarefas de obtenção eprocessamento dos recursos. As mulheres são asorganizadoras desta unidade econômica e social,sendo elas “a unidade básica de produção nasociedade Asurini”, cabendo aos homens “acirculação dos bens produzidos” (MULLER, 1990,p. 84). As mulheres são responsáveis pelo plantiodas roças e o processamento dos alimentos, bemcomo pela elaboração das vasilhas cerâmicas que sãoconsideradas como sendo “o símbolo da comida”.

O aprendizado da manufatura dos vasilhamescerâmicos ocorre no interior do grupo doméstico apartir da transmissão dos conhecimentos dasmulheres mais velhas (avó, mãe, tia, irmã, cunhada)às mais jovens, desde a sua mais tenra idade. Talfato leva as mulheres pertencentes a um mesmogrupo doméstico a produzirem vasilhames comcontornos formais e motivos decorativossemelhantes, podendo gerar uma certa variabilidadeentre os conjuntos de vasilhames dos diferentes

grupos domésticos. Esta diferença, porém, é quaseimperceptível quando vislumbramos o conjunto totalde vasilhas da aldeia, possível resultado do fato de atecnologia cerâmica seguir parâmetros estéticosmuito rígidos entre os Asurini. No processo deaprendizagem, o domínio do contorno formal dasvasilhas é uma das etapas mais difíceis para asjovens aprendizes, pois são elaboradas inúmerasminiaturas das mesmas a fim de que a jovemceramista, através da intensa repetição daseqüência produtiva, consiga adquirir a perícianecessária para reproduzir as especificaçõesformais das vasilhas e atingir os padrões estéticosde aprovação social. Normalmente, as vasilhasproduzidas pelas ceramistas inexperientesapresentam o contorno formal do corpo malelaborado, o alisamento grosseiro das superfíciesinternas e externas, falhas nos motivos decorativose na aplicação da resina na face externa (Figura 3).

Embora existam padrões estéticos bem definidospara a cerâmica Asurini, as ceramistas não se sentemimpedidas de exercer sua criatividade individual.Todas dizem reconhecer suas vasilhas dentre as deoutras ceramistas. Segundo elas, os traços deidentificação estão no acabamento da borda, do fundoe do corpo. Parece ser na pintura, porém, que a suaindividualidade se manifesta mais claramente.

Figura 3. Vasilhas de aprendiz.

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Segundo Müller (1992, p. 247), a mulher aprendejunto ao seu grupo doméstico um “repertórioparticular (...) de variações do padrão tayngava”3 e éna recombinação deste padrão de significadocosmológico que ela exerce a sua criatividade.Conforme aponta Roe (1995, p. 45), “não hácontradição entre criatividade individual e protótipostradicionais”. Assim, a partir de uma determinadaestrutura de possibilidades oferecidas pela tradiçãocultural, as oleiras Asurini podem fazer suas escolhasindividuais e fazer da confecção dos vasilhamescerâmicos, também uma forma de expressão de suaexperiência pessoal (Figura 4).

Cabe ressaltar, porém, que da mesma forma que acriatividade individual pode aumentar a variabilidadede alguns atributos no conjunto artefatual, o passardo tempo e o falecimento de certos indivíduospode resultar na perda de variabilidade. SegundoRoe (1995, p. 46-48), quando um artesão morre,ele pode levar consigo certos conhecimentos, oque resulta em um fenômeno chamado de‘amnésia cultural’. Entre os Asurini isto já éperceptível, pois a morte de algumas ceramistasleva à diminuição quantitativa e/ou reproduçãoimperfeita – para os padrões Asurini de décadaspassadas – de certas formas cerâmicas na aldeia.

Outras contingências históricas têm geradovariabilidade nos conjuntos cerâmicos Asurini, como,por exemplo, o contato intercultural e o comérciode vasilhas. A convivência das ceramistas Asurini comindivíduos da sociedade envolvente – principalmentecom mulheres brancas – resulta na experimentaçãode novos contornos formais para as vasilhas. Estatransformação formal normalmente ocorre porqueas Asurini tentam reproduzir na cerâmica as formas

3 Segundo Müller (1990, 1992), na arte gráfica Asurini, a maioria dos motivos é uma variação de um padrão estrutural conhecido comotayngava (imagem, réplica do ser humano), que é também o nome dado ao boneco antropomórfico utilizado nos rituais xamanísticos.Ele está, por sua vez, relacionado à noção de ynga (princípio vital) compartilhada por espíritos e humanos e manipulada pelos xamãsnos rituais. Este padrão associado ao domínio do sobrenatural corresponde a uma regra formal a partir da qual são produzidos váriosoutros desenhos cujos significados estão relacionados aos domínios da natureza e da cultura.

Figura 4. Desenhos nas panelas.

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que elas observam no conjunto artefatual pertencentea estas mulheres, como panelas com alça e tampa,talhas para colocar água, fruteiras, frascos deperfume, vasos etc. Cabe ressaltar, porém, que taistransformações formais costumam ser de curtaduração e quantitativamente pouco expressivas noconjunto de vasilhas cerâmicas registradas na aldeia(Figura 5).

performance das mesmas. As diferenciações detamanho, de maestria na elaboração das vasilhas e aescolha dos motivos decorativos são decorrentesda organização social e da estrutura de ensino-aprendizagem dos Asurini. A variabilidade dosmotivos decorativos da cerâmica é umaconseqüência da criatividade individual de cadaceramista na recombinação e aplicação do motivotayngava. E, finalmente, as inovações dos contornosformais e a miniaturização das vasilhas traduzem adinâmica das relações interculturais dos Asurini.

O significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadeO significado da variabilidadedas braçadeiras Xikrindas braçadeiras Xikrindas braçadeiras Xikrindas braçadeiras Xikrindas braçadeiras XikrinA plumária é um dos conjuntos artefatuais maisimportantes entre os Xikrin, sendo que estes aclassificam de maneira genérica pelo termo nekrei,que pode ser traduzido como riqueza. Váriostrabalhos foram produzidos fazendo menção àplumária Xikrin, ressaltando a sua importância natradução dos princípios cosmológicos e sociológicosdesta população indígena (VIDAL, 1977; GIANNINI,1991; GORDON, 2003).

Segundo a mitologia Xikrin, os pássaros foramcriados por dois heróis mitológicos, os irmãos Aktie Kukrut-Uire, que mataram o ser sobrenatural emforma de um gavião-real Àkkaikrikti. Ao mataremÀkkaikrikti, os irmãos tiraram suas penas grandes esua penugem e com elas criaram as aves grandes epequenas. Na seqüência da narrativa mítica, um dos

Figura 5. Mudança cultural.

O comércio de vasilhas, por outro lado, gera umatransformação formal na cerâmica, que équantitativamente muito expressiva no conjunto devasilhas na aldeia. Atualmente, há mais vasilhas paravender na aldeia do que vasilhas para uso cotidiano.Neste caso, observa-se a miniaturização das vasilhas,especialmente daquelas do tipo japepa’i, passando aser chamado de japepai’i e a admitir a tradução ‘japepa’ipequeno’. Além de uma modificação no tamanho,também observa-se que todas as vasilhas feitas paravender são pintadas, independentemente da sua formae função tradicional - o tayngava, portanto, é umelemento fundamental na afirmação da identidadeétnica Asurini (Figura 6).

Como é possível observar, a variabilidade da cerâmicaAsurini possui significados que se referem àsdiferentes dimensões de ordem prática, social esimbólica. Assim, os diferentes contornos formais ea presença ou não de decoração nas vasilhas estádiretamente relacionada com as características de

Figura 6. Miniaturas de vasilhas.

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personagens coloca uma pena de pássaro no cabelo,criando assim os nekrei. Este mito é representadonos rituais de nominação, ocasião na qual os Xikrinostentam seus adornos plumários e, neste contexto,não apenas expressam a sua cosmovisão, mastambém, possibilitam aos indivíduos identificarem asi mesmos e aos outros em termos de gênero, faixaetária, propriedade e herança de bens, relações deparentesco e amizade formal. Os rituais e os adornosusados são, portanto, fundamentais na organizaçãoe reprodução social dos Xikrin.

A plumária é um conjunto artefatual numericamenteabundante, apresentando uma grande variedade detipos de artefatos. Estes artefatos se constituem,principalmente, de adornos corporais de cabeça,tronco e membros. Dada a exuberância e abundânciadeste conjunto de artefatos, a explicação serárestringida à variabilidade existente no conjunto dasbraçadeiras que são genericamente definidas pelosXikrin como padjê.

As braçadeiras são adornos usados no braço à alturado bíceps. Entre os Xikrin, elas são usadas porindivíduos do sexo masculino e feminino pertencentesa diferentes categorias de idade. Elas sãoconfeccionadas a partir de uma diversidade demateriais, por exemplo, fios de algodão, penas,sementes, miçangas e outras fibras vegetais (envira,entrecasca). As técnicas empregadas na suaelaboração são, especialmente, a enodação de tufosde penas em retículo, o encastoamento de penasem sementes e a amarração da fieira de penas sobrecordel-base de algodão com nós verdadeiros. Asbraçadeiras feitas em envira e entrecasca apresentama base feita a partir destes materiais.

A variabilidade no conjunto de braçadeiras éresultante das escolhas realizadas pelos artesãosreferentes aos materiais e às técnicas a seremempregadas para a elaboração das mesmas. Estasescolhas, por sua vez, são realizadas levando emconta o gênero, categoria de idade, status social erelações de parentesco daquele que será o usuário

do adorno. Simultaneamente, aspectos como acriatividade individual do artesão, a valoração estéticae o contato com outros grupos Kayapó e com asociedade branca também são fatores que geramvariabilidade neste conjunto artefatual.

Para entender esta variabilidade é preciso considerara classificação êmica das braçadeiras. Um aspectoimportante é perceber que, para os Xikrin, o tipode pena é o que define, na maioria das vezes, acategoria e o usuário da braçadeira - outras matérias-primas também são definidoras, porém, de formacomplementar. Assim, existem quatro categoriasprincipais de braçadeiras Xikrin: padjê i abu, padjêkrã, padjê kajeti, padjê tykti.

Todas estas categorias de braçadeiras podemapresentar variabilidade nas matérias-primas e nastécnicas de elaboração da base, normalmenteelaborada com fios de algodão de coloração brancaou vermelha e com fieira dupla ou tripla, ou ainda,de entrecasca – alguns exemplares são feitos demiçangas, de fios de algodão tecido com padrão nãoXikrin ou de palha trançada. A diferenciação namatéria-prima e na técnica de elaboração do cordelbase de fios de algodão está relacionada comquestões de valoração estética. O cordel triplo éconsiderado mais bonito (mei) pelos Xikrin, pois émais difícil de ser confeccionado e a cor vermelhaou branca é resultado de uma preferência estéticaindividual, da mesma forma que o uso de outrasmatérias-primas e técnicas. O uso da entrecasca,porém, está relacionado com questões deparentesco e de transmissão de bens ao usuário dapeça. Isto também acontece em relação àsbraçadeiras padjê i abu, podendo haver, neste caso,diferenciação não apenas no cordel base, mastambém na cor das miçangas e no tipo de penas.

As braçadeiras da categoria padjê i abu são feitas depenas pequenas de arara, apresentam umacombinação de coloração vermelha e amarela e sãousadas exclusivamente pelas mulheres. Como já ditoanteriormente, elas apresentam uma grande

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variabilidade na combinação das matérias-primas etécnicas de elaboração, sendo esta variabilidadeentendida como o kukrodjo da usuária. Entre osXikrin, este termo é empregado genericamente paraexplicar a noção de propriedade, conhecimento,herança, identidade e se refere a diferentes coisas,como artefatos, cantos, danças, mitos, performancesrituais, partes do corpo de animais e de sereshumanos. Para outras informações, verificar Vidal(1977), Lea (1986), Fisher (1996), Silva (2000) eGordon (2003). Além disso, este termo pode serempregado de diferentes maneiras, ou seja, paradefinir aspectos e elementos da cultura consideradosde propriedade: individual, pois foram herdadosatravés da relação tabjuo/i-nget/kwatui (i-kokrodjo)4;de uma determinada categoria de idade, como ome-noro-nure kokrodjo, usado pelos jovensiniciandos5; de um determinado gênero, o kokrodjo– dos homens ou o me-ni kokrodjo – das mulheres;e os considerados de todos (me-kuni kokrodjo)(GIANNINI, 1991, p, 97). No caso das braçadeiraspadjê i abu, é preciso entender a variabilidade comoi-kukrodjo, no sentido de propriedade individualconforme foi descrito acima (Figura 7).

As braçadeiras da categoria padjê krã são feitas compenas pequenas de arara de coloração vermelha esão usadas somente por indivíduos do sexomasculino, independentemente da sua categoria deidade. A variabilidade que nelas aparece restringe-seao cordel base de fios de algodão, que pode ser de

4 Segundo Vidal (1977, p. 55-56, 106) i-gnet é o termo usado para identificar o pai do pai, pai da mãe e irmão da mãe e kwatui é otermo usado para identificar a mãe do pai, a mãe da mãe e irmã do pai, ambos em relação ao tabdjuo de sexo masculino e feminino.A relação entre i-nget/kwatui e tabdjuo implica na transmissão de nomes, privilégios e cargos rituais, bem como de solicitude de seui-nget/kwatui com o seu tabjuo. Neste sentido, a noção de i-kokrodjo (i=flexão de 1ª. Pessoa absolutiva; possessivo) pode serentendida como “minha parte, minha atribuição, meu privilégio, ou seja aquilo que me cabe” (GORDON, 2003, p. 312).

5 Os Xikrin se diferenciam socialmente a partir das categorias de idade, que para o sexo masculino se apresentam da seguinte forma:me-prire (crianças pequenas), me-boktire (meninos com mais de quatro anos e que começam a se distanciar da mãe), me-be-ngo-djure (meninos de seis a doze anos que não ingressaram na casa dos homens), megomañoro (meninos introduzidos na casa doshomens), me-mudjê (meninos que receberam o estojo peniano), me-noronure me-noronure-ã-tum (meninos iniciandos e jovensiniciados), me-krare (indivíduos casados e com filhos), me-kranure (homens casados com menos de três filhos), me-kratum (homenscasados com mais de três filhos), me-be-nget (homens velhos) (VIDAL, 1977, p. 57 e FISHER, 1991, p. 222).

Figura 7. Padje i abu.

coloração branca ou vermelha, e ao seu tamanho,definido de acordo com a idade e compleição físicado usuário (Figura 8).

Pode ocorrer, ainda, uma diversificação no sentidode serem acrescidas miçangas e outras coloraçõesde pena, mas neste caso trata-se de uma padjê krã,que é kokrodjo de alguém – não necessariamenteuma criança (Figura 9). A braçadeira que éeminentemente de criança é a chamada padjê me ikaigó (Figura 10).

As braçadeiras da categoria padjê kajeti são feitasde penas de tamanho médio, coloração amarela eusadas pelos homens adultos da categoria de idademe-be-nget, ou seja, pelos velhos. Algumavariabi l idade pode ocorrer na base destas

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braçadeiras, feitas com fios de algodão com fieiradupla ou tripla, fios tecidos em padrão não Xikrinou trançados de palha. Ocorre ainda a basetrançada com envira e entrecasca e neste caso setrata de um kokrodjo do usuário (Figura 11).

As braçadeiras da categoria padjê tykti são feitas compenas de arara e apresentam uma coloraçãoesverdeada e azulada e são usadas exclusivamentepelos homens adultos da categoria mekrare, ou seja,os homens mais jovens com filhos e que ainda sãovigorosos e considerados guerreiros. A variabilidadenesta categoria de braçadeiras se restringe ao cordelbase de algodão duplo ou triplo (Figura 12).

Como se pode observar, a variabilidade no conjuntodas braçadeiras Xikrin diz respeito a aspectoseminentemente relacionados a questões de

Figura 9. Padjê kokrodjo.

Figura 8. Padje kra.

Figura 10. Padje I kaiagó.

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de Fases e Tradições? Como respostas, têm-se aquestão da relação entre padronização e diferenciaçãoda cultura material ser discutida, na arqueologiabrasileira, a partir dos conceitos de Tradição e Fase;as Fases e Tradições explícita ou implicitamentefazerem referência a comportamentos humanos; asFases serem compostas de tipos que são elaboradosa partir dos diferentes atributos dos artefatos e as Fasescomporem as Tradições; e ambos os conceitospressupõem a constatação da variabilidade e dasemelhança intra/inter conjuntos artefatuais, bemcomo a elaboração de tipologias.

As tipologias são consideradas ferramentas essenciaispara os estudos de cultura material tanto no quetange à comunicação entre os pesquisadores comopara os propósitos interpretativos. Alguns autores,porém, chamam a atenção para o fato de que astipologias não são universais, ou seja, existem

identidade cultural e social. Ou seja, há um conjuntoespecífico de braçadeiras Xikrin que as distinguemdas braçadeiras de outros grupos Kayapó ou nãoKayapó. Além disso, dentro deste conjunto existemsub-conjuntos ou categorias de braçadeiras que sereferem ao gênero, idade e status social do usuário.Assim, quando um indivíduo usa um determinadotipo de braçadeira, ele passa a expressar umadeterminada identidade social e, por conseguinte, aafirmar o seu papel social e o seu pertencimento aum determinado grupo de pessoas.

CONCLUSÕES

Por que estes estudos sobre a variabilidade deconjuntos etnográficos podem contribuir para apresente reflexão sobre a variabilidade dos conjuntosarqueológicos e a elaboração de tipologias e a definição

Figura 11. Padje kajeti. Figura 12. Padje tukti.

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O significado da variabilidade artefatual: a cerâmica dos Asurini do Xingu e a plumária dos Kayapó-Xikrin do Cateté

diferentes entendimentos relativos à classificação dosartefatos (WHITTAKER; CAULKINS; KAMP, 1998).Os Asurini e Xikrin são um exemplo destadiversidade de possibilidades classificatórias. Emoutras palavras, o que estes autores afirmam é queas tipologias são eminentemente subjetivas e, emúltima instância, uma forma de atribuir significadoaos conjuntos artefatuais.

Na arqueologia brasileira, a elaboração de tipologiasserve para ordenar e diferenciar os conjuntosartefatuais. Estes conjuntos, por sua vez, são unidostemporalmente para compor as Tradições e/ouparticularizados temporal e espacialmente paracompor as Fases. Assim, quando definimos Tradiçõese Fases estamos, de alguma forma, dando significadoà variabilidade artefatual.

Cabe ressaltar que não pretendo adentrar nadiscussão sobre a plussemântica destes conceitos enem tampouco rediscutir os modos pelos quais asTradições e Fases foram e são definidas no Brasil,pois isto já foi feito por outros autores, inclusivenesta mesma publicação. O objeto de interesseneste artigo – tendo em vista esta discussão e osexemplos etnográficos anteriormente citados – éincitar o leitor a fazer uma reflexão sobre osignif icado das inúmeras Tradições e Fasesarqueológicas no Brasil.

Muitas vezes, as Tradições e Fases foram definidascom o objetivo de situar no tempo e no espaçodeterminados tipos de artefatos. Será que isto é osuficiente para explicar os conjuntos artefatuais noque se refere aos comportamentos e processosculturais que lhes deram origem? E, neste sentido,será que a definição de Tradições e Fases realmentetem nos auxiliado a entender o modo de vida daspopulações no passado?

O que se pode apreender dos exemplos Xikrin eAsurini é que a variabilidade artefatual possuidiferentes signif icados, sendo resultante dediferentes tipos de comportamentos e, além disso,

que a ela pode ser um índice de fronteiras einterações sociais ou, em outras palavras, deidentidades. Além disso, foi possível perceber quecertos atributos possibilitam uma maior ou menorvariação – tanto sincrônica como diacrônica – nosconjuntos artefatuais e por isso servem para definir,cada um a seu modo, aspectos diferentes comoidentidades pessoais e sociais ou mudança epersistência cultural ao longo do tempo.

Sem dúvida, é um desafio para nós, arqueólogos,elaborarmos as tipologias dos conjuntos artefatuaisarqueológicos, ordená-los no tempo e no espaçoe, acima de tudo, dar significados a eles sem utilizaro conhecimento das categorias êmicas declassif icação daqueles que produziram estesconjuntos no passado. Felizmente, no entanto, aArqueologia tem desenvolvido uma discussãoteórica e metodológica muito densa a respeitodeste tema e novos caminhos estão surgindo parao aperfeiçoamento dos procedimentos de análisedos conjuntos artefatuais arqueológicos. Exemplodisso são as inúmeras publicações sobre a questãoda relação entre estilo e função nos artefatos, sobretecnologia e agência, sobre teoria da performancee do design e sobre os processos de continuidadee mudança cultural. Para maiores informações,consultar Wiessner (1983), van der Leeuw eTorrence (1989), Skibo (1992), Conkey e Hastorf(1993), Hayden (1998), Dobres (1995), Dobrese Hoffman (1994) Skibo e Schiffer (2001).

Voltando a questão do significado das Tradições eFases, gostaria de salientar que se estas categoriasnão puderem ser úteis para expl icarcomportamentos e processos culturais, mas serestringirem à ordenação e descrição de tipos deartefatos no tempo e no espaço, elas deixam decontribuir para um dos objetivos principais daArqueologia enquanto Ciência Humana, que seriao de explicar, através do registro arqueológico,os comportamentos e a trajetória das populaçõeshumanas no passado.

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 91-103, jan-abr. 2007

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Recebido: 13/07/2006Aprovado: 03/04/2007

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