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O Senhor das Moscas [Wilham Golding]

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O Senhor das Moscas [Wilham Golding]

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MIL FOLHAS

Colecção Mil Folhas PÚBLICO

O SENHOR DAS MOSCAS Wilham Golding

Título original: The Lord of Flies Tradução: Luís de Sousa Rebelo © Vega, Limitada (D 2002 BIBLIOTEX, S.L. para esta edição) © Mediasat Group/Prontoway Portugal Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A, Barcelona Data de impressão Maio de 2002 ISBN 84-8130-506-5 Depósito Legal B. 18 095-2002 PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL S.A Rua João de Barros 265 41050-414 Porto Este livro é vendido exclusivamente com o jornal PÚBLICO. Todos os direitos reservados. WILLIAM GOLDING O Senhor das Moscas Tradução de Luís de Sousa Rebelo COLECÇÃO MIL FOLHAS

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I - A VOZ DO BÚZIO O garoto de cabelo cor-de-mel agachou-se, deixou-se escorregar ao longo do

último troço do rochedo e encaminhou-se para a lagoa. Embora tivesse tirado o blusão, parte do seu uniforme escolar, e o arrastasse agora pela mão, a camisa cinzenta colava-se-lhe à pele e o cabelo encodeava-se-lhe na testa. À sua volta, a funda clareira rasgada na selva era um banho de calor. Rompia pesadamente por entre as lianas e os troncos quebrados, quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, cintilou numa fuga para o alto com um grito de feitiço. A este grito o eco respondeu com outro.

― Eh! ― disse uma voz. ― Espera um momento! O matagal, num dos bordos da clareira, agitou-se e uma saraivada de gotas de

água caiu com estridor. ― Espera um momento ― repetia a voz. ― Estou aqui preso. O garoto de cabelo cor-de-mel abaixou-se e repuxou as peúgas com um gesto

automático que fez com que a seiva por um momento se parecesse com os condados ingleses.

A voz ouvia-se de novo. ― Nem me posso mexer com todas estas trepadeiras. O dono da voz emergiu, esbracejando com o restolho alto, de modo que os

ramalhos vibraram contra uma pala sebenta. As rótulas nuas dos joelhos eram grossas e tinham sido apanhadas e arranhadas por espinhos.

Debruçou-se, tirou cuidadosamente os espinhos e voltou-se. Era mais baixo que o garoto louro e muito gordo. Adiantou-se, buscando piso seguro para os pés, e olhou então através dos óculos de lentes grossas.

― Onde está o homem com o megafone? O rapazinho louro abanou a cabeça. ― Estamos numa ilha. Pelo menos assim parece. Um recife no meio do mar.

Talvez até não haja aqui gente crescida. O gorducho olhou com um ar surpreendido. ― Havia o piloto. Mas não estava com os passageiros, estava à frente, na

cabina. O garoto de cabelo cor-de-mel mirava o recife, de olhos franzidos. ― E todos os outros miúdos... ― prosseguia o gordo. ― Alguns deles devem

ter escapado, não é verdade? O rapaz louro começou a dirigir-se para a água tão casualmente quanto lhe era

possível. Procurava estar à vontade e não se mostrar excessivamente desinteressado, mas o gorducho correu atrás dele.

― Mas não há aqui gente crescida? ― Creio que não.

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O garoto de cabelo cor-de-mel disse isto solenemente, mas de súbito subjugou-o o prazer de uma ambição realizada. Fez o pino no meio da clareira e riu-se para a figura invertida do companheiro.

― Não há gente crescida! O gordo pensou um momento. ― O piloto. O louro deixou que os pés tocassem o solo e sentou-se na terra que revessava

humidade. ― Deve ter continuado a voar depois de nos ter lançado. Não podia aterrar

aqui. Pelo menos num avião com rodas. ― Fomos atacados. ― Há-de cá voltar. O gorducho abanou a cabeça. ― Quando começámos a descer, espreitei por uma das vigias. Vi a outra parte

do avião. Estava em chamas. Olhou demoradamente toda a clareira. ― E tudo isto foi causado por um tubo. O louro estendeu o braço e tocou no rebordo dentado de um tronco. Por um

momento pareceu interessado. ― E que foi que lhe aconteceu? ― perguntou ele. ― Para onde foi agora? ― A tempestade arrastou-o para o mar. Era bem perigoso com todos os troncos

de árvores a caírem. Ainda devem estar dentro do avião alguns miúdos. Hesitou por um momento e depois tornou a falar. ― Como te chamas? ― Rafael. O gorducho esperou que o outro, por seu turno, lhe perguntasse o nome, mas

uma tal proposta de apresentação não foi feita. O rapazinho louro, que se chamava Rafael, sorriu vagamente, ergueu-se e

recomeçou a caminhar para a lagoa. O gordo colava-se-lhe persistentemente ao ombro.

― Creio que há muitos como nós espalhados por aí. Não viste outros por aí, pois não?

Rafael abanou a cabeça e apertou o passo. Depois tropeçou numa ramada e caiu com estrondo.

O gordo estava de pé diante dele, respirando fundo. ― A minha tia disse-me que não corresse ― explicou ele por causa da asma. ― Asma? ― Sim. Não tenho fôlego. Na nossa escola era o único que tinha asma ― disse

o gorducho com uma pontinha de orgulho. E uso óculos desde os três anos. Tirou os óculos e mostrou-os a Rafael, pestanejando e sorrindo, e começou a

limpá-los na pala sebenta. Uma expressão de dor e concentração interior alterou-lhe os pálidos contornos do rosto. Enxugou o suor da face e ajustou rapidamente os óculos ao nariz.

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― Fruta. Olhou à volta da clareira. ― Fruta ― exclamou ele. ― Espero... Tocou nos óculos, afastou-se de Rafael

e agachou-se no meio da folhagem enriçada: ― Eu volto já... num segundo... Rafael desenvencilhou-se cuidadosamente e escapuliu-se por entre as ramadas. Dentro de segundos podia ouvir atrás de si os grunhidos do gordo, que se precipitava para a barreira que ainda o separava da lagoa. Trepou a um tronco quebrado e saiu da selva.

A costa estava debruada de palmeiras. Subiam erectas ou inclinadas, ou reclinadas contra a luz, e adejavam no ar a sua coma verde a uma altura de trinta metros. O terreno a seus pés era um talude coberto de uma ervagem áspera, retalhado a toda a largura pelas vicissitudes de troncos derrubados de mistura com cocos sorvados e rebentões de palmeira. Por trás de tudo isto havia a escuridão própria da floresta e a mancha branca da clareira. Rafael quedou-se, com uma das mãos apoiada num tronco pardo, e franziu mais uma vez os olhos contra a água rebrilhante. Lá fora, talvez a uma milha de distância, salseiros de espuma babu― javam uma ilha de coral, e mais além o vasto mar era de um azul-ferrete. Dentro do arco irregular de coral, a lagoa era ainda como um lago das montanhas ― azul de todos os matizes, verde-sombreado e púrpura. A praia entre o terraço de palmeiras e a água era uma fina aduela, aparentemente interminável, pois à esquerda de Rafael, as perspectivas do palmar, da praia e da água reduziam-se a um ponto de infinidade; e sempre, quase visível, havia o calor.

Saltou do terraço. A areia era grossa sob os sapatos pretos e o calor vergastou-o. Deu-se conta do peso da roupa: num sacão, vigorosamente, descalçou os sapatos e arrancou as peúgas com a liga de elástico num só movimento. Em seguida subiu para o terraço, despiu a camisa e quedou-se no meio dos cocos em forma de caveira, com as sombras verdes das palmeiras e da floresta a deslizarem-lhe sobre a pele. Desapertou a fivela do cinto em feitio de serpente, tirou as calças e as cuecas e ficou ali, nu, a mirar a praia e a água faiscantes.

Era já um rapazinho espigadote, doze anos e alguns meses, para ter perdido o estômago proeminente da infância, mas não tinha ainda a idade suficiente para a adolescência o ter tornado desajeitado. Poderia ver-se agora que talvez viesse a ser um pugilista, a julgar pela arca do peito e a largura dos ombros, mas havia uma suavidade na linha dos lábios e nos olhos que não prenunciava o demónio. Acariciava brandamente o tronco da palmeira e, forçado por fim a acreditar na realidade da ilha, tornou a rir deliciado e fez o pino. Pôs-se agilmente de pé, correu ao longo do areal, ajoelhou-se e atirou duplos punhados de areia contra o peito. Depois sentou-se e ficou a olhar para a água com os olhos brilhantes e exaltados.

― Rafael... O gordo agachou-se no terraço e sentou-se cautelosamente, usando o rebordo

para assento. ― Desculpa esta grande demora. A fruta... Limpou os óculos e acavalouos no

nariz achatado. A armação deixara no alto do nariz um fundo vinco rosado em forma

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de V. Contemplou criticamente o corpo bronzeado de Rafael e a sua própria roupa. Pôs a mão na pega dum fecho Mair que lhe corria ao longo do peito.

― A minha tia... Com decisão abriu o fecho Mair e puxou a pala inteira sobre a cabeça.

― Pronto! Rafael mirou-o de soslaio e não disse nada. ― Com certeza que deves querer saber os nomes de todos eles ― começou o

gordo ― para fazer uma lista. Temos de fazer uma reunião. Rafael pareceu não entender a sugestão e o gorducho foi obrigado a continuar. ― Não me importo nada que me chamem o que quiserem, contando que me

não chamem o que me chamavam na escola. Rafael estava vagamente interessado. ― Que é que te chamavam? O gordo olhou por cima do ombro e depois debruçou-se para Rafael. Segredou: ― Costumavam chamar-me Bucha. Rafael rebentou de riso. Deu um salto. ― Bucha! Bucha! ― Rafael... fazes o favor.. O Bucha apertou as mãos num gesto apreensivo. ― Eu disse que não queria... ― Bucha! Bucha! Rafael dançava no ar quente da praia e, voltando-se como um avião de combate

de asas puxadas atrás, metralhou o Bucha. ― Trá-tá-tá! Picou na areia os pés do Bucha e deixou-se ficar estendido, rindo. ― Bucha! O Bucha sorria com relutância, satisfeito a contragosto deste mínimo de

reconhecimento. ― Contando que não digas aos outros... Rafael ria-se estendido na areia. A expressão de dor e concentração voltava ao rosto do Bucha: ― Só um minuto. Apressou-se em direcção à mata. Rafael ergueu-se e pôs-se a

deambular pela direita. Aqui o areal era abruptamente interrompido pelo motivo central da paisagem:

um enorme bloco de granito rosado, cravado sem compromisso através da floresta, do terraço, da areia e da lagoa, que se projectava num esporão com o comprimento de metro e meio. O topo do rochedo estava coberto de uma fina camada de solo e de uma relva velosa, ensombrada pelas palmeiras novas. Não tinham ali solo suficiente para medrar, e, quando atingiam cerca de seis metros de altura, tombavam e secavam, formando uma alfombra de troncos de matizes varlegados, onde era agradável encontrar assento. As palmeiras que ainda se mantinham de pé formavam um tecto de verdura, raiado de baixo por uma maranha tremeluzente dos reflexos da lagoa. Rafael içou-se para este terreiro, notou a frescura e a sombra, cerrou um olho e convenceu-se de que as sombras que lhe brincavam no corpo eram na realidade verdes. Encaminhou-se para a ponta da esplanada virada ao mar e ficou a contemplar a água. Era transparente até ao fundo e reluzia com a eflorescência das algas tropicais e do coral. Um cardume de pequeninos peixes rebrilhantes

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revoluteava de um lado para o outro, Rafael falou consigo mesmo, fazendo vibrar as cordas de baixo com um prazer vivo:

― Uff .. ! Além da esplanada desdobrava-se novo encanto. Um acto de Deus ― talvez um tufão, ou a tempestade, que acompanhara a sua própria chegada ― tinha assoreado uma banda da lagoa, de modo que havia no areal uma longa e funda piscina, fechada por um alto recife de granito róseo na extremidade mais afastada. Rafael já fora logrado mais de uma vez pela aparência especiosa de uma poça na praia, por isso aproximou-se desta, preparado para um desapontamento. Mas a ilha correspondia à realidade e o lagoeiro incrível, que naturalmente só era invadido pelo mar na subida da maré, era tão fundo numa das extremidades que tinha uma cor verde-escura. Rafael inspeccionou cautelosamente os trinta metros do circuito e mergulhou. A água era mais quente do que a temperatura do corpo e ele poderia bem estar a nadar numa enorme banheira.

O Bucha reapareceu sentado no rebordo rochoso, contemplando com inveja o corpo verde e branco de Rafael.

― Mal se pode nadar. ― Bucha! O Bucha descalçou os sapatos e as peúgas, colocou-os meticulosamente no

rebordo do rochedo e experimentou a água com um dedo do pé. ― Está quente! ― Mas que é que tu esperavas? ― Não esperava nada. A minha tia... ― Sebo para a tua tia! Rafael mergulhou e nadou debaixo de água com os

olhos abertos: a orla arenosa do lagoeiro agigantava-se como a vertente de uma montanha. Virou-se, sustendo a respiração, e uma luz dourada dançou e espargiu-se-lhe pelo rosto. O Bucha, olhando com ar resoluto, começou a tirar os calções. De momento estava pálido, e adiposamente nu. Caminhou em bicos de pés ao longo da orla arenosa do lagoeiro e sentou-se com a água até ao pescoço, sorrindo orgulhosamente para Rafael.

― Então não nadas? ― Não sei nadar. Nunca mo consentiram. A minha asma... ― Sebo para a tua asma! O Bucha recebeu este desabafo com uma espécie de paciência humilde. ― Mal podes nadar. Rafael deu umas braçadas de costas ao longo da vertente, imergiu a boca e

expeliu um jacto de água para o ar. Depois ergueu o queixo e falou. ― Eu já sabia nadar aos cinco anos. O meu pai ensinou-me. um comandante de

marinha. Quando estiver de licença, há-de vir salvar-nos. Que faz o teu pai? O Bucha corou subitamente. ― O meu pai já morreu ― respondeu rapidamente ― e a minha mãe... Tirou os óculos e buscou em vão qualquer coisa com que os pudesse limpar. ― Eu vivia com a minha tia. Ela tem uma confeitaria. Costumava ter tantos

doces, os que eu quisesse! Quando é que o teu pai vem salvarnos?

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― Assim que puder. O Bucha ergueu-se da água a escorrer e ficou de pé, nu, a limpar os óculos com

uma peúga. O único som que lhes chegava agora através do calor da manhã era o estridor

longo e rilhado das ondas contra a restinga. ― Como é que ele sabe que nós estamos aqui? Rafael rolou na água. O sono

envolvia-o como as miragens afagantes que se debatiam com o brilho da lagoa. ― Como é que ele sabe que nós estamos aqui? Porque, pensava Rafael,

porque, porque... O estoiro vindo da restinga distanciava-se cada vez mais. ― Hão-de-lhe dizer no aeroporto. O Bucha abanou a cabeça, pôs os óculos brilhantes e olhou para Rafael a seus

pés. ― Quem? Não ouviste o que o piloto disse acerca da bomba atómica? Estão

todos mortos. Rafael saiu da água, ficou de pé em frente do Bucha e considerou este

problema inusitado. O Bucha persistia. ― Estamos numa ilha, não é verdade? ― Eu subi a um rochedo ― proferiu Rafael lentamente ― e creio que estamos

numa ilha. ― Estão todos mortos ― tornou o Bucha ― e estamos numa ilha. Ninguém

sabe que estamos aqui. O teu pai não sabe, ninguém sabe... Os lábios tremeram-lhe e os óculos ficaram embaciados. ― Temos de ficar aqui até morrer. Com esta palavra o calor pareceu redobrar de intensidade, até que se tornou um

peso ameaçador e a lagoa os atacou com um fulgor cegante. ― Vai-me buscar a roupa ― murmurou Rafael. ― Por aí. Percorreu o areal,

sofrendo a hostilidade do sol, atravessou a esplanada e encontrou a roupa dispersa. Vestir mais uma vez uma camisa cinzenta era um estranho prazer. Depois trepou à beira do esporão e sentou-se num tronco adequado na sombra verde. O Bucha içou-se, levando a maior parte da roupa debaixo do braço. Em seguida sentou-se cautelosamente num tronco derrubado junto do pequeno rochedo que entestava com a lagoa: os seus reflexos emaranhados tremularam sobre ele.

E falou: ― Temos de encontrar os outros. Temos de fazer qualquer coisa. Rafael não respondeu. Aqui estava uma ilha de coral. Protegido do sol,

indiferente à conversa de mau agouro do Bucha, sonhava agradavelmente. O Bucha insistia: ― Quantos seremos nós? Rafael adiantou-se e quedou-se junto do Bucha. ― Não sei. Aqui e além, brisas leves enrugavam as águas polidas sob a

tremulina da caloraça. Quando estas brisas alcançavam o terraço, as frondes das palmeiras sussurravam, de modo que manchas de uma luz embaçada deslizavam-lhes sobre o corpo ou agitavam-se como nervuras brilhantes e aladas na sombra.

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O Bucha olhou para Rafael. Todas as sombras no rosto de Rafael estavam invertidas: verde, em cima, e, brilhantes, por baixo, do lado da lagoa.

Uma barra de sol raiava-lhe o cabelo. ― Temos de fazer qualquer coisa. Rafael olhou através do outro. Aqui estava,

enfim, o lugar imaginado mas jamais plenamente encontrado, em que se dava o salto para a vida real. Os lábios de Rafael descerraram-se num sorriso deleitado, e o Bucha, tomando este sorriso, que lhe era dirigido, por um sinal de reconhecimento, riu-se com prazer.

― Se estamos realmente numa ilha... ― O quê? Rafael deixara de sorrir e apontava para a lagoa. Algo cor-de-creme

jazia entre as algas mosqueadas. ― Uma pedra. ― Não. Uma concha. De súbito, o Bucha arrebatou-se numa excitação a que

não faltava decoro. ― É verdade. É uma concha! já vi uma assim. No muro dum jardim. Chamava-

lhe búzio. Costumava soprar-lhe por um lado e a mãe dele vinha logo. Tem muito valor... junto do cotovelo de Rafael, um palmito pendia sobre a

lagoa. Com efeito, o peso era já tal que arrancava um torrão ao solo pobre e, dentro em pouco, viria a cair. Ele partiu-o pela raiz e começou a agitá-lo na água, enquanto os peixes brilhantes guinavam para longe, de um lado para o outro. O Bucha debruçava-se perigosamente:

― Cuidado! Podes quebrá-lo... ― Cala-te! Rafael falava distraidamente. A concha era interessante, bonita, e

um brinquedo digno, mas os vívidos fantasmas do seu sonho acordado ainda se interpunham entre ele e o Bucha, que neste contexto era uma irrelevância. O palmito, vergando, empurrou a concha através dos sargaços. Rafael serviu-se de uma das mãos como ponto de apoio e fez pressão com a outra, até que ergueu a concha a escorrer e o Bucha a pôde agarrar.

Agora que a concha já não era um objecto para ser visto, mas para ser tocado, Rafael também se excitou. O Bucha chalrava:

―... um búzio, tão caro. Aposto que, se quiséssemos comprar um, nos havia de custar libras e libras... ― ele tinha um no muro do jardim ― e a minha tia...

Rafael tomou a concha das mãos do Bucha e um fiozinho de água escorreu-lhe ao longo do braço. Na cor a concha era de um creme carregado, laivado, aqui e além, de um tom róseo. Entre a ponta, esborcinada nutri pequeno orifício, e os lábios róseos da abertura desdobravam-se dezoito centímetros de concha, com uma ligeira espiral coberta dum desenho delicado e incrustado. Rafael sacudiu a areia do tubo profundo.

―... mugia como uma vaca ― continuava o outro. ― Tinha também umas pedras brancas e uma gaiola com um papagaio verde. Claro que não soprava nas pedras brancas, e dizia...

O Bucha fez uma pausa para recuperar o fôlego e acariciou o objecto rebrilhante que Rafael sustentava nas mãos.

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― Rafael! Rafael olhou para ele. ― Podemos servir-nos dela para chamar os outros. Ter uma reunião. Virão

quando nos ouvirem... Sorriu para Rafael. ― Era o que querias fazer, não era? Foi para isso que tiraste o búzio da água? Rafael atirou para trás o cabelo louro. ― Como é que o teu amigo soprava o búzio? ― Era como se cuspisse ― volveu o Bucha. ― A minha tia não me deixava

soprar por causa da asma. Ele disse-me que se soprava cá do fundo. O Bucha pôs uma das mãos sobre o abdómen proeminente. ― Experimenta, Rafael. Chama os outros... Duvidoso, Rafael levou o pequeno

orifício da concha à boca e soprou. Da abertura saiu um som sussurrado, mas nada mais. Rafael limpou a água salgada dos lábios e voltou a tentar, mas a concha permaneceu silenciosa.

― Era como se cuspisse. Rafael afusou os lábios e esguichou uma onda de ar para dentro da concha, que emitiu um ruído surdo como o de um traque. Isto divertiu tanto os dois garotos que Rafael continuou a soprar durante alguns minutos no meio de frouxos de riso.

― Ele soprava cá mesmo do fundo. Rafael apanhou o jeito e atingiu a concha com o ar expelido do diafragma. Ela soou imediatamente. Uma nota funda e áspera repercutiu pelo palmar, reboou pela maranha da floresta e ecoou no granito róseo da montanha. Bandadas de pássaros levantaram voo da copa das árvores e houve qualquer coisa que guinchou e se esgueirou pelo restolho.

Rafael afastou a concha dos lábios. ― Ena! A sua voz habitual soava como um murmúrio depois da nota áspera da

concha. Levou de novo o búzio aos lábios, respirou fundo e soprou mais uma vez. A nota voltou a ressoar e, sob a pressão mais firme do ar, subindo casualmente a uma oitava, tornou-se um clangor estridente, mais penetrante do que antes.

O Bucha gritava qualquer coisa, com o rosto banhado de gozo, os óculos a rebrilharem. Os pássaros rompiam aos aulidos, e pequenos animais restolhavam. Rafael perdeu o fôlego, a nota baixou da oitava e escoouse num farfalhejo, num jacto de ar.

O búzio estava silencioso, uma presa cintilante. O rosto de Rafael arroxeara-se com falta de fôlego e o ar sobre a ilha vibrava com o clamor do passaredo e de ecos agudos.

― Aposto que se pode ouvir a muitas milhas de distância. Rafael recuperou o fôlego e soprou uma série de breves buzinadas.

O Bucha exclamou: ― Aí vem um! Um garoto aparecera entre as palmeiras, a cerca de uns cem metros da praia. Era um rapazinho à volta dos seis anos, rijo e louro, com a roupa rasgada e o rosto coberto de uma lambujem pegajosa de fruta. As calças tinham sido deitadas abaixo para um fim óbvio e incompletamente puxadas. Saltou do terraço do palmar para o areal e as calças caíram-lhe junto dos artelhos. Desenvencilhou-se delas e encaminhou-se para a esplanada. O Bucha ajudou-o.

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Entretanto, Rafael continuava a soprar até que vozes gritaram na floresta. O gaiato agachou-se diante de Rafael, olhando para ele verticalmente e com alacridade. À medida que recebia a garantia de que algo se estava a fazer com um objectivo, começou a ter um ar satisfeito e enfiou na boca o único dígito limpo, um polegar róseo.

O Bucha curvou-se para ele. ― Como te chamas? ― Joãozinho. O Bucha murmurou o nome para consigo e depois gritou-o para Rafael, que

não se interessou, porque continuava ainda a soprar. O rosto arroxeara-se-lhe com o prazer violento de fazer aquele ruído estupendo e o coração fazia pulsar a camisa esticada. A vozearia na floresta ia-se aproximando.

Sinais de vida eram agora visíveis na praia. A areia, faiscando sob a tremulina da caloraça, ocultava muitas figuras na sua extensão de milhas: rapazes caminhavam em direcção à esplanada, atravessando o areal cálido e baço. Três gaiatos, pouco mais velhos do que o Joãozinho, apareceram surpreendentemente ao alcance da mão, vindos do lugar onde tinham estado a regalar-se com fruta na floresta. Um rapazinho escuro, alguns anos mais novo que o Bucha, apartou uma riça de restolho, dirigiu-se para a esplanada e sorriu jovialmente para toda a gente. Mais e mais foram chegando.

Seguindo o exemplo do inocente Joãozinho, sentavam-se nos troncos derrubados das palmeiras e esperavam. Rafael continuava a soprar breves e penetrantes buzinadas. O Bucha cirandava no meio do grupo, perguntando nomes e franzindo a testa para os decorar. As crianças davam-lhe a mesma simples obediência que tinham dado aos homens com os mega-fones. Alguns estavam nus e traziam a roupa consigo, outros seminus ou de uniforme escolar, mais ou menos vestidos ― cinzento, azul, castanho-claro ―, de casaco ou camisola. Havia emblemas, até divisas, riscas de cor nas meias epullovers. As suas cabeças formavam um cacho por cima dos troncos na sombra verde: cabeças escuras, louras, pretas, acastanhadas, ruivas e pardas, cabeças que chalravam e murmuravam, cabeças com olhos que espiavam Rafael e especulavam. Estava a fazer-se qualquer coisa.

Os garotos que caminhavam ao longo da praia, singulares ou em grupos de dois, eram visíveis logo que atravessavam a linha da tremulina para o areal mais próximo. Aqui atraiu o Olhar, primeiro, uma criatura negra como um morcego, que dançava na areia, e só depois se lhe distinguia o corpo. O morcego era a sombra de um garoto, reduzida pelo sol a pino a uma mancha entre pés apressados.

Mesmo ainda quando soprava, Rafael notou os dois últimos corpos que alcançaram a esplanada sobre uma negra sombra tremulante. Os dois rapazes, com crânio em forma de bala e cabelo áspero como estopa, estiraram-se no solo e ficaram a arfar como dois rafeiros, sorrindo para Rafael. Eram gêmeos, e quem os olhasse surpreendia-se, incrédulo, com uma duplicação tão jovial.

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Respiravam ao mesmo tempo, sorriam simultaneamente, rijos e pletóricos de vida. Mostravam a Rafael lábios húmidos, que não pareciam providos de pele suficiente, de modo que os traços se esfumavam e a boca se lhes abria desmesuradamente. O Bucha inclinou para eles os óculos rebrilhantes, e, entre as buzinadas, podia ser ouvido a repetir os nomes deles.

― Samuel, Érico, Samuel, Érico. Depois confundiu-os: os gêmeos abanaram a cabeça, apontaram um para o outro e a turba rompeu à gargalhada.

Por fim, Rafael cessou de soprar e sentou-se, com o búzio pendente de uma das mãos, a cabeça dobrada sobre os joelhos. À medida que os ecos foram morrendo, assim se desvaneceram as gargalhadas e caiu o silêncio.

No aro da tremulina de diamante, um ponto negro aflorava ao longe na praia. Rafael viu-o primeiro e pôs-se a observá-lo até que a fixidez do seu olhar desviou todos os olhos naquela direcção. Em seguida a criatura emergiu da miragem para o areal claro e viram que a escureza não era toda sombra, mas principalmente roupa. A criatura era um grupo de rapazes, marchando aproximadamente a passo, em duas colunas paralelas e vestidos de um modo excentricamente estranho. Levavam no braço calções, camisas e diferentes peças de vestuário, mas cada um dos rapazes trazia um boné preto e quadrado com um emblema de prata. Os corpos estavam ocultos, da garganta aos artelhos, por túnicas negras, que tinham uma longa cruz de prata sobre o lado esquerdo, no peito, e terminavam no pescoço por uma golilha pregueada. O calor dos trópicos, a descida, a busca de alimento, e agora esta marcha suarenta ao longo do areal esbraseante dera-lhes ao rosto o aspecto de ameixas recentemente lavadas. O rapaz que os comandava estava vestido da mesma maneira, mas o emblema do boné era de oiro. Quando o grupo se encontrava a cerca de dez metros da esplanada, berrou uma ordem e eles estacaram, arfantes, suando, oscilando na luz crua. O rapaz adiantou-se, de dorso arqueado em direcção à esplanada e de túnica esvoaçante, e espreitou para o que era quase completa escuridão para ele:

― Onde está o homem da corneta? Rafael, pressentindo o seu encandeamento pela luz do Sol, respondeu-lhe:

― Não há aqui nenhum homem com uma corneta. Só estou eu. O rapaz aproximou-se e olhou para Rafael, engelhando o rosto ao encarar com

ele. O que viu do rapazinho louro, com a concha cor-de-creme sobre os joelhos, pareceu não o satisfazer. Voltou-se rapidamente, fazendo rodar a sua negra túnica.

― Não há aí então um barco? Dentro da túnica flutuante ele era alto, magro e ossudo, e tinha o cabelo ruivo sob o boné preto. O rosto estava refegado e coberto de sardas e era feio sem ser bronco. Neste rosto arregalavam se dois olhos de um azul desbotado, agora frustrados e tomados, ou prestes a deixarem-se tomar, de cólera.

― Não há então aqui um homem? Rafael falou para o seu dorso voltado. ― Não. Vamos ter uma reunião. junta-te connosco. O grupo dos encapotados começou a sair fora da fila. O rapaz alto gritou-lhes:

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― Coro! Sentido! Fatigadamente obediente, o coro cerrou alas e pôs-se em fila, ficando para ali a oscilar ao sol. No entanto, alguns começaram a protestar debilmente.

― Mas, Merridew.. Por favor, Merridew... não podíamos ... ? Então um dos rapazes caiu de borco na areia e a fila desfez-se. Içaram para a esplanada o rapazinho que caíra e deixaram-no deitado. Merridew, de olhos arregalados, tirava o melhor partido possível de uma má situação.

― Está bem. Sentem-se. Deixem-no. ― Mas, Merridew.. ― Ele está sempre a desmaiar ― contestou Merridew. ― Fez o mesmo em

Gibraltar e em Adis-Abeba, e, às matinas, tombou por cima do regente. Esta última nota de inconfidência bisbilhoteira levantou risinhos no coro, que

se empoleirava como aves negras na maranha de troncos e examinava Rafael com interesse. O Bucha não perguntava nomes. Estava intimidado por esta superioridade uniformizada e a ríspida autoridade que se revelava na voz de Merridew. Encolhera-se do outro lado de Rafael e bulia nos óculos.

Merridew voltou-se para Rafael. ― Não há aqui gente crescida? ― Não. Merridew sentou-se num tronco e olhou à roda do círculo. ― Então teremos de olhar por nós mesmos. Seguro do outro lado de Rafael, o Bucha falou timidamente: ― É por isso que Rafael convocou uma reunião, a fim de que decidamos o que

devemos fazer, já tomámos nota dos nomes. Este é o Joãozinho. Aqueles dois... são gêmeos, Samuel e Érico. Qual é o Érico? Tu? Não... tu és Samuel.

― Eu sou Samuel. ― E eu Érico. ― É melhor sabermos todos os nomes uns dos outros ― alvitrou Rafael. ― Eu

sou Rafael. ― já sabemos quase todos os nomes ― atalhou o Bucha. Agora sabemo-los todos.

― Nomes de miúdos! ― exclamou Merridew. ― Porque hei-de ser Jack? Chamo-me Merridew.

Rafael voltou-se para ele rapidamente. Aquela era a voz de alguém que sabia o que queria.

― Depois ― volveu o Bucha ―, aquele rapaz... esqueci-me... ― Estás a falar de mais ― interpôs Jack Merridew. ― Cala o bico, Gordo! Levantou-se riso. ― O nome dele não é Gordo ― corrigiu Rafael. ― O seu nome verdadeiro é

Bucha! ― Bucha! ― Bucha! ― Oh, Bucha! Levantou-se uma tempestade de gargalhada e até nela

participaram os mais pequenos. Por um momento, os garotos formaram um círculo

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de simpatia com o Bucha no meio. Com o rosto em fogo, ele baixara a cabeça e pusera-se a limpar os óculos mais uma vez.

Finalmente o riso esmoreceu e continuou a lista de nomes. Havia Maurício, logo a seguir a Jack em estatura entre os meninos do coro, mas largo e com um sorriso permanente. Havia um garoto franzino, furtivo, que ninguém conhecia e fechado consigo mesmo, com uma intensidade interior de evasiva e segredo. Explicou num murmúrio que se chamava Rogério e remeteu-se outra vez ao silêncio. Bill, Roberto, Harold, Henrique. O menino do coro que tinha desmaiado sentou-se encostado a um tronco de palmeira, sorriu palidamente para Rafael e disse chamar-se Simão.

Jack falou: ― Temos de decidir do nosso salvamento. Houve um remurmúrio. Um dos

miúdos, Henrique, disse que queria voltar para casa. ― Caluda! ― intimou Rafael distraidamente. Ergueu a concha. ― Parece-me

que precisamos de um chefe que tome decisões. ― Um chefe! Um chefe! ― Eu devo ser o chefe ― propôs Jack com simples arrogância ―, porque sou

corista de capítulo e chefe de turma. Sei cantar. Outro murmúrio. ― Pois bem ― continuou Jack. ― Eu... Hesitou. O rapazinho negrusco,

Rogério, moveu-se por fim e falou. ― Vamos a uma votação. ― Sim! Sim! ― Votemos por um chefe. ― Vamos votar.. O brinquedo do voto era quase tão agradável como a concha. Jack começara a

protestar, mas o clamor mudou do desejo geral de um chefe para um voto por aclamação do próprio Rafael. Nenhum dos garotos poderia ter encontrado uma boa razão para este resultado: a inteligência que se revelara tinha provindo do Bucha, ao passo que o chefe mais óbvio era Jack. Mas havia uma segurança em Rafael, quando se sentava, que o distinguira desde logo: eram a sua estatura e a aparência atraente e, mais obscuro, ainda que mais poderoso, havia o búzio. O ser que o soprara e se sentara, esperando por eles no terraço com o delicado objecto equilibrado sobre os joelhos, fora logo tomado à parte.

― Aquele que tem a concha. ― Rafael! Rafael! ― Seja chefe aquele que tem a corneta. Rafael levantou a mão a pedir silêncio. ― Está bem. Quem quer Jack para chefe? Com uma obediência fúnebre, o coro

ergueu as mãos. ― Quem me quer a mim? Todas as mãos, com excepção das do coro e do

Bucha, se ergueram imediatamente. Em seguida também o Bucha levantou a sua, embora com relutância.

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Rafael contou. ― Sou eu então o chefe. O círculo dos rapazes rompeu num aplauso. Até o coro aplaudiu, e as sardas no

rosto de Jack desapareceram sob um rubor de mortificação. Ergueu-se, mudou de idéia e sentou-se de novo, enquanto o ar vibrava. Rafael olhou para ele, desejoso de lhe oferecer alguma coisa. ― Claro que o coro te pertence. ― Poderiam ser o exército... ― Ou caçadores ... ― Poderiam ser .. O rubor morreu no rosto de Jack. Rafael acenou novamente, a pedir silêncio. ― Jack fica encarregado do coro. Podem ser... o que é que queres que eles

sejam? ― Caçadores. Jack e Rafael sorriram um para o outro com uma tímida

simpatia. Os outros começaram a falar com avidez. Jack ergueu-se. ― Coro! Toca a tirar os bibes! Como se estivessem livres de uma aula, os

rapazinhos do coro ergueram-se, chalraram e depositaram um acervo de mantos negros sobre a relva. Jack dependurou o seu num tronco junto de Rafael. Os calções cinzentos colavam-se-lhe à pele com o suor. Rafael relanceou-os com admiração, e, quando Jack notou a direcção do seu Olhar, explicou:

― Tentei subir a colina para ver se havia água à nossa volta. Mas o teu búzio chamou-nos.

Rafael sorriu e ergueu a concha a pedir silêncio. ― Prestem todos atenção. Eu preciso de tempo para pensar. Não posso decidir

agora o que vamos fazer. Se não estamos numa ilha, poderemos salvar-nos num instante. De modo que temos de decidir se estamos numa ilha. Têm todos de ficar aqui perto à espera e não ir para longe. Três dentre nós ― se formos mais atrapalhamo-nos e perdemo-nos todos ―, três dentre nós irão numa expedição, a fim de o descobrir. Vou eu, Jack e, e... Olhou à roda do círculo de rostos ávidos. Não faltavam rapazes para escolher.

― E Simão. Os gaiatos que se encontravam junto de Simão galhofaram e ele ergueu-se, sorrindo um pouco. Agora que a palidez do rosto se lhe desvanecera, notava-se que era um rapazinho magro, pequeno e vivo, com uns olhos que espreitavam sob um manhuço de cabelo liso, negro e áspero, tombado para a testa.

Anuiu, com um aceno de cabeça na direcção de Rafael. ― Eu vou. ― eu... Jack tirou de trás das costas uma faca de mato de um

tamanho razoável e arremessou-a ao tronco. O zunido subiu e morreu. O Bucha agitou-se. ― Eu vou também. Rafael voltou-se para ele. ― Isto não é trabalho para ti. ― Não importa.

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― Não te queremos conosco ― proferiu Jack friamente. Aqueles que temos JÁ chegam.

Os olhos do Bucha faiscaram. ― Eu estava com ele quando descobriu o búzio. Eu estava com ele antes de

todos os outros. Jack e a companhia não prestaram atenção. Havia um destroçar geral. Rafael, Jack e Simão saltaram da plataforma e puseram-se a caminhar para

além da lagoa. O Bucha colara-se ao grupo, murmurando qualquer coisa atrás deles. ― Se Simão caminhar no meio ― sugeriu Rafael ― podemos falar por cima

da cabeça dele. Os três marchavam agora a passo. Isto implicava que, de vez em quando,

Simão tinha de dar uma corridinha para se pôr a par dos outros dois. Então Rafael deteve-se e foi ao encontro do Bucha:

― Ouve lá! Jack e Simão pretenderam não notar nada. Prosseguiram a marcha. ― Tu não podes vir. Os óculos do Bucha estavam de novo embaciados, desta

vez com humilhação. ― Disseste-lhes. Depois do que te contei... O rosto ruborizava-se e a boca tremia-lhe. ― Depois de te ter dito que não queria... ― De que estás tu para aí a falar? ― De que me chamavam Bucha. Eu disse-te que de nada me importaria, se me

não chamassem Bucha. E disse-te que não o contasses e foi logo a primeira coisa que fizeste...

A quietude descia sobre eles. Rafael, olhando com mais compreensão para o Bucha, viu que ele estava ferido e magoado. Sentia-se hesitar entre uma desculpa e outro insulto.

― É melhor Bucha do que Gordo ― disse por fim, com a franqueza dum genuíno chefe. ― Em todo o caso, desculpa, se te magoei. Volta para trás e toma nota dos nomes. É essa a tua tarefa. Adeus!

Girou sobre os calcanhares e correu no encalço dos outros dois. O Bucha quedou-se e a rosa da indignação empalideceu lentamente nas faces.

Voltou à plataforma. Os três rapazes caminhavam rapidamente no areal. A maré vazava e havia uma

língua de areia debruada de limos, que era quase tão firme como uma estrada. Difundia-se sobre os três uma espécie de encantamento, e o cenário e eles tinham consciência desse encanto e sentiam-se felizes. Voltavam-se uns para os outros, rindo com excitação, falando sem escutarem. O ar era brilhante. Rafael, confrontado com a obrigação de traduzir tudo isto numa explicação, fez o pino e deixou-se cair. Quando acabaram de se rir, Simão acariciou timidamente o braço de Rafael e tiveram de se rir outra vez.

― Vamos! ― incitou Jack por fim. ― Nós somos exploradores. ― Vamos até ao fim da ilha ― tornou Rafael ― e espreitamos o canto.

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― Se for uma ilha... Ora, por volta do entardecer, as miragens começaram a aquietar. Encontraram a ponta da ilha distintamente e sem qualquer deformação mágica de tamanho ou de sentido. Havia a maranha da quadratura habitual com um grande bloco pousado na lagoa. As aves marinhas faziam ali o ninho.

― Como uma capa de açúcar ― exclamou Rafael ― num bolo cor-de-rosa. ― Não podemos ver mais para além deste canto ― explicou Jack ―, porque

não há nada. Apenas uma curva suave... podes ver tu mesmo, e os rochedos são cada vez piores...

Rafael pôs a mão em pala sobre os olhos e seguiu a linha recortada dos penhascos na sua subida para a montanha. Esta parte da praia estava mais próxima da montanha do que qualquer outra que tinham visto.

― Vamos tentar subir a montanha por este lado ― disse ele. Parece-me o caminho mais fácil. Não se vê tanto da selva e há mais rochas cor-derosa. Vamos!

Os três rapazes começaram a trepar. Uma força desconhecida tinha arrancado e estilhaçado estes cubos, de sorte que para ali jaziam de través, muitas vezes empilhados diminutivamente uns sobre os outros. A característica mais habitual do rochedo era um penedo róseo sobrepujado por um bloco sesgo e este superado por outro e por mais outro, até que o rosado se tornava uma moreia de rochas em equilíbrio, que se projectavam através da fantasia arcada das lianas da floresta. Onde os penedos rosados sobressaíam do solo, havia, muitas vezes, estreitos atalhos sinuosos que subiam. Eles seguiam-nos, embrenhando-se nas profundezas do mundo vegetal, de rosto voltado para o rochedo.

― Quem abriria este atalho? Jack deteve-se a limpar o suor do rosto. Rafael quedou-se junto dele, arquejante. ― Homens? Jack abanou a cabeça. ― Animais. Rafael perscrutou a escuridão sob as árvores. A floresta vibrava

minuciosamente. ― Vamos! A dificuldade não era a íngreme ascensão à roda das lombas do

rochedo, mas os mergulhos ocasionais através do restolho, para atingir o atalho vizinho. Aqui as raízes e os caules das lianas enredavam-se numa riça tal que os rapazes tinham de enfiar por elas como agulhas dobradiças. A sua guia principal, além do solo pardo e da claridade intermitente do dia através da folhagem, era a tendência do declive, sem saberem se este buraco, rendado de cabos de liana, se elevava mais do que aquilo.

De certo modo iam subindo. Murados nestes meandros, talvez no seu momento mais difícil, Rafael virou-se para os outros com olhos brilhantes.

― Giríssimo! ― Bestial! ― Estupendo! A causa deste prazer não era óbvia. Todos eles estavam suados,

sujos e exaustos. Rafael estava muito arranhado. As lianas eram grossas como coxas e mal deixavam pequenos túneis para penetração ulterior. Rafael soltava brados à experiência e eles, silenciosos, escutavam os ecos.

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― Isto é o que se chama explorar ― exultou Jack. ― Aposto que ninguém aqui veio antes.

― Devíamos desenhar um mapa ― volveu Rafael ―, mas não temos papel. ― Podíamos traçar riscos numa casca de árvore ― lembrou Simão ― e enchê-

los de tinta. De novo veio a solene comunhão dos olhos cintilantes na tristeza. ― Bestial! ― Giríssimo! Não havia lugar para fazer o pino. Desta vez, Rafael expressou a

intensidade da sua emoção pretendendo derrubar Simão, e, dentro em pouco, eram um montão feliz e arfante no semicrepúsculo.

Quando se desenvencilharam, Rafael falou primeiro: ― Temos de nos pôr a andar. O granito róseo do penhasco vizinho estava mais arredado das lianas e das

árvores, de sorte que podiam caminhar pelo atalho. Assim, foram ter a uma outra mata mais esparsa, que lhes permitiu vislumbrar o mar dormente. Pela abertura veio o sol e secou o suor que lhes empapara a roupa no calor escuro e húmido. Por fim, o caminho para o cimo tornou-se uma espécie de refrega com a rocha rosada, sem mais mergulhos na escuridão. Os rapazes escolhiam o seu trilho por desfiladeiros e ladeiras de calhau.

― Olha! Olha! Sobre este braço da ilha, as rochas escavacadas erguiam as suas moreias e chaminés. Aquela contra a qual Jack se apoiava deslocou-se com um ruído rascado, quando a empurraram.

― Vamos! Mas não "vamos" para o cimo. O assalto ao cume teria de esperar, enquanto os três rapazes aceitavam o desafio. O rochedo tinha o tamanho de um pequeno automóvel.

― Iça! Um balanço atrás, outro adiante para apanhar o ritmo. ― Iça! Aumenta o balanço do pêndulo, aumenta, aumenta, eleva e aguenta

contra o ponto de equilíbrio mais afastado, aumenta, aumenta... ― Iça! O pedregulho vacilou equilibrado num único dedo, decidiu não voltar, fendeu o

ar, caiu, embateu, rolou, pinchou num zunido através do ar e rasgou um buracão no dossel da floresta. Ecos e pássaros voaram, flutuou uma poeira alva e rósea, e a mata foi abalada no seu seio, como sob a passagem de um monstro enraivecido. E depois a ilha ficou serena.

― Braaavo! ― Como uma bomba! ― Iuuu! Durante cinco minutos não se puderam arredar deste triunfo. Mas abalaram por fim. Depois disto era fácil o caminho para o cume. Quando alcançaram o derradeiro

tracto de terreno, Rafael deteve-se. ― Irra! Encontravam-se na orla de um circo ou de um semicirco no rebordo da

montanha. A ourela estava toda coberta de uma florzinha azul, uma planta agreste de

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qualquer espécie. E o derrame corria pela vertente e denegava o dossel da floresta. O ar enxameava de borboletas, que levantavam vôo, adejavam e pousavam.

Para além do circo erguia-se o cume quadrado da montanha, e em breve o dominaram.

Tinham conjecturado antes disto que se encontravam numa ilha. Ao escalarem os fragões róseos, com o mar de ambos os lados e as alturas de cristal do ar, tinham pressentido, por instinto, que o mar os abraçava por todos os lados. Mas parecera-lhes mais conveniente deixar a última palavra para o momento em que dominassem o cume e pudessem ver um anel de água.

Rafael voltou-se para os companheiros: ― Tudo isto nos pertence! O cume tinha grosseiramente a forma de um barco com uma bossa junto da

ponta, e, por detrás, desdobrava-se a descida emaranhada para a costa. De ambos os lados penedos, fragas, copas de árvores e uma ravina íngreme. Lá para diante o comprimento do barco, uma descida mais suave, revestida de

arvoredo com laivos cor-de-rosa, e por fim a planura selvática da ilha, de um verde denso mas esbatido na extremidade num fio róseo. Além, onde a ilha se diluía na água, havia outra ilha, um rochedo quase isolado, que surgia como um forte e os defrontava no fundo verde, como um bastião ousado e nacarado.

Os rapazes examinaram tudo isto e depois olharam para o mar. Encontravam-se no alto e a tarde tinha avançado: a miragem não roubava à vista a agudeza de linhas.

― É um recife! Um recife de coral. já vi aquilo em fotografias. O recife abraçava a ilha por mais de um lado, talvez à distância de uma milha

da costa, e paralelo ao que eles agora consideravam a "sua" praia. O coral estava rabiscado no mar, como se um gigante se tivesse debruçado para reproduzir a forma da ilha numa fluida linha de giz, mas se tivesse cansado antes de a terminar. Dentro dormia uma água de pavão e revelavam-se rochedos e limos, como num aquário; cá fora rebrilhava um mar de azul-ferrete. A maré rolava e longas estrias de espuma franjavam o coral. Por um momento tiveram a sensação de que o barco se movia firmemente à ré.

Jack apontou: ― Foi ali que caímos. Para além de penhascos e ravinas, havia um rasgão

visível nas árvores; havia troncos decapitados, e, depois, a sangradura, que deixara apenas uma fímbria do palmar entre a clareira e o mar. Também estava ali o terraço, que afocinhava na lagoa com figuras como insectos que se moviam junto dela.

Rafael traçou uma linha sinuosa, desde o escalvado em que se encontravam até uma ladeira, um barranco apertado entre flores, deu a volta e desceu até ao rochedo, onde começava a clareira.

― É o caminho mais rápido para regressar. Olhos brilhantes, bocas entreabertas, triunfantes, saboreavam o direito de senhorio. Estavam exaltados; eram amigos.

― Não há fumo de aldeia e não há barcos ― disse Rafael com ar sensato. ― Teremos de nos certificar mais tarde, mas parece-me que está desabitada.

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― Vamos tentar descobrir comida ― gritou Jack. ― Caçar. Apanhar coisas, até que nos venham buscar.

Simão olhava para ambos; nada dizia, mas acenava com a cabeça, até que a marrafa escura ficou a ondular ao vento de trás para diante; o seu rosto rejubilava.

Rafael olhava para o outro lado, para onde não havia recife. ― Lá mais para o fundo ― proferiu Jack. Rafael juntou as mãos em forma de

concha. ― Aquele pedaço da mata lá ao fundo... a montanha é que o sustém. Cada cunha da mata sustinha árvores e flores. Agora a floresta agitava-se,

gemia, vergava. Os tabuleiros de flores mais próximos, nos rochedos, encresparam-se e, durante meio minuto, a brisa soprou-lhes fresca o rosto.

Rafael abriu os braços. ― É tudo nosso. Riram, rolaram pelo chão e gritaram na montanha. ― Tenho fome. Quando Simão mencionou a sua fome, os outros deram-se

conta da sua. ― Vamos! ― intimou Rafael. ― já descobrimos o que queríamos saber. Escorregaram por uma ravina rochosa, caíram entre as flores e prosseguiram

sob o dossel das árvores. Pararam aqui e examinaram os matagais com curiosidade. Simão falou primeiro: ― Como velas. Mato de velas. Botões de velas. O matiço era de um sempre verde-escuro e aromático e os numerosos botões de

um verde-ceroso e fechado contra a luz. Jack cortou um com o facão e o olor derramou-se logo em torno deles.

― Botões de velas. ― Não se podem acender ― comentou Rafael. ― Parecem-se apenas com

velas. ― Velas verdes ― exclamou Jack depreciativamente. ― Não podemos come-

las. Vamos! Estavam na orla de uma espessa mata, calcorreando o trilho com pés doridos,

quando ouviram ruído ― guinchos ― e o rascar duro de patas no atalho. A medida que avançavam, os guinchos aumentavam, até que se tornaram um frenesim. Encontraram um bácoro enliçado numa cortina de lianas, debatendo-se nos cordões elásticos com toda a loucura de terror extremo. A sua voz era fina, com a agudeza de agulhas, e insistente. Os três rapazes precipitaram-se e Jack tirou novamente o facão com um floreado. Ergueu o braço no ar. Houve uma pausa, um hiato, o bácoro continuou a chiar e as lianas a sacudir, e a lâmina continuou a reluzir na ponta de um braço ossudo. A pausa foi apenas suficiente para lhes fazer compreender a enormidade do golpe que descia. Por fim, o bácoro libertou-se das lianas e escapuliu-se no restolho. Quedaram-se a olhar uns para os outros e para o lugar do terror. O rosto de Jack embranquecera sob as sardas. Reparou que ainda erguia o facão e deixou cair o braço, enfiando a lâmina na bainha. Então riram todos os três, envergonhados, e recomeçaram a dirigir-se para o trilho.

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― Estava à procura do sítio ― disse Jack. ― Estava à espera dum momento para decidir onde havia de lhe meter a faca.

― Devias tê-lo matado ― disse Rafael cruelmente. ― Fala-se sempre na matança do porco.

― Espetam-se as goelas do porco para deixar sair o sangue volveu Jack. ― Doutro modo não se pode comer a carne. ― Então porque não ... ? Sabiam bem porque o não fizera: por causa da

enormidade da faca a descer e a cravar-se na carne viva, por causa do sangue intolerável.

― Eu ia matá-lo ― continuou Jack. Seguia à frente e eles não lhe podiam ver o rosto. ― Estava à procura do sítio. Para a próxima ... !

Arrancou o facão da bainha e arremessou-o contra o tronco de uma árvore. Para a próxima vez não haveria piedade. Olhou à roda com ferocidade,

ousando contradizê-los. Depois separaram-se na claridade rija do sol, e, durante algum tempo, ocuparam-se em buscar e devorar comida, enquanto desciam da clareira para a plataforma e o local de reunião.

II - FOGO NA MONTANHA Pela altura em que Rafael cessara de soprar no búzio, a plataforma estava

apinhada. Havia diferença entre esta reunião e a que se realizara de manhã. O sol da tarde obliquava do outro lado da plataforma e muitas das crianças, sentindo demasiado tarde o ardor da soalheira, tinham vestido a roupa. O coro, que não parecia agora tanto um grupo, despojara-se das túnicas.

Rafael sentara-se num tronco caído, voltando o lado esquerdo para o Sol. À sua direita estava quase todo o coro e, à esquerda, os rapazes de maior estatura, que ainda não se conheciam antes da evacuação; diante dele, garotinhos acocorados na relva.

Reinava agora silêncio. Rafael ergueu a concha rosada e cor-de-creme, pô-la sobre os joelhos e, de súbito, uma brisa correu ao de leve sobre a plataforma. Hesitava se devia levantar-se ou continuar sentado. Olhou de lado para a esquerda, em direcção à piscina. O Bucha sentara-se junto dele, mas não dava qualquer auxílio.

Rafael pigarreou. ― Ora bem! E sentiu imediatamente que podia falar com fluência e explicar o

que tinha a dizer. Correu a mão pelo cabelo cor-de-mel e falou: ― Estamos numa ilha. Subimos ao alto da montanha e só vimos água à nossa

volta. Não vimos casas, nem fumo, nem pegadas, nem barcos, nem gente. Estamos numa ilha desabitada, sem mais ninguém a não ser nós.

Jack interrompeu-o.

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― Em qualquer caso, precisamos de um exército para caçar. Caçar porcos... ― Sim. Há porquinhos na ilha. Todos os três tentaram comunicar o sentido

daquela coisa rosada e viva que se debatera nas lianas. ― Nós vimos ... ― Grunhindo ... ― Fugiu... ― Antes que eu o pudesse matar.. mas, para a próxima... Jack arremessou o

facão contra um tronco e olhou à roda num desafio. A reunião prosseguiu. ― De modo que, como estão a ver ― continuou Rafael precisamos de

caçadores para ter carne. E outra coisa. Ergueu o búzio sobre os joelhos e contemplou os rostos barrados de sol. ― Não há gente grande. Temos de cuidar de nós mesmos. Correu um

murmúrio pelo comício, a que se seguiu um silêncio. ― E outra coisa. Não podemos ter toda a gente a falar ao mesmo tempo. É

preciso pôr o dedo no ar como na escola. Elevou o búzio à altura do rosto e contemplou o orifício. ― Nesse momento passarei o búzio. ― Búzio? ― É o nome que se dá a esta concha. Passarei a concha a quem pedir para

falar. Pode segurá-la enquanto fala. ― Mas... ― Ouve lá... ― E não será interrompido. A não ser por mim. Jack pôs-se de pé. ― Vamos ter regras! ― gritou excitado. ― Muitas regras! E se alguém faltar a

elas... ― Iuupi! ― Ihiii! Rafael sentiu que alguém lhe retirava o búzio dos joelhos. Em seguida

o Bucha estava de pé, acarinhando o grande búzio cor-de-creme, e a gritaria esmoreceu. Jack, achando-se de pé, olhou indeciso para Rafael, que sorria e passava a mão pelo tronco.

Jack sentou-se. O Bucha tirou os óculos e piscou os olhos perante a assembléia, enquanto os limpava na camisa.

― Estás a prejudicar Rafael. Não o deixas falar do que é mais importante. Fez uma pausa de efeito. ― Quem sabe que estamos aqui? Hem? ― Sabiam no aeroporto. O homem da corneta... O meu papá. O Bucha pôs os óculos. ― Ninguém sabe onde nós estamos ― começou o Bucha. Estava mais pálido

do que antes e sem fôlego. ― Talvez soubessem para onde íamos; talvez não, Mas não sabem onde estamos, porque nunca lá chegámos.

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Ficou boquiaberto a olhar para eles, oscilou o corpo e sentou-se. Rafael tirou-lhe o búzio das mãos.

― Era o que eu ia dizer ― prosseguiu ele ― quando vocês todos, todos... ― Mirava-lhes os rostos atentos. ― O avião foi deitado abaixo em chamas.

Ninguém sabe onde estamos. Poderemos ficar aqui por muito tempo. O silêncio era tão completo que podiam ouvir o arfar da respiração do Bucha.

O Sol obliquava e derramava ouro sobre metade da plataforma. As brisas, que na lagoa tinham perseguido a sua própria cauda como uma ninhada de gatinhos, abriam agora caminho através da plataforma com rumo à mata. Rafael puxou para trás a madeixa de cabelo louro que lhe pendia para a testa.

― De modo que poderemos ficar aqui muito tempo. Ninguém respondeu. De repente ele sorriu. ― Mas estamos numa ilha muito gira. Nós, Jack, Simão e eu, subimos à montanha. É giríssima. Há de comer e de beber, e... Rochas. Flores azuis.

O Bucha, que recuperara um pouco, apontou para o búzio nas mãos de Rafael e Jack e Simão calaram-se. Rafael continuou.

― Enquanto esperamos, podemos ter uma rica vida nesta ilha. Gesticulou largamente. ― É como um livro. Levantou-se logo um clamor. ― A Ilha do Tesouro. ― Andorinhas e Amazonas. ― Rafael acenou com o búzio. ― Esta é a nossa

ilha. É uma boa ilha. Até que os crescidos nos venham buscar, vamos reinar a valer. Jack estendeu a mão para o búzio. ― Há porcos ― disse ele. ― Há comida e água para nos banharmos naquela

corrente além; há tudo. Ninguém descobriu mais nada? Passou o búzio a Rafael e sentou-se. Aparentemente, ninguém tinha descoberto

mais nada. Os mais velhos notaram pela primeira vez o garoto, quando ele resistiu. Havia um grupo de miúdos que o instigavam a avançar e ele não queria ir. Era

um dez-réis de gente, com cerca de seis anos, e tinha uma das faces marcadas por um nevo cor-de-amora. Estacara agora ali, arrancado à perpendicular pela luz crua da publicidade, e espetava um dedo do pé na relva áspera. Murmurava qualquer coisa e estava prestes a chorar.

Os outros miúdos, murmurantes mas sérios, empurravam-no em direcção a Rafael.

― Ora bem ― incitou Rafael ―, vamos! O garoto olhou à roda com um ar de pânico. ― Fala! O miúdo estendeu as mãos para o búzio e a assembléia rompeu à gargalhada. Ele retirou logo as mãos e começou a chorar. ― Deixa-o pegar no búzio! ― gritou o Bucha. ― Deixa-o pegar! Por fim, Rafael persuadiu-o a pegar no búzio, mas, nesse instante, a rajada de

gargalhadas tinha abafado a voz da criança. O Bucha ajoelhara-se ao lado dele, pousando uma das mãos na concha enorme,

escutando e interpretando para a assembléia.

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― Ele quer saber o que vamos fazer com a cobra. Rafael riu-se e os outros rapazes riram-se também.

O miudito fechou-se ainda mais em si mesmo. ― Está agora a dizer que era uma fera. ― Fera? ― Uma fera. Enorme. Ele viu-a. ― Onde? ― Nas matas. As brisas errantes, ou talvez o declínio do Sol, permitiam que

uma leve friagem se derramasse sob as árvores. Os rapazes sentiram-na e agitaram-se inquietos.

― Ele não podia ter visto uma fera, uma cobra, uma serpente, numa ilha deste tamanho ― explicou Rafael com suavidade. ― Elas só aparecem em países grandes como a África ou a Índia.

Murmúrio e o grave assentimento de cabeças. ― Diz ele que a fera veio do escuro. ― Então não podia tê-la visto! Gargalhadas e vivas. ― Estão a ouvir isto? Diz que a viu no escuro... ― Continua a dizer que viu a fera. Veio e foi-se embora, depois voltou, e

queria comê-lo... ― Estava a sonhar. Ainda a rir-se, Rafael buscou uma confirmação naquele

círculo de rostos. Os mais velhos concordavam, mas, aqui e além, entre os mais pequenos, havia a dúvida que requeria mais do que uma garantia racional.

― Deve ter tido um pesadelo, ao ensarilhar-se em todas essas trepadeiras. Um acenar de cabeças mais grave: conheciam o mistério dos pesadelos. ― Diz que viu a fera, a cobra, e quer saber se ela virá esta noite. ― Mas aqui não há feras! Diz que, pela manhã, se transforma em cordas nas árvores e fica dependurada

nos ramos. Pergunta se virá esta noite. ― Mas não há feras! Agora não havia mais risos, mas uma observação mais

grave. Rafael correu ambas as mãos pelo cabelo e mirou o miudito com um misto de

divertimento e exaspero. Jack pegou no búzio: ― Rafael tem razão. Não há cobras. Mas, se houvesse uma cobra, nós iríamos

à caça para a matar. Vamos caçar porcos para arranjar carne para todos. E veremos também se descobrimos a cobra...

― Mas não há cobras! ― Nós veremos quando formos à caça. Rafael estava irritado e, de momento,

derrotado. Sentiu que se defrontava com algo inapreensível. Os olhos que atentamente miravam estavam despidos de humor.

― Mas não há fera! Algo, que ele desconhecia em si próprio, irrompeu e levou-o reafirmar bem alto:

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― Mas não há fera! A assembléia ficou silenciosa. Rafael ergueu, de novo, o búzio, e o seu bom humor voltou, enquanto pensava no que ia dizer a seguir.

― Vamos agora ao ponto mais importante. Tenho estado a pensar. Estive a pensar, enquanto subíamos a montanha. ― Lançou um sorriso conspirativo aos outros dois. ― E foi precisamente ali na praia. Foi isto que eu pensei. Nós queremos reinar e queremos que nos salvem.

O apaixonado estrugido de assentimento da assembléia feriu-o como uma vaga e ele perdeu o fio. Voltou a pensar.

― Queremos que nos salvem, e, naturalmente, havemos de ser salvos. Vozes chalraram. A afirmação simples, sem o apoio de qualquer prova senão o

peso da nova autoridade de Rafael, trouxe luz e serenidade. Teve de acenar com o búzio antes de conseguir que o ouvissem. ― O meu pai está na marinha. Disse-me que já não há ilhas por descobrir. Contou-me que a rainha tem um salão cheio de mapas e que neles estão

desenhadas todas as ilhas do mundo. De forma que a rainha tem um mapa desta ilha. ― Voltaram os gritos de entusiasmo e de bom ânimo. ― Mais tarde ou mais cedo um barco há-de vir cá ter. Poderá ser o barco do meu paizinho. De modo que, como vocês estão a ver, hão-de vir salvar-nos.

Fez uma pausa depois de ter esclarecido o seu ponto de vista. A assembléia ficara exaltada pela segurança contida nas suas palavras. Gostavam dele e agora respeitavam-no. Começaram a aplaudir espontaneamente e, naquele momento, o terraço inteiro ressoava com aplausos. Rafael corou, olhando de soslaio para a franca admiração do Bucha, e em seguida para Jack, que sorria e mostrava que ele também sabia aplaudir.

Rafael acenou com o búzio. ― Caluda! Silêncio! Prestem atenção! Prosseguiu no silêncio nascido do seu

triunfo. ― Há ainda outra coisa. Podemos ajudá-los a descobrirem-nos. Se um barco se

aproximar da ilha, pode acontecer que não dêem por nós. De maneira que temos de fazer fumo no alto da montanha. Temos de fazer uma fogueira.

― Uma fogueira! Vamos fazer uma fogueira! Num abrir e fechar de olhos, metade dos rapazes estava de pé. Jack berrava no meio deles, esquecido do búzio.

― Vamos! Sigam-me! O espaço sob as palmeiras estrugia com ruído e movimento. Rafael também se

pusera de pé, pedindo silêncio, mas ninguém o escutava. Num minuto, a turba deslocou-se em direcção ao centro da ilha e abalou atrás de Jack. Até os mais miúdos partiam e procuravam desenvencilhar-se das folhas e dos ramos quebrados. Rafael ficou abandonado, segurando o búzio, sem mais ninguém a não ser o Bucha.

O Bucha recuperava a respiração. ― Como miúdos! ― comentou ele com desprezo. ― Agem como um bando

de miúdos! Rafael mirou-o, duvidoso, e pousou o búzio no tronco de árvore.

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― Aposto que já passou a hora do lanche ― disse o Bucha. Que é que eles pensam fazer no alto daquela montanha? Acariciou respeitosamente a concha, depois parou e olhou para cima. Rafael! Eh! Aonde vais?

Rafael saltava já as primeiras faixas dilaceradas pela sangradura na floresta. A uma longa distância, à frente dele, só havia o estralar da ramaria e riso.

O Bucha observava-o desgostado. ― Como um bando de miúdos! Deu um suspiro, curvou-se e apertou os

atacadores dos sapatos. O ruído da assembléia errante morreu nas espaldas da montanha. Então, com a expressão martirizada de um pai que tem de acompanhar a desarrazoada exuberância dos filhos, pegou no búzio, dirigiu-se para a mata e começou a abrir caminho a partir da clareira revolta.

Ao fundo, do outro lado do alto da montanha, havia um terraço de floresta. Rafael viu-se mais uma vez a fazer o gesto de uma taça. ― Lá em baixo poderíamos arranjar a lenha que quiséssemos. Jack assentiu

com a cabeça e arrepanhou o lábio inferior. Começando talvez a uns três quilómetros e meio lá no fundo, do lado da vertente mais íngreme da montanha, a mancha escura poderia ter sido expressamente designada para combustível. Árvores, forçadas pelo calor úmido, encontravam muito pouco solo para um pleno crescimento e tombavam cedo, deterioradas.

As lianas abraçavam-nas e novos rebentões buscavam um caminho para o alto. Jack voltou-se para o coro que o aguardava, pronto à acção. Os bonés negros

da ordem estavam repuxados sobre uma orelha, como boinas vascas. ― Vamos fazer uma pilha de lenha. Vamos! Acharam o carreiro mais

apropriado, desceram e começaram a puxar pela lenha velha. E os mais miúdos, que tinham alcançado o cume, vieram também, escorregando, até que, por fim, estavam todos ocupados, com excepção do Bucha. A maior parte da madeira estava tão podre que, quando puxavam por ela, se quebrava num dilúvio de fragmentos, de piolho e ruína, mas alguns troncos vinham numa só peça. Os gêmeos, Samuel e Érico, foram os primeiros a conseguir um cepo adequado, mas nada puderam fazer até que Rafael, Jack, Simão, Rogério e Maurício encontraram lugar para uma pega. Içaram então o grotesco objecto morto ao longo do rochedo e atiraram-no para o alto. Cada grupo de rapazes acrescentou mais ou menos um quinhão e a pilha cresceu. No regresso, Rafael encontrou-se só com Jack sob um tronco e riram-se um para o outro ao compartilharem o mesmo fardo. Uma vez mais, no meio da brisa, da gritaria e do sol oblíquo no cimo da montanha, derramava-se aquele encanto, aquela estranha e invisível luz de amizade, aventura e contentamento.

Um bocado pesado. Jack sorriu-lhe. ― Para nós os dois não é. juntos, unidos num só esforço devido ao fardo,

cambalearam ao longo da última ladeira da montanha. juntos contaram: Um! Dois! Três! e arremessaram o cepo para a grande pilha. Depois recuaram,

rindo com um prazer triunfante, de maneira que Rafael teve logo de fazer o pino. A seus pés havia ainda garotos que mourejavam, embora os mais miúdos tivessem perdido interesse e fizessem uma batida a esta nova mata em busca de fruta. Agora

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os gêmeos, com uma inteligência insuspeitada, subiam a montanha com braçadas de folhas secas e colocavam-nas junto da pilha.

Um por um, à medida que pressentiam que a pilha estava completa, os rapazes cessavam de procurar mais lenha e quedavam-se ali, com o cume róseo e quebrado da montanha à sua roda. O bafo da respiração retomava um ritmo normal e o suor secava.

Rafael e Jack olharam um para o outro, enquanto o grupo fazia uma pausa. O conhecimento intimidante crescia dentro deles e não sabiam como iniciar a

confissão. Rafael foi o primeiro a falar, de rosto afogueado: ― Queres ... ? Pigarreou e prosseguiu: ― Queres fazer uma fogueira? Agora que a situação absurda tinha sido criada,

Jack também corara. Começou a murmurar vagamente: Esfregam-se dois pauzinhos. Esfregam-se... Olhou para Rafael, que deixou

escapar a última confissão de incompetência. ― Há aí alguém que tenha fósforos? ― Faz-se um arco e deixa-se girar a flecha ― volveu Rogério. Esfregou as

mãos com a mímica: ― Psss! Psss! Uma brisa deslizava sobre o dorso da montanha. O Bucha veio com ela, de

camisa e calções, desenvencilhando-se cautelosamente da riça da floresta, com o sol da tarde a rebrilhar nos óculos. Trazia o búzio debaixo do braço.

Rafael gritou para ele: ― Bucha! Tens fósforos? Os outros pegaram no brado até que a montanha o

ecoou. O Bucha abanou a cabeça e aproximou-se da pilha. ― Cos diabos! Que grande pilha que vocês fizeram! Jack apontou subitamente: ― Os óculos! Usem-nos como se fossem duas lentes! O Bucha viu-se rodeado antes que tivesse tempo de recuar. ― Parem lá com isso! Larguem-me! A sua voz subiu com o grito de terror,

quando Jack lhe arrancou os óculos do nariz. ― Cuidado! Dêem-me os óculos! Mal consigo ver! Tomem cuidado com o búzio!

Rafael deu-lhe uma cotovelada, afastando-o, e ajoelhou-se junto da pilha. ― Tirem-se da frente do Sol. Havia empurrões, puxões e gritos oficiosos. Rafael moveu as lentes para trás e para diante, de um jeito e do outro, até que

uma imagem branca e reluzente do Sol no ocaso se estampou num troço de lenha podre. Quase ao mesmo tempo ergueu-se no ar um delgado fio de fumo, fazendo-o tossir. Jack também se ajoelhou e soprou levemente, de modo que o fumo se espalhou, engrossando, e uma chamazinha reluziu. A chama, a principio quase invisível no Sol brilhante, envolveu um ramúsculo, cresceu, tingiu-se de cor e alteou-se a uma ramada que explodiu com um estalo rijo. A chama lambia cada vez mais alto e os rapazes romperam num brado de aplauso.

― Os meus óculos! ― gania o Bucha. ― Dêem-me os óculos! Rafael quedou-se afastado da pilha e depositou os óculos nas mãos tenteantes do Bucha.

A voz dele morria num murmúrio:

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― Apenas manchas e nada mais . Mal podia ver a minha mão... Os rapazes dançavam. A lenha da pilha estava tão podre e ressequida, que pés e

braços se estendiam com paixão para as chamas amarelas a elevarem-se no ar, sacudindo, a mais de seis metros de altura, uma grande barbicha de fogo. Dezenas de metros em redor da fogueira o calor era uma punhada escaldante e a brisa um rio de faúlhas. Troncos ruíam numa poeirada branca.

Rafael gritou: ― Mais lenha! Ide todos procurar mais lenha! A vida tornou-se uma corrida

contra o fogo e os rapazes espalharam-se no terraço superior da floresta. Manter uma bandeira limpa de fogo a voar na montanha era o fim imediato e ninguém via mais além. Até os mais miúdos, a menos que a tentação da fruta os empolgasse, traziam cavacos de lenha que arremessavam ao braseiro. O ar moveu-se um pouco mais e tornou-se num vento ligeiro, de modo que o sotavento e o barlavento ficaram nitidamente diferenciados.

De um lado o ar era fresco, mas, do outro, o fogo atirava um braço selvagem de calor que, num instante, arrepiava o cabelo. Rapazes, que sentiam a brisa da tarde no rosto úmido, paravam para gozar a frescura e descobriam depois que estavam exaustos. Estiravam-se então nas sombras que envolviam os rochedos esfacelados. A barbicha de fogo diminuía rapidamente; em seguida a pilha caiu para diante com um som macio e cinéreo, levantando uma grande árvore de fatilhas, que tombou e se desfez no fio do vento. Os rapazes jaziam no solo, arfando como cães.

Rafael ergueu a cabeça sobre os braços cruzados: ― Não prestou para nada! Rogério cuspiu com um ar de eficiência na poeira

quente: ― Que queres dizer com isso? ― Não houve fumo. Só chama. O Bucha tinha-se fixado numa cunha formada por dois rochedos e sentara-se

ali com o búzio sobre os joelhos. ― Não fizemos uma fogueira ― disse ele. ― E para que servia? Não

podíamos manter uma fogueira a arder assim, nem mesmo que tentássemos. ― Bem te preocupaste tu com isso! ― replicou Jack com um monio de

desprezo. ― Ficaste aí de cu sentado. ― Servimo-nos dos óculos dele ― atalhou Simão, mascarrando uma bochecha

com o braço. ― Foi assim que ele ajudou. ― Eu tenho o búzio ― protestou o Bucha com indignação. ― Deixa-me falar! ― O búzio não conta cá no alto da montanha ― cortou Jack. ― De modo que cala a boca! ― Tenho o búzio na mão. ― Pomos agora uns ramos verdes ― alvitrou Maurício. ― É o melhor para

fazer fumo. ― Eu tenho o búzio... Jack voltou-se ameaçador: ― Cala o bico!

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O Bucha fraquejou. Rafael tomou-lhe o búzio das mãos e olhou em roda do círculo de cabeças.

― Temos de arranjar um grupo especial para tratar da fogueira. Pode surgir ali um barco qualquer dia ― acenou com a mão para o aro tenso do horizonte ― e, se tivermos aqui sempre um sinal, virão buscar-nos. Outra coisa: precisamos de mais regras. Onde estiver o búzio há reunião. Tanto cá em cima como lá em baixo.

Todos assentiram. O Bucha abriu a boca para falar, viu o olhar de Jack e calou-se. Jack estendeu os braços para o búzio e ficou de pé, segurando o delicado objecto cuidadosamente nas mãos enfarruscadas.

― Estou de acordo com o Rafael. Precisamos de ter regras e de as cumprir. Afinal não somos selvagens. Somos ingleses, e os ingleses são os melhores em

tudo. De modo que temos de fazer o que convém. Voltou-se para Rafael: ― Rafael, eu divido o coro, isto é: os meus caçadores, divido-os em grupos e

ficamos responsáveis pela fogueira... Esta generosidade provocou uma saraivada de aplausos, de sorte que Jack

sorriu a toda a roda e acenou com o búzio a pedir silêncio. ― Agora deixemos morrer o fogo. De qualquer maneira quem iria ver o fumo à

noite? Podemos fazer uma fogueira quando quisermos. Altos, o vosso trabalho esta semana será manter a fogueira acesa; sopranos,

cabe-vos a vez na semana a seguir... A assembléia anuiu gravemente. ― E também seremos responsáveis pela vigia. Se virmos um barco ao largo...

― seguiram a direcção do braço ossudo com os olhos ― deitamos ramo verde em cima. Haverá então mais fumo.

Fitaram vivamente o azul espesso do horizonte, como se uma pequena silhueta pudesse ali aparecer a qualquer momento.

O Sol a oeste era uma gota de oiro candente, que escorregava cada vez mais no parapeito do mundo. De súbito deram-se conta da noite como o fim da luz e do calor.

Rogério pegou no búzio e olhou lugubremente a toda a volta: ― Tenho estado a observar o mar. Não se vê sequer o rasto de um barco. Talvez nunca nos salvem. Ergueu-se um murmúrio que logo morreu. Rafael recuperou o búzio: ― Já te disse antes que um dia nos virão salvar. Só temos de esperar; é tudo. Cheio de audácia e indignado, o Bucha arrebatou o búzio: ― Foi isso o que eu disse! Falei das nossas reuniões e do resto e tu disseste que

me calasse... A sua voz ganhava o lamento de virtuosa recriminação. Os outros agitaram-se e

começaram a gritar mais forte do que ele. ― Dissestes que queríeis uma fogueira pequena e levantastes uma pilha de

lenha tão grande como uma meda de palha. Se eu digo qualquer coisa ― intimou o Bucha, com realismo amargo ―, dizeis que me cale; mas se for Jack, Maurício ou Simão...

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Fez uma pausa no meio do tumulto, de pé, olhando por sobre as cabeças deles para a vertente do lado desamigo da montanha, para a grande mancha onde tinham encontrado a lenha. Depois riu de um modo tão estranho que eles silenciaram, contemplando o brilho dos seus olhos com espanto.

Seguiram-lhe o olhar para descobrir o gracejo amargo. ― Tendes aí a vossa fogueira! O fumo subia aqui e além do meio das lianas, que afestoavam. as árvores

mortas ou moribundas. À medida que olhavam, um clarão de labareda aparecia na raiz dum ramúsculo, e logo o fumo espessava. Pequenas chamas prorrompiam do raizame duma árvore e serpeavam através das folhas e do mato, apartando-se e aumentando. Uma golfada flamífera cingiu um tronco de árvore e pincharolou como um esquilo rebrilhante. O fumo alastrou, afusou-se e rolou numa grande vaga. O esquilo pulou nas asas do vento e abraçou o tronco erecto de outra árvore, devorando-a ao longo da vertical. Sob o negro dossel de fumo e folhas, o fogo apoderava-se da floresta e começava a roer. Hectares de uma fumaça negra e amarela rolavam firmemente em direcção ao mar. À vista das labaredas e do curso irresistível do fogo, os rapazes romperam num aplauso agudo e excitado.

As labaredas, como se fossem uma espécie de vida selvagem, rastejavam como um jaguar sobre o ventre em direcção a borbotos de uma planta semelhante ao vidoeiro e que franjavam a luxúria vegetal do rochedo róseo.

Fustigaram as primeiras árvores e as ramadas cobriram-se de uma breve folhagem de fogo. O coração de labareda saltou agilmente o desfiladeiro entre as árvores e prosseguiu depois, balançando-se e enroscando-se nelas ao longo de toda a fila. Aos pés da garotada cabriolante, um quarto de milha quadrada de floresta rabejava com fumo e fogo. Os estalos soltos do incêndio sumiam-se num rufar de tambor que parecia abalar a montanha.

― Aí tendes a vossa fogueira! Sobressaltado, Rafael apercebeu-se de que os rapazes iam aquietando e ficando calados, sentindo o primeiro assombro perante o poder libertado junto deles. O conhecimento e o assombro tornaram-no selvagem.

― Oh, cala o bico! ― Eu tenho o búzio ― interpôs o Bucha numa voz magoada. ― Tenho o

direito de falar. Miraram-no com olhos sem interesse e ouvido atento ao estertorar do fogo. O

Bucha relanceou nervosamente aquele inferno e acariciou o búzio. ― Agora temos de deixar arder tudo. E era esta a nossa lenha! Lambeu os

lábios. ― Não há nada que se possa fazer. Devíamos ter tido mais cuidado. Tenho

medo... Jack desviou os olhos do fogo. ― Tu tens sempre medo!... Bucha! ― Tenho o búzio! ― insistiu o Bucha sombriamente. Voltou-se para Rafael. ― Tenho o búzio, não é verdade, Rafael? Um pouco contra vontade, Rafael afastou-se da visão esplêndida e pavorosa.

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― O que é? ― O búzio. Tenho direito a falar. Os gêmeos galhofaram ao mesmo tempo: ― Queríamos fumo... ― Agora vejam ... ! Uma mortalha estirava-se léguas e léguas desde a orla da

ilha. Todos os rapazes, excepto o Bucha, começaram a galhofar; em certo momento gritaram de riso.

O Bucha irritou-se. ― Eu tenho o búzio! Ora prestem atenção! A primeira coisa que devíamos ter

feito era abrigos lá em baixo na praia. À noite, não é assim tão quente. Mas logo que Rafael falou numa fogueira, lá foram todos em berrara até ao cimo da montanha. Como um bando de miúdos!

Agora escutavam todos a tirada. ― Como quereis que vos salvem se não dais a primazia ao que deve vir

primeiro e se não fazeis o que importa? Tirou os óculos e fez um gesto, como se fosse a pousar o búzio, mas o

movimento súbito em direcção a ele de um grande número dos rapazes mais velhos fê-lo mudar de idéias. Entalou o búzio debaixo do braço e encostou-se ao rochedo.

― Depois, assim que aqui chegastes, fizestes uma fogueira que não prestou para nada. Pouco faltou agora para que não pegásseis fogo à ilha inteira. Não seria bem ridículo se tivéssemos queimado a ilha inteira? Fruta cozida, eis o que teríamos de comer, e carne de porco assada. E isto não é coisa para rir! Dissestes que Rafael era o chefe e não lhe dais tempo para pensar. E quando ele diz qualquer coisa, correis logo atrás como, como...

Fez uma pausa para recobrar o fôlego e o fogo grunhiu contra eles. ― E isto ainda não é tudo. Os miúdos. Os pequenos. Quem reparou neles?

Quem sabe quantos há aqui? Rafael deu subitamente um passo em frente: ― Eu disse-te. Eu disse-te que tomasses nota dos nomes! ― Como é que eu o podia fazer? ― contestou o Bucha com indignação. ―

Como, se estava sozinho? Eles esperaram dois minutos, depois meteram-se na água; embrenharam-se nas matas; espalharam-se por toda a parte, como é que eu podia saber quem eles eram?

Rafael passou a língua pelos lábios lívidos: ― Então tu não sabes quantos somos aqui? ― Como poderia sabê-lo, se os miúdos corriam à minha roda como insectos? Quando vocês os três regressaram, assim que tu disseste para fazerem uma

fogueira, safaram-se todos, e eu nem sequer tive uma oportunidade... ― Basta! ― disse Rafael asperamente, e arrancou-lhe o búzio. ― Se não

pudeste, pronto, acabou-se! E depois vocês vieram ter comigo e pinaram-me os óculos...

Jack voltou-se para ele. ― Cala o pio! ―... e então os miúdos andavam perdidos por aí, no sítio onde

está o fogo. Como é que eu sei se ainda andam por lá?

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O Bucha ergueu-se e apontou o fumo e as chamas. Elevou-se um murmúrio do grupo dos rapazes que logo morreu.

Algo estranho acontecia ao Bucha, pois abria a boca para recobrar o fôlego. ― Aquele miúdo... ― dizia o Bucha numa voz estrangulada ―, o que tinha

uma marca na cara, não o vejo. Onde estará ele agora? Caiu sobre a turba um silêncio de morte. ― O que falava das cobras. Estava ali em baixo... Uma árvore explodiu no

brasido como uma bomba. Altas velaturas de lianas ergueram-se por um momento e mostraram-se numa agonia, tombando outra vez. Os garotos gritaram:

― Cobras! Cobras! Olhem as cobras! Para o poente, e sem que ninguém o notasse, o Sol pairava um dedo ou dois acima da linha de água. Os rostos deles incendiam-se de vermelho por debaixo. O Bucha caiu contra um rochedo e enclavinhou nele as mãos.

― O miúdo com a marca na cara... onde está ele, agora? Estou a dizervos que o não vejo.

Os rapazes entreolharam-se, timoratos e incrédulos. ― ... onde está ele agora? Rafael replicou num murmúrio, quase vexado: ― Talvez tenha voltado para o, o... Em baixo, aos pés deles, do lado desamigo

da montanha, o rufar de tambor continuava. III - CABANAS NA PRAIA Jack estava dobrado em dois. Curvava-se como um corredor no sprint final,

com o nariz apenas a uns centímetros da terra húmida. Os troncos das árvores e as lianas que os festoavam perdiam-se numa penumbra verdosa nove metros acima dele, e a toda a volta estendia-se o capim. Aqui havia apenas uma leve indicação de pista: um arbusto partido e o que bem poderia ser a impressão da aresta de um casco. Inclinou o queixo e observou os sinais, como se quisesse forçá-los a falar. Em seguida, como um rafeiro, incómodo na sua posição de quadrúpede, embora sem notar o desconforto, esgueirou-se uns cinco metros e estacou. Era a ilhó de uma liana com uma gavinha pendente de um nódulo. A gavinha estava polida do lado inferior; os bácoros, ao passarem pela ilhó, roçavam-na com a pele coriácea.

Jack acocorava-se com o rosto a uns poucos centímetros desta pista, depois olhou em frente na semiobscuridade do matiço. O seu cabelo ruço, consideravelmente mais comprido do que quando ali tinham caído, estava agora mais claro, e o dorso nu, pelado com o ardor do sol, era uma massa de sardas escuras. Uma vara de um metro e meio, aguçada numa das pontas, riscava o solo, pendente da sua mão direita, e, à excepção de um par de calções esfarrapados, sustidos pelo cinturão em que levava a faca de mato, estava nu. Cerrou os olhos,

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ergueu a cabeça e inspirou suavemente com as narinas farejantes, apreciando a corrente do ar quente. A floresta e ele participavam do mesmo silêncio.

Por fim, soltou um fundo suspiro e descerrou os olhos. Eram de um azul vivo, olhos que, nesta frustração, pareciam dardejantes e quase loucos. Correu a língua pelos lábios secos e perscrutou a floresta incomunicativa. Então insinuou-se mais uma vez na floresta e rondou o terreno por um e outro lados.

O silêncio da floresta era mais opressivo do que o calor e, àquela hora do dia, não se ouvia sequer o zumbido dos insectos. Apenas quando Jack esparvoava um pássaro álacre nalgum ninho primitivo, oculto num silvedo, só então o silêncio se fendia e os ecos ressoavam feridos por um grito agudo, que parecia vir do abismo das idades. Jack, ao ouvir este grito, encolhia-se, retinha o sibilo da respiração e, durante um minuto, era menos um caçador do que um ser furtivo, de forma simiescana maranha do arvoredo. Em seguida, o rasto, a frustração, reivindicavam-no de novo e ele esquadrinhava o terreno avidamente. Junto do raizame de uma árvore enorme, que dava uma florinha pálida num tronco cinzento, deteve-se, cerrou os olhos e inspirou mais uma vez o ar quente. E desta feita susteve o fôlego, teve mesmo no rosto uma palidez passageira e, finalmente, uma nova onda de sangue. Deslizou como uma sombra sob a obscuridade da árvore e agachou-se, a espiar o terreno pisado a seus pés.

As caganitas estavam quentes. Jaziam num acervo a meio do solo revolvido. Tinham a cor de olivina, moles, e desprendia-se delas um leve vapor. Jack

ergueu a cabeça e espreitou a massa inescrutável das lianas que rugiam o rasto. Depois levantou o arpão e avançou como uma enguia.

Para além das lianas, o rasto seguia um trilho de bácoros, que era bastante largo e estava suficientemente pisado para ser um carreiro.

O terreno endurecera sob a pisadura costumada, e, quando Jack se ergueu a toda a altura do corpo, ouviu qualquer coisa mover-se. Balançou o braço direito e arremessou o arpão com toda a força de que era capaz. Do trilho dos bácoros veio o rascar súbito e rijo dos cascos, um som de castanholas, sedutor, enlouquecente: a promessa de carne.

Rompeu do matagal e agarrou o arpão. O estralejar da tropicada dos bácoros morreu na distância.

Jack quedou-se ali, escorrendo suor, listrado de uma terra cor da taipa, manchado por todas as vicissitudes de um dia de caça. Praguejando, voltou costas ao trilho e abriu caminho até ao sítio em que a floresta se espraiava um pouco, e onde, em vez de troncos nus, que serviam de suporte a um tecto escuro, se encontravam finos troncos pardacentos e coroas de palmeira penujosa. Para além deles rebrilhava o mar e podia ouvir vozes. Rafael achava-se junto de uma geringonça de troncos de palmeira e folhas, um abrigo grosseiro voltado para o mar e que parecia prestes a ruir. Não reparou em Jack, quando ele falou: ― Tens água?

Rafael olhou para cima, franzindo o sobrolho, do meio da complicação das folhas. Nem sequer reparou nele, ainda quando o viu.

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― Estou a perguntar-te se tens água. Tenho sede. Rafael desviou a atenção do abrigo e deu pela presença de Jack com um sobressalto.

― Oh! Olá! Água? Ali junto da árvore. Deve haver ainda lá alguma. Jack tirou uma casca de coco, que transbordava água fresca, de uma fila

disposta na sombra e bebeu. A água espirrou no queixo e derramou-se-lhe no pescoço e no peito. Respirou ruidosamente ao terminar.

― Bem precisava. Simão falou de dentro do abrigo: ― Mais para cima. Rafael tornou ao abrigo e levantou uma ramada com

umtecto inteiro de folhas. As folhas separaram-se e esvoaçaram, caindo por terra. O rosto contrito de

Simão assomou na toca. ― Desculpa. Rafael observou toda aquela ruína com desgosto. ― Assim nunca

mais acabo. Estendeu-se aos pés de Jack. Simão não se moveu, continuando a espreitar da lura do abrigo. já no chão, Rafael explicou:

― Ando a trabalhar há tantos dias e olha para isto! Dois abrigos estavam de pé, embora abalados. Aquele era só destroços.

― E continuam a safar-se. Lembras-te da reunião, de como toda a gente ia trabalhar a valer até acabar os abrigos? Excepto eu e os caçadores...

― Excepto os caçadores. Pois bem! Os miúdos são... Gesticulou em busca do termo.

― São de desesperar! Os mais velhos também não são melhores. Tu não vês? Tenho estado a trabalhar o dia inteiro com o Simão. Mais ninguém. Eles estão para aí a banhar-se, ou a comer, ou a reinar.

Simão espetou a cabeça, cautelosamente. ― Tu és o chefe. Ralha-lhes. Rafael permanecia estendido e olhou para as

palmeiras e o céu. ― Reuniões. Como gostamos de fazer reuniões! Todos os dias. Duas vezes por

dia. Falamos. ― Apoiou-se num cotovelo. ― Aposto que se tocasse agora o búzio, vinham logo a correr. Então ficavam todos muito sérios, muito compenetrados e solenes, e alguém

diria que deveríamos construir um avião a jacto, ou um submarino, ou um aparelho de televisão. Assim que a reunião termina, põem-se ao trabalho durante cinco minutos e depois... ala! cirandam por aí ou vão à caça.

Jack corou. ― Queremos carne. ― Pois bem, não temos nenhuma. E queremos abrigos. De mais a mais, o resto

dos teus caçadores já regressou ao tempo! Têm estado a nadar. ― Eu continuei ― prosseguiu Jack. ― Deixei-os partir. Tive que continuar.

Eu... Tentou exprimir a compulsão que o fazia procurar o rasto, assim como o desejo

de matar que o devorava. ― Eu continuei. Pensei que, sozinho... A loucura incendiou-lhe de novo o

olhar.

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― Pensei que poderia matar. ― Mas não fizeste nada. ― Pensei que poderia. Certa paixão oculta vibrava na voz de Rafael. ― Mas ainda não mataste. O seu convite poderia ser tomado por ocasional, se não fosse o tom de voz. ― Não poderias ajudar com os abrigos, pois não? ― Queremos carne... ― E não a arranjamos... Agora o antagonismo era audível. ― Mas hei-de consegui-la! Para a próxima! Tenho de arranjar um espeto para

este arpão! Ferimos um cevado e o arpão caiu. Se pudéssemos fazer ao menos uns espetos...

― Precisamos de abrigos. De súbito Jack gritou com raiva: ― Estás a acusar-me ... ? ― Tudo o que eu estou a dizer é que temos de trabalhar com gana. É tudo. Tinham ambos o rosto vermelho e sentiram que era difícil olhar um para o

outro. Rafael rolou sobre o ventre e começou a brincar com a relva. Se começar a chover como quando aqui caímos, vamos precisar bem dos abrigos. E depois há outra coisa. Precisamos dos abrigos, porque...

Fez uma pausa durante um momento e ambos recalcaram a ira. Depois prosseguiu com o assunto novo e seguro.

― Já reparaste, não é verdade? Jack pousou o arpão e sentou-se nos calcanhares.

― Reparei o quê? ― Bem. Eles estão cheios de medo. Rebolou-se e encarou com o rosto de Jack,

frio e sujo. ― Do modo como as coisas vão. Eles sonham. Podes ouvi-los. Nunca

acordaste pela noite? Jack abanou a cabeça. ― Falam e gritam. Os miúdos. Até mesmo alguns dos outros. Como se... Como

se não fosse uma boa ilha. Surpreendidos com a interrupção, miraram o rosto sério de Simão.

― Como se ― reiterou Simão ― a fera, a fera ou a cobra, fosse verdadeira. Lembram-se?

Os dois rapazes mais velhos vacilaram quando ouviram a sílaba vergonhosa. As cobras não se mencionavam agora, não eram mencionáveis. ― Como se não fosse uma boa ilha ― repetiu Rafael lentamente. ― Sim, é

verdade. Jack sentou-se por terra e estendeu as pernas. ― São malucos. ― Chanfrados. Lembras-te do dia em que fomos fazer uma batida? Sorriram-se entre eles, recordando o encanto do primeiro dia. Rafael

continuou: ― De modo que precisamos de abrigos, como uma espécie de...

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― Casa. ― É isso mesmo. Jack encolheu as pernas, abraçou os joelhos e franziu o sobrolho num esforço

para atingir a clareza. ― É o mesmo... na floresta. Quero dizer, quando se anda à caça... não quando

se colhe fruta, evidentemente, mas quando se está só... Fez uma pausa de alguns momentos, sem saber se Rafael o tomaria a sério. ― Continua. ― Se se anda à caça, às vezes, sentimo-nos como se... ― corou subitamente. ― Não há nada nisto, claro! É apenas uma impressão. Mas tem-se a sensação

de que não se está a caçar, mas... a ser caçado; como se, por trás de nós, houvesse sempre qualquer coisa na selva.

Voltaram a calar-se. Simão interessado, Rafael incrédulo e com uma pontinha de indignação. Sentou-se e esfregou um ombro com uma das mãos enfarruscada.

― Eu não entendo bem. Jack pôs-se de pé e falou muito apressadamente. ― É assim que se sente na floresta. Claro que não há nada nisto. Eu só... só... Deu alguns passos rápidos em direcção à praia. ― Eu só percebo o que eles sentem. Tás a ver? É só isso. ― O melhor é que nos salvem. Jack teve de pensar um momento, antes que

pudesse lembrar-se de que salvamento se tratava. ― Salvem? Sim, pois claro! Em todo o caso, eu primeiro gostava de apanhar

um porco... Agarrou o arpão e atirou-o contra o solo. O olhar fulgurou-lhe de novo com

uma expressão opaca, ensandecida. Rafael mirou-o criticamente através da maranha do cabelo louro.

― Desde que os teus caçadores não se esqueçam da fogueira... ― Tu e as tuas fogueiras! Os dois rapazes cruzaram o areal, e, voltando-se

junto da borda d’água, olharam para a montanha cor-de-rosa. O fio de fumo traçava um risco a giz no azul sólido do céu, ondulava no topo e desvanecia-se. Rafael franziu o sobrolho.

― A que distância é que se poderá ver aquilo? ― Léguas. ― Fazemos pouco fumo. A parte inferior do fio, como se estivesse consciente

daquele olhar, engrossou num borrão cremoso que subiu ao longo da débil coluna. ― Lançaram-lhe em cima ramo verde ― murmurou Rafael. Quem sabe? ―

Franziu os olhos e girou sobre os calcanhares a devassar todo o horizonte. ― já sei! Jack gritou tão alto que Rafael deu um salto.

― O quê? Onde? É um barco? Mas Jack apontava os altos declives que levavam da montanha à parte mais rasa da ilha.

― Claro! É ali que eles se espojam... é o que devem fazer, quando o sol está bem quente...

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Rafael contemplava atontado aquele rosto estático. ―... sobem muito alto. Muito Alto e, à sombra, descansam à hora do calor, como fazem as vacas em Inglaterra...

― Pensei que tivesses visto um barco! ― Podíamos cair de repente sobre um... pintar a cara para que não nos

vissem... cercá-los, talvez, e então... A indignação tirou todo o autodomínio a Rafael: ― Eu estava a falar do fumo! Não queres que te salvem? Tudo o que tu sabes

falar é de porcos, porcos, porcos! Mas nós queremos carne! ― E eu para aqui a trabucar todo o dia, sem outra ajuda a não ser a de Simão, e

tu nem sequer reparas nas cabanas! ― Eu também não andava a apanhar moscas... ― Mas tu gostas do que estás a fazer! ― interpôs Rafael. Tu queres caçar!

Enquanto eu... Encararam-se no areal brilhante, surpreendidos com o atrito de acrimónia.

Rafael foi o primeiro a desviar a vista, pretendendo interessar-se num grupo de miúdos sentados na areia. De além, do outro lado do terraço, vieram os gritos dos caçadores na piscina. No rebordo do terraço jazia o Bucha, a espiar a água faiscante.

― Ninguém ajuda nada. Queria explicar a razão por que as pessoas nunca eram aquilo que pareciam.

― O Simão ajuda. ― Apontou os abrigos. ― Os outros pisgaram-se. Ele fez tanto como eu. Mas... ― O Simão está sempre ao pé de nós. Rafael tornou a caminhar em direcção

aos abrigos, com Jack ao lado. ― Vou dar-te uma ajuda ― tartamudeou Jack ― antes do banho. ― Não te maces. Mas, quando alcançaram os abrigos, não encontraram o

Simão. Rafael meteu a cabeça na toca, retirou-a e voltou-se para Jack. ― Pôs-se ao fresco. ― Chateou-se ― replicou Jack ―, foi ao banho. Rafael franziu o sobrolho. ― É um tipo estranho. Esquisito. Jack assentiu com a cabeça, mais por

concordar do que por qualquer outro motivo, e, por consentimento tácito, abandonaram o abrigo e dirigiram-se à piscina.

― E depois ― esclareceu Jack ―, quando me tiver banhado e comido alguma coisa, vou fazer uma batida do outro lado da montanha, a ver se posso encontrar alguns vestígios. Vens?

― Mas é quase sol-posto! ― Talvez tenha tempo... Caminharam, dois continentes de experiência e sentimento, incapazes de

comunicarem entre si. ― Ah! Se eu apanhasse um porco! ― Depois vou continuar com o abrigo. Entreolharam-se, pecos no amor e no

ódio. A água salgada, quente, da piscina, o alarido, o esparrinhar e o riso bastaram para os unir outra vez.

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Simão, que esperavam encontrar ali, não se achava na piscina. Quando os outros dois cruzaram a praia para espreitar a montanha, ele seguiu-os alguns metros e, mais adiante, parou. Ficou a olhar, de cenho carregado, um montículo de areia na praia, no sítio onde alguém havia tentado erigir uma casota ou cabana. Depois voltou costas àquilo e foi direito à floresta com um ar resoluto. Era um rapazeco magrito, de queixo proeminente, e com uns olhos tão brilhantes que enganara Rafael ao ponto de ele o ter julgado de uma alegria esfuziante e maliciosa. O manhuço áspero do cabelo negro caía-lhe para diante e quase lhe escondia a testa baixa e larga. Trazia sobre o corpo os frangalhos de uns calções e os pés estavam nus como os de Jack. Moreno por natureza, Simão tinha a pele tostada pelo sol e de um bronzeado que rebrilhava com o suor.

Enveredou no endireito da sangradura, contornou o penhasco enorme, que Rafael escalara na primeira manhã, e voltou, à direita, no meio das árvores. Caminhava com um piso acostumado através de hectares de árvores de fruto, onde o menos enérgico poderia encontrar uma refeição fácil, ainda que insatisfatória. A flor e o fruto cresciam juntos na mesma árvore e derramava-se por toda a parte o olor da maturidade e o zumbido de milhões de abelhas no seu repasto. Neste ponto os miúdos, que haviam corrido no seu encalço, apanharam-no. Chalravam, gritavam ininteligivelmente, puxavam-no para as árvores. Então, no meio da zoeira das abelhas no sol da tarde, Simão descobriu os frutos que eles não podiam alcançar, arrancou os mais suculentos do açafate de folhagem e passou-os à fila interminável de mãos estendidas. Depois de os satisfazer, fez uma pausa e olhou à volta. Os miúdos observavam-no inescrutavelmente, com ambas as mãos cheias de fruta madura.

Simão desviou-se do grupo e dirigiu-se aonde o atalho quase imperceptível o levava. A selva alta cerrava-se logo ali. Troncos esguios ostentavam pálidas flores inesperadas, que subiam até ao escuro dossel, onde a vida continuava clamorosamente. O ar aqui também era escuro, e as lianas deixavam tombar cabos, como o cordame de navios encalhados. Os seus pés deixavam pegadas no solo brando e as lianas tremiam a todo o comprimento, quando ele tropeçava nelas.

Chegou finalmente a um sítio onde havia uma concela de sol. Como não tinham de ir tão longe em busca da luz, as lianas haviam urdido um grande tapete, que pendia da banda duma clareira na selva, pois aqui aflorava a mancha dum rochedo que não permitiria outra vegetação senão plantas rasas e fetos. O espaço todo murado de arbustos negros e aromáticos era uma redoma de calor e luz. Uma grande árvore, tombada de lado, apoiava-se nas árvores que ainda se mantinham de pé, e um trepador célere estadeou até ao topo estridências de amarelo e vermelho.

Simão estacou. Espreitou por cima do ombro, como Jack fizera, os caminhos que se fechavam por trás dele, e olhou à roda para se certificar de que se encontrava completamente só. Por um instante os seus movimentos foram quase furtivos. Depois curvou-se e endireitou-se, como um verme, ao centro da alfombra. As lianas e o matagal eram tão cerrados que o suor ficava-lhes pegado, à medida que se refechavam por detrás com um estalido seco. Quando se sentiu seguro lá no meio,

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encontrava-se num pequeno caramanchão, resguardado do campo aberto por algumas folhas. Agachou-se, apartou as folhas e espiou a clareira. Nada bulia a não ser um par de borboletas garridas, que giravam à roda uma da outra no ar cálido. Sustendo a respiração, apurou um ouvido crítico aos rumores da ilha. A tarde avançava sobre ela; os gritos das aves fantásticas e de cores vivas, o zumbido das abelhas, até o lamento das gaivotas, que regressavam ao ninho da rocha, iam esmorecendo.

O mar alto, rebentando muitas léguas lá fora na linha do recife, enviava um rumorido cavo, menos perceptível do que o pulsar do sangue nas veias.

Simão deixou tombar a cortina da folhagem. A obliquidade das barras de uma luz cor-de-mel decresceu, deslizou sobre os matorrais, passou sobre os botões em forma de círio, alteou-se ao dossel e a escuridão espessou sob o arvoredo. Com o fenecer da luz morreram as cores berrantes e o ardor e a urgência esfriaram. Os botões em forma de círio tremularam. As suas sépalas verdes retraíram-se um pouco e os topos brancos das flores desabrocharam delicadamente ao encontro do grande ar.

Agora a luz escoa-se no ar largo, esvaindo-se do céu. A escuridão desce, submergindo o espaço entre as árvores, até elas ficarem baças e estranhas, como o fundo do mar. Os botões como círios abrem a grande flor branca, a rebrilhar à luz que vem fluindo das primeiras estrelas.

O seu aroma derrama-se no ar e apodera-se da ilha. IV - CARAS PINTADAS E CABELO COMPRIDO O primeiro ritmo a que se habituaram foi o embalo lento do mar, desde a

alvorada ao crepúsculo brusco. Aceitavam os prazeres da manhã: o Sol brilhante, o mar rolado e o ar macio, como a hora em que brincar era bom e a vida tão cheia que a esperança era desnecessária e, portanto, logo esquecida. Pelo meio-dia, quando cataratas de luz caíam mais perto da perpendicular, as cores cruas da manhã suavizavam-se em pérola e opalescências, e o calor ― como se a altura do Sol iminente lhe imprimisse maior intensidade ― era um golpe a que se escapavam, correndo para a sombra, onde jaziam e até talvez dormissem.

Estranhas coisas aconteciam ao meio-dia. O mar rebrilhante subia, fendia-se em planos de impossiBilldade evidente; a restinga de coral e as escassas palmeiras estáticas, que se apegavam às lombas mais elevadas, flutuavam no céu, tremulavam, desenraizavam-se, escorriam como gotas de chuva ao longo de um arame, ou repetiam-se como se se reflectissem numa bizarra sucessão de espelhos. Às vezes agigantava-se terra onde a não havia e desvanecia-se como uma bola de sabão, logo que as crianças a miravam. Sabiamente, o Bucha atribuía tudo isto à "miragem", e visto que nenhum deles podia alcançar sequer o recife sobre a planura das águas,

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onde esperavam os tubarões roazes, acostumaram-se a tais mistérios e ignoravam-nos, tal como ignoravam as estrelas miraculosas e palpitantes. Pelo meio da tarde as ilusões fundiam-se com o céu, onde o Sol luzia como um olho colérico. Depois, ao fim do dia, a miragem declinava, o horizonte nivelava-se, azulado e estrito, enquanto o Sol descia. Havia então outro momento de relativa frescura, mas ameaçado pela aproximação do crepúsculo. Quando o Sol desaparecia, a escuridão baixava sobre a ilha como um abafador, e, dentro em pouco, as barracas enchiam-se de desassossego sob as estrelas longínquas.

No entanto, a tradição do Norte da Europa, de trabalho, divertimento e sustento durante o dia, impossiBilltava-os de se adaptarem inteiramente a este novo ritmo. O miúdo Persival escapara-se desde logo para uma cabana e aí se deixara ficar dois dias, a falar, a cantar e a chorar, até que todos o julgaram pateta, ligeiramente divertidos com o caso.

Ficara desde então excitável, deprimido e de olhos avermelhados: um miúdo que brincava pouco e chorava muito.

Os rapazinhos mais novos eram agora conhecidos pelo título genérico de "miúdos". O decréscimo em estatura, a partir de Rafael, era gradual, e, ainda que houvesse uma zona dúbia habitada por Simão, Roberto e Maurício, ninguém tinha qualquer dificuldade em reconhecer os crescidos, duma banda, e os miúdos, doutra. Os miúdos indubitáveis, os que andavam pelos seis anos, levavam uma vida própria bem distinta e, ao mesmo tempo, intensa. Comiam durante grande parte do dia, colhendo fruta onde a podiam alcançar, sem se preocuparem com a qualidade e o seu estado de amadurecimento. Tinham-se habituado às dores de estômago e a uma espécie de diarreia crónica. Sofriam terrores indizíveis no escuro e aconchegavam-se, muito juntos, em busca de consolo. Além do sustento e do sono, achavam tempo para brincar, banal e desordenadamente, no meio da areia branca e junto da água cintilante. Gritavam menos pelas mães do que seria de esperar; estavam muito bronzeados e nojentamente imundos. Obedeciam ao chamamento do búzio, em parte porque Rafael o soprava e era suficientemente grande para constituir um elo com o mundo adulto da autoridade, e também porque gostavam do entretenimento das assembléias. Mas, doutro modo, raras vezes se preocupavam com os crescidos, e a sua vida, apaixonadamente emocional e corporativa, fechava-se sobre si mesma.

Tinham feito castelos na areia à beira do riacho. Estes castelos, de um pé de altura, nasciam ornados de conchas, flores murchas e seixos curiosos. À roda dos castelos desenhava-se um complexo de marcos, trilhos, muros, linhas de caminhos-de-ferro, que só faziam sentido se fossem inspeccionados com os olhos ao nível da praia. Os miúdos brincam, aqui, senão com felicidade ao menos com uma atenção absorta, e, mais de uma vez, três dentre eles haviam participado na mesma brincadeira.

Três brincavam agora aqui. Henrique era o maior de todos. Era também um parente afastado daquele outro rapazinho, cujo rosto com um nevo cor-de-amora não voltara a ser visto desde a noite do grande incêndio. Mas não tinha idade suficiente

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para o compreender, e se lhe tivessem dito que o outro rapazinho tinha partido de avião, teria aceitado a notícia sem se perturbar ou descrer.

Henrique é o chefe naquela tarde, porque os outros dois são Persival e Joãozinho, os miúdos mais pequenos da ilha. Persival é de uma cor de rato e nem sequer fora atraente para a sua própria mãe; Joãozinho é bem constituído, de cabelo louro e de uma beligerância natural. De momento obedece porque está interessado, e as três crianças, ajoelhadas na areia, estão tranquilas.

Rogério e Maurício saem da mata. Tinham-nos revezado na vigilância da fogueira e descem com o intuito de se banharem. Rogério corre directamente pelo meio dos castelos, dando-lhes pontapés, espezinhando as flores, espalhando os seixos escolhidos. Maurício segue-o, rindo, e aumenta a destruição. Os três miuditos param de brincar e olham para cima. Como não são atingidos os marcos particulares em que estão interessados, não fazem qualquer protesto. Só Persival choraminga, com um olho cheio de areia, e Maurício afasta-se. Na sua outra vida, Maurício recebia castigos por encher de areia o olho dum mais novinho. Agora, embora não haja um pai que sobre ele deixe cair mão pesada, Maurício sente ainda o mal-estar de uma feia acção. No fundo do espírito esboçam-se os contornos indecisos de uma desculpa. Murmura algo sobre o banho e abala a correr.

Rogério fica a observar os miúdos. Não está mais escuro do que quando caiu na ilha, mas a mancha da guedelha negra ao longo da nuca e sobre a testa parece enquadrar bem o rosto sombrio e transformar o que parecia, a princípio, um afastamento insociável em algo temeroso. Persival deixa de choramingar e continua a brincar, pois as lágrimas tinham lavado a areia. Joãozinho observa-o com os olhos de um azul de faiança, depois começa a atirar ao ar punhados de areia e Persival choraminga de novo.

Quando Henrique se cansa de brincar e vagueia ao longo da praia, Rogério segue-o, abrigando-se sob as palmeiras e deambulando casualmente no mesmo sentido. Henrique caminha a uma certa distância das palmeiras e da sombra, pois é demasiado novo para saber proteger-se do sol. Desce o areal e entretém-se à borda d'água.

A grande maré do Pacífico está a subir e, de segundos a segundos, a água relativamente tranquila da lagoa alteia um centímetro. Há criaturas que vivem neste derradeiro braço de mar, minúsculas transparências, que vêm com a água à busca de algo sobre a areia quente e seca. Com órgãos impalpáveis de sensiBilldade examinam o novo terreno. Talvez houvesse agora alimento onde nada houvera na primeira incursão: excremento de aves, talvez de insectos, quaisquer detritos espalhados da vida da terra. Como uma miríada de pequeninos dentes numa serra, as transparências vêm vasculhar sobre a praia.

Isto fascina Henrique. Esgaravata com um pauzinho, limado pela vaga, embranquecido e errabundo, e tenta condicionar os movimentos das vasculhadoras.

Cava pequenos regos que a maré enche e procura povoar de criaturas. A sua concentração vai além da simples felicidade, à medida que se sente a dominar coisas vivas. Fala-lhes, estimula-as, dá-lhes ordens. Repelidas pela maré, as suas pegadas

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tornam-se baías em que elas ficam aprisionadas, dando-lhe a ilusão de domínio. Agacha-se sobre os calcanhares à borda d'água, e permanece curvado, com uma madeixa de cabelo tombada para a testa, a ensombrar-lhe os olhos, enquanto o sol da tarde esgota frechas invisíveis.

Rogério também espera. De início ocultara-se por detrás do grosso tronco de uma palmeira, mas a concentração de Henrique nas transparências é tão patente que, por fim, se queda em plena luz. Olha ao longo do areal. Persival partira, debulhado em lágrimas, e Joãozinho ficara com a posse triunfante dos castelos. Ficara ali sentado, entoando qualquer coisa para si e atirando areia a um Persival imaginário. Para além dele, Rogério pode ver o terraço e as lâminas de espuma no sítio em que Rafael, Simão, o Bucha e Maurício mergulham na piscina. Escuta atentamente, mas mal os pode ouvir.

Uma brisa súbita agita a coma das palmeiras de modo que as frondes oscilam e rumorejam. Dois metros acima da cabeça de Rogério, um cacho de bolotas, matacões fibrosos do tamanho de bolas de rugby, desprendem-se do caule. Caem à sua volta com uma série de baques surdos sem o tocarem. Rogério não considera a fuga, mas olha sucessivamente das bolotas para Henrique.

O subsolo abaixo do palmar era um areal elevado, e gerações de palmeiras tinham desagregado as pedras que jaziam nas areias da outra fita da costa. Rogério curva-se, apanha uma pedra, faz pontaria e atira-a contra Henrique: erra o alvo. A pedra, aquele sinal de um tempo prepóstero, repula umas cinco jardas para a direita de Henrique e cai na água. Rogério recolhe um punhado de pedras e começa a atirá-las. Contudo, há um espaço em torno de Henrique, talvez umas seis jardas de perímetro, para dentro do qual não ousa arremessar.

Aqui, invisível, ainda que forte, paira o tabu da vida antiga. A volta do miudito agachado ergue-se a protecção dos pais, da escola, da

polícia e da lei. O braço de Rogério está condicionado por uma civilização que nada sabe dele e se encontra em ruínas.

Henrique surpreende-se com o ruído de chape-chape na água. Abandona as transparências insonoras e fita, como um perdigueiro, os círculos concêntricos que se alargam. As pedras caem dum lado e doutro, e Henrique volta-se docilmente, mas sempre demasiado tarde para as ver ainda no ar. Por fim, vê uma e ri-se, espreitando o amigo que procura arreliá-lo. Porém, Rogério escapa-se de novo para detrás do tronco da palmeira, e encosta-se a ele a arfar e com um tremor nas pálpebras. Então Henrique perde interesse nas pedras e erra pela praia.

― Rogério! Jack surgia de pé, junto de uma árvore, a cerca de dez jardas de distância. Quando Rogério abriu os olhos e o viu, uma sombra mais negra deslizou-lhe sob a pretidão da pele, mas Jack em nada reparou. Inquieto, impaciente, acenava para que Rogério fosse ter com ele.

Havia uma bacia onde o rio desembocava, uma pequena represa, formada por muros de areia e cheia de brancos nenúfares e agulheiros de juncos.

Aqui esperavam Samuel, Érico e Bill. Jack, abrigado do sol, ajoelha junto da lagoa e abre as duas grandes folhas que trazia consigo.

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Uma delas continha barro branco, a outra vermelho. Ao lado repousa um pauzinho carbonizado tirado da fogueira.

Jack explica a Rogério à medida que trabalha. ― Não me cheiram, julgo que me vêem. Qualquer coisa rosada debaixo das

árvores. Besunta-se de barro. ― Se eu tivesse um bocado de verde! Volta um rosto meio oculto para Rogério

e responde à incompreensão do seu olhar. ― Para caçar. Como na guerra. Estás a perceber? Uma pintura para despistar.

Como quem muda de cor, para se fingir outra coisa... Torcia-se com a urgência da informação ― ...como traças num tronco de

árvore. Rogério compreende e acena com a cabeça gravemente. Os gêmeos movem-se em direcção a Jack e começam a protestar timidamente contra qualquer coisa. Jack despede-os com um gesto do braço. ― Caluda.

Esfrega o pauzinho carbonizado no rosto, entre as manchas de vermelho e branco.

― Não. Os dois vêm comigo. Mira a sua própria imagem reflectida e não lhe agrada. Curva-se, recolhe nas mãos em concha a água morna e lava toda aquela mixórdia. Reaparecem as sardas e as sobrancelhas ruivas.

Rogério sorri contra vontade. ― Parecias uma drogaria! Jack desenha a sua nova cara. Compõe um lado da

face e uma órbita de branco; em seguida espalha o vermelho sobre a outra metade e risca uma barra negra, a carvão, de um maxilar ao outro.

Remira-se no lago em busca do reflexo, mas o bafo da respiração perturba o espelho. Samuel e Érico, vão-me buscar um coco. Mas vazio.

Ajoelha-se, segurando a concha de água. Uma mancha redonda de sol derrama-se-lhe no rosto e uma claridade aparece nas profundezas da água.

Olha com espanto, já não para si mesmo, mas para um estranho aterrador. Entorna a água e dá um salto, rindo excitado. Junto da represa o seu corpo

nervoso ostentava uma máscara, que atraía todos os olhares e os atemorizava. Começa a bailar e o seu riso torna-se um arreganho sanguinário. Cabriola no caminho de Bill, e a máscara é uma identidade em si mesma, atrás da qual Jack se oculta, liberto do pudor e da consciência de si próprio. A caraça de vermelho e branco saltarica pelo ar e dança diante de Bill. Este desata a rir. De repente cala-se e mete aos tropeções pelo matagal dentro.

Jack corre para os gêmeos. ― Os outros vão fazer uma fila indiana. Venham daí! ― Mas... ― nós... ― Venham! Vou rastejar e espetar um... A máscara compelia-os. Rafael sai da piscina, percorre o areal e senta-se à sombra das palmeiras. Tem o cabelo louro empastado sobre as sobrancelhas e puxa-o para trás com a

mão. Simão flutua na água, trabalhando com os pés, e Maurício pratica mergulhos. O Bucha ciranda ensimesmado, apanhando coisas ao acaso que logo abandona. As

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poças nas concavidades do rochedo, que tanto o fascinavam, estavam cobertas pela maré, de maneira que não tinha qualquer interesse até a maré descer. De momento, vendo Rafael sob as palmeiras, dirige-se-lhe e senta-se ao lado dele.

O Bucha trazia os restos de um par de calções sobre o corpo gordo, de um tanado de oiro, e os óculos ainda faiscavam quando olhava para alguma coisa. Era o único rapaz na ilha cujo cabelo nunca parecia crescer.

Os outros tinham um manhuço, mas o cabelo do Bucha espontava-lhe na cabeça, como se a calvície fosse o seu estado natural e esta cobertura imperfeita fosse desaparecer em breve, como o veludo na galhadura de um corço novo.

― Tenho estado a pensar ― começa ele ― num relógio. Podíamos fazer um mostrador. Enterra-se uma estaca na areia, e depois...

O esforço para exprimir os processos matemáticos exigidos era demasiado. Fez apenas alguns passes. ― E um avião e um aparelho de televisão ― atalha Rafael com amargor ― e

uma locomotiva. O Bucha abana a cabeça. ― Para isso são precisos muitos metais ― esclareceu ele ― e nós não temos

metal. Mas temos uma estaca. Rafael volta-se e sorri involuntariamente. O Bucha era um chatarrão: a sua

gordura, a asma e as suas idéias comezinhas enfastiavam, mas havia sempre um pequeno prazer em entrar com ele, ainda que fosse apenas casualmente.

O Bucha vê o sorriso e toma-o por amizade. Tinha-se espalhado tacitamente entre os crescidos a opinião de que o Bucha era um estranho, um forasteiro, não só pelo sotaque, que não importava, senão ainda pela gordura, a asma, os óculos, e uma certa desinclinação para o trabalho manual. Agora, achando que o que tinha dito fizera sorrir Rafael, rejubila e tira partido da vantagem.

― Temos para aí tantas estacas. Cada um de nós podia ter um mostrador. Assim, sabíamos as horas.

― E que vantagem nos dava isso? ― Mas tu disseste que querias ver coisas feitas. Para nos salvarem. ― Oh, cala o bico! Pôs-se de pé e voltou à lagoa no momento em que Maurício

dava um mau mergulho. Rafael sentia-se contente por poder mudar de assunto. Gritou quando Maurício veio à superfície:

― Um chapão! Um chapão! Maurício teve um sorriso para Rafael, que escorregava com facilidade para dentro de água. De todos os rapazes ali, ele era o que mais se sentia à vontade; mas hoje, verrumado pela idéia do salvamento, a inútil, frouxa referência ao salvamento, até as profunduras verdes da água e o estilhaçado Sol doirado lhe não traziam qualquer lenitivo. Em vez de ficar no lugar e brincar, nadou com braçada rija por debaixo de Simão e marinhou pela outra vertente da lagoa, para se quedar ali, lambido e escorrente como uma foca. O Bucha, sempre canhestro, levanta-se e detém-se junto dele, de modo que Rafael rebola sobre o estômago e pretende não o ver. As miragens tinham-se desvanecido, e, sorumbático, percorre com os olhos a linha azul e tensa do horizonte.

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De supetão põe-se de pé e berra: ― Fumo! Fumo! Simão tenta sentar-se na água e bebe uma golada. Maurício,

muito direito a preparar o mergulho, gira sobre os calcanhares, feito dardo na trajectória do terraço, depois desvia para a relva sob as palmeiras. Aí começa a enfiar os calções esfarrapados, a fim de estar pronto para tudo.

Rafael encontra-se de pé, com uma das mãos a segurar o cabelo à nuca, a outra de punho fechado. Simão sai da água. O Bucha esfrega as lentes dos óculos aos calções e envesga o olhar em direcção ao mar. Maurício tinha enfiado as duas pernas numa dos calções; de todos os rapazes só Rafael se encontra sereno.

― Não vejo fumo ― exclama o Bucha incrédulo. ― Não vejo o fumo, Rafael. Onde é?

Rafael não profere palavra. Tem agora ambas as mãos fechadas sobre a testa, a fim de afastar o cabelo loiro dos olhos. Inclina-se para diante e o sal já lhe embranquece o corpo.

― Rafael, onde está o barco? Simão surge, ali ao lado, olhando de Rafael para o horizonte. Os calções de Maurício cedem com um suspiro e ele abandona-os como um destroço, precipita-se para a mata e volta de novo.

O fumo era um nó denso no horizonte a desdobrar-se lentamente. Por debaixo havia um ponto que poderia ser um cano. O rosto de Rafael empalidece, enquanto fala consigo mesmo:

― Hão-de ver o nosso fumo! O Bucha olhava agora na direcção exacta. ― Não parece grande coisa. Volta-se e espreita a montanha. Rafael continua a mirar o navio com avidez. A

cor tinge-lhe o rosto. Simão permanece ao lado dele, silencioso. ― Eu sei que vejo mal ― torna o Bucha ―, mas onde está o nosso fumo? Rafael move-se com impaciência, mirando ainda o barco: ― A fogueira na montanha. Maurício chega a correr e espia o mar. O Simão e

o Bucha espreitam a montanha. O Bucha franze o rosto, mas Simão grita como se o tivessem ferido:

― Rafael! Rafael! O tom da sua voz apunhala Rafael na areia. ― Digam-me ― pede o Bucha ansiosamente. ― Há algum sinal? Rafael torna a remirar o fumo que se desvanece no horizonte e depois olha a

montanha. ― Rafael, por favor! Há algum sinal? Simão estende timidamente o braço para

tocar Rafael, mas este desata a correr, espadanando água através da extremidade cava da lagoa, cruzando o areal ardente e branco e o palmar. Um momento depois luta com o restolho complexo, que já ia abafando a clareira. Simão corre atrás dele, em seguida Maurício. O Bucha berra:

― Rafael! Um momento, Rafael! E, então, também ele começa a correr, tropeçando nos calções abandonados por Maurício antes de atravessar o terraço. Por trás dos quatro rapazes, o fumo ondula lento no aro do horizonte, e, na praia,

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Henrique e Joãozinho atiram areia a Persival, que chora de novo silenciosamente; e todos três estavam em completa ignorância da excitação.

No momento em que Rafael alcança a ponta da clareira virada à terra, usa um fôlego precioso para praguejar. Tinha infligido uma violência desesperada ao seu corpo nu através da lianas rascantes, de modo que fios de sangue corriam sobre ele. Estaca no sopé da montanha, precisamente onde começava a subida íngreme. Maurício precedia-o apenas de algumas jardas.

― Os óculos do Bucha! ― brada Rafael. ― Se o fogo se apagou, precisamos deles...

Cessa de gritar e oscila nos calcanhares. O Bucha entrevia-o agora a tentar desenvencilhar-se, deixando a praia. Rafael perscruta o horizonte e logo em seguida a montanha. Seria melhor ir buscar os óculos do Bucha, ou já teria desaparecido o barco? Ou, se subissem, admitindo que o fogo se apagara, teriam de esperar que o Bucha se aproximasse, enquanto o barco se desvaneceria no horizonte?

Equilibrado num alto cume de necessidade, agónico na sua própria indecisão, Rafael exclama:

― Meu Deus! Meus Deus! Simão, debatendo-se com o matagal, recuperava o fôlego. Tinha ainda o rosto franzido. Rafael prossegue, ensarilhado, lacerando-se, enquanto o penacho de fumo se afasta.

O fogo estava morto. Viram-no logo; viram o que já eles sabiam, lá em baixo na praia, quando o fumo de casa lhes acenara.

O fogo estava bem morto, sem fumo, extinto. Os vigias tinham abalado. Uma pilha de lenha por usar encontrava-se à mão. Rafael torna a devassar o mar. O horizonte estirava-se, mais uma vez

impessoal, árido e virgem do mais leve rasto de fumo. Rafael tropeça ao longo dos rochedos, salva-se por um triz à beira do precipício róseo, e grita para o navio:

― Volta atrás! Volta atrás! Corre de trás para diante ao longo da falésia, de cara sempre virada ao mar, atirando ao azul uma voz ensandecida.

― Volta atrás! Volta! Simão e Maurício chegam. Rafael observa-os sem pestanejar. Simão afasta-se, limpando a água da cara. Rafael busca dentro de si o palavrão mais feio que conhecia:

― Deixaram morrer a merda do fogo! Espreita ao fundo da vertente desamiga da montanha. O Bucha assomava, esbofado e choramingando como um miudito. Rafael fecha o punho e fica com o rosto todo afogueado. A tensão do seu olhar, o rancor da sua voz alvejam por ele.

― Lá estão os gajos! Uma procissão surgia ao fundo dos detritos róseos que debruavam a borda d'água. Alguns rapazes traziam boné negro, mas, afora esta peça de vestuário, estavam quase nus. Agitavam, simultaneamente, varas no ar, sempre que chegavam a um tracto de terreno fácil. Cantavam qualquer coisa que tinha que ver com o fardo que os gêmeos errabundos carregavam com tanto cuidado. Rafael distingue Jack sem esforço, mesmo até à distância, alto, ruivo, e, inevitavelmente, o chefe da coluna.

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Simão espreitava agora, indo de Rafael para Jack, tal como tinha olhado de Rafael para o horizonte, e o que via parecia assustá-lo. Rafael não tugia, mas esperava que a procissão se aproximasse mais. O cântico tornava-se audível, mas, à distância, não tinha letra. Atrás de Jack caminhavam os gêmeos, carregando uma grande vara aos ombros. Dela pendia a carcaça desventrada dum suíno, que balouçava pesadamente quando os gêmeos se afanavam em vencer as irregularidades do terreno. A cabeça do porco oscilava com o cachaço fendido e parecia buscar algo no solo. Finalmente, as últimas palavras do cântico flutuaram ao vento, chegando até eles através da redoma de lenha enegrecida e das cinzas:

― Mata o porco! Corta-lhe o pescoço! Derrama o sangue! No entanto, à medida que as palavras se tornavam audíveis, a procissão alcançava a escarpa da montanha, e, dentro de um minuto ou dois, o cântico morria. O Bucha fungava e Simão fez schiu para o calar, como se ele tivesse falado alto na igreja.

Jack, com o rosto besuntado de barro, é o primeiro a assomar, e saúda Rafael com excitação, de lança erguida.

― Olá! Matámos um porco ... surgimos de surpresa.... fizemos um cerco... Vozes partem do rancho de caçadores: ― Fizemos um cerco ... ― Rastejámos... ― O bicho grunhiu ... Os gêmeos quedam-se com o porco a balançar entre

eles, derramando grossas gotas negras na rocha. Parecem compartilhar de um único, grande e extático sorriso. Jack tem muito que contar a Rafael ao mesmo tempo. Mas, em vez de o fazer, saltarica, dança dois ou três passos, depois lembra-se da sua dignidade e aquieta-se, sorrindo.

Repara no sangue que tem nas mãos e faz uma careta de desgosto, busca alguma coisa onde as possa limpar e acaba por esfregá-las nos calções, rindo.

Rafael fala: ― Deixaste apagar o fogo. Jack domina-se, vagamente irritado com aquela

Irrelevância, mas demasiado feliz para se deixar preocupar. ― Podemos acendê-lo outra vez. Devias ter estado connosco, Rafael. Foi

porreiríssimo. Os gêmeos caíram de pernas para ar... Acertámos no porco... eu caí-lhe em cima... Eu cortei-lhe o pescoço ― anuncia Jack com orgulho, porém, com um estremeção, ao dizê-lo. ― Podes emprestar-me a tua faca, Rafael, para eu fazer um sinal no cabo?

Os rapazes chalram e bailam. Os gêmeos continuam a sorrir. ― Houve vergões de sangue ― persiste Jack, rindo e tremendo. ― Devias ter

visto! ― Vamos caçar todos os dias... Rafael fala de novo, com voz rouca, sem se

mover. ― Deixaste apagar o fogo! Esta repetição incomoda Jack. Olha para os gêmeos

e, em seguida, para Rafael. ― Tiveram de ir connosco à caça ― esclarece ele ― senão não havia gente

que chegasse para um cerco.

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Cora, consciente da sua falta. ― O fogo só esteve apagado uma ou duas horas. Podemos acendê-lo outra

vez... Repara então na nudez cheia de cicatrizes de Rafael e no silêncio sombrio dos

quatro. Caridoso na sua felicidade, procura incluí-los no que tinha acontecido. O seu espírito povoa-se de recordações, recordações do conhecimento que lhes viera quando cercaram o porco a estrebuchar, conhecimento de que tinham ludibriado uma coisa viva, de que lhe tinham imposto a sua vontade e tomado a vida como uma bebida longa e saciante.

Abre os braços de par em par: ― Devias ter visto o sangue! Os caçadores estão agora mais silenciosos, mas, a

estas palavras, murmuram de novo. Rafael atira o cabelo para trás. Um braço aponta o horizonte vazio. A sua voz é alta e cruel e sidera-os num silêncio total:

― Havia ali um barco. Jack, defrontado de repente com um novelo de tremendas implicações, esquiva-se-lhes. Pousa uma das mãos no animal e tira o facão. Rafael deixa cair o braço de punho fechado e a voz sai-lhe com um tremor:

― Havia ali um barco. Lá ao largo. Disseste que mantinhas a fogueira acesa e ela apagou-se. ― Deu um passo em direcção a Jack, que se voltou para o encarar.

― Teriam podido ver-nos, já iríamos a caminho de casa... Era tão amargurante que o Bucha esqueceu a sua timidez com a agonia da perca irremediável.

Começa a gritar num tom agudo: ― Tu e o teu sangue, Jack Merridew! Tu e as tuas caçadas! Já podíamos ir a

caminho de casa... Rafael afasta o Bucha para o lado: ― Eu era o chefe e tu disseste que farias o que eu mandasse. Falas muito! Mas

nem sequer sabes construir uma cabana... depois vais à caça e deixas apagar o fogo... Afasta-se, silencioso durante um momento. Em seguida a voz vem de novo

numa tensão de acrimónia: ― Havia ali um barco... Um dos caçadores mais pequenos começa a lamuriar. A negra verdade vai-se infiltrando em todo o grupo. O rosto de Jack

avermelha-se enquanto esquarteja o porco e lhe dá sacões: ― A caçada exigia toda a gente. Era demasiado só para alguns. Rafael volta-se: ― Podias ter-nos a todos nós, assim que se acabassem as cabanas. Mas tu

tinhas de caçar... ― Precisávamos de carne. Jack põe-se de pé ao proferir estas palavras,

segurando o facão sangrento numa das mãos. Os dois rapazes entreolham-se. De um lado está o mundo excitante das caçadas, da táctica, do júbilo feroz, da

haBilldade; do outro o mundo suspiroso e malogrado do bom senso. Jack passa o facão para a mão esquerda e mancha a testa de sangue, ao tentar assentar o cabelo empastado.

O Bucha reinicia: ― Não devias ter deixado apagar o fogo. Disseste que mantinhas o fumo...

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Esta censura da parte do Bucha e os lamentos de assentimento, que partiam dos caçadores, levaram Jack a uma violência. O olhar dardejante fulgura-lhe no azul da retina. Dá um passo em frente e, satisfeito, enfim, por poder agredir alguém, desfecha um murro no estômago do Bucha. O Bucha fica abruptamente sentado a gemer.

Jack domina-o a toda a altura. A sua voz sibila, maldosa de humilhação: ― Querias, pois não querias? Trouxa! Rafael avança e Jack bate na cabeça do

Bucha. Os óculos do Bucha voam e retinem nos rochedos. O Bucha grita num espasmo de terror:

― Os meus óculos! E precipita-se de cócoras aos apalpões sobre o rochedo, mas Simão, que chegara primeiro, encontra-os e dá-lhos. Um tumulto de paixões de asas negras agita-se dentro de Simão no alto da montanha:

― Uma das lentes está partida. O Bucha agarra nos óculos e encavalita-os no nariz. Atira a Jack um olhar mau. ― Eu preciso de usar óculos. Agora só vejo de um olho. Eu já te digo...! Jack vai ao encontro do Bucha, que se esquiva até que um enorme penedo se

põe entre eles. Espeta a cabeça por cima e espia Jack através de um vidro coruscante.

― Agora só vejo de um olho. Eu já te digo... Jack mima o ganido e a rixa: ― Eu já te digo... . O Bucha e a paródia são tão caricatos que os caçadores desatam à gargalhada. Jack sente-se encorajado. Continua a fazer fintas e o riso sobe a um vendaval

da histeria. Sem querer, Rafael sente os lábios tremerem-lhe. Irrita-se consigo mesmo por ceder. Resmunga:

― Isso foi uma malvadez! Jack interrompe o giro e queda-se diante de Rafael. As suas palavras vêm num brado:

― Pronto! Pronto! Olha para o Bucha, para os caçadores, para Rafael: ― Desculpem. Do fogo, claro! Ali. Eu... Aproxima-se mais: ― Eu peço desculpa.

O murmúrio dos caçadores era de admiração por este comportamento decente. Evidentemente eles eram de parecer que Jack tinha procedido com correcção e

se pusera no devido lugar, ao apresentar as suas generosas desculpas, ao passo que Rafael, obscuramente, já não tinha razão. Esperavam por uma resposta correctamente adequada.

Porém, a garganta de Rafael recusa-se a articulá-la. Ressente, além do mau procedimento de Jack, esta astúcia verbal. O fogo estava apagado, o barco tinha desaparecido. Não podiam perceber ainda? É raiva em vez de decência o que lhe foge da garganta:

― Foi uma malvadez! Calam-se no alto da montanha, enquanto o fulgor opaco reaparece nos olhos de Jack para logo morrer.

As últimas palavras de Rafael são um murmúrio desafável: ― Bem. Acendam o fogo. Com uma acção positiva a realizar, a tensão

desanuvia um pouco. Rafael não fala, nada faz e queda-se a mirar as cinzas a seus pés. Jack é estertórico e activo. Dá ordens, canta, assobia, faz observações a um

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Rafael silencioso, observações que não pedem réplica e que, por conseguinte, não convidam à indiferença. E, no entanto, Rafael permanece calado. Ninguém, nem mesmo Jack, lhe pede que se mova e, por fim, têm de fazer a fogueira a três jardas de distância e num sítio menos apropriado do que aquele onde está. Assim, Rafael afirma a sua qualidade de chefe e não podia ter escolhido melhor meio de o fazer, nem que tivesse magicado durante dias. Contra esta arma, tão indefinível como eficiente, Jack não tem poderes, e enfurece-se sem saber porquê. No momento em que a pilha de lenha fica pronta, encontram-se em lados opostos de uma alta barreira.

Quando tiveram de fazer lume, deu-se uma nova crise. Jack não tinha meios para acender a fogueira. Então, para sua surpresa, Rafael dirigiu-se ao Bucha e tirou-lhe os óculos. Nem sequer Rafael se dava conta do elo que se quebrara entre ele e Jack para se soldar noutra parte.

― Já tos trago. ― Eu vou contigo. O Bucha permanece atrás dele, ilhado num mar de cor sem sentido, enquanto

Rafael se ajoelha e põe em foco o ponto rebrilhante. No mesmo instante em que rompe a chama, o Bucha estende as mãos e agarra os óculos.

Perante estas flores, fantasticamente sedutoras, de violeta, vermelho e amarelo, a má vontade degela. Tornam-se um rancho de rapazes à roda de uma fogueira de acampamento e até o Bucha e Rafael semiparticipam desta comunhão. Em breve alguns rapazes lançam-se pela ravina à cata de mais lenha, enquanto Jack esquarteja o porco. Tentam manter a carcaça inteira sobre o fogo, espetada numa vara, mas a vara arde antes de o porco ficar assado. Por fim espetam em ramos a carne estraçoada e oferecem-na às chamas; e, mesmo assim, assam quase tanto rapazinho como porco.

Rafael está a ougar. Tencionara recusar a carne, mas a sua anterior dieta de fruta e nozes, com algum peixe ou caranguejo ocasionais, dão-lhe pouca resistência. Aceita um pedaço de carne meio crua e rói-a como um lobo.

O Bucha fala, também ougado: ― Então eu não como nada? Jack tencionara deixá-lo na dúvida para afirmar o

seu poder, mas o Bucha, ao anunciar a omissão, tornara a crueldade necessária. ― Tu não caçaste. ― Também o Rafael não caçou ― replica, lamuriento, o Bucha. ― Nem o

Simão. ― E esclarece: ― Num caranguejo não há carne para a cova de um dente. Rafael move-se incomodado. Simão, sentado entre os gêmeos e o Bucha, limpa

a boca e arremessa, por cima do penedo, o seu quinhão de carne, que o outro apanha no ar. Os gêmeos cacarejam um risinho e Simão esconde o rosto envergonhado.

Num salto, Jack está de pé, corta um tassalho de carne e atira-o aos pés de Simão.

― Come! Raios te partam! Fita Simão. ― Pega!

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Roda sobre os calcanhares, tornado o centro de um círculo de rapazes desnorteados.

― Arranjei-vos carne! Inumeráveis e inexpressas frustrações combinam-se para tornar a sua raiva elementar e inspiradora de terror.

― Pintei a cara ... Fui às escondidas. Agora vocês comem. Comem todos... e eu ...

Lentamente, o silêncio no cume da montanha espessava até se poderem ouvir distintamente o estralejar do fogo e o silvo brando da carne a assar. Jack olha à sua volta, procurando compreensão, mas só encontra respeito. Rafael nada diz, de pé, no meio das cinzas da fogueira destinada a dar sinal.

Então Maurício, por fim, quebra o silêncio. Muda de assunto, o único que podia congraçar a companhia.

― Onde acharam o porco? Rogério aponta a vertente desamiga da montanha. ― Ali... junto do mar. Jack, recompondo-se, não tolera que contem a sua história. Intervém

prontamente: ― Fizemos um cerco. Eu avancei devagarinho, de gatas. As lanças caem

porque não têm espetos. O porco safa-se e faz uma chiada dos diabos... ― Voltou atrás e caiu no meio do cerco, coberto de sangue... Os rapazes falam

todos ao mesmo tempo, aliviados e excitados. ― Apertámos o cerco... O primeiro golpe tinha-lhe paralisado as rabadilhas, de maneira que puderam

apertar o cerco até se lançarem sobre ele bate-que-bate... ― E vou eu e corto-lhe as goelas. Os gêmeos, comparticipando ainda do

sorriso idêntico, pulam para o meio do rancho e desatam a correr atrás um do outro. Logo em seguida junta-se-lhe o resto do grupo, a imitar os guinchos do porco na agonia, e berram:

― Quem dá mais pela cabeça? ― Três tostões! Maurício, então, finge de porco e corre, aos guinchos, para o

meio da roda, e os caçadores, apertando mais o cerco, simulam bater-lhe. Enquanto dançam, vão cantando: Mata o porco! Corta-lhe o pescoço!E bate-lhe! Rafael observa-os, invejoso e

ressentido. Só fala quando eles afrouxam e o cântico morre: ― Vou convocar uma reunião. Detêm-se, um a um, e quedam-se a olhá-lo. ― Com o búzio. Vou convocar uma reunião, ainda que tenhamos de prosseguir

no escuro. Lá em baixo, no terraço. Quando eu avisar. Daqui a pouco. Volta-se e afasta-se, descendo a montanha.

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V - A FERA DA ÁGUA A maré subia e havia apenas uma estreita faixa de praia entre a água e o refugo

branco e obstrutor, junto do terraço do palmar. Rafael escolhe a faixa dura para seu piso, pois necessita de pensar, e só aqui pode mover os pés sem ter de os observar. De súbito, caminhando à borda d'água, sente-se esmagado de surpresa. Descobre que compreende o tédio da sua existência, em que cada caminho é uma improvisação, e uma considerável parte do tempo em que está acordado é consumida em ver onde põe os pés. Detém-se diante da faixa, e, ao relembrar aquela primeira exploração entusiástica, como se ela fizesse parte de uma infância mais deleitosa, sorri escarninho. Volta-se e dirige-se para o terraço, suportando o sol na cara. Chegara a hora da reunião, e, enquanto caminha ao encontro dos esvaecentes esplendores solares, reconsidera cuidadosamente os pontos do seu discurso. Não deveria haver qualquer engano nesta reunião, nenhuma corrida atrás do imaginário...

Perde-se num novelo de pensamentos, que se tornam vagos por falta de palavras para os exprimir. Franzindo a testa, tenta de novo.

Esta reunião não podia ser uma paródia, mas trabalho. Com esta certeza, vai estugando o passo, repentinamente consciente da sua urgência, do Sol no ocaso e de um ventinho ligeiro, criado pela sua velocidade, que lhe sopra no rosto. A aragem cola-lhe a camisa cinzenta ao peito e nota ― nesta nova atitude de compreensão ― que as pregas são rijas como cartão, desagradáveis. Repara ainda que a fímbria puída dos calções lhe ia deixando uma zona rósea, desconfortável, acima dos joelhos.

Com asco e horror, Rafael descobre sujidade e ruína; compreende como lhe desgosta o ter de arredar perpetuamente dos olhos o cabelo emaranhado, e, por fim, quando o sol desaparecia, de rolar ruidosamente num monte de folhas secas para repousar. Com esta idéia, começa a correr.

A praia junto da piscina está pontilhada de grupos de rapazes que aguardam a reunião. Abrem alas, à sua passagem, silenciosamente, conscientes do seu humor sombrio e da falta da fogueira.

O local da reunião, onde ele se encontrava, tinha grosseiramente a forma de um triângulo, mas irregular e tosco, como tudo o que eles faziam.

Primeiro, havia o cepo em que ele se sentava: uma árvore morta, que devia ter sido excepcionalmente grande para o terraço, talvez atirada para ali por uma dessas lendárias tempestades do Pacífico. Este tronco de palmeira jazia paralelo à praia, de modo que, quando Rafael se sentou, ficou voltado para a ilha, mas, para os rapazes, era uma figura escura contra as laminações de prata da lagoa. Os dois lados do triângulo a que o tronco servia de base estavam mais irregularmente definidos. À direita, encontrava-se um cepo polido, na parte superior, por ocupantes irrequietos, mas o assento não era tão largo nem tão confortável como o de chefe. A esquerda, havia quatro cepos curtos, sendo um deles, o mais afastado, lamentavelmente móvel. Assembléias sucessivas tinham rompido à gargalhada quando alguém, ao reclinar-se

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demasiado, desequilibrava o cepo, estatelando-se com meia dúzia de rapazes na relva. E ainda agora, reparou ele, ninguém tinha tido o bom senso ― nem ele, nem Jack, nem o Bucha ― de meter uma pedra debaixo a servir de calço. De sorte que continuariam a tolerar aquele balancé, porque, porque... Perde-se de novo em profundas cogitações.

A relva estava calcada diante de cada tronco, mas crescia alta e tesa no centro do triângulo. No vértice superior a relva era densa porque ninguém se sentava ali. A toda a roda do sítio da reunião erguiam-se troncos pardos, direitos ou inclinados, que sustentavam o baixo dossel de folhas. Dos dois lados havia a praia; detrás, a lagoa; em frente, a escuridão da ilha.

Rafael volta-se para o seu assento de chefe. Nunca tinham tido antes uma reunião tão tarde. Era esta a razão porque o lugar lhe parecia tão diferente. Normalmente, o tecto formado pelo dossel de verdura era iluminado por uma maranha de reflexos doirados, e os rostos deles iluminados, de baixo para cima, como, pensa Rafael, quando alguém tem nas mãos uma lâmpada de bolso. Mas agora o Sol obliquava, de maneira que as sombras se projectavam onde deviam estar.

Cai de novo naquela estranha atitude de especulação que lhe era desconhecida. Se as caras eram diferentes quando iluminadas de cima ou de baixo, o que era

uma cara? O que eram as coisas? Rafael move-se com impaciência. O problema é que um chefe tem de pensar,

tem de ser atilado: deve agarrar a ocasião pelos cabelos e tomar uma resolução. Ora isto obriga a pensar; porque o pensamento é uma coisa valiosa, dá resultados...

Simplesmente, decide Rafael ao olhar para o lugar do chefe, eu não sou capaz de pensar. Não sou como o Bucha.

Uma vez mais, nessa tarde, Rafael tem de ajustar os seus valores. O Bucha era capaz de pensar. Era capaz de raciocinar lentamente, passo a passo, dentro daquele crânio gordo: simplesmente o Bucha não era o chefe. Mas o Bucha, apesar do seu corpo ridículo, tinha cabeça. Rafael era agora um especialista na arte de pensar e podia reconhecer o pensamento noutrém.

O sol nos olhos fazia-lhe sentir como o tempo passava, e, assim, tira o búzio da árvore e examina-lhe a superfície. A exposição ao ar tinha quase embranquecido o amarelo e o róseo e embaciado a transparência.

Rafael sente uma espécie de afectuosa veneração pelo búzio, ainda que tivesse sido ele quem o pescara na lagoa. Volta-se para o terreiro do foro e leva o búzio aos lábios.

Os outros, que aguardavam o chamamento, acorreram logo. Os que sabiam que um barco tinha passado ao largo da ilha, estando o fogo apagado, vinham submissos com a idéia da ira de Rafael, ao passo que aqueles que o não sabiam, incluindo os miúdos, se impressionavam com o ar geral de solenidade. O lugar reservado à assembléia enchia-se rapidamente; Jack, Simão, Maurício, a maioria dos caçadores, alinhavam à direita de Rafael, os outros à esquerda, ao sol. O Bucha chega também e

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queda-se fora do triângulo. Esta posição indicava que ele desejava ouvir, mas não falar ― e o Bucha escolhera-a como um gesto de reprovação.

― A verdade é que precisamos de uma reunião. Ninguém respondeu, mas os rostos virados para Rafael estão tensos. Ele floreia o búzio. Tinha aprendido com a prática que declarações fundamentais como esta deviam ser repetidas, pelo menos duas vezes, antes que todos as compreendessem.

Tinha de sentar-se, atraindo todos os olhares para o búzio, e deixar cair as palavras como pedras entre os pequenos grupos agachados ou arrostolhados pelo chão. Buscava no espírito palavras simples para que até os mais miúdos percebessem o motivo da convocação. Mais tarde, provavelmente, opositores experimentados ― Jack, Maurício, o Bucha ― usariam toda a sua arte para torcer o sentido da reunião, mas por ora, no início, o tema do debate devia ser apresentado com toda a clareza.

― Precisamos de uma reunião. Não para nos divertirmos. Não para nos rirmos e cairmos abaixo desse tronco... (o grupo de miúdos no cepo rolante deu uma risadinha e entreolhou-se), não para dizermos Piadas, nem... ― ergueu o búzio num esforço a fim de achar a palavra persuasora ― nem para mostrar inteligência. Não para qualquer destas coisas, mas para resolver a nossa situação.

Faz uma pausa por um momento: ― Eu tenho andado para aí a pensar. Procurei, por mim próprio, entender este

estado de coisas. Eu sei do que precisamos: uma reunião para arranjar tudo. E, primeiro, vou ser eu a falar.

Faz outra pausa e, automaticamente, puxa o cabelo para trás. O Bucha dirige-se em bicos de pés para o triângulo, depois do seu protesto sem

efeito, e) junta-se aos outros. Rafael prossegue: ― Nós fazemos muitas reuniões. Todos nós gostamos de falar e de estar juntos.

Tomamos decisões, mas nada aparece feito. Assim, decidimos tirar água da corrente e deixá-la dentro de cascas de coco, cobertas de folhas frescas. E foi o que fizemos durante alguns dias. Mas agora não há água. As cascas estão vazias. Todos nós vamos beber à corrente.

Levanta-se um murmúrio de assentimento. ― Não é que haja algum mal em beber do rio. Eu mesmo prefiro beber água

daquele sítio, como sabem, da lagoa onde há uma queda de água, do que de uma velha casca de coco.

Passa a língua pelos lábios: ― Houve depois as cabanas. Os abrigos. O murmúrio sobe de novo e morre. ― Na maioria vós ides dormir debaixo de um tecto. Esta noite, com excepção

de Samuel e Érico, que hão-de ficar de guarda à fogueira, vós ídes dormir ali. Mas quem fez as cabanas?

O clamor sobe mais uma vez. Todos tinham construído cabanas. Rafael vê-se obrigado a agitar de novo o búzio.

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― Mais devagar! Quero eu dizer: quem fez todas aquelas três? Todos nós fizemos a primeira, só quatro a segunda, e apenas eu e Simão fizemos a última. É por isso que ela está por arames. Não! Nada de risota. Aquela cabana pode vir abaixo, quando chegarem as chuvas. Então havemos de precisar desses abrigos.

Cala-se e aclara a voz. ― Há ainda outra coisa. Escolhemos os rochedos além, junto da piscina, para

retrete. Era uma idéia acertada. A maré sobe e varre o sítio. Os miúdos sabem que é assim mesmo.

Ouvem-se risinhos aqui e além e trocam-se olhadelas rápidas. ― Agora qualquer sítio serve. Até mesmo ao pé das cabanas e do terraço. Vós, os miúdos, quando colheis fruta, se tendes vontade...

A assembléia ri a bandeiras despregadas. ― Estou a dizer: se tendes vontade, evitai satisfazê-la ao pé da fruta. É uma

porcaria! Rebentam mais gargalhadas. ― já disse que era uma porcaria! Arrepanha a camisa parda e tesa.

― É uma grande porcaria. Se tendes vontade, já sabeis aonde haveis de ir: à praia ao pé dos rochedos.

O Bucha alça as mãos para o búzio mas Rafael abana a cabeça. Este discurso tinha sido planeado tintim por tintim.

― Todos nós temos de voltar a servir-nos dos rochedos. Este sítio está cada vez mais sujo! ― Nova pausa. O auditório, pressentindo uma crise, é tomado de uma expectativa tensa. ― E depois há a fogueira.

Rafael deixa escapar um pequeno suspiro, que é ecoado por todo o auditório. Jack começa a desbastar com o facão um toco de pau e murmura alguma coisa

a Roberto, que desvia o olhar. ― O fogo é o mais importante na ilha. Como nos poderão salvar, a não ser por

um bambúrrio da sorte, se não somos capazes de manter uma fogueira acesa? É porventura uma fogueira um trabalho superior às nossas forças?

Estende um braço. ― Olhemos para nós mesmos! Quantos somos ao todo? E, no entanto, não

somos capazes de manter uma fogueira a arder para fazer fumo. Não compreendeis? Não vedes que vale mais, que vale mais morrer do que deixar apagar o fogo?

Risinhos abafados e contrafeitos elevam-se entre os caçadores. Rafael volta-se para eles com veemência:

― Vós, caçadores, bem podeis rir! Mas digo-vos que o fumo é mais importante do que o porco, ainda que mateis um de cada vez. Vós todos, entendeis agora? ― Abre os braços de par em par e volta-se para todo o triângulo. ― Temos de fazer fumo no alto da montanha... ou morrer!

Faz uma pausa, preparando-se para o ponto seguinte: ― E outra coisa. Alguém grita: ― E tantas coisas! Levantam-se murmúrios de concordância. Rafael ignora-

os.

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― E outra coisa. Da primeira vez íamos pegando o fogo à ilha inteira. Desperdiçámos o tempo a rebolar pedregulhos e a fazer fogueiras de cozinha. Declaro agora e imponho como lei, porque sou o vosso chefe: só se podem fazer fogueiras no alto da montanha. Só aí.

Segue-se logo uma tremenda confusão. Há rapazes que se levantam e berram, e Rafael berra também:

― Se quiserdes uma fogueira para cozinhar peixe ou caranguejo, não há outra coisa a fazer senão subir à montanha. É o único caminho seguro.

Há mãos que se levantam para o búzio ao clarão do sol-poente. Rafael prossegue, subindo para o tronco:

― Era tudo o que eu queria dizer. Está dito. Votastes em mim como vosso chefe. Fazei agora o que vos disse.

Aquietam-se lentamente e, por fim, sentam-se de novo. Rafael desce do tronco e fala na sua voz normal:

― Portanto, lembrai-vos: a retrete é junto dos rochedos. O fogo deve arder de noite e de dia como sinal. Não fazer fogueiras senão na montanha e levar para lá toda a comida.

Jack ergue-se, carrancudo no meio da consternação geral, e estende as mãos. ― Ainda não terminei. ― Mas tens estado só para aí a falar! ― Eu tenho o búzio. Jack senta-se, resmungando. ― Agora a última coisa. É isto que se deve discutir. Espera o momento em que

toda a assembléia se aquieta num silêncio profundo. ― As coisas estão a andar mal. Não percebo bem porquê. Começámos bem;

éramos felizes. Depois... Passa a mão levemente sobre o búzio, olhando por sobre as cabeças para o

vácuo, recordando a fera, a serpente, a fogueira, as conversas sobre o medo. ― Depois começámos a ter medo. Eleva-se um murmúrio, quase um

queixume, que logo morre. Jack tinha cessado de aparar o toco de pau. Rafael prossegue abruptamente:

― Mas isso é conversa de miúdos. Temos de esclarecer o assunto. De maneira que a última parte, aquela que todos nós podemos discutir, é para tratar do medo.

O cabelo cai-lhe de novo para os olhos. ― Temos de falar do medo e decidir que não há nada que o justifique. Eu, às

vezes, também tenho medo, mas é um disparate! Como os fantasmas. Depois, quando tivermos decidido, podemos recomeçar tudo e prestar atenção a certas coisas, como a fogueira. ― Um quadro de três rapazes, caminhando ao longo da praia rebrilhante, cruza-lhe o espírito: ― E ser felizes.

Com cerimonial, Rafael pousa o búzio no tronco, junto de si, para indicar que o discurso está terminado. Os raios do Sol que lhes chegam agora rasam o horizonte.

Jack levanta-se e pega no búzio: ― Esta reunião é para perceber o que se passa. Pois eu digo-vos o que se passa.

Fostes vós, os miúdos, que começastes tudo isto com essas cantilenas do medo.

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Feras! Mas onde? Claro que, às vezes, se tem medo, mas é preciso saber resistir-lhe. Só Rafael é que diz que vós gritais durante a noite. Que quer isto dizer senão que tendes pesadelos? De qualquer maneira, não caçais, não fazeis cabanas nem ajudais ninguém: sois uma cambada de meninos chorões e de mariquinhas. É isto o que se passa. Quanto ao medo, tendes de vos acostumar a viver com ele, como nós todos.

Rafael estava boquiaberto, mas Jack não lhe presta atenção. ― A verdade é que o medo não vos pode ferir mais do que um sonho. Não há

feras de que ter medo nesta ilha. ― Observa a fila dos miúdos que murmuravam agora! ― Até era bem feito que alguma coisa vos acontecesse, cambada inútil de choramingões! Mas não há qualquer animal...

Rafael interrompe-o secamente: ― Que história é essa? Quem falou aqui num animal? ― Tu, no outro dia. Disseste-me que eles sonham e choram. E agora falam ―

não só os miúdos, mas também os meus caça― dores, às vezes ―, falam de uma coisa, uma coisa escura, uma fera, uma espécie de animal. Eu ouvi. Não sabíeis, pois não? Ora prestem atenção. Não há animais grandes em ilhas pequenas. Só há porcos. Só há leões e tigres em terras muito grandes, como a África e a Índia...

― E no Jardim Zoológico... ― Eu é que tenho o búzio. Não estou a falar do medo. Estou só a falar da fera.

Tende medo, se quereis. Mas, quanto à fera... Jack faz uma pausa, aconchegando o búzio, e volta-se para os caçadores de

boné negro: ― Sou ou não sou caçador? Eles fazem que sim com a cabeça, simplesmente. Ele era um caçador. Ninguém duvidava. ― Então... Pois eu já percorri toda esta ilha. Sozinho. Se houvesse uma fera, eu

havia de a ver. Tendes medo porque sois fracos, mas ficai sabendo que não há feras na mata.

Jack pousa o búzio e senta-se. A assembléia inteira aplaude-o com alívio. Em seguida o Bucha estende a mão. ― Não estou de acordo com tudo o que Jack disse, mas concordo com ele em

parte. Evidentemente que não há uma fera na mata. Como seria isso possível? O que come uma fera?

― Porco. ― Nós comemos carne de porco. ― Bucha! ― Eu tenho o búzio! ― grita o Bucha com indignação. Rafael, eles têm de se

calar, não é verdade? Caluda, miúdos! Quero eu dizer que não estou de acordo com esse medo daqui. Claro está que não há nada de que ter medo na mata. Eu mesmo tenho por lá passado! Por este andar não há-de faltar muito para que não faleis de bruxas e de fantasmas. Nós sabemos o que se passa e, se alguma coisa andar mal, haverá sempre alguém para resolver o caso.

Tira os óculos e fica a piscar os olhos. O Sol desaparecera, como se alguém tivesse apagado a luz.

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Continua a explicar: ― Quando se tem uma dor de barriga, seja ela grande ou pequena... ― A tua é grande, Bucha! ― Quando deixardes de rir, talvez se possa continuar a reunião. E se os miúdos

subirem para o balancé vão cair num instante. De modo que é melhor sentarem-se no chão e prestarem atenção. Não. Há médicos para tudo, até para tratar do interior da cabeça. Pode-se então admitir que tenhamos sempre de recear tudo? A vida ― declara o Bucha expansivo ― é científica: é o que é. Dentro de um ano, ou dois, quando a guerra estiver acabada, será possível viajar até Marte e voltar. Eu sei que não há nenhuma fera ― com garras e tudo o mais, quero dizer ―, mas também sei que não há medo. O Bucha cala-se ― A não ser... Rafael move-se, inquieto:

― A não ser o quê? ― A não ser que tenhamos medo das pessoas. Um ruído, meio de gargalhada, meio de escárnio, sobe do grupo sentado. O Bucha baixa a cabeça e prossegue apressadamente: Assim, ouçamos o que tem para dizer-nos esse miúdo que falou da fera, e

talvez nos seja dado ver como ele é pateta. Os miúdos começam a chalrar entre si e, por fim, um deles adianta-se. ― Como te chamas? ― Filipe. Para um miúdo mostrava muita confiança em si mesmo, estendendo

as mãos, acalentando o búzio como vira fazer a Rafael, olhando à roda para atrair as atenções antes de falar:

A noite passada tive um sonho, um sonho horrível: lutei com coisas estranhas. Estava sozinho à porta da cabana, em luta com essas coisas, essas coisas

torcidas das árvores. Faz uma pausa e os outros miúdos riem-se com uma simpatia horrorizada. ― Fiquei assustado e acordei. E estava à porta da cabana, sozinho no escuro, e

as coisas torcidas tinham desaparecido. O horror vívido de tudo isto, tão verosímil e tão nuamente aterrador, prende-os

num anel de silêncio. A voz infantil vai flauteando detrás do búzio branco: ― E assustei-me tanto que comecei a gritar pelo Rafael, e, vai então, vi essa

coisa a mexer entre as árvores, uma coisa enorme e horrorosa. Cala-se, meio atemorizado com a própria reminiscência, orgulhoso, porém, da

sensação que está a causar. Era um pesadelo ― atalha Rafael ―, ele caminha quando sonha. A assembléia murmura um assentimento frouxo. O miúdo abana a cabeça com teimosia: ― Eu dormia quando as coisas torcidas lutavam e, quando elas desapareceram,

já eu estava acordado. Foi então que vi uma coisa enorme e horrorosa a mexer-se entre as árvores.

Rafael estende as mãos para o búzio e o miúdo senta-se: Dormias. Não havia lá ninguém. Como era possível que alguém andasse na

mata àquela hora da noite? Andava lá alguém? Houve alguém que saísse?

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Faz-se uma longa pausa, enquanto a assembléia sorri, divertida com a idéia de haver alguém que saísse no escuro. Então Simão levanta-se e Rafael encara-o com espanto:

― Tu! Que diabo andavas tu a fazer no escuro? Simão agarra o búzio convulsivamente:

― Queria... ir a sítio.... um sítio que eu conheço. ― Que sítio? ― Cá um sítio que eu conheço. Um sítio na selva. ― Hesita. Jack resolve o

problema por eles com aquele desprezo na voz que podia soar tão caricato e tão decisivo.

― Estava com vontade de fazer e foi lá fora. Sofrendo a humilhação de Simão, Rafael retira-lhe o búzio, encarando-o com severidade:

― Pois então não tornes. Entendes? À noite, não! já basta de tolices com esta história de feras, e só falta agora que os miúdos te vejam a deslizar, como um...

As gargalhadas escarninhas que se elevam trazem medo e condenação. Simão abre a boca para falar, mas Rafael tem o búzio, de modo que ele volta para o lugar.

Quando a assembléia sossega, Rafael volta-se para o Bucha: ― Então, Bucha? ― Há ainda outro. Aquele. Os miúdos empurram Persival e, depois, deixam-no

só. Ele queda-se no centro, com a relva pelo joelho, a mirar os pés cobertos, tentando imaginar que se encontra numa barraca. Rafael lembra-se de um outro rapazinho que se quedou naquela mesma posição e furta-se a uma tal reminiscência. Tinha-a recalcado e banido da vista, lá onde só uma sugestão positiva como esta a poderia fazer vir à superfície. Não tinha havido qualquer contagem posterior dos miúdos, em parte porque não tinham meios para garantir que todos seriam registados e também porque Rafael sabia a resposta, pelo menos de uma pergunta que o Bucha lhe fizera no alto da montanha. Havia ali miúdos louros, trigueiros e sardentos, todos eles sujos, mas tinham o rosto assustadoramente limpo de qualquer defeito.

Ninguém tinha tornado a ver o do nevo cor-de-amora. Mas, nessa altura, o Bucha tinha-o solicitado e instigado. Admitindo tacitamente que se lembrava do indizível, Rafael faz um aceno com a cabeça para o Bucha:

― Vá. Pergunta-lhe. O Bucha ajoelha-se, segurando o búzio: ― Ora vamos. Como te chamas? O miúdo encafua-se mais na sua barraquinha. O Bucha volta-se

desesperançado para Rafael, que pergunta com aspereza: ― Como te chamas? Atormentada com o silêncio e a recusa, a assembléia

prorrompe num cântico: ― Como te chamas? Como te chamas? ― Caluda! Rafael perscruta o rosto infantil no crepúsculo: ― Ora vá lá! Como te chamas? ― Persival Wemys Madison. Moro na Casa do Vigário, Rua de Santo António,

Condado de Harits, e o telefone, o telefone é, é...

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Como se a informação estivesse profundamente enreigada nas nascentes da mágoa, o miúdo chora. A carinha arrepanhada, as lágrimas a brotarem-lhe dos olhos, abre a boca até mostrar um buraco negro e quadrado.

De início era uma efígie silenciosa de dor, mas depois o lamento desprende-se alto e continuado, como o do búzio.

― Cala a boca! Cala-te! Mas Persival Wemys Madison não se calava. Tinha rebentado uma nascente fora do alcance da autoridade ou até da intimidação física. O choro prossegue, golfado, e parece mantê-lo direito, como se estivesse cravado nele.

― Cala o bico! Cala! E agora nenhum dos miúdos se mantém calado. Tinham-lhes lembrado os desgostos pessoais, e talvez sentissem que compartilhavam de uma mágoa que era universal. Começam a chorar por simpatia, dois deles quase tão alto como Persival.

Maurício salva-os. Grita: ― Olhem para mim! Finge que cai. Esfrega o traseiro e senta-se, desastrado,

no balancé, estatelando-se na relva. Faz mal de palhaço, mas Persival e os outros reparam, fungam e riem.

A certa altura riem tão absurdamente que os crescidos entram na gargalhada geral.

Jack é o primeiro a fazer-se ouvir. Não tem o búzio e assim fala contra todas as regras, mas ninguém se importa.

― E que sabe ele de fera? Alguma coisa estranha acontecia a Persival. Boceja e cambaleia, de modo que Jack agarra-o e abana-o. ― Onde vive a fera? Persival sucumbe no abraço de Jack. ― Deve ser uma fera inteligente ― interpõe o Bucha, escarninho ― para se

esconder nesta ilha. ― Jack já revistou a ilha toda... ― Onde poderia viver aqui uma fera? ― Qual fera, nem qual carapuça! Persival murmura qualquer coisa e a

assembléia ri de novo. Rafael debruça-se sobre o miúdo: ― Que é que ele diz? Jack escuta a resposta de Persival e depois larga-o.

Persival, liberto, rodeado da presença confortável dos humanos, cai na relva alta e adormece.

Jack pigarreia e informa casualmente: ― Diz ele que a fera vem do mar. Morrem as últimas gargalhadas. Rafael

volta-se involuntariamente, vulto negro e encolhido contra a lagoa. A assembléia segue-lhe o olhar, examina a vasta extensão aquática e o mar alto, mais ao fundo, anil desconhecido de possiBilldades infinitas, e fica-se a escutar silenciosamente o sussurro e o remurmúrio que vem da restinga.

Maurício fala tão alto que os faz estremecer: ― O meu paizinho já me disse que ainda não descobriram todos os animais

que há no mar.

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O argumento recomeça. Rafael estende o búzio rebrilhante e Maurício pega nele obedientemente. O auditório acalma.

― Quando Jack diz que podemos ter medo, porque é fácil assustarmo-nos, ele tem razão. Mas quando diz que nesta ilha só há porcos-bravos, espero que tenha razão, porque, de certeza, não sabe se é verdade. ― Maurício toma fôlego: ― O meu paizinho disse-me que há coisas ― como se chama aquela coisa que deita tinta? ― lulas ― que têm muitas jardas de comprimento e comem baleias inteiras. ― Faz uma nova pausa e ri-se alegremente Claro que não acredito na fera. Como diz o Bucha, a vida é científica, mas nós não sabemos, pois não? Não pelo certo, quero eu dizer...

Alguém grita: ― Uma lula não podia sair fora de água! ― Podia, sim! ― Não podia! Nutri minuto o terraço enche-se de sombras gesticulantes e

argumentadoras. Para Rafael, sentado, isto parece-lhe um começo de insânia. Medo, feras e falta de acordo geral quanto à importância absoluta do fogo. E,

quando se tentava resolver o assunto de uma vez, o argumento descarrilava, trazendo uma questão nova e desagradável.

Podia ver uma alvura junto de si na sinistra obscuridade que o envolvia; arranca-a às mãos de Maurício e sopra com todas as forças. A assembléia, com o choque, remete-se ao silêncio. Simão encontra-se junto dele, pousando as mãos no búzio. Simão sente uma perigosa necessidade de falar, mas, para ele, falar perante um auditório era uma coisa tremenda.

― Talvez ― arrisca ele com um modo hesitante ―, talvez haja uma fera. A assembléia barafusta enraivecida e Rafael ergue-se assombrado. ― TU, Simão? Tu acreditas nisso? ― Não sei ― atrapalha-se Simão. As pancadas do coração no peito

estrangulavam-no. ― Mas... A tempestade rebenta: ― Senta-te! ― Cala o bico! ― Tirem-lhe o búzio! ― Que safardana! Rafael grita por sobre o tumulto: ― Ouçam o que ele tem para dizer! Ele tem o búzio! ― O que eu quero dizer é que... se calhar somos nós. ― É pírulas, Esta exclamação veio do Bucha, perdendo todo o decoro com o

choque. Simão acrescenta: ― Nós somos, talvez, uma espécie de... Simão torna-se confuso no seu esforço

para exprimir a enfermidade essencial da Humanidade. De repente vem-lhe a inspiração:

― Qual é a coisa mais porca que há? Como resposta, Jack atira ao incompreensivo silêncio que se segue as duas sílabas cruas e expressivas. A

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libertação é como um orgasmo ― Os miúdos, que tinham subido para o balancé, voltam a cair e não se importam. Os caçadores guincham de prazer.

O esforço de Simão cai desfeito em ruínas. As gargalhadas acossam-no cruelmente e ele encolhe-se, sem defesa, no seu lugar.

Por fim, a assembléia sossega novamente. Alguém fala antes da sua vez. ― Talvez ele esteja a referir-se a alguma espécie de fantasma. Rafael ergue o

búzio e perscruta a escuridão. O objecto mais claro é o areal pálido. Com certeza os miúdos estavam mais perto. Sim, não havia dúvida: ali se encontravam todos, aconchegados num apertado nó de corpos no meio da selva. Uma aragem faz sussurrar as palmeiras e o ruído parece muito mais forte, agora que a escuridão e o silêncio o tornam tão fácil de notar.

Dois troncos pardos roçam um pelo outro com um estalido de mau agouro, em que ninguém havia reparado durante o dia.

O Bucha tira-lhe das mãos o búzio. A sua voz ressoa, indignada: ― Eu não acredito em fantasmas, nunca acreditei! Jack também estava de pé,

inexplicavelmente irado: ― Bem nos importamos nós com isso, Gordo! ― Eu tenho o búzio. Ouve-se o ruído de uma breve escaramuça e o búzio passa

de um lado para o outro. ― Dá-me cá o búzio! Rafael mete-se entre os dois e recebe uma punhada no

peito. Arranca o búzio das mãos de alguém e senta-se, esbofado. ― já basta de conversa de fantasmas. Devíamos falar de tudo isto, mas de dia.

Uma voz abafada e anónima interpõe: ― Se calhar a fera é isso mesmo: um fantasma. A assembléia fica abalada

como se um tufão tivesse passado por ela. ― Há muita gente a falar ao mesmo tempo ― volve Rafael. ― Assim não se podem ter reuniões a valer, se não se obedece ao regulamento. Torna a calar-se. O cuidadoso plano desta reunião ficara esfrangalhado. ― Que quereis que eu vos diga agora? Fiz mal em convocar esta reunião para

tão tarde. Vamos a um voto, um voto para decidir dos fantasmas, e depois recolhemos às cabanas porque já estamos todos cansados.

Não ― é o Jack? ―, espera um bocadinho. Declaro agora aqui que não acredito em fantasmas. Ou, ao menos, julgo que não acredito. Mas não gosto de pensar neles. Por agora, aqui no escuro. Mas nós íamos decidir o que é que se passa.

Ergue o búzio por um momento: ― Então, muito bem! Suponho que o que importa é saber se há fantasmas ou

não... Medita um momento para formular a pergunta: ― Quem é que pensa que há fantasmas? Segue-se um longo silêncio e ninguém

faz qualquer movimento aparente. Depois Rafael espreita a escuridão sinistra e conta as mãos levantadas. Fala num tom neutral:

― Estou a ver.

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O mundo, aquele mundo compreensível e legal, ia-se desvanecendo. Antes havia isto e aquilo, e agora... o navio tinha partido.

O búzio é-lhe arrancado das mãos e, aguda, sobe a voz do Bucha: ― Eu não votei por fantasmas! E circunvagando os olhos por toda a

assembléia: ― Lembrai-vos bem disto, todos vós! Ouvem-no dar uma parada. ― Que somos nós? Humanos? Ou animais? Ou selvagens? Que irão pensar de

nós os adultos? Escapámo-nos... para caçar o porco-bravo... para deixar apagar o fogo... e agora isto!

Uma sombra enfrenta-o tempestuosamente: ― Cala o bico, pedaço de asno! Há um momento de luta e o búzio rebrilhante

sobe e desce. Rafael, de rompante, põe-se de pé: ― Jack! Jack! Tu não tens o búzio! Deixa-me, falar! O rosto de Jack cresce junto dele: ― E tu perde o pio! Quem és tu para estares para aí a largar sentenças de cu

sentado, dizendo-nos o que devemos fazer. Não sabes caçar, não sabes cantar... ― Eu sou o chefe. Fui escolhido. ― E que diferença faz o ter sido escolhido? Para dar ordens que não têm

sentido... ― O Bucha tem o búzio. ― Isso mesmo... favorece o Bucha, como sempre tens feito... ― Jack! A voz de Jack volve numa mímica amarga: ― Jack!Jack! ― O regulamento! ― protesta Rafael. ― Estás a quebrar o regulamento! ― Quem se importa com isso? Rafael faz um esforço de bom senso: ― Porque o regulamento é a única coisa que nos resta. Mas Jack berra contra

ele: ― Bolas para o regulamento! Nós somos fortes... nós caçámos! Se houver uma

fera, caçamo-la! Fazemos um cerco e damos porrada, porrada e mais porrada ...! Solta um grito de guerra e salta para o areal pálido. Num abrir e fechar de

olhos, o terraço enche-se de ruído e excitação, de tumulto, de gritos e de risadas. A assembléia destroça e desfaz-se em grupos discursivos e do acaso, espalhados desde os palmares até à borda d'água e ao longo da praia, para além da visão nocturna. Rafael sente o búzio tocar-lhe o rosto e toma-o das mãos do Bucha.

― Que irão dizer de nós os adultos? ― volta o Bucha a lamentar-se. ― Olha para eles!

O ruído de uma caçada simulada, as gargalhadas histéricas e terror verdadeiro chegam até junto deles, vindos da praia.

― Sopra o búzio, Rafael. O Bucha encontra-se tão perto dele que Rafael pode ver o reflexo do único

vidro dos seus óculos. ― Há a fogueira. Então eles não percebem? ― Tens que ser duro com eles. Obrigá-los a fazer o que queres.

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Rafael responde com a voz cautelosa de alguém que enuncia um teorema: Se eu sopro o búzio e eles não vêm, estamos fritos! Não conseguimos manter a fogueira acesa. Ficamos como os animais. Nunca mais nos salvam. De qualquer maneira, se não sopras o búzio, ficaremos como os animais. Não enxergo daqui o que eles estão a fazer, mas posso ouvir.

Os vultos dispersos tinham-se congregado no areal e eram agora uma grossa massa negra que volteava. Entoavam qualquer coisa, e os miúdos, que se tinham enfastiado com aquilo, trotulavam, fugindo e berrando.

Rafael leva o búzio aos lábios para logo o baixar: ― O caso é: há fantasmas, ou não, Bucha? Ou feras? ― Claro que não há. ― Porque não? ― Porque as coisas não fariam sentido. Casas e ruas, e... a televisão... não

poderiam funcionar. O grupo cantante e dançante afastava-se até não ser mais do que um ritmo sem

palavras. Mas, admitindo que não fazem sentido? Não aqui, nesta ilha? Admitindo que

há coisas que nos estão a ver e à nossa espera? Rafael arrepia-se violentamente e aproxima-se mais do Bucha, esbarrando com

ele num momento de terror. Não fales nisso! Tal como as coisas estão, temos bastantes problemas, Rafael; e

eu, por hoje, já não aguento mais. Se há fantasmas... ― Tenho que deixar de ser o chefe. Não os ouves? ― Oh, não, não! O Bucha agarra o braço de Rafael: ― Se Jack for o chefe só haverá caçadas e nunca uma fogueira. Ficaremos aqui

até morrer. A sua voz eleva-se num guincho: ― Quem está aí sentado? ― Eu. Simão. ― Não prestamos para nada! ― remata Rafael. ― Três ratos cegos. Desisto. ― Se tu desistes ― alvoroça-se o Bucha num murmúrio apavorado ―, o que é

que me vai acontecer? ― Nada. ― Ele odeia-me. Não sei porquê. Se ele pudesse fazer o que quer... Tu estás

bem. Ele, a ti, respeita-te. Além disso, tu... tu batias-lhe. ― Tu também não te sais tão mal como isso. Ainda há bocado. ― Eu tinha o búzio ― profere o Bucha simplesmente. ― Tinha o direito de

falar. Simão remexe-se no escuro: ― Não deixes de ser o chefe. ― Tu cala-te, menino Simão! Porque é que não disseste que não há fera

nenhuma?

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― Tenho medo dele ― insiste o Bucha ― e é por isso que o conheço bem. Se temos medo de alguém, odiamo-lo, mas não podemos deixar de pensar nele. Podemos enganar-nos a ponto de julgar que é um tipo como os outros, mas depois tornamos a vê-lo; é como a asma: não se pode respirar. É o que te digo. Ele também te odeia a ti, Rafael...

― A mim? Porquê a mim? ― Não sei. Apanhaste-o em falso com a fogueira, e, depois, tu és o chefe e ele

não é. ― Mas ele é, é Jack Merridew! ― Eu passei tanto tempo de cama que tenho pensado muito. Conheço as

pessoas. Eu conheço-me a mim mesmo. E a ele. Ele não te pode magoar, mas se lhe deixas o campo livre cai logo em cima do primeiro a quem puder deitar a unha. E sou eu quem paga as favas.

― O Bucha tem razão, Rafael. Temos― te a ti e a Jack. Continua a ser o chefe. ― Estamo-nos a perder e as coisas estão a andar muito mal. Na Inglaterra

havia sempre um adulto. "Dá licença, senhor professor"; "dá licença, minha senhora"; e havia sempre uma resposta. Quem me dera lá!

― Quem me dera que a minha titi estivesse aqui! ― Quem me dera aqui o meu pai... Oh, de que é que serve? ― É manter a fogueira a arder. A dança tinha terminado e os caçadores

regressavam às cabanas. ― Os crescidos sabem coisas ― pronuncia o Bucha. ― Não têm medo do

escuro. Encontram-se, tomam chá e discutem. Então tudo corre bem... ― Eles nunca pegariam fogo à ilha. Ou perder... ― Construíam um navio... Os três rapazinhos demoraram-se na escuridão,

forcejando, sem êxito, por transmitir a majestade da vida adulta. ― Não se zangariam... ― Nem me partiriam os óculos... ― Nem falariam de feras... ― Se, ao menos, eles nos pudessem mandar um recado! exala Rafael

desesperado. ― Se nos pudessem mandar qualquer coisa crescida... um sinal, qualquer coisa

que fosse! Um débil queixume no escuro põe-lhes calafrios na espinha e leva-os a

agarrarem-se uns aos outros. Depois o queixume eleva-se, longínquo e fora da terra, tornando-se um murmúrio ininteligível. Persival Wemys Madison, da Casa do Vigário, Rua de Santo António, deitado na relva, vai vivendo através de circunstancias, nas quais o valor encantatório da sua morada não tem poderes para o socorrer.

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VI - A FERA DO AR Não havia outra luz a não ser a que vinha das estrelas. Quando compreenderam

donde provinha este ruído de duende e Persíval voltara a sossegar, Rafael e Simão levantam-no desajeitadamente e levam-no em charola para uma cabana. O Bucha, a despeito do seu palavrório de bravura, vai-lhes no encalço e os três rapazes mais velhos retiram-se juntos para o abrigo mais próximo.

Deitam-se desassossegados, fazendo grande bulha no meio das folhas secas, e ficam-se a olhar o rasgão de estrelas que é a abertura para a lagoa. Às vezes um miúdo lamuriava nas outras cabanas, e, de uma vez, um crescido falou no escuro. Depois adormecem todos.

Uma rodela de luar assoma no horizonte, pequena de mais para derramar uma esteira de luz, até mesmo quando se senta na água. Mas há outras luzes no céu, que se movem depressa, piscam ou se apagam, sem que desça o mais leve matraqueio da batalha travada a dez quilómetros de altura. Porém, um sinal desce do mundo dos adultos, embora não houvesse àquela hora nenhuma criança desperta para o ler. Dá-se uma explosão de um claror muito vivo e um rasto em saca-rolhas risca o céu; depois voltam as estrelas e a escuridão. Um pontinho desenha-se sobre a ilha, um vulto desce célere sob um pára-quedas, um vulto dependurado e de membros bambeantes. Os ventos variáveis das diversas altitudes levam-no ao acaso do seu capricho. A três quilómetros de altura o vento estaBillza e trá-lo com uma curva descendente à roda do céu, e arrasta-o, numa tangente ao recife e à lagoa, para as bandas da montanha. O vulto cai e esbarronda-se no meio das florinhas azuis do respaldo do monte, mas, àquela altura, também circula uma brisa macia e o pára-quedas, amarfanhado, fica a trapejar numa cachoeira de sacões e arrancos. Assim, o vulto, puxado por ele e com os pés a rojar o solo, vai rolando pela encosta do cerro acima. Metro a metro, lufada a lufada, a aragem iça o vulto no meio das florinhas azuis e carrega-o sobre fragões e penedais róseos até o abandonar num acervo de rochedos espalhados no cume do monte.

Ali a brisa é intermitente e deixa enredar e afestoar os fios do pára-quedas. E o vulto aí fica sentado, com a cabeça coberta pelo capacete e tombada entre os joelhos, presa por uma complicação de linhas. Quando a brisa sopra, as linhas esticam, tensas, e, por via de algum acidente deste empuxão, erguem-lhe a cabeça e o peito tão direitos que o vulto parece espreitar do viso do monte. Depois, de cada vez que o vento amaina, os fios lassam e o vulto debruça-se de novo, afundando a cabeça entre as pernas. De modo que, enquanto as estrelas giram no céu, o vulto sentado no alto do monte cabeceia, dobrando e bandeando o tronco num jogo ritmado.

Na luz búcia da antemanhã elevam-se ruídos junto de um penedo, a meio caminho da encosta da montanha. Dois rapazes erguem-se de um leito de caruma e folhas secas, duas sombras baças que falam sonolentamente uma com a outra. São os gêmeos, encarregados da fogueira. Em teoria, um devia dormir e o outro velar. Mas eles nunca conseguiam fazer algo com sensatez, se isso implicava terem de

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actuar independentemente, e, uma vez que era impossível ficarem toda a noite acordados, tinham dormido ambos. Aproximam-se agora do borrão negro que tinha sido a fogueira, bocejando, esfregando os olhos, pisando com pés experimentados. Quando chegam ao sítio, param com um bocejo e um deles corre em busca de lenha e caruma.

O outro ajoelha-se: ― Parece-me que está apagado. Esfrega os dois gravetos que o irmão lhe

oferece. ― Não! Deita-se de borco, afusa os lábios junto da terra chamuscada e sopra

levemente. O rosto aparece iluminado de vermelho. Cessa de soprar por um instante. ― Samuel, dá-me... ―... maravalhas. Érico curva-se e sopra brandamente até avivar a chama. Samuel mete um cavaco no brasido, depois um ramo. O clarão aumenta e o

ramo pega o fogo. Samuel empilha mais ramos. ― Não queimes tudo ― adverte Érico; ― estás a pôr de mais. ― Vamo-nos aquecer. ― Só temos de ir buscar mais lenha. ― Tenho frio. ― Também eu. ― Além disso, está... ―... escuro. Então, vai lá! Érico agacha-

se e queda-se a observar Samuel, que faz a fogueira. Ele levanta uma tenda de lenha seca e o fogo crepita a bom resguardo.

― Esteve por um triz! ― Se ele cá estivesse... ― Ralhava. ― Hum! Durante alguns momentos os gêmeos contemplam o fogo em silêncio. Depois Érico funga. ― Como ele ralhou, hein! ― Por causa da... ― Da fogueira e do porco. ― Ainda bem que ele se meteu com o Jack e não connosco. ― Hum! Lembras-te do velho Ralha-Todos lá na escola? "Credo! Vocês dão-

me cabo do juízo!" Os gêmeos compartem a gargalhada idêntica, depois lembram-se do escuro e

de outras coisas e espreitam à roda, contrafeitos. As chamas, que lambiam agora a tenda, prendem-lhes de novo a atenção. Érico observa a fuga precipitada do piolho da madeira, que era tão freneticamente incapaz de evitar as chamas, e pensa na primeira fogueira, lá mesmo ao fundo, do lado do recosto mais íngreme da montanha, onde agora reinava completa escuridão. Não gosta de recordar e desvia os olhos para o cimo da montanha.

O calor irradia agora e bate-lhes agradavelmente. Samuel diverte-se a empurrar os gravetos para o fogo tão perto quanto possível.

Érico estende as mãos, tenteando a distância a que o calor é tolerável.

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Olhando preguiçosamente além da fogueira, vai resituando os rochedos espalhados, à medida que eles saem das sombras rasas para os contornos da luz do dia. Lá estava o grande penhasco grosso, os três pedregulhos do outro lado, o rochedo fendido, e, mais adiante, um espaço vazio... mesmo ali...

Samuel. Há? Nada. As chamas dominam os ramos, a casca encarquilha-se toda e cai; a lenha explode. A tenda rui por dentro e atira um largo círculo de luz até ao topo da montanha.

― Samuel. ― Há? ― Samuel! Samuel! Samuel encara Érico com irritação. A intensidade do olhar

de Érico dá-lhe o ponto de mira para onde ele espreita, espavorido, pois Samuel está de costas para o monte. Rasteja em torno do fogo, agacha-se ao pé de Érico, e espreita, por seu turno, para ver. Ficam siderados, agarrados nos braços um do outro, quatro olhos apontados sem pestanejar e duas bocas abertas.

A seus pés as árvores da mata sussurram para logo rugirem num vendaval. O cabelo fustiga-lhes a testa e chamas sopram dos cantos da fogueira. A quinze jardas donde se encontram vem-lhes o som gorgolado de tela que se esgarça.

Nenhum dos dois grita, mas o abraço que os une estreita-se mais e a boca toma um jeito oval. Ficam assim acocorados, talvez durante uns dez segundos, enquanto o fogo flagelante vomita fumo e chispas e ondas de uma luz inconstante sobre o alto da montanha.

De repente, como possessos de um único espírito de terror, saltam sobre o fraguedo e desatam a fugir.

Rafael dormia. Tinha adormecido depois do que lhe parecia terem sido horas passadas a virar-se e a remexer-se ruidosamente na cama de folhas secas. Nem sequer lhe chegavam já os sons de pesadelo, que saíam das outras cabanas, pois voltara ao sítio donde viera, alimentando os poldros com açúcar por cima do muro do jardim. De repente alguém sacode-lhe o braço e diz-lhe que são horas de tomar chá.

― Rafael, acorda! As folhas bramiam como o mar. ― Rafael, acorda! ― Que há? ― Nós vimos... a fera... de caras! ― Quem são vocês? Os gêmeos? ― Nós vimos a fera... ― Calem-se! Bucha! As folhas restolhavam ainda. O Bucha esbarra com

Rafael, e um gémeo agarra-o quando ele tenta alcançar o rasgão oblongo onde as estrelas empalideciam.

― Não podes sair.. é horrível! ― Bucha!... onde estão as lanças? ― Eu posso ouvir... ― Calados, então. Estejam quietos. E ali ficaram imoBillzados a escutar, de

princípio com dúvida e, depois, com terror, a descrição que os gêmeos ciciavam

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entre crises de extremo silêncio. Em pouco tempo a escuridão povoara-se de garras, grávida de uma ameaça tremenda e desconhecida.

Um amanhecer interminável vai apagando as estrelas uma por uma, e, por fim, uma luz triste e parda coa-se através da casota. Começam a mover-se, ainda que o mundo fora do abrigo seja de uma impossiBilldade perigosa. O labirinto da escuridão esvai-se ao perto e ao longe, e, na cumeeira do céu, as nuvenzinhas afogueiam-se de cor.

Uma ave marinha solitária sobe num ruflar de asas tardo, soltando um grasnido rouco que fere o eco e a que lhe responde um crocitar na mata. Agora, fiapos de nuvens junto do horizonte começam a rosear, e a coma penujenta do topo dos palmares é verde.

Rafael ajoelha-se à entrada do abrigo e espreita cautelosamente à sua volta. ― Samuel e Érico. Chamem os outros todos para uma reunião. Devagarinho.

Saiam lá. Os gêmeos, agarrando-se tremulamente um ao outro, arriscam as poucas jardas

que os separam da cabana mais próxima e dão a terrível notícia. Rafael ergue-se e encaminha-se para o terraço por uma questão de dignidade, ainda que sinta um aguilhão cravado nas costas. O Bucha e Simão seguem-no e os outros rapazes juntam-se-lhes, vindos à surrelfa.

Rafael retira o búzio donde o tinha pousado no assento polido e leva-o aos lábios; mas, depois, hesita e não sopra. Ergue a concha ao alto, mostra-a e eles compreendem.

Os raios do Sol, que se abriam em leque para o azul, partindo do aro do horizonte, inflectiam para terra ao nível da vista. Rafael mira por um momento a crescente fatia de oiro que os ilumina, à direita, e parecia tornar possível a fala. O círculo de rapazes na sua frente era uma floresta de lanças ristadas.

Passa o búzio a Érico, o gémeo que se encontrava mais perto. ― Vimos a fera com os nossos próprios olhos. Não... Não estávamos a

dormir... Samuel prossegue a narrativa. Por costume um búzio servia aos dois gêmeos, já

que fora reconhecida a sua unidade substancial. ― Tinha o pêlo como um gato. Havia qualquer coisa que mexia atrás da

cabeça: asas. A fera movia-se também... ― Era horrível. Estava como que sentada... ― A fogueira dava bastante claridade... ― Tínhamos acabado de a acender.. ― posto mais gravetos... ― Tinha olhos... ― Dentes ... ― Garras ... ― Fugimos o mais de pressa que pudemos... ― Tropeçámos em coisas... ― A fera perseguiu-nos...

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― Vi-a escapar-se por detrás das árvores... ― Quase me tocou... Rafael aponta a medo o rosto de Érico, listrado de

arranhões onde as urzes o tinham cortado: ― Como é que fizeste isto? Érico palpa a face: ― Está áspera. Deita sangue? O círculo de rapazes encolhe-se num gesto de horror. Joãozinho, ainda a

bocejar, rompe num choro solto e Bill tem de o esbofetear até ele sufocar as lágrimas. A manhã clara está cheia de ameaças e o círculo começa a mudar a sua posição. Faz frente para fora em vez de se fechar sobre o centro, e as lanças de ponta de pau aguçada são como uma vedação.

Jack chama-os para o meio. ― Vai ser uma caçada a valer! Quem quer vir? Rafael agita-se impaciente: ― Essas lanças são feitas de madeira. Não sejas parvo! Jack escarnece: ― Medo? ― Claro que tenho medo. Quem é que não teria? Volta-se para os gêmeos,

ansiosos mas imprestáveis: ― Suponho que vocês não estão a gozar com a malta! A resposta é enfática de

mais para que alguém possa duvidar deles. O Bucha pega no búzio: ― Não poderíamos, talvez, ficar aqui? Pode ser que a fera não se aproxime da

gente. Mas só à idéia de haver alguma coisa que os espreitasse, Rafael não pôde

deixar de lhe gritar: ― Ficar aqui? Ficarmos tolhidos nesta ponta da ilha, sempre à coca? Como

arranjar comida? E a fogueira? ― Toca a andar ― enseja Jack inquieto. ― Estamos a perder tempo. ― Não, não estamos. E o que se faz com os miúdos? ― Bolas para os miúdos! ― Alguém tem que olhar por eles. ― Ninguém o fez até agora. ― Porque não era preciso! Já sei. O Bucha olha por eles. ― Claro! Desde que o Bucha esteja fora de perigo. ― Tem juízo! Que pode fazer o Bucha só com um vidro nos óculos? Os outros rapazes olhavam de Jack para Rafael com curiosidade. ― Outra coisa. Não podemos fazer uma caçada como de costume, porque a

fera não deixa rasto. Se deixasse, à nós o teríamos visto. Tanto quanto sabemos, a fera pode saltar de ramo em ramo, como esse bicho não sei com que nome.

Fazem que sim com a cabeça. É preciso pensar. O Bucha tira os óculos partidos e limpa a lente que lhe resta. ― E nós, Rafael? ― Não tens o búzio. Toma.

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― Quero eu dizer: e nós o que fazemos? Imagina que a fera vem aqui ter quando vocês todos estiverem longe. Eu não consigo ver bem, e se me assusto...

Jack interrompe-o com desprezo: ― Assustas-te muito. ― Eu tenho o búzio... ― Búzio! Búzio! ― berra Jack. ― já não precisamos do búzio para nada.

Sabemos muito bem quem é que deve falar. De que serviu que o Simão falasse, ou o Bill, ou o Pulquério? Já é tempo de que certos tipos se calem e deixem as decisões a quem as deve tomar...

Rafael não podia ignorar mais este discurso. O sangue sobe-lhe à face numa onda de calor:

Tu não tens o búzio ― impõe ele. ― Senta-te! O rosto de Jack fica tão branco que as sardas mostram-se como pintas claras e

castanhas. Passa a língua pelos lábios e permanece de pé. Isto é um trabalho para os caçadores. O resto do grupo observa-os fixamente. O Bucha, achando-se incomodamente

enredado, deixa deslizar o búzio para os joelhos de Rafael e senta-se. O silêncio torna-se opressivo e o Bucha sustêm a respiração.

Isto é muito mais do que um trabalho para os caçadores replica Rafael por fim ―, porque não podemos descobrir o rasto da fera. E vós não quereis que vos salvem? Volta-se para a assembléia:

― Não quereis que vos, salvem, a todos? Torna a olhar para Jack. ― já vos disse isto ontem: a fogueira é a coisa mais importante. Agora o fogo deve estar a morrer...

Salva-o a antiga exasperação, dando-lhe a energia para atacar: ― Mas então ninguém tem dois dedos de caco para perceber? Nós temos que

voltar a acender a fogueira. Nunca te passou isto pela cabeça, pois não, Jack? Ou não quereis que vos salvem?

Sim, todos queriam ser salvos, não havia dúvidas acerca disso; e, com um violento movimento de opinião a favor de Rafael, a crise passou. O Bucha, arfando numa ânsia, procurou respirar de novo e falhou. Encostara-se a um cepo, de boca escancarada, e sombras violáceas surgiram-lhe em tomo dos lábios. Ninguém se preocupava com ele.

― Agora pensa bem, Jack. Há aí algum sítio na ilha onde ainda não tenhas estado?

Jack responde contra vontade: ― Há só um sítio... Mas claro! Lembras-te? Aquela parte da ponta do rabo,

onde os rochedos estão todos amontoados. Nunca lá fui. A rocha faz como que uma ponte. Só há um caminho para lá chegar.

― E o monstro pode lá viver. Toda a assembléia começa a falar ao mesmo tempo. ― Silêncio! Bem. É lá que nós vamos ver. Se a fera não estiver aí, temos de

subir a montanha e espreitar; e acender a fogueira.

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― Vamos. ― Comemos primeiro; depois é que vamos ― ordena Rafael. ― É melhor

levarmos lanças. Depois de terem comido, Rafael e os crescidos partem, seguindo ao longo da

praia. Haviam deixado o Bucha recostado no terraço. Este dia prometia ser, como os outros, um banho de sol sob uma cúpula de azul.

O areal estendia-se diante deles numa curva suave, até se fundir, numa única perspectiva, com a floresta, pois o dia ainda não ia bem adiantado para que ela ficasse obscurecida pelas velaturas móveis da miragem. Sob a orientação de Rafael, escolheram um caminho cauteloso na orla dos palmares, de preferência a arriscarem-se pela areia quente à borda d'água.

Deixava que fosse Jack a guiar; e Jack punha pé aqui, pé ali, com uma cautela teatral, ainda que se pudesse ver um inimigo a vinte jardas de distância. Rafael marchava na retaguarda, grato por ter-se descartado da responsaBilldade de momento.

Simão, que caminhava à frente de Rafael, sentia acordar nele um vislumbre de incredulidade ― uma fera com garras que arranhavam, que se sentava no alto da montanha, que não deixava rasto e que, no entanto, não era suficientemente veloz para apanhar Samuel e Érico. Quanto mais Simão pensava na fera, tanto mais a sua visão interior lhe oferecia o quadro de um humano ao mesmo tempo heróico e enfermo.

Suspirou. Havia outros que eram capazes de se erguerem e falarem perante uma assembléia, aparentemente sem sofrerem daquele tremendo sentimento de pressão de personalidade; eram capazes de dizer o que pensavam, como se estivessem a falar somente a uma pessoa. Saiu da fila e olhou para trás. Rafael avançava, levando a lança sobre o ombro. Timidamente, Simão afrouxa o Passo até ficar quase lado a lado com Rafael, e olha para ele através da espessa cabeleira negra, que lhe caía agora para os olhos. Rafael mira-o pelo canto do olho, sorri-lhe, contrafeito, como se tivesse esquecido que Simão tinha feito figura de parvo, e depois desvia de novo o olhar. Por um segundo ou dois, Simão é feliz por ter sido aceite e deixa de pensar em si. Quando esbarrou numa árvore, Rafael olhou de lado, com impaciência, e Roberto soltou uma risadinha.

Simão cambaleou, um ponto branco na testa avermelhou-se e um fiozinho de sangue começou a escorrer. Rafael tirou Simão do pensamento e tornou ao seu inferno pessoal Dentro em pouco, haviam de chegar ao castelo, e o chefe teria de ir adiante.

Jack chega a correr: ― Está à vista. ― Muito bem. Aproximamo-nos o mais que pudermos. Segue Jack em

direcção ao castelo, onde o terreno se eleva ligeiramente. À esquerda, havia uma maranha impenetrável de lianas e árvores.

― Não poderá haver ali nada? ― Não, porque se pode ver. Nada entra ou sai.

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― E então o castelo? ― Olha. Rafael afasta a cortina de relva e espreita. Havia apenas algumas

jardas mais de terreno pedregoso e, em seguida, os dois lados da ilha quase se juntavam, a ponto de se esperar um pico de promontório.

Mas, em vez disso, uma estreita passadeira de rocha, com a largura de algumas jardas e, talvez, umas quinze de comprimento, continuava a ilha até acabar no mar. Ali estava outro desses blocos de quadratura rósea, subjacentes à estrutura da ilha.

O lado visível do castelo, talvez a uns cem pés de altura, era o bastião róseo que eles tinham visto do alto da montanha. O rochedo da falésia abria-se numa racha funda e, no alto, amontoavam-se pedregulhos que pareciam vacilar.

Por trás de Rafael a relva alta enche-se de caçadores silenciosos. Rafael olha para Jack:

― Tu és um caçador. Jack cora. ― Bem sei. Está bem. Alguma coisa de muito fundo em Rafael fala por ele: ― Mas eu sou o chefe. Eu é que vou. Nada de discussões. Volta-se para os

outros: ― Escondam-se aqui e esperem por mim. Nota que a voz tendia a desaparecer-

lhe ou a sair demasiado alta. Encara com Jack: ― Julgas... que? Jack murmura: ― Corri tudo. Tem de estar aqui. ― Sim. Simão murmura confusamente: ― Eu não acredito na fera. Rafael responde-lhe com cortesia, como se

estivesse a concordar sobre o estado do tempo: ― Não. Suponho que não. Os seus lábios estavam arrepanhados e brancos. Puxa o cabelo para trás muito lentamente. ― Bom. Até já. Obriga os pés a moverem-se até eles o levarem àquele esporão

de terra. Por todos os lados o rodeiam barrancos de ar vazio. Não havia sítio onde

esconder-se, mesmo que não tivesse de continuar. Pára naquela passadeira estreita e olha lá para o fundo. Dentro de algum tempo, uma questão de séculos, o mar faria do castelo uma ilha. À direita, aparecia a lagoa, perturbada pelo mar largo; e à esquerda...

Rafael estremece. A lagoa tinha-os protegido do Pacífico, e, por qualquer motivo, só Jack havia descido até à borda d’água. Deparava-se-lhe agora a mesma vista que se oferecera ao homem nado e enraizado na terra, ao contemplar, pela primeira vez, o mar avagalhoado, arfando como alguma criatura estupenda. Lentamente, as águas afundavam-se entre os rochedos, revelando mesas de granito róseo, estranhas vegetações de coral, pólipos e algas. Lá para o fundo, cada vez mais fundo, as águas escoavam-se rumorejando como o vento na coma da floresta. Havia ali um lajão disposto como uma mesa, e as águas, ao sugarem os quatro lados limosos, fazia-os parecerem-se com penedias. Então o Leviatão adormecido arfava: as águas subiam, os limos rolavam em serpentina, e a água cachoava sobre o tampo

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da mesa com um estampido. Não havia explicação para a passagem das ondas: apenas aquele subir e descer de um só minuto.

Rafael afasta-se, desviando-se para a falésia vermelha. Eles esperavam atrás, no meio da relva alta, esperavam a ver o que ele fazia. Repara que o suor na palma da mão tinha arrefecido e descobre, com surpresa, que, na realidade, ele nunca esperara encontrar uma fera e que não saberia que fazer, se alguma se lhe deparasse.

Vê também que poderia escalar a falésia, mas era desnecessário. A quadratura do rochedo permitia uma espécie de plinto à sua roda, de modo que, para a direita, sobre a lagoa, era possível avançar palmo a palmo ao longo do rebordo e contornar o bloco até perder de vista. Era fácil e em breve se encontrava a espreitar da outra banda do penedo.

Nada, a não ser o que já esperava: pedregulhos róseos e tombados, recobertos de uma crosta de guano, como açúcar cristalizado sobre um bolo, e uma escarpa a pique até aos rochedos dispersos que coroavam o bastião.

Um som vindo de trás fê-lo voltar-se. Jack deslizava ao longo do rebordo. ― Não podia deixar-te fazer isto sozinho. Rafael não ruge, guia o caminho

sobre os penedos, inspecciona uma espécie de meia furna que não continha nada mais terrível do que uma ninhada de ovos goros, e senta-se, por fim, circunvagando o olhar e batendo o rochedo com o conto da lança.

Jack está excitado: ― Que sítio para um forte! Molha-os uma coluna de vivo salseiro de espuma. ― Não há água potável. ― Então que é aquilo? Com efeito desenhava-se uma longa mancha verdosa a

meia encosta do rochedo. Sobem e provam o fio de água. ― Podia ter-se ali uma casca de coco sempre cheia. ― Não me diz nada. Isto é um sítio horrível. Lado a lado escalam a última

altura, onde o acervo decrescente era coroado do derradeiro pedregulho escalavrado. Jack dá uma punhada no que lhe está mais próximo, deixando-o levemente raspado.

― Lembras-te ... ? A consciência da desavença que os aparta apodera-se de ambos. Jack fala rapidamente:

― Mete-se um tronco de palmeira debaixo deste matacão, e, se um inimigo ataca... olha!

Cem pés abaixo deles estendia-se a passadeira estreita, em seguida o terreno pedregoso, depois a relva ocelada de cabeças, e, atrás, a mata.

― Iça! Oh, iça! ― grita Jack, exultante ―, e... vai... Faz um movimento giratório com a mão. Rafael mira a montanha.

― Que há? Rafael volta-se. ― Porquê? ― Estavas a olhar... não sei como. ― Agora não há qualquer sinal. Nada que chame a atenção. ― Andas pírulas com o sinal O aro azul e tenso do horizonte rodeava-os a toda a volta, quebrado apenas pelo

cume da montanha.

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― É tudo o que nos resta. Apoia a lança contra a pedra rochosa e puxa para a nuca duas mancheias de cabelo.

― Temos de voltar atrás e subir à montanha. É lá que eles viram a fera. ― A fera não está lá. ― Que mais podemos fazer? Os outros, que esperavam na relva, vêem Jack e

Rafael ilesos e descobrem-se à luz do Sol. Esquecem a fera com o alvoroço da exploração. Atravessam a ponte em chusma e, aos gritos, trepam por todo o lado. Rafael queda-se no alto, com uma das mãos firmada num enorme bloco vermelho, um bloco do tamanho de uma mó, rachado e vacilante. Sombrio, contemplava a montanha. Cerra o punho e bate com ele, em jeito de martelo, no muro vermelho à sua direita. Comprime firmemente os lábios e os olhos brilham-lhe com o lume de um anelo sob a franja do cabelo. Fumo.

Chupa o punho magoado. ― Jack! Vamos! Mas Jack já ali não estava. Um magote de rapazes, fazendo

uma gritaria maior do que a que ele tinha notado, içava e empurrava um pedregulho. Ao voltar-se, a base estala e aquela massa inteirinha tomba no mar, upando um penacho estrondoso de espuma, que lambuja quase metade da falésia.

― Parem com isso! Parem! A sua voz levanta um silêncio entre eles. ― O fumo. Sucedia-lhe uma coisa bizarra. Havia algo que lhe adejava no

espírito como uma asa de morcego, obscurecendo-lhe as idéias. ― Fumo. E imediatamente lhe voltaram as idéias e a ira. ― Queremos fumo e estamos para aqui desperdiçando o tempo a rebolar

calhaus. Rogério berra: ― Temos muito tempo. Rafael abana a cabeça: ― Vamos à montanha. Rebenta um clamor. Alguns queriam regressar à praia.

Outros queriam rebolar mais pedras. O Sol rebrilhava e o perigo tinha-se desvanecido com o desaparecimento da escuridão.

― Jack. Talvez a fera esteja do outro lado. Volta a guiar-nos. Tu já lá estiveste. ― Podíamos ir pela praia. Há lá fruta. Bill vem ao encontro de Rafael: ― Porque é que não podemos ficar aqui um bocado? ― Isso mesmo. ― Vamos fazer um forte. ― Podíamos rebolar pedras... ― Mesmo ao pé da ponte... ― Vamos mas é para a frente! ― berra Rafael furiosamente. ― Temos de obter a certeza. E vamos agora mesmo. ― Fiquemos aqui... ― Vamos para as cabanas... ― Estou cansado... ― Não! Rafael tanto bate que esfola os nós dos dedos. Nem parece doerem-

lhe.

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― Eu sou o chefe. Temos de obter a certeza. Ora olhem para a montanha. Há lá algum sinal? Talvez haja aí um barco ao largo. Mas vocês estão todos doidos, ou o quê?

Tumultuosamente, os rapazes calam-se ou ficam a murmurar. Jack guia o caminho, descendo o rochedo e atravessando a ponte.

VII - SOMBRAS E ÁRVORES ESGUIAS. O rasto dos porcos-bravos corria vizinho ao labirinto de penhascos que

debruavam a ilha do outro lado, e Rafael contentava-se com seguir Jack. Se conseguisse cerrar os ouvidos ao sorvo lento do mar e ao referver da vaga na ressaca, se conseguisse esquecer como eram pardacentas e invisitáveis as moitas de feno de ambos os lados, talvez tivesse então uma probaBilldade de tirar a fera da idéia e de sonhar por uns momentos. O Sol rodara a vertical e o calor da tarde abafava a ilha.

Rafael passou palavra a Jack e, quando chegaram a um vergel, toda a companhia fez alto para comer.

Sentado, Rafael dava conta do calor pela primeira vez nesse dia. Arrepanhava com desagrado a sua camisa cor de chumbo e debatia consigo mesmo se deveria lançar-se à aventura de a lavar. Quem lhe dera ali uma tesoura para cortar aquele cabelo ― puxa as melenas atrás ―, para cortar aquela guedelha bem rente, quase à escovinha! Como suspirava por um banho, uma boa banhoca com sabonete e tudo! À experiência, correu a língua sobre os dentes e concluiu que uma escova viria mesmo a jeito. Depois havia as unhas...

Rafael virou a mão e examinou-as. Estavam roídas até ao sabugo, embora não se pudesse lembrar de quando tinha recomeçado este hábito, nem de qualquer altura em que tivesse reincidido nele.

― Pouco falta para que passe a chuchar no dedo... Olhou à roda, furtivamente. Ao que parecia, ninguém tinha ouvido. Os caçadores estavam sentados,

enfartando-se desta refeição fácil, tentando convencer-se de que lhes bastava o festim de bananas e aquela fruta gelatinosa, de um cinzento-azeitonado. Com a lembrança da sua própria pessoa tomada outrora como modelo de limpeza, Rafael examinou-os tini a um. Estavam sujos, mas não daquela sujidade espectacular de rapazinhos que tivessem caído num lameiro, ou que se tivessem estatelado no pavimento em dia de chuva. Nenhum deles era uma escolha evidente para um duche, e, no entanto... o cabelo demasiado comprido, emaranhado aqui e além, fazendo nós à volta de uma folha seca ou de um graveto; caras razoavelmente limpas pelo processo de comer e suar, mas marcadas, nos ângulos menos acessíveis, por uma espécie de sombreado; a roupa no fio, tesa e empapada de suor como a sua, vestida

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não por decoro ou agasalho mas por hábito, a pele do corpo, escamosa da salmoura...

Descobriu com um baque no coração que eram estas as condições que ele aceitava agora como normais e que pouco se lhe dava.

Suspirou e atirou fora o talo do fruto descascado. Os caçadores já se esgueiravam para as matas ou para junto dos rochedos, lá em baixo, a fim de obedecerem à natureza. Voltou-se e contemplou o mar.

Daqui, da outra banda da ilha, a vista era completamente diferente. Os encantamentos diáfanos da miragem não podiam sofrer a fria água do oceano e o horizonte era um azul duro e cerrado. Rafael errou até aos rochedos. Aqui em baixo, quase ao raso do mar, podia seguir-se com o olhar a passagem incessante, enrefegada, das vagas do alto. Tinham légua s de largura e, aparentemente, não vinham rebentar na praia, nem engrossar o rolo de água que se encapelava nos escolhos.

Vogavam ao comprimento da ilha com o ar de a ignorar e de terem outra coisa a fazer; eram menos um progresso do que uma momentânea ascensão e queda de todo o oceano. Agora o mar sorvia, levantando cascatas e cachoeiras na retracção da onda, escoava-se para além dos cachopos e empastava os sargaços como uma cabeleira luzidia; depois, num compasso de espera, juntava todas as forças e empinava-se com um bramido, varrendo, irresistivelmente túmido, crista de rochedo e moliço, galgando a pequena falésia, atirando, por fim, sobre um barranco, um braço da ressaca, que ia morrer, a um metro ou mais dos pés dele, em dedos de espuma.

Onda após onda, Rafael seguia a ascensão e queda, até que algo da lonjura do mar lhe adormentou o espírito. Em seguida, gradualmente, o tamanho quase infinito desta água impôs-se à sua atenção. Esta era a divisória, a barreira. Na outra banda da ilha, enfaixada ao meio-dia na miragem, defendida pelo escudo da lagoa dormente, poderia sonhar-se com o salvamento, mas aqui, perante a obtusidade bruta do oceano ― léguas de divisão ―, ficava-se especado, desesperançado, ficava-se condenado, ficava-se...

Simão falava-lhe quase ao ouvido. Rafael notou que ele agarrava o rochedo dolorosamente com ambas as mãos, reparou no corpo arqueado, nos músculos tensos do pescoço, na boca aberta contraída:

― Hás-de voltar ao sítio donde vieste. Simão acenava a cabeça enquanto falava. Apoiava-se num joelho só, olhando-o de cima, dum penedo mais elevado, que apertava com ambas as mãos; a outra perna estendia-se até ao nível de Rafael.

Rafael sentia-se intrigado e buscava um indício na cara de Simão: ― É tão grande... Simão anuiu com a cabeça. ― É o mesmo. Hás-de regressar. Eu, pelo menos, assim o creio. Parte do constrangimento havia desaparecido do corpo de Rafael. Mirou o mar

e sorriu com amargura para Simão. ― Tens aí um barco na algibeira? Simão riu-se e abanou a cabeça.

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― Então, como é que sabes? Como Simão permanecesse calado, Rafael disse secamente:

― És pateta. Simão abanou a cabeça violentamente até os ásperos cabelos negros lhe voarem de detrás para diante, caindo sobre o rosto:

― Não. Não sou. Simplesmente, eu penso que hás-de voltar e bem. Durante um momento nada mais se disseram. Depois, subitamente, sorriram-se

um para o outro. Rogério chamou da banda das moitas: ― Venham cá ver! O terreno tinha sido revolvido perto do rasto dos porcos-bravos e havia

caganítas que exalavam vapor. Jack curvou-se sobre elas, quase com amor: ― Rafael, nós precisamos de carne, ainda mesmo se andamos à caça da outra

coisa. ― Se fica no nosso caminho, vamos a isso! Abalaram de novo, os caçadores

um pouco arranchados com receio da fera mencionada, enquanto Jack farejava a pista na dianteira. Iam mais lentamente do que Rafael tinha aprazado com eles, mas, de certa maneira, agradava-lhe vaguear, embalando a lança. Jack topou com alguma emergência do ofício e a procissão estacou logo. Rafael encostou-se a uma árvore e deixou-se enlevar imediatamente num tropel de sonhos saudosos.

Uma vez, seguindo o pai de Chatham para Devoriport, viviam num cottage à beira dos descampados. Na sucessão de casas que Rafael tinha conhecido, esta singularizava-se com particular nitidez, porque depois desta casa entrara na escola. A Mamã ainda estava com eles e o Papá voltava todas as noites. Poldros bravos acercavam-se do murete de calhau ao fundo do jardim, e tinha nevado. Mesmo junto das traseiras do cottage havia uma espécie de telheiro e podia ficar ali estendido a ver a sarabanda dos flocos. Podia ver a mancha húmida onde cada floco morria, fixar o primeiro floco que caíra sem derreter e até observar como todo o chão embranquecia. Podia voltar a casa, quando sentia frio, e espreitar por detrás da vidraça, passando a chaleira de cobre muito brunida e o pires com os homenzinhos azuis...

Ao deitar, havia um prato côvado de flocos de aveia com açúcar e nata fresca. E livros ― arrumados na prateleira ao pé da cama, todos inclinados e sempre com dois ou três em cima, deitados, porque ele nunca se dava ao cuidado de os repor no lugar devido. Tinham as folhas reviradas e estavam arranhados. Havia um volume claro, muito lustroso, acerca de Topsy e Mopsy, que nunca leu por ser uma história de duas raparigas; havia outro sobre um mágico, que se lia com uma espécie de terror amarrado, saltando a página vinte e sete com a gravura horrível da aranha; havia ainda outro que falava de homens que tinham desenterrado coisas, coisas egípcias; vinham depois O Livro de Comboios para a Gente Moça, O Livro de Navios para a Gente Moça. Surgiam diante dele vividamente; podia alcançá-los e tocá-los, sentir-lhes o peso e o deslizar lento com que O Livro Gigante para a Gente Moça saía da fila e escorregava...

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Tudo era bom, cheio de bonomia e amizade. O matagal estalava em frente deles. Rapazes precipitavam-se do carreiro com furor selvagem e rasgavam a carne nas lianas, gritando. Rafael viu Jack ser acotovelado e cair. Depois um bicho galopa ao longo do carreiro, vindo sobre ele com presas e um ronco intimidante. Rafael calcula a distância friamente e visa. Com o javali a cinco metros de distância, arremessa a ridícula haste de pau que levava, viu-a acertar no focinho grosso e vibrar um momento. A nota do cerdo muda para um guincho e o animal embrenha-se nas moitas. O carreiro enche-se de novo de rapazes aos gritos, Jack corre e busca no meio do restolho.

― Por aqui. ― Mas ele dá cabo da gente. ― Por aqui, já disse. O porco-montês escamugira-se para bem longe deles. Descobrem outro carreiro paralelo ao primeiro e Jack some-se. Rafael estava cheio de receio, apreensão e orgulho. ― Acertei-lhe! A lança ficou espetada na... Chegavam agora inesperadamente a um grande terreiro, que abria sobre o mar.

Jack círandava sobre a rocha viva e espreitava com ansiedade. ― Fugiu. ― Eu acertei-lhe ― acentua Rafael de novo ― e a lança ficou espetada um

bocado. Sente a necessidade de testemunhas. ― Vocês não viram Maurício faz que sim com a cabeça. ― Eu vi. Deste-lhe mesmo na tromba! Rafael fala, excitado: ― Eu acertei-lhe bem. A lança ficou espetada. Feri-o! Banhava-se ao sol deste

novo respeito e sentia que as caçadas eram, afinal, uma coisa boa. ― Dei-lhe uma coça. A fera era esta! Jack voltava. ― Não era nada a fera. Era um porco-montês. ― Eu acertei-lhe. ― Porque é que não o agarraste? Eu tentei... A voz de Rafael sobe: Mas um

javali! Jack cora subitamente. ― Tu disseste que ele dava cabo da gente. Que é que lhe querias atirar? Porque

não esperaste? Estende o braço. ― Olhem! Mostra o braço esquerdo para que todos possam ver. Na parte de

fora havia um rasgão; era ligeiro, mas sangrava. ― Fez-te isso com as presas. Eu não pude abaixar a minha lança a tempo. A atenção concentra-se em Jack. ― É uma ferida ― declara Simão ― e deves chupar o sangue. Como o

Berengária. Jack chupa. ― Mas eu acertei-lhe ― insiste Rafael com indignação. Acertei-lhe com a

lança, feri-o.

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Procura chamar-lhes a atenção. ― Vinha desarvorado ao longo do carreiro. Eu atiro, assim... Roberto rosna-

lhe. Rafael entra no jogo e riem todos. De momento dão todos pontoadas a Roberto, que finge arremeter.

Jack berra: ― Façam cerco! O círculo fecha e alarga-se. Roberto grita com um terror falso, depois com dor

autêntica. ― Oh! Parem lá com isso! Estão a aleijar! O conto de uma lança cai-lhe nas costas, quando se arroja entre eles. ― Segurem-no! Agarram-no de pés e mãos. Rafael, transportado por uma forte

excitação súbita, arrebata a lança de Érico e põe-se a dar pontoadas a Roberto com ela:

― Matem-no! Matem-no! Num ápice, Roberto desata a gritar e bravejar com um vigor frenético. Jack puxa-lhe pelo cabelo e brande o facão.

Atrás dele está Rogério, lutando por se aproximar. O cântico eleva-se ritualmente, como no final de uma dança ou caçada.

Mata o porco! Corta-lhe as goelas! Mata o porco! Surra-o! Rafael também luta por se aproximar, por obter uma mancheia daquela carne morena e vulnerável. Empolgava-o o desejo de espremer e magoar.

O braço de Jack desce; o círculo arquejante aplaude e simula os guinchos de um porco no estertor. Depois sossegam, esbofados, ouvindo Roberto choramingar assustado. Limpa a cara com um braço sujo e faz um esforço por recuperar a sua condição.

― AI, o meu rabo! Esfrega as nádegas lastimoso. Jack rebola-se por terra: ― Foi uma boa reinação. ― Só uma brincadeira ― comenta Rafael pouco à vontade. Duma vez fiquei

muito maltratado num jogo de rugby. ― Devíamos ter um tambor ― alvitra Maurício. ― Então é que se fazia a

valer. Rafael encara com ele. Como a valer? Não sei. A gente quer uma fogueira, julgo eu, e um tambor,

Assim marchava-se ao rufo do tambor. ― Queremos um porco ― interpõe Rogério ―, como numa caçada, ― Ou alguém que finja ― diz Jack. ― Podia arranjar-se alguém que se

vestisse de porco e depois imitava-o ― não sei se percebes ―, a fingir que me derrubava...

― A gente quer é um porco de verdade ― profere Roberto, palpando as nádegas ―, porque temos de o matar.

― Sirvam-se de um miúdo ― atalha Jack, e todos riem. Rafael senta-se. ― Bom. Desta maneira nunca chegaremos a descobrir o que buscamos. Levantam-se um por um, torcendo os farrapos, que voltam ao lugar devido.

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Rafael encara com Jack: ― Agora, à montanha! ― Não seria melhor ir ter com o Bucha ― sugere Maurício ― antes do

escurecer? Os gêmeos acenam com a cabeça, como se fossem um só: ― Sim, é melhor! Vamos lá amanhã de manhã. Rafael olha mais além e vê o

mar: ― Temos de acender outra fogueira. ― Não tens os óculos do Bucha ― adverte Jack ―, de modo que não podes. ― Então vamos ver se se pode passar pela montanha. Maurício fala numa

hesitação, sem querer parecer medricas. ― E se a fera está lá em cima? Jack brande a lança: ― Matamo-la. O sol parecia menos ardente. Cortou o ar com a lança. ― De que estamos à espera? ― Parece-me ― volve Rafael ― que, se seguirmos ao longo do mar por este

lado, iremos dar ao sítio da queimada e, depois, podemos subir a montanha. Mais uma vez Jack era o guia, levando-os ao longo daquele cegante mar de

sinople, que resfolgava e arfava. Mais uma vez Rafael sonhava, deixando os pés lestos resolverem as

dificuldades do carreiro. Mas aqui os pés pareciam-lhe menos lestos do que antes, pois, em grande parte do caminho, eram forçados a descer à rocha viva na orla do mar, e tinham de prosseguir, apertados entre esta e a luxúria negra da floresta. Havia pequenas falésias a escalar, algumas praticáveis como carreiros, longos atalhos através da rocha, onde tinham de usar pés e mãos. Aqui e além podiam trepar ao rochedo lambuiado pela vaga, saltando sobre poças límpidas que a maré deixara.

Chegaram a um barranco que talhava a estreita fita de costa como um baluarte. Parecia não ter fundo, e espreitaram estarrecidos o desfiladeiro sinistro em que a água gorgolejava. Depois a onda voltava, o barranco refervia diante deles, e a espuma grimpava até às lianas, molhando os rapazes que urravam. Tentaram a mata, mas era densa e entrançada como um ninho de ave. Por fim, tiveram de saltar um por um, esperando que a água se escoasse, e, mesmo assim, alguns dentre eles ficaram ensopados uma segunda vez. Daqui em diante os penedos pareciam tornar-se intransitáveis, de modo que se sentaram durante algum tempo, deixando secar os andrajos e contemplando o contorno nítido dos vagalhões que circulavam tão lentamente ao largo da ilha. Acharam fruta num retiro de avezitas garridas, que adejavam como insectos. Depois Rafael observou-lhes que avançavam muito lentamente. Ele próprio subiu a uma árvore, apartou a copa e viu a cabeçorra da montanha, que lhe pareceu ainda a uma grande distância.

Procuraram, então, apressar-se ao longo dos penhascos e Roberto cortou-se no joelho e viram-se obrigados a reconhecer que deviam percorrer este caminho devagar se quisessem chegar sãos e salvos. De sorte que prosseguiram, depois disto,

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como se estivessem a trepar uma montanha perigosa, até que os penedos se tornaram uma falésia inacessível, vestida de uma seiva impérvia que caía a pique no mar.

Rafael mirava o Sol com ar crítico: O fim da tarde. Em todo o caso, depois da hora do chá. Não me lembro deste

penedo ― confessa Jack descoroçoado. ― Deve ser o bocado da costa que me escapou.

Rafael anuiu com a cabeça: ― Deixem-me pensar. Não tinha agora quaisquer inibições de consciência ao pensar em público, mas tratava as resoluções do dia como um jogo de xadrez. O único problema era que ele nunca faria um bom jogador de xadrez. Pensou nos miúdos e no Bucha.

Imaginava vividamente o quadro do Bucha sozinho, encolhido numa cabana, cujo silêncio seria apenas quebrado por sonidos de pesadelo.

― Não podemos deixar os miúdos sozinhos com o Bucha durante toda a noite. Os outros rapazes não dizem nada, mas quedam-se num círculo a observálo. ― Se voltássemos para trás levaríamos horas. Jack pigarreia e fala numa voz

estranha, tensa: ― E não podemos deixar que aconteça alguma coisa ao Bucha, não é verdade?

Rafael brinca com a ponta suja da lança de Érico nos dentes. ― Se atravessarmos... Olha à sua roda. Alguém tem de atravessar a ilha para ir dizer ao Bucha que só estaremos de

volta à noite. Bill pergunta, incrédulo: ― Sozinho através da mata? Agora? Só podemos dispensar tini. Simão abre caminho até ao cotovelo de Rafael. ― Eu vou, se tu quiseres. Não me importo nada, francamente... Antes que Rafael tivesse tempo de replicar, sorri apressadamente, volta-se e

amarinha para a floresta. Rafael torna a encarar com Jack, vendo-o, pela primeira vez, com fúria: ― Jack... da outra vez tu foste todo o caminho até ao Castelo de Rocha. Jack deita-lhe um olhar rancoroso: ― Fui. ― Chegaste até esta parte da costa... abaixo da montanha, para além. ― Isso. ― E então? ― Topei com um rasto de porco. Estendia-se por léguas e léguas. Rafael faz que sim com a cabeça e aponta para a mata. ― De maneira que o rasto deve estar por aqui. Todos concordaram

sensatamente. ― Pois bem. Vamos abrir caminho até achar o carreiro. Dá um passo e detém-

se. Espera um momento! Aonde vai dar o rasto do porco? À montanha ― responde Jack. ― já te disse. ― Depois, chasqueando: ― Não queres ir à montanha?

Rafael suspira, pressentindo o antagonismo crescente, compreendendo que era assim que Jack sentia, logo que deixava de guiar.

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― Estava a pensar na luz. Senão vamos andar para aí aos baldões. ― Nós íamos à procura da fera. ― já não haverá luz. ― Eu não me importo de ir ― afirma Jack com calor. Eu vou procurá-la, assim

que lá chegarmos. TU, não? Ou queres antes voltar para as cabanas e dizer ao Bucha?

Era agora a vez de Rafael corar, mas fala, sentindo-se desesperar, com a nova compreensão que o Bucha lhe dera:

― Porque me odeias tu? Os rapazes agitam-se, como se alguém tivesse revelado qualquer coisa de indecente. O silêncio prolonga-se.

Rafael, ainda exaltado e ferido, é o primeiro a afastar-se: ― Vamos! guia o caminho e entende que é seu direito desbastar o matagal. Jack fecha a retaguarda, deslocado e sorumbático. O trilho dos porcos era um túnel escuro, pois o Sol tombava rapidamente para a

borda do mundo, e, na floresta, não era preciso ir longe para descobrir sombras. O carreiro era largo e bem batido e eles seguiam por ali a passo estugado. Depois o tecto de folhas acabou e os rapazes estacaram, respirando fundo, olhando para as raras estrelas que picavam o azul à volta da cabeçorra da montanha.

― Lá está ela. Os rapazes entreolhavam-se duvidosos. Rafael toma uma resolução:

― Vamos direitos ao terraço e subimo-la amanhã. Eles murmuraram o seu acordo, mas Jack encontrava-se junto dele:

― Se tens medo, claro... Rafael volta-se para o outro: ― Quem foi o primeiro no Castelo de Rocha? ― Eu também lá fui. E era de dia. ― Muito bem. Quem quer subir agora à montanha? O silêncio é a única resposta. ― Samuel e Érico? Vocês? ― Devíamos ir ter com o Bucha e dizer-lhe... sim, dizer ao Bucha que... Mas o

Simão já foi! Devíamos dizer ao Bucha ... caso ele... Roberto? Bill? Dirigiam-se agora para o terraço... Não que tivessem medo, evidentemente...

mas estavam fatigados. Rafael volta-se para Jack: ― Como vês! ― Eu vou subir a montanha. As palavras saíram dos lábios de Jack com

despeito, como se fossem uma maldição. Encarou com Rafael, o corpo magro tenso, a lança em riste como se o ameaçasse.

― Vou subir à montanha para procurar a fera... agora mesmo. Logo em seguida o veneno supremo, a palavra casual e amarga: ― Vens? A esta palavra os outros rapazes esquecem a urgência em partir e

voltam para terem uma amostra desta nova rixa de dois espíritos no escuro. A palavra era demasiado boa, demasiado amarga, demasiado feliz como desafio para

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ser repetida. Surpreendeu Rafael em maré de bonorma, de nervos amolecidos com a idéia de regressar à cabana e às águas dormentes e amigas da lagoa.

― Pode ser. Atónito, ouve o som da sua própria voz, fria e casual, de modo que o amargor do chasco de Jack se dilui impotente.

― Se pode ser, muito bem! ― Claro que sim. Jack dá um passo: ― Então... Lado a lado, observados pelos rapazes silenciosos, os dois atacam a

montanha. Rafael pára. ― Nós somos parvos! Porque é que só hão-de ir dois? Se acharmos alguma

coisa, dois não chegam... Veio até ele o tropel de rapazes que se afastavam. Surpreendentemente, um

vulto negro destaca-se contra o traço do mar. ― Rogério? ― Sim. ― Então já somos três. Atacam mais uma vez a encosta da montanha. A

escuridão parece fluir a toda a volta como as águas da maré. Jack, que nada tinha dito, começa a sufocar e a tossir, e uma guinada de vento acaba por engasgar todos três. Os olhos de Rafael turvam-se de lágrimas, cegando-o.

― Cinzas, Estamos à beira da queimada. Os passos deles e a aragem ocasional levantam diabinhos de poeira. Agora, que tornavam a parar, Rafael tem tempo para relembrar como eles eram insensatos. Se não houvesse uma fera ― e era quase certo que não havia ―, nesse caso, tanto melhor; mas, se houvesse alguma coisa no cabeço do monte, de que serviam três rapazes, engolfados pela escuridão e apenas armados de paus?

― Somos parvos! Do negrume sobe a pergunta: ― Farto do vento? Rafael estremece, irritável. Jack tinha culpa de tudo isto. ― Claro que sim. Somos um bom par de trouxas! ― Se não queres continuar ― replica a voz sarcástica eu vou sozinho. Rafael ouve o escárnio e odeia Jack. O ardor da cinza nos olhos, a fadiga, o

temor, enraivecem-no: ― Então vai! Nós esperamos aqui. Faz-se um silêncio: ― Porque é que não vens? Tens medo? Uma mancha no escuro, uma mancha

que era Jack, afirma-se e começa a distanciar-se. ― Bem. Até já! A mancha desvanece-se. Outra toma o seu lugar. Rafael sente

o joelho roçar um objecto duro e abanar um tronco carbonizado, áspero ao tacto. Sente o gume calcinado do que fora a casca vergar sob a joga da perna, e apercebe-se de que Rogério se tinha sentado. Abaixa-se às apalpadelas e busca um lugar junto de Rogério, enquanto o tronco se move no meio das cinzas invisíveis. Rogério, de seu natural pouco comunicativo, não tuge. Não deu opinião sobre a fera, nem a razão por que decidira participar nesta louca expedição. Estava apenas ali sentado e abanava o tronco levemente. Rafael dá-se conta de um ruído rápido, ripado e

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enervante, e compreende que Rogério bate com a sua ridícula vara contra alguma coisa.

De modo que ali ficam sentados: Rogério impenetrável, aos abanões, a rufar a vara, e Rafael enfurecido. À sua volta o céu estava carregadinho de estrelas, menos no sítio onde a montanha furava a escuridão.

Chega-lhes, vindo de cima, um rumor de cascalho rebolado, como se alguém desse pernadas gigantes sobre um pedregal ou cinza. E, de repente, Jack descobre-os, todo trémulo e rouquejando, com uma voz que mal reconhecem ser sua: Vi uma coisa lá no alto!

Ouvem-no embater no tronco, que é violentamente sacudido. Ao fim de um silêncio, murmura:

― Ponham-se à coca. Pode seguir-nos. Um chuveiro de cinza caía sobre eles. Jack senta-se.

― Vi uma coisa bojuda a inchar na montanha. ― Foi só imaginação ― volve Rafael, trémulo ―, porque não há nada com um

bojo que inche. Pelo menos, nenhum ser vivo. Rogério fala; estremecem porque o tinham esquecido. ― Uma rã. Jack ri-se e arrepia-se. ― Qual rã! Havia também um ruído. Uma espécie de "chape-chape". Depois o

bicho inchou. Rafael surpreende-se não tanto com a qualidade da sua voz, que era normal,

mas com a bravata da intenção: ― Vamos lá ver. Pela primeira vez, desde que conhecera Jack, Rafael podia

senti-lo hesitar. ― Agora... ? A sua voz fala por ele: ― Pois claro. Despega-se do tronco e guia o caminho através das cinzas que

farfalham no escuro, e os outros seguem-no. Agora que a sua voz física se calara, a voz interior da razão, e outras vozes

também, faziam-se ouvir. O Bucha chamava-lhe miúdo. Outra voz dizia-lhe que não fosse tolo, e a escuridão e o desesperado empreendimento davam à noite uma espécie de irrealidade na cadeira do dentista.

Quando chegaram à última encosta, Jack e Rogério aproximaram-se, mudando de borrões de tinta para vultos distinguíveis. Por comum assentimento pararam e agacharam-se todos juntos. Por trás deles, no horizonte, havia uma mancha clara no céu, onde, muito em breve, a Lua iria nascer. O vento brame mais uma vez na mata e aconchega-lhes os farrapos ao corpo.

Rafael agita-se: ― Vamos! Avançam a rastejar. Rogério deixa-se atrasar um pouco. Jack e

Rafael vencem juntos a lombada da serra. As planuras cintilantes da lagoa estendiam-se lá em baixo e, mais além, branquejava um longo traço que era o recife. Rogério junta-se aos outros dois.

Jack murmura:

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― Vamos avançar de gatas. Pode ser que esteja a dormir. Rogério e Rafael prosseguem, deixando Jack, desta vez, na retaguarda, apesar de todas as suas palavras de bravura. Chegam à parte rasa do cume, onde a rocha era dura nas mãos e nos joelhos.

Uma criatura com um bojo que inchava. Rafael põe a mão nas cinzas macias e frias da fogueira e sufoca um grito. A mão e o ombro estorcem-se num nó à idéia do contacto indesejado. Verdes lumes de náuseas aparecem por um instante e devoram a escuridão. Rogério jaz atrás dele e a boca de Jack roça-lhe o ouvido:

― Além, onde havia uma clareira na rocha. Uma espécie de bossa... Não vês? No rosto de Rafael sopram as cinzas da fogueira apagada. Não podia ver a

clareira, ou lá o que fosse, porque os lumes verdes brotavam de novo e cresciam, e o cume da montanha deslizava, entortado.

Mais uma vez, à distância, ouve Jack murmurar: ― Medo? Não era tanto medo como uma espécie de paralisia: ali cravado,

imobilizado no alto de uma montanha que mexia e decrescia. Jack afasta-se, Rogério embate em qualquer coisa, e passa adiante, com uma respiração sibilante, às apalpadelas. Ouve-os ciciar:

― Não vês nada? ― Ali... Diante deles, apenas a três ou quatro jardas de distância, erguia-se

uma bossa, como a giba de um rochedo, onde nenhum pedregulho devia haver. Rafael ouve um leve entrechocar de dentes, vindo dalgures, talvez da sua própria boca. Amarra-se com a vontade, funde o medo e o asco num ódio, e levanta-se. Dá dois passos, pesados como chumbo.

Por detrás deles a rodela lunar sobe, liberta do horizonte. Diante deles, qualquer coisa como um símio enorme dormitava, sentado, com a

cabeça entre os joelhos. Depois o vento rumoreja na floresta; há alvoroço no escuro e a criatura ergue a cabeça, estendendo para eles o descalabro de um rosto.

Rafael descobre-se a dar pernadas gigantes no meio das cinzas, ouve como que o tropel e o choro de outras criaturas, e ousa o impossível na ravina negra. A montanha fica deserta, povoada apenas pelos três bordões abandonados e o ser bizarro que cabeceava.

VIII - UMA OFERENDA À ESCURIDÃO O Bucha levanta tristemente os olhos da praia alvacenta, à luz da aurora, para a

montanha escura. ― Tens a certeza? Tens mesmo a certeza? ― Já to disse mais de vinte vezes ― replica Rafael; ― nós vimo-la. Pensas

que estamos a salvo cá em baixo? Como é que eu hei-de saber? De rompão, Rafael

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afasta-se e dá alguns passos ao longo da praia. Jack, ajoelhado, traçava na areia com o indicador qualquer padrão circular.

A voz do Bucha chega até eles, abafada: ― Tens a certeza? Tens mesmo a certeza? ― Vai tu lá ver ― atira Jack com desprezo ― e ficamos livres de boa peça! ― Não sonhes com isso! ― A fera tem dentes ― esclarece Rafael ― e grandes olhos negros. Estremece violentamente. O Bucha tira o único vidro do olho e põe-se a repolir

a superfície. ― Que vamos fazer? Rafael volta-se para o terraço. O búzio rebrilhava no

meio das árvores, uma branca redoma contra a curva do céu onde o Sol iria luzir. Corre os dedos pelo cabelo:

― Não sei. Relembra a fuga em pânico pela ribanceira abaixo. ― Não creio que a gente possa lutar com uma coisa daquele tamanho;

sinceramente, não me parece possível. Nós falamos muito, mas não lutaríamos com um tigre. Escondíamo-nos logo. Até Jack o faria.

Jack continua a olhar para a areia. ― E os meus caçadores? Simão aparece, saindo furtivamente das sombras, da

banda das cabanas. Rafael ignora a pergunta de Jack. Aponta o retalho amarelo que se eleva acima do mar.

― Enquanto há luz nós somos valentes. Mas depois? E agora o bicho está para lá agachado ao pé da fogueira, como se não quisesse que nos salvem...

Torcia as mãos inconscientemente. A sua voz subia de tom. ― De maneira que não podemos ter uma fogueira... Estamos batidos. Uma ponta de oiro espreita acima do mar c., num momento, o céu inteiro

incendeia-se. ― E os meus caçadores? ― Rapazinhos armados com paus. Jack põe-se de pé e afasta-se de rosto

esbraseado. O Bucha encavalita no nariz o que lhe resta dos óculos e fita Rafael: ― Agora fizeste-a bonita! Foste malcriado para os caçadores. ― Oh, cala o bico! Interrompe-os o som do búzio soprado de um modo

inexperiente. Como se fizesse uma serenata ao Sol nascente, Jack continua a soprar até haver

reboliço nas cabanas e os caçadores chegarem ao terraço, seguidos dos miúdos, a choramingar, como agora lhes acontecia tão frequentemente. Rafael ergue-se obedientemente e o Bucha e ele encaminham-se para a grande plataforma.

― Falar! ― exclama Rafael amargamente. ― Falar, falar, falar! Tira o búzio das mãos de Jack. ― Esta reunião... Jack interrompe-o: ― Eu é que a convoquei. ― Se tu a não tivesses convocado, ia eu fazê-lo. Apenas sopraste o búzio. ― Então, e não é para isso? ― Oh, toma lá! Vá!... Fala!

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Rafael atira o búzio para as mãos de Jack e senta-se no tronco. ― Convoquei uma assembléia ― começa Jack ― por vários motivos.

Primeiro, porque, como sabeis, nós vimos a fera. Rastejámos. Estivemos a uns palmos dela. A fera sentou-se e olhou para nós. Não sei o que ela faz. Nem sequer sabemos o que ela é...

― A fera sai do mar... ― Do escuro... ― Das árvores... ― Silêncio! ― impõe Jack. ― Oiçam! A fera está sentada lá no alto, seja ela o

que for... ― Talvez esteja à espera... ― Ou ande à caça... ― Sim, à caça! ― à caça! ― profere Jack. Relembra os seus tremores na mata,

vindos do fundo das idades. ― Sim! A fera é caçadora. Simplesmente... oh, calem a boca! O outro motivo é para esclarecer que a não pudemos matar. A outra coisa é que Rafael disse que os meus caçadores não prestam.

― Eu nunca disse isso! ― Sou eu que tenho o búzio. Rafael pensa que somos cobardes, que fugimos

do porco-montês e da fera. E isto não é tudo. Há como que um suspiro no terraço, como se todos soubessem o que estava

para vir. A voz de Jack continua, trémula, mas resoluta, investindo contra um silêncio em que não encontra adesão.

― Ele é como o Bucha. Diz coisas como o Bucha. Não é um chefe a valer. Jack aconchega o búzio ao peito. ― Ele é um cobarde. Uma pausa e, depois, prossegue: ― No alto da montanha, quando Rogério e eu avançámos... ele ficou para trás. ― Eu também fui! ― Depois. Os dois rapazes mediam-se com o olhar através de cortinas de

cabelo. ― Eu também fui! ― protesta Rafael. ― Depois fugi. Mas tu também fugiste. ― Vá! Chama-me cobarde! Jack volta-se para os caçadores: ― Ele não é um caçador. Nunca nos arranjou carne. Não é um prefeito de

colégio e não sabemos nada dele. Limita-se a dar ordens e espera que nós lhe obedeçamos por nada. Todo este discurso...

― Todo este discurso! ― berra Rafael. ― Discursar, falar! Quem é que quis isto? Quem convocou a reunião?

Jack volta-se, de face abrasada e queixo retraído. Havia rancor nos olhos que fuzilavam sob as sobrancelhas.

― Então, muito bem! ― pronuncia ele no tom de um profundo subentendido carregado de ameaça. ― Muito bem!

Com uma das mãos aconchega o búzio ao peito e, com o indicador, fere o ar: ― Quem é que pensa que Rafael não deve ser o chefe? Olha, cheio de

expectativa, para os rapazes alinhados à sua volta, que tinham encordoado.

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Sob as palmeiras derramava-se um silêncio mortal. ― Quem não queira Rafael para chefe ― propõe Jack vigorosamente ―

levante a mão. O silêncio continua, sem um bafo de respiração, opressivo, cheio de vergonha.

Lentamente a vermelhidão destinge no rosto de Jack, depois volta numa onda dolorosa. Ele passa a língua pelos lábios e inclina a cabeça a um ângulo tal que possa evitar o embaraço de encontrar o olhar de outrem.

― Quantos pensam que... A voz desfalece-lhe. As mãos que seguravam o búzio estremecem. Pigarreia e profere, alto:

― Muito bem! Com grande cuidado, pousa o búzio na relva, aos pés. Do canto dos olhos correm-lhe lágrimas de humilhação.

― Não brinco mais. Não brinco mais com vocês! Muitos rapazes baixavam agora os olhos, mirando a relva ou os pés. Jack pigarreia de novo:

― Eu não quero fazer parte do grupo de Rafael... Contempla os cepos ao seu lado direito, contando os caçadores que tinham sido um coro.

― Vou-me embora sozinho. Ele que apanhe porcos sem a minha ajuda. Quem queira vir comigo, quando eu for caçar, pode acompanhar-me.

Tropeça, ao sair do triângulo, a caminho da ladeira que levava ao areal branco. ― Jack! Jack volta a cabeça e olha para Rafael. Detém-se um momento e,

depois, grita, num tom agudo, enraivecido: ― Não! Salta do terraço e corre ao longo da praia, sem prestar atenção às

lágrimas que lhe rolam dos olhos, grossas como punhos. Rafael observa-o até ele se embrenhar na floresta.

O Bucha estava indignado. ― Eu para aqui a falar, Rafael, e tu sem me ligares... Brandamente, encarando

com o Bucha sem o ver, Rafael diz para consigo: ― Ele há de voltar. Há de voltar ao sol-posto. Olha para o búzio nas mãos do

Bucha. ― O quê? ― Ah, aí está! O Bucha renuncia à tentativa de increpar Rafael. Torna a polir o vidro dos

óculos e volta ao assunto: ― Nós podemos passar sem Jack Merridew. Há outros sem ser ele nesta ilha.

Mas agora temos aqui uma fera, ainda que me custe muito a acreditar, e precisamos de estar perto do terraço. Vai haver menos precisão dele e das suas caçadas. De maneira que podemos decidir o que devemos fazer.

― Não há qualquer saída, Bucha. Não há nada. Durante algum tempo ficam ali sentados no meio dum silêncio deprimente. Depois Simão ergue-se e tira o búzio ao Bucha, que está tão espantado que não se move. Rafael olha para Simão.

― Simão! De que se trata desta vez? Um meio-clamor de chufas levanta-se do círculo e Simão encolhe-se:

― Pensei que se pudesse fazer alguma coisa. Alguma coisa que nós...

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A pressão da assembléia tira-lhe novamente a voz. Busca auxílio e simpatia e escolhe o Bucha. Volta-se a meio-corpo, aconchegando o búzio ao peito moreno.

― Acho que devemos subir à montanha. O círculo estremece de terror. Simão vacila e volta-se para o Bucha, que o mira

com um ar de incompreensão irrisória. ― De que serve ir aonde está a fera, quando Rafael e os outros dois não

puderam fazer nada? Simão murmura a sua resposta. ― Que mais se pode fazer? Feito o discurso, permite que o Bucha lhe tome o

búzio das mãos. Depois retira-se e senta-se tão longe dos outros quanto possível. O Bucha falava agora com mais segurança e com o que os outros teriam podido

reconhecer como prazer, se as circunstâncias não fossem tão sérias. ― Já disse que podíamos passar todos sem uma certa pessoa. Temos agora de

decidir o que se deve fazer. E creio que vos posso dizer desde já o que Rafael irá propor. A coisa mais importante na ilha é o fumo, e não pode haver fumo sem uma fogueira.

Rafael agita-se inquieto. ― Não, Bucha. Não temos uma fogueira. O bicho está sentado lá em cima... e

nós temos de ficar aqui. O Bucha ergue o búzio, como se quisesse dar novo poder às suas palavras: ― Não temos uma fogueira na montanha. Mas porque não fazemos uma

fogueira aqui? Podíamos fazer uma fogueira nesses rochedos. Ou até mesmo na areia. Faz fumo da mesma maneira.

― E verdade! ― Fumo! ― Ao pé da piscina! Os rapazes começam a chalrar. Só o Bucha

podia ter a audácia intelectual de sugerir uma fogueira arredada da montanha. ― De modo que vamos ter aqui uma fogueira ― diz Rafael. Olha à sua volta.

― Podemos fazê-la mesmo aqui, entre a piscina e o terraço. Claro... Pára, franzindo a testa, espremendo o pensamento, rilhando inconscientemente

com os dentes uma falha numa unha. ― Claro que o fumo não se verá tanto, não se verá de tão longe. Mas não

precisamos de nos aproximar da... Os outros acenam a cabeça com perfeita compreensão. Não haveria

necessidade de se aproximarem. ― Vamos fazer a fogueira agora. As grandes idéias são as mais simples. Agora que havia uma tarefa a cumprir trabalhavam com paixão. O Bucha

andava tão cheio de júbilo e de uma liberdade expansiva com a partida de Jack, tão ufano da sua contribuição para o bem da sociedade, que ajudava a buscar lenha.

A lenha que ele procurava encontrava-se à mão, uma árvore tombada na plataforma de que não tinham precisado para a assembléia; mas, para os outros, a santidade daquela esplanada tinha protegido até o que ali era inútil. Então os gêmeos perceberam que teriam uma fogueira perto deles, como um agasalho durante a noite, e isto entusiasmou alguns miúdos que dançavam e batiam palmas.

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A lenha não era tão seca como o combustível de que se tinham servido na montanha. A maior parte apodrecia com a humidade e enxameava de insectos; cepos tinham de ser levantados do solo com cuidado ou ruíam numa poeirada empapada. Pior do que isto era que os rapazes trabalhavam muito perto, a fim de evitarem penetrar na floresta, deitando a mão a qualquer lenha que topassem por terra, por mais enredada que ela estivesse sob a vegetação nova. As abas da mata e a clareira eram familiares, perto do búzio e dos abrigos, e suficientemente acolhedoras à luz do dia. Do que elas se pudessem tornar no escuro ninguém cuidava. Trabalhavam, portanto, com grande energia e alacridade, embora houvesse, à medida que o tempo avançava, um travo de pânico e de histeria nessa jovialidade. Levantaram uma pirâmide de folhas e gravetos, ramadas e cepos, sobre o areal contíguo ao terraço. Pela primeira vez na ilha, o Bucha tirou o único vidro dos óculos, ajoelhou e focou o Sol na direcção das maravalhas.

Em breve se elevou um tecto de fumo e uma tocha de chama amarela. Os miúdos, que tinham visto poucas fogueiras desde a primeira catástrofe,

ficaram vivamente excitados. Dançavam e cantavam e havia um ar de festa, de arraial naquele rancho.

Por fim Rafael cessa de trabalhar e levanta-se, mascarrando o rosto suado com um braço sujo.

― Temos de fazer uma fogueira pequena. Esta é muito grande para poder durar.

O Bucha senta-se cautelosamente na areia e começa a repolir o vidro da lente. ― Podíamos fazer uma experiência. Podíamos ver se descobríamos como

havemos de fazer uma fogueira pequena, só labareda, e depois deitavamos-lhe por cima ramo verde para fazer fumo. Algumas folhas devem ser melhores do que outras.

À medida que o fogo ia morrendo, esmorecia a exaltação. Os miúdos pararam de cantar e dançar, e dispersaram na direcção do mar ou do vergel ou das cabanas.

Rafael deixa-se cair na areia. ― Temos de voltar a fazer uma nova lista daqueles que vão ficar encarregados

da fogueira. ― Se os descobrirmos. Olha à sua volta. Repara então, pela primeira vez, no

reduzido números de crescidos que ali se encontram e compreende o motivo por que o trabalho fora tão árduo. Onde está o Maurício?

O Bucha limpa novamente o vidro. ― Se calhar... Não! Ele não iria assim para a mata sozinho, pois não? Rafael levanta-se de rompão, corre rapidamente em torno da fogueira e detém-

se ao pé do Bucha, passando a mão pelo cabelo. ― Mas precisamos de ter uma lista! Somos tu, eu, Samuel e Érico e... Não ousa olhar para o Bucha, mas fala indiferentemente: ― Onde estão o Bill e o Rogério? O Bucha debruça-se e põe uma acha na fogueira. ― Se calhar foram-se embora. Naturalmente também não querem brincar.

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Rafael senta-se e começa a fazer covinhas na areia. Fica surpreendido por ver que uma delas tinha uma gota de sangue mesmo ao canto. Observa de perto a unha roída e examina o peque no globo de sangue, que se formara no ponto em que o sabugo estava rilhado.

O Bucha continua a falar: ― Vi-os safarem-se quando nós andávamos a apanhar lenha. Seguiram pelo

mesmo caminho por onde ele foi. Rafael termina a inspecção e olha para o ar. O céu, como por simpatia com as grandes mudanças que tinham ocorrido entre

eles, estava diferente naquele dia e tão nebulado que, nalgumas partes, o ar quente parecia branco. O disco do Sol era prata embaciada, como se estivesse mais perto e não fosse tão quente; mas o ar abafava.

― Eles só nos têm feito a vida negra, não é verdade? A voz chegava-lhe de lado, do ombro, e com uma inflexão ansiada:

― Podemos passar bem sem eles. Agora vamos ser muito mais felizes, não é verdade?

Rafael permanece sentado. Os gêmeos aproximam-se, arrastando um grosso madeiro e sorrindo do seu triunfo. Largam-no no meio do brasido, levantando um repuxo de chispas.

― Podemos bem arranjar a nossa vida à parte, pois não podemos? Durante muito tempo, enquanto o madeiro seca, se incendeia e enrubesce com

o calor da chama, Rafael não profere palavra. Não vê o Bucha ir ter com os gêmeos e cochichar com eles, nem que os três rapazes desaparecem juntos na mata.

― Aqui tens. Volta a si com um sobressalto. O Bucha e os outros dois encontram-se junto

dele. Carregam uma abada de fruta. ― Pensei que talvez pudéssemos ter ― inicia o Bucha ―, talvez pudéssemos

ter como que uma festa. Os três rapazes sentam-se. Tinham diante deles um montão de fruta e toda ela

bem madura. Sorriem-se para Rafael quando ele se serve e começa a comer. ― Obrigado! ― exclama ele. Depois num tom de surpresa agradável: ―

Obrigado. ― Podemos bem tratar da nossa vida por nós mesmos! ― comenta o Bucha. ― São eles que não têm juízo e estão sempre a fazer chicana nesta ilha. Vamos

fazer uma fogueira pequena... Rafael lembra-se do que o tinha preocupado: ― Onde está o Simão? ― Não sei. ― Não pensas que tenha ido escalar a montanha? O Bucha solta uma gargalhada ruidosa e serve-se de mais fruta. ― É possível... ― engole de boca cheia. ― O tipo é maluco! Simão atravessa a zona de árvores de fruto, mas hoje os miúdos estão muito

ocupados com a fogueira na praia e, assim, não o perseguem. Avança no meio das lianas até alcançar a grande alfombra, que se entrançava ao pé da clareira, e, uma

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vez aí, rasteja até chegar ao centro. Para além daquele brise-bise de folhas o Sol dardejava e as borboletas dançavam no meio o seu interminável bailado. Ajoelha-se e a frecha do Sol crava-se-lhe na pele. Da outra vez o ar parecia vibrar com o calor, mas agora ameaçava. já lhe escorre o suor do cabelo longo e áspero. Agita-se inquieto, mas não há meio de evitar o sol. De momento sente sede e, depois, ainda mais sede.

Permanece sentado. Lá longe, da outra banda da praia, Jack gesticula diante de um pequeno grupo

de rapazes. Manifesta uma alegria esfuziante. ― Caçar! ― diz ele. Olha-os de cima a baixo. Cada um deles trazia os restos

de um bonezinho negro e já decorrera muito tempo desde que tinham alinhado em duas filas graves e as suas vozes haviam sido o cântico dos anjos.

― Vamos à caça. O chefe serei eu. Fazem que sim com a cabeça e a crise passa facilmente. ― E a respeito... da fera. Eles movem-se e olham a mata. ― Desde já vos digo: não nos vamos maçar com a fera. Com um aceno de

cabeça para eles: ― Esqueceremos a fera. ― Isso mesmo! ― Sim! ― Esqueçamos a fera! Se Jack se surpreendia com tanto fervor, não o mostra. ― E outra coisa: não teremos mais sonhos cá em baixo. Estamos aqui muito

perto do fim da ilha. Assentiram todos apaixonadamente lá dos fundões das suas atormentadas vidas

particulares. ― Agora oiçam. Mais tarde, se calhar, vamos para o Castelo de Rocha. Mas

agora conto chamar o maior número de crescidos para o nosso lado, afastando-os do búzio e de todo aquele carnaval. Matamos um porco e damos uma festa. ― Faz uma pausa e prossegue mais lentamente: ― A respeito da fera. Quando o matarmos, deixaremos uma parte da presa para ela. Assim talvez não nos procure.

Apruma-se abruptamente. ― Toca a andar para a mata. E à caça! Volta-se e desata a caminhar, e, após

um momento, eles seguem-no obedientemente. Espalham-se nervosamente na floresta. Quase ao mesmo tempo, Jack topa com

raízes calcadas e revolvidas, indício de passagem de cerdo, e, logo em seguida, com o rastro ainda fresco. Jack dá sinal ao resto da armada para que guarde silêncio e adianta-se sozinho. Sentia-se feliz e vestia a húmida escuridão da floresta como se fosse a sua velha roupa. Desliza até ao fundo de um talude, onde se apinhavam rochedos e árvores esparsas orlavam a costa.

Os porcos jaziam estiraçados, sacos acogulados de gordura, gozando sensualmente o sombreiro das árvores. Não corria aragem e de nada suspeitavam, e a prática tornara Jack silencioso como as sombras. Retira-se sorrateiro e dá instruções aos seus caçadores alapardados. Começam todos a avançar pé ante pé,

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suando no silêncio e na caloraça. Sob as árvores, uma orelha abanava indolentemente. Um pouco arredada dos outros, mergulhada em profunda beatitude maternal, repousava a porca mais nédia do grupo. Era negra e rósea, e o grande fole do ventre franjava-se de uma fita de bacorinhos, que dormitavam ou se aconchegavam contra ela, refunfunando.

Jack detém-se a umas sete braças da vara amodorrada, e, endireitando o braço, aponta à carne rosada. Olha à sua volta para se certificar de que todos compreenderam e os outros rapazes fazem um cite com a cabeça.

A fila de destras encurva-se num embalanço largo. ― Agora! A vara de porcos sobressalta-se e, à distância de cinco braças

apenas, as ascumas de pau, com ponteiras aguçadas no fogo, voam direitas à presa escolhida. Um leitão, com um grito dementado, precipita-se no mar, rojando pelo chão a farpa de Rogério. A porca solta um guincho estrangulado e cambaleia com duas ascumas cravadas no flanco gordo. Os rapazes adiantam-se em grande alarido, os bacorinhos dispersam-se e a mãe rompe a linha avançada, escamugindo-se pela floresta.

― Atrás dela! Correm ao longo do carreiro, mas a mata era muito escura e emaranhada, de modo que Jack, praguejando, manda fazer alto e reparte-os entre as árvores. Depois cala-se, mas bufa de fúria, e eles sentem-se atemorizados com a sua presença e entreolham-se numa admiração contrafeita. De repente espeta um dedo para o solo:

― Ali... Antes que os outros pudessem examinar a gota de sangue, Jack guina para uma banda, ajuizando de um vestígio, tocando um ramo quebrado. E assim prosseguiu, misteriosamente certo e confiante ― e os caçadores colavam-se-lhe aos calcanhares.

Estaca diante de uma moita. ― Ali. Cercam a moita, mas o animal escapa-se com o ardor de mais outro

dardo no flanco. Aquelas farpas a rojarem o solo eram um empeço, e as pontas aceradas e denteadas um tormento. Embate numa árvore, cravando uma ascuma ainda mais fundo, e, depois disto, qualquer caçador podia segui-la facilmente pelas gotas do sangue muito vermelho.

A tarde rolava, nevoenta e tremenda com o calor húmido; a porca vacilava em frente deles, dessangrando-se louca, e os caçadores perseguiam-na, esposados numa mesma luxúria, excitados pela perseguição lenta e o sangue derramado. Podiam vê-la agora, quase ao alcance da mão, mas ela espinotava num arranco derradeiro e continuava de novo à cabeça. Estavam mesmo detrás dela, quando enfiou para uma clareira larga, onde cresciam florinhas claras e borboletas dançavam à roda no ar cálido e dormente.

Aqui, ferida pela caloraça, a porca abate e os caçadores rolam-lhe em cima. A esta erupção pavorosa de um mundo desconhecido, empolga-a um frenesim. Guincha, esperneia, e o ar enche-se de suor e alarido, de sangue e terror. Rogério corre à roda daquele montão, tenteando a lança sempre que lhe aparece uma mancha de carne. Jack, escarranchado no bicho, golpeia-o, erguendo o facão ao alto. Rogério

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encontra um alvado para a ponta e começa a carregar até se inclinar com todo o peso. A haste penetra, centímetro a centímetro, e os guinchos espavoridos sobem a um grito pungente e agudo.

Depois Jack encontra o gasnete e o sangue quente esguicha-lhe nas mãos. A porca rui, esvaída sob aquele fardo de maldição, e eles sentem-se lerdos e saciados sobre ela. As borboletas continuavam a dançar, preocupadas, no centro da clareira.

Por fim a urgência imediata da matança afrouxa. Os rapazes recuam, e Jack ergue-se, estendendo as mãos.

― Olhem. Sorri e abre os braços, enquanto os rapazes riem das palmas retintas de vermelho. Em seguida Jack segura Maurício e esfrega-lhe aquela massa pastosa no rosto. Rogério começa a descravar a lança e, pela primeira vez, os rapazes reparam nela. Roberto normaliza a situação com uma frase que é recebida ruidosamente.

― Pelo cu acima! ― Ouviste? ― Ouviste o que ele disse? ― Pelo cu acima! Desta vez, Roberto e Maurício desempenham os dois papéis,

e a representação dada por Maurício dos esforços do porco, para evitar a lança ristada, tem tanta pilhéria que os rapazes choram de riso.

Ao cabo, até isto esmorece. Jack começa a limpar ao rochedo as mãos ensanguentadas. Inicia, então, o trabalho no animal e esquarteja-lhe o ventre, recolhendo os sacos quentes do fato colorido, juntando-os num montão sobre a rocha, enquanto os outros o observam. Vai falando à medida que trabalha.

― Levamos a carne para a praia. Eu vou ter com eles ao terraço e convido-os para um churrasco. Dá-nos tempo.

Rogério fala: ― Chefe... ― Hum...! ― Como podemos fazer uma fogueira? Jack inclina-se e mira o cevado de

cenho franzido: ― Uma surtida e roubamos fogo. Têm de ser quatro: tu e o Henrique, o Bill e o

Maurício. Pintamos a cara e vamos às escondidas. Rogério pode deitar a mão a um ramo, enquanto eu digo o que quero. Os outros que levem toda esta tralha para onde nós começámos. É lá que faremos a fogueira. E depois disso...

Cala-se e ergue-se, olhando as sombras sob as árvores. A sua voz baixa de tom, quando torna a falar:

― Deixaremos parte da presa para... Ajoelha de novo e lavra o mortulho com o facão. Os rapazes apinham-se à sua volta. Atira as palavras sobre o ombro, dirigindo-se a Rogério:

― Afiem um pau nas duas extremidades. Depois levanta-se, alçando nas mãos a cabeça do suíno a escorrer sangue.

― Onde está o pau? ― Aqui.

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― Enterrem uma ponta no chão. Oh!... É rocha! Entalem-no nessa fenda. Aí mesmo.

Jack ergue ao alto a cabeça e fixa a garganta mole na ponta aguçada da vara, que a rasga até sair pela boca. Recua, e a cabeça queda-se ali empalada, com um fiozinho de sangue a escorrer ao longo da vara.

Instintivamente os rapazes recuam também: a mata está dormentemente silenciosa. Escutam. O único rumor audível era o zumbido das moscas sobre os cordões esponjosos do fato esparranhado.

Jack diz num sussurro: ― Levem o porco. Maurício e Roberto enfiam a carcaça num chambaril,

levantam o peso morto e endireitam-se, prontos a partir. No silêncio, com o sangue coagulado aos pés, têm subitamente um ar furtivo.

Jack profere em alta voz: ― Esta cabeça é para a fera. É uma oferenda. O silêncio aceitava a oferenda e aterrava-os. A cabeça ali ficava, o olhar

vidrado, um leve esgar, o sangue a enegrecer a dentuça. E, num momento, largam todos a correr, tão depressa quanto podem, através das sombras da floresta para a claridade luminosa da praia.

Simão permanecia onde estava, uma pequena imagem moruna, oculta pela folhagem. Ainda que cerrasse os olhos, a cabeça da porca persistia como uma imagem consecutiva. Os olhos semicerrados embaciavam-se do infinito cinismo da vida adulta. Garantiam a Simão que tudo aquilo fora uma coisa muito mal feita.

― Eu já sabia. Simão repara que tinha falado alto. Abre prontamente os olhos e lá estava a cabeça com um esgar desfrutador no estranho clarão do dia, ignorando as moscas, as tripas esparralhadas, ignorando até a indignidade de se encontrar espetada num pau.

Desvia a vista, correndo a língua pelos lábios secos. ― Uma oferenda à fera. E se a fera não viesse ao engodo? A cabeça ― ele

assim o julga ― parece concordar. Foge! ― diz-lhe a cabeça silenciosamente. ― Volta para junto dos outros. Com efeito, foi apenas uma brincadeira...

porque te preocupas? Estavas mal-disposto: eis tudo! Uma ligeira dor de cabeça, talvez de alguma coisa que comesses. Volta, menino! ― dizia-lhe a cabeça silenciosamente.

Simão olha para cima, sentindo o peso do cabelo molhado, e contempla o céu. Lá no alto, pela primeira vez, havia nuvens, grossas torres bojudas que se esparramavam sobre a ilha, grises e leitosas, iriadas de cobre. As nuvens cavalgavam a terra. Espremiamna, recolhiam dela, momento a momento, aquele calor abafado, atormentador. Até as borboletas tinham abandonado a clareira, onde o espantalho obsceno escorria sangue e sorria sempre com o mesmo esgar. Simão abaixa a cabeça, mantendo cuidadosamente os olhos cerrados, depois protege-os, abrindo a mão em pala sobre a testa. Não havia sombras sob as árvores, mas derramava-se por todo o sítio uma quietude perlada, de sorte que o que era real parecia ilusivo e sem definição. O morouço do fato era um negro borbulhão de

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moscas, que zuniam como uma serra. Ao cabo dum instante, as moscas descobrem Simão. Saciadas, pousam-lhe junto dos regos de suor e bebem. Titilam-lhe as narinas e correm-lhe ao longo das nádegas, como que num jogo de salto ao eixo. Eram negras e de um verde iridiscente, inumeráveis; e, diante de Simão, o Deus das Moscas, espetado na sua vara, mostrava o mesmo esgar. Por fim, Simão renuncia e torna a olhar; vê os dentes alvos e os olhos embaciados, o sangue, e o seu olhar detém-se naquele reconhecimento antigo a que se não pode fugir. Nas têmporas de Simão há um latejar que lhe aguilhoa o cérebro.

Rafael e o Bucha jazem na areia, remirando o fogo e atirando seixinhos indolentemente para o seu coração sem fumo.

― Já ardeu mais um ramo. ― Onde estão o Samuel e o Érico? ― Temos de arranjar mais lenha. Faltam-nos ramos verdes. Rafael suspira e

levanta-se. já não há sombras sob as palmeiras no terraço; apenas aquela luz estranha, que parecia vir um pouco de toda a parte. Lá nas alturas, no meio das nuvens bojudas, estoira um trovão como um tiro de peça.

― Vai chover a potes. ― E a fogueira? Rafael endireita para a floresta e volta com uma larga braçada

de verdura que descarrega na fogueira. O ramalho crepita, as folhas enrolam-se todas e desprende-se delas um fumo amarelado que vai engrossando.

O Bucha, na areia, traçava com os dedos um desenho inútil. O problema é que não temos gente que chegue para uma fogueira. Temos de

tratar o Samuel e o Érico como um só turno. Fazem tudo juntos... ― Claro. ― Mas não está certo. Não percebes? Deviam constituir dois turnos. Rafael considera esta proposta e compreende. Sentia-se vexado por reconhecer

quão pouco ele pensava como um adulto e suspira de novo. A ilha ia de mal a pior. O Bucha contempla a chama. ― Daqui a bocado precisamos de outro ramo verde. Rafael rola na areia. ― Bucha. Que havemos de fazer? ― Temos de continuar sem eles. ― Mas... a fogueira. Franze a testa ao reparar naquela riça branca e negra a que

se tinham reduzido as pontas incomburidas das ramadas. Procura formular o seu pensamento. ― Tenho medo. Vê o Bucha fitá-lo e confunde-se. ― Não da fera. Claro que também tenho medo dela. Mas ninguém percebe a

necessidade do fogo. Se alguém te atirasse uma corda, quando estivesses a afogar-te... Se um médico te dissesse: toma isso, senão morres... Tu, tu fazia-lo, não é verdade?

― Pois claro que sim. ― Porque é que eles não vêem isto? Porque é que eles não percebem? Sem o

fumo para dar sinal nós morreremos aqui! Olha para aquilo! Uma onda de ar cálido tremulava sobre as cinzas, mas sem rasto de fumo.

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― Não conseguimos manter uma fogueira acesa. E eles estão-se minando. E o que é mais... ― Fita intensamente o rosto perlado de suor do Bucha, ― E o que é mais, eu, às vezes, não quero. Imagina que eu fazia como os outros... que também não ligava. O que seria feito de nós?

O Bucha tira os óculos, profundamente perturbado. ― Não sei, Rafael. Temos de continuar, apenas isto. É o que os crescidos

fariam. Rafael, uma vez chegado à hora das confidências, prossegue: ― Bucha, o que é que está errado? O Bucha encara-o, atónito. ― Queres dizer que... ― Não, não é isso... O que é que faz com que tudo se estrague da maneira que

nós vemos? O Bucha esfrega os óculos lentamente e cisma. Quando compreendeu até que

ponto Rafael o aceitava, ruboriza-se-lhe a face de orgulho. ― Não sei, Rafael. Penso que é ele. ― Jack? ― Jack. ― Também se criava um tabu em torno desta palavra. Rafael acena

solenemente com a cabeça. ― Sim ― torna ele ―, suponho que sim. A mata junto deles rebenta numa

alarida. Figuras demoníacas, com as faces pintadas de branco, vermelho e verde, precipitam-se ululando, de modo que os miúdos fogem aos gritos.

Pelo rabo do olho, Rafael vê o Bucha correr. Duas figuras lançam-se sobre a fogueira, e ele prepara-se para se defender, mas os outros agarram dois ramos meio queimados e largam pela praia fora. Os outros três mantêm-se quietos, vigiando Rafael, e ele nota que o mais alto de todos, de coirão em pêlo, fora a pintura e um cinto, era Jack.

Rafael recobra o fôlego e fala: ― Então? Jack ignora-o, levanta a lança e começa em altos brados: ― Ouvi todos vós. Eu e os meus caçadores vivemos ao pé da praia junto de um

grande rochedo. Caçamos, temos festas e divertimo-nos. Se quereis aderir à minha tribo, vinde ver-nos. Talvez vos aceite, ou talvez não.

Faz uma pausa e olha à volta. Sentia-se liberto do pudor e da consciência de si mesmo por detrás da máscara da pintura, e podia encarar sucessivamente com cada um deles. Rafael ajoelhava junto dos restos da fogueira, como um corredor que corta a meta ao sprint, e o seu rosto estava meio oculto pelo cabelo e pela fuligem. Samuel e Érico espreitam juntos, detrás de uma palmeira, na orla da floresta. Um miúdo grita, encolhido e vermelho ao pé da lagoa, e o Bucha queda-se no terraço, agarrando o búzio branco.

― Hoje à noite vamos dar uma festa. Matámos um porco e temos carne. Se quiserdes, podeis vir comer connosco.

Lá no alto, nos desfiladeiros de nuvens, o trovão volta a ribombar.

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Jack e os dois selvagens anónimos, que o acompanham, vacilam, olham para cima e depois recobram ânimo. O miúdo continua a ulular. Jack aguarda alguma coisa. Cochicha urgentemente com os outros.

― Vá... Agora! Os dois selvagens murmuram. Jack fala asperamente: ― Vá! Os dois selvagens entreolham-se, erguem as lanças ao mesmo tempo e

dizem em uníssono: ― O chefe falou. Em seguida os três voltam-se e somem-se na mata. Então

Rafael põe-se de pé, mirando o sítio por onde os três selvagens tinham desaparecido. Samuel e Érico aproximam-se, conversando num sussurro atemorizado.

― Eu pensei que era... e eu fiquei... assustado. O Bucha erguia-se acima deles no terraço, agarrando ainda o búzio. ― Eram o Jack, o Maurício e o Roberto ― explica Rafael. Gostam de reinar,

hein! ― Eu até julguei que ia ter asma. ― Bolas para a tua asma! ― Quando vi Jack tive o pressentimento de que ele ia deitar a mão ao búzio.

Não sei porquê. O grupo de rapazes contempla o búzio muito branco com um respeito

afectuoso. O Bucha deposita-o nas mãos de Rafael e os garotos, vendo o símbolo familiar,

começam a reunir-se. ― Aqui não. Encaminham-se para o terraço, sentindo a necessidade do ritual.

À testa vai Rafael, aconchegando contra o peito o búzio alvo; precede-o logo o Bucha, muito grave, e seguem-no, depois, os gêmeos, os miúdos e os outros.

― Sentem-se todos. Fizeram-nos uma surtida para roubar o fogo. Andam numa reinação pegada. Mas a...

Rafael cala-se, intrigado com a névoa que lhe obscurece a razão. Havia algo que ele queria dizer; depois a névoa desceu.

― Mas a... Fitavam-no gravemente, ainda imperturbados por quaisquer dúvidas sobre a sua suficiência. Rafael afasta as ridículas melenas que lhe caem para os olhos e encara com o Bucha.

― Mas a... oh.... a fogueira! Claro, a fogueira! Começa a rir-se, depois pára e readquire a sua fluência.

― A fogueira é a coisa mais importante. Sem a fogueira não nos poderemos salvar. Eu também gostaria de me pintar como um guerreiro e brincar aos selvagens. Mas é necessário manter a fogueira acesa. A fogueira é a coisa mais importante na ilha, porque porque... Torna a fazer uma pausa e o silêncio carrega-se de dúvida e de incerteza:

O Bucha murmura urgentemente: ― O salvamento. ― Oh! Sim! Sem a fogueira não nos virão salvar. De maneira que precisamos

de ficar ao pé da fogueira e de fazer fumo.

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Quando ele terminou, ninguém se pronuncia. Depois de tantos discursos brilhantes, proferidos naquele mesmo lugar, as observações de Rafael pareciam charras, até mesmo aos miúdos.

Por fim Bill estende as mãos para o búzio. ― Agora que não podemos ter a fogueira lá em cima, porque não podemos tê-la lá, precisamos de mais gente para a manter acesa. Podemos ir à festa e dizer-lhes que o trabalho é demasiado duro só para nós. E, depois, caçar e o resto ― brincar aos selvagens deve ser uma reinação bem gira.

Samuel e Érico pegam no búzio. ― Deve ser bem giro, como disse o Bill... E como ele nos convidou... para uma

festa... carne... a chiar no espeto... eu gostava tanto de comer carne... Rafael levanta a mão: ― Porque não havemos nós de conseguir a carne por nossas mãos? Os gêmeos entreolham-se. Bill responde: ― Não queremos ir para a selva. Rafael faz uma careta. ― Ele vai, como tu sabes. ― Ele é um caçador. São todos caçadores. É diferente. Ninguém fala por um

momento, depois o Bucha murmura para a areia: ― Carne... Os miúdos, sentados, pensavam solenemente na carne e ougavam.

Lá no alto, sobre as suas cabeças, o canhão ribombava de novo e as secas frondes do palmeiral sussurravam numa súbita rajada de vento quente.

― És um menino tonto! ― diz o Deus das Moscas. ― Um menino tonto e ignorante!

Simão move a língua inchada, mas não profere palavra. ― Não estás de acordo? ― pergunta o Deus das Moscas. Não és um menino

pateta? Simão replica-lhe na mesma voz silenciosa. ― Ora bem ― continua o Deus das Moscas. É melhor saíres daqui para ires

brincar com os outros. Pensam que tu és maluco. Tu não queres que Rafael pense que és maluco, pois não? Gostas muito do Rafael, não é verdade? E do Bucha e do Jack?

A cabeça de Simão levanta-se ligeiramente. Os seus olhos não podem desfitar o Deus das Moscas, ali cravado naquele espaço diante de si.

― Que fazes tu aqui sozinho? Não tens medo de mim? Simão estremece. ― Não há ninguém que te ajude. Só eu. E eu sou a Fera. A boca de Simão

esforça-se, exprime palavras audíveis: ― Cabeça de porco num pau! ― Imagina tu! Pensar que a Fera era alguma coisa que se poderia caçar e

matar! ― exclama a cabeça. Durante uns segundos, a mata e todos os outros recantos indefinidamente entrevistos ecoam com a paródia do riso. ― Tu sabias, não é verdade? Eu sou parte de ti próprio. Aproxima-te, aproxima-te ainda mais! Sou eu o motivo por que não se pode ir mais além? Porque é que as coisas são o que são?

O riso torna a arrepiá-lo.

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― Ora vamos! ― volve o Deus das Moscas. ― Vais ter com os outros e esqueçamos tudo isto.

A cabeça de Simão vacila. Os seus olhos estão semicerrados como se imitasse aquela coisa obscena espetada num pau. Pressente que se avizinha um dos seus momentos. O Deus das Moscas expande-se como um balão.

― É uma parvoíce. Sabes perfeitamente bem que só nos encontraremos lá em baixo, de maneira que não tentes fugir!

O corpo de Simão arqueia-se, rígido. O Deus das Moscas fala-lhe com a voz de um professor.

― Esta brincadeira já durou mais do que devia. Meu pobre menino desencaminhado, tu pensas que sabes mais do que eu?

Uma pausa. ― Aviso-te. Vou zangar-me. Vês? Não precisam de ti. Entendes? Vamos ter

uma grande reinação nesta ilha. Entendes? Vamos ter uma grande reinação nesta ilha! De modo que não tentes fazer de esperto comigo, meu pobre menino desencaminhado, ou então...

Simão dá-se conta de que olha para uma bocarra imensa. Lá dentro há negrume, um negrume que se expande.

― Ou então ― prossegue o Deus das Moscas ― acabamos contigo. Vês? O Jack, o Maurício, o Roberto, o Bill, o Bucha e o Rafael. Vês?

Simão era tragado pela bocarra. Cai e perde os sentidos. IX - UMA VISÃO DA MORTE As nuvens continuavam a amontoar-se sobre a ilha. Uma corrente constante de

ar aquecido elevara-se da montanha durante todo o dia e era atirada a centenas de metros de altura. Massas giratórias de gás carregavam a zona estática até o ar estar pronto a explodir. Ao começo da tarde, o Sol sumira-se e um claror bronzeado substituíra a clara luz do dia. Até o ar que ascendia do mar era quente e sem frescura. Esvaíam-se cores da água, das árvores e da superfície rósea dos rochedos, e as nuvens brancas e acastanhadas simulavam aves gigantes no choco. Nada medrava a não ser as moscas que enegreciam o seu Senhor e faziam com que o fato esparramado se parecesse com um montão de carvão rebrilhante.

Até mesmo quando se rompeu um vaso no nariz de Simão e o sangue esguichou elas não o incomodaram, preferindo o cheiro forte do porco.

Com o escorrimento do sangue, o desmaio de Simão mudou para um torpor de sonolência. Ali jazia numa alfombra de lianas, enquanto a noite avançava e o canhão continuava a ribombar. Despertou, por fim, e enxergou indistintamente a terra negra, muito perto do rosto. Não se moveu, mas permaneceu deitado, a cara oblíqua à terra, os olhos baços abertos para o vácuo. Depois voltou-se, encolheu as pernas e

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agarrou-se às lianas para se levantar. Quando as lianas estremeceram, as moscas explodiram numa fuga para longe da massa esparranhenta, com um zunido maldoso, e logo voltaram ao festim. Simão pôs-se de pé. A luz já não era da terra. O Deus das Moscas lá continuava espetado num pau, como uma bola negra.

Simão fala alto para o meio da clareira: ― Que mais se pode fazer? Fica sem resposta. Simão afasta-se da chapada e

rasteja através do emaranhado das lianas até se encontrar na sonoite da floresta. Caminha melancolicamente pelo meio dos troncos, o rosto demudado, o sangue seco ao canto da boca e no queixo. Só às vezes, ao arredar o cordame das lianas e ao orientar-se pelo relevo do solo, só então profere palavras que não alcançam o ar.

Agora as lianas afestoavam o arvoredo com menos freqüência e havia um derrame de luz períada, que se coava, vinda do céu, através da copa das árvores. Era ali o espinhaço da ilha, a terra ligeiramente mais elevada que se estendia por baixo da montanha, onde a floresta deixava de ser selva. Havia ali largos intervalos delimitados por moitas e árvores enormes, e o jeito do terreno guiava-o para o alto, à medida que a mata se abria. Ele rompia, cambaleante, às vezes com fadiga, mas sem Parar jamais. Fugira-lhe dos olhos o brilho habitual e avançava com uma espécie de resolução sombria, como um velho.

Uma rajada de vento fê-lo vacilar e reparou que se encontrava em terreno descoberto, num rochedo, sob um céu acobreado. Sentiu que as pernas lhe fraquejavam e a língua lhe doía constantemente. Quando o vento atingiu o cume da montanha, pôde ver que acontecia qualquer coisa: o adejar de uma estofa azul contra nuvens acastanhadas. Com o corpo fura a ventaneira, que recomeça agora mais rija, vergastando a coma da mata até as árvores vergarem e rugirem. Simão vê uma coisa corcovada, subitamente sentada no alto, e que o observa. Esconde a cara e prossegue.

As moscas também tinham encontrado a figura. O movimento, que simulava a vida, espantava-as por um momento, de modo que formavam uma nuvem escura em torno da cabeça. Em seguida, quando a estofa azul do pára-quedas tombava e a figura corpulenta se dobrava para diante, com um suspiro, as moscas voltavam a pousar mais uma vez.

Simão sente os joelhos roçarem o penedo. Avança de gatas e compreende logo. A riça de fios mostra-lhe a mecânica desta paródia. Examina os alvos ossos nasais, os dentes, as cores da corrupção. Repara no modo impiedoso como as faixas de borracha e lona sustêm o pobre corpo que devia apodrecer aos poucos. Depois o vento torna a soprar e a figura ergue-se, curva-se e exala até ele um bafo nauseabundo. Simão ajoelha-se, fica de gatas e vomita até esvaziar o estômago. Em seguida pega nos fios, liberta-os das pontas dos rochedos e exime a figura à indignidade do vento.

Finalmente, volta-se e contempla as praias lá ao fundo. A fogueira junto do terraço parecia apagada, ou, pelo menos, não lançava fumo.

Mais ao longo do areal, para além do ribeiro e ao pé de um grande lajão de rocha, subia para o céu um delgado fio de fumo.

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Simão, esquecido das moscas, põe as mãos em pala sobre os olhos e perscruta a fumaceira. Até àquela distância lhe era possível ver que a maioria dos rapazes ― talvez todos ― se encontrava ali. Tinham mudado de acampamento para se afastarem da fera.

Ao ter este pensamento, volta-se para a pobre figura quebrada, sentada a seu lado, fedenta. A fera era inofensiva e horrível, e a novidade devia ser comunicada a todos os outros o mais depressa possível.

Inicia a descida da montanha e as pernas vergam-se-lhe sob o peso. Até com o maior cuidado, o mais que podia fazer era cambalear. ― Uma banhoca ― exclama Rafael ― é a única coisa a fazer. O Bucha perscruta o céu acastelado com o seu único vidro. ― Não me agrada a cara daquelas nuvens. Lembras-te de como choveu, logo

que aqui desembarcámos? ― Vai chover outra vez. Rafael mergulha na piscina. Um par de miúdos brinca

na borda, tentando tirar conforto de uma humidade mais quente do que o sangue. O Bucha desencavalita os óculos do nariz, entra impertigadamente na água e torna a pôr os óculos. Rafael vem à superfície e esguicha-lhe um jacto de água.

― Cuidado com os óculos ― adverte o Bucha. ― Se molho o vidro, tenho de sair para o limpar.

Rafael esguicha de novo e falha. Ri-se para o Bucha, esperando que ele se retirasse submissamente, como de costume, e num silêncio agravado. Mas, ao contrário, o Bucha bate a água com as mãos.

― Pára lá com isso! ― grita ele. ― Estás a ouvir? Com fúria atira a água à cara de Rafael.

― Pronto! Pronto! ― contemporiza o outro. ― Não te enxofres! O Bucha cessa de bater a água. ― Tenho uma dor de cabeça. Quem me dera que o ar estivesse mais fresco! ― Que bom seria se chovesse! ― Quem me dera voltar para casa! O Bucha deita-se de costas contra a vertente arenosa da piscina. A água secava

no estômago proeminente. Rafael esguicha para o ar. Podia conjecturar-se o movimento do Sol pelo progresso feito por uma mancha de luz no meio das nuvens. Ajoelha-se na água e olha à sua roda.

― Onde estão os outros? O Bucha ergue-se: ― Talvez estejam nos abrigos. ― Onde estão o Samuel e o Érico? ― E o Bill? O Bucha aponta para além do terraço. ― É para ali que foram. À festa do Jack. ― Deixá-los ir ― diz Rafael com um mal-estar. ― Não me importo. ― Só por um naco de carne...

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― E para caçar ― acrescenta Rafael sensatamente ― e para pretenderem que são uma tribo e pintarem a cara com uma máscara de guerra.

O Bucha agita a areia debaixo de água e não olha para Rafael. ― Talvez fosse bom irmos lá também. Rafael encara com ele rapidamente e o

Bucha cora. ― Quero eu dizer.. para termos a certeza de que não vai acontecer nada. Rafael torna a expelir um esguicho de água. Muito antes de Rafael e o Bucha chegarem à fala com o bando de Jack, podiam

ouvir já o alvoroço da festa. Havia um retalho de relva no sítio em que as palmeiras deixavam uma larga faixa de capim entre a mata e a prata. A um passo da orla do capim estendia-se o areal branco acima da preia-mar, um areal peneirado pelo vento, quente, seco, calcado.

Abaixo dessa orla havia também um rochedo que se alongava em direcção à lagoa. Lá mais para diante estirava-se um breve retalho de areia e vinha, depois, a borda d’água. Uma fogueira ardia no rochedo e gordura escorria da carne assada para o meio de chamas invisíveis. Todos os rapazes da ilha, excepto o Bucha, o Rafael, o Simão e os dois que olhavam pelo animal, se encontravam agrupados no capim. Riam, cantavam, deitavam-se, agachavam-se, ou estavam de pé na relva, agarrando a carne com ambas as mãos. Mas, a julgar pelas caras engorduradas, o festim carnívoro aproximava-se do seu termo, e alguns levavam à boca cascas de coco por onde bebiam. Antes de a festa começar, tinham trazido um grande cepo para o centro do relvão, e Jack, pintado e engrinaldado, sentara-se ali como um ídolo. Havia nacos de carne dispostos em folhas verdes junto dele, e fruta e cascas de coco cheias de água.

O Bucha e o Rafael avizinham-se da borda do relvão, e os rapazes, logo que os viram, calaram-se um a um até ficar só a falar aquele que se encontrava ao pé de Jack. Depois o silêncio também se imiscuiu entre eles e Jack voltou-se para o sítio onde o outro se sentava. Mira-os durante um momento, e o crepitar da fogueira é o único ruído que se sobrepõe à zoada cava do recife. Rafael desvia a vista, e Samuel, pensando que Rafael se voltara acusadoramente para ele, pousa o osso roído com um risinho nervoso. Rafael dá um passo incerto, aponta uma palmeira e murmura qualquer coisa inaudível ao ouvido do Bucha. Riem ambos como Samuel. Levantando os pés bem alto na areia, Rafael começa a passar junto deles. O Bucha tenta assobiar.

Neste instante, os rapazes que cozinhavam ao pé da fogueira içam subitamente um grosso tassalho de carne e correm com ele em direcção à relva. Embatem no Bucha que, ao queimar-se, solta um berro e dança.

Imediatamente, Rafael e a turba dos rapazes sentem-se unidos e aliviados por uma tempestade de gargalhadas.

O Bucha era mais uma vez o centro de irrisão social, de modo que todos se sentiam galhofeiros e normais.

Jack ergue-se e acena com a lança:

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― Dêem-lhes carne. Os rapazes que tinham o espeto oferecem um naco suculento a Rafael e outro ao Bucha. Eles aceitam a dádiva com água na boca. E quedam-se ali de pé, a comer, sob um céu acobreado e tonitruante que vibrava com a aproximação da tempestade.

Jack acena de novo com a lança: ― Comeram todos tanto quanto queriam? Sobrava ainda comida, rechinando

nos espetos de pau, atassalhada em salvas de verdura. Traído pelo estômago, o Bucha atira um osso esburgado para a praia e abaixa-se à espera de mais.

Jack fala de novo, com impaciência: ― Comeram todos tanto quanto queriam? O tom da sua voz insinuava um aviso, dado com o orgulho de proprietário, e os

rapazes comiam apressadamente enquanto era tempo. Vendo que não havia qualquer probabilidade imediata de uma pausa, Jack ergue-se do cepo que lhe servia de trono e ciranda até à orla do relvão. Olha, por detrás da sua máscara pintada, para Rafael e o Bucha. Eles afastam-se, por seu turno, indo para a areia, e Rafael contempla a fogueira enquanto come. Repara, sem compreender, como as chamas eram agora visíveis contra a luz búcla. A noite descia, não com uma beleza calma mas com a ameaça de violência.

Jack pede: ― Dêem-me de beber. Henrique traz-lhe uma concha e ele bebe, observando o

Bucha e Rafael por sobre a borda denteada. O poder pulsava-lhe na turgidez morena dos braços; a autoridade sentara-se-lhe no ombro e garrulava-lhe ao ouvido como um símio.

― Sentem-se todos! Os rapazes dispõem-se em fila diante dele na relva, mas Rafael e o Bucha quedam-se uns palmos mais abaixo, na areia macia. Jack ignora-os por enquanto, volta a máscara para os rapazes sentados e aponta para eles com a lança.

― Quem quer vir para a minha tribo? Rafael faz um movimento súbito que termina num tropeção. Alguns rapazes voltam-se para ele.

― Eu dei-vos comida ― começa Jack ― e os meus caçadores hão de proteger-vos da fera. Quem quer vir para a minha tribo?

― Eu sou o chefe ― interpõe Rafael ―, porque me escolhestes. E deveis manter a fogueira acesa. Agora correis atrás da comida...

― Foi o que tu também fizeste! ― grita Jack. ― Olha para esse osso que tens nas mãos!

Rafael cora violentamente. ― Eu disse que vocês eram caçadores. É o vosso ofício. Jack ignora-o mais uma vez.

― Quem quer vir para a minha tribo e divertir-se? ― Eu sou o chefe! ― protesta Rafael tremulamente. ― E quem vai ocupar-se

da fogueira? E eu tenho o búzio... ― Não o tens aí contigo ― atalha Jack, escarninho. ― Deixaste-o ficar lá

atrás. Estás a ver, esperto? E depois o búzio não conta nesta parte da ilha...

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Um trovão estoira de repente. Em vez do estrondo embaçado há um ponto de choque na explosão.

― O búzio aqui também conta ― brada Rafael ―, aqui e na ilha inteira. ― Então que vamos fazer? Rafael examina as filas de rapazes. Do lado deles

não vem qualquer encorajamento, e desvia o olhar, confuso, banhado em suor. O Bucha murmura-lhe ao ouvido:

― A fogueira... o salvamento. ― Quem quer entrar para a minha tribo? ― Eu quero. ― E eu. ― Eu também. ― Eu vou soprar o búzio ― clama Rafael sem fôlego vou convocar uma

assembléia. ― Não ouviremos nada. O Bucha toca no pulso de Rafael. ― Vamos embora! Vai haver bulha e já tivemos a nossa ração de carne. Há uma viva fulguração de luz além da floresta e o trovão ribomba de novo,

fazendo choramingar um dos miúdos. Grossas bagas de chuva caem no meio deles, levantando um estridor individual onde elas batem.

― Vem aí uma tempestade ― comenta Rafael ― e vamos ter chuva, tal qual como quando cá viemos parar. Quem é esperto, agora, hein?! Onde estão os vossos abrigos? Que ides fazer agora?

Os caçadores olham inquietos para o céu, esquivando-se ao golpe das gotas. Uma onda de desassossego leva-os a torcerem-se e mexerem-se sem sentido. A luz relampejante aumenta de intensidade e o estrondear do trovão torna-se quase insuportável. Os miúdos correm à roda, aos gritos.

Jack salta para o areal: ― Vamos! Toca a dançar! A nossa dança! Corre, tropeçando na areia grossa,

até à clareira de rocha além da fogueira. Entre o clarão dos relâmpagos o ar era negro e medonho, e os rapazes seguem-no num alarido.

Rogério faz de porco, grunhindo e investindo contra Jack, que se lhe esquiva. Os caçadores empunham as lanças, os cozinheiros agarram nos espetos e os outros em achas de lenha. Desenha-se um movimento circular e eleva-se um cântico. Enquanto Rogério mima o terror do porco, os miúdos correm e pulam fora do círculo. O Bucha e Rafael, sob a ameaça do céu, sentem o desejo de tomar parte nesta sociedade dementada, mas, de certo modo, segura. Apraz-lhes tocar os dorsos morenos da vedação que murava o terror e o tornava governável.

― Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! O movimento regularizava-se à medida que o canto perdia a sua primeira

excitação superficial e começava a adquirir o ritmo de uma pulsação forte. Rogério deixa de ser um porco e passa a caçador, de sorte que o centro do círculo se abre num vazio. Alguns miúdos fazem uma roda própria, e os círculos complementares

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giram e giram, como se a repetição conseguisse, por si mesma, alcançar a segurança. Havia ali o compasso e o palpitar de um único organismo.

O céu negro fende-se num rasgão de branco azulado. Instantes depois o estoiro reboa sobre eles, como o estalo de um chicote gigantesco. O cântico sobe numa nota de agonia.

― Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! Agora, do fundo do terror, vem à tona outro desejo, grosso, urgente, cego.

Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! Abre-se de novo sobre eles o rasgão azul e branco e a explosão sulfurosa despenha-se do alto. Os miúdos gritam e tropeçam um pouco em tudo, fugindo da orla da mata, e um deles rompe o círculo dos crescidos com o seu terror.

― A ele! A ele! O círculo torna-se uma ferradura. Alguma coisa rasteja, vinda das bandas da

mata. Avança sombriamente, incerta. A gritaria aguda, que se levanta diante da fera, é como uma dor. A fera tropeça na ferradura.

― Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! O rasgão azul e branco é constante, o ruído insuportável. Simão grita qualquer

coisa acerca de um homem morto num monte. ― Mata a fera! Corta-lhe as goelas! Espalha o sangue! As varas descem e a

boca do novo círculo morde e berra. A fera ajoelha no centro, de braços levantados a cobrir o rosto. Grita contra o ruído abominável alguma coisa sobre um cadáver no monte. A fera escabuja, precipita-se, rompe o cerco e cai sobre o rebordo íngreme do rochedo à borda d’água. E logo a turba grimpa no seu encalço, galga o rochedo, salta sobre a fera berra, derriba, fere e mata. Não há palavras, nem movimentos: só o rascar de garras e o ranger de dentes.

Depois as nuvens escancaram-se e despejam a chuva às catadupas. A água, despenhando-se do cimo da montanha, arrebata folhas e ramalhos das árvores, jorra como uma ducha sobre o fardo que esbraceja na areia.

O fardo desfaz-se num ápice e alguns vultos cambaleantes afastam-se para longe. Só a fera jaz ali quieta, a algumas jardas do mar. Até à chuva podem ver como ela era pequena e o seu sangue já maculava o areal.

Em seguida um vento rijo sopra obliquamente, arremessando cascatas das árvores da floresta. No alto da montanha o pára-quedas enfuna-se e desloca-se, o corpo desliza, fica de pé, dá uma reviravolta, balança através do vasto ar húmido e pisa com pés bambos as franças do arvoredo alto. Caindo, caindo sempre, desce em direcção à praia e os rapazes precipitam-se aos gritos, numa correria, para a escuridão. O pára-quedas impele o corpo para diante, sulcando a lagoa, e empurra-o sobre o recife e leva-o para o mar.

Por volta da meia-noite a chuva cessa e as nuvens dispersam, de modo que o céu é mais uma vez todo semeado de inacreditáveis luzeiros de estrelas. Depois a brisa amaina também e não há mais ruído senão o que vem do pingar e escorrer da água que sai das fendas da rocha e se derrama, de folha em folha, até à terra morena

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da ilha. O ar é fresco, húmido e claro, e agora até morre o murmúrio da água. A fera jaz toda encolhida no areal baço, e as manchas alastram dedo a dedo.

A orla da lagoa torna-se uma estria de fosforescência, que avança pouco a pouco, à medida que sobe a grande vaga da maré. A água clara espelha o céu claro e as brilhantes constelações angulares. A linha de fosforescência engrossa junto dos grãos de areia e dos seixos rolados; abraça cada um deles numa covinha de tensão, depois, de repente, aceita-os, com uma sílaba inaudível, e prossegue.

Ao longo dos baixios, apontados no endireito da praia, a claridade, ao avançar, enche-se de criaturas estranhas, com corpos raiados de luar e olhos de fogo. Aqui e além um seixo maior adere ao seu próprio casulo de ar e reveste-se de um manto de pérolas. A maré grimpa pelo areal lurado da chuva e alisa tudo com um panal de prata. Agora toca a primeira mancha, que revessa o corpo quebrado, e as criaturas estendem uma toalha movediça de luz, quando se aglomeram na borda. A água espraia-se um pouco mais longe e touca de claridade o cabelo áspero de Simão. Os zigomas afilam-se e a curva do ombro torna-se mármore esculpido.

As estranhas criaturas pressurosas, com olhos de fogo e rastos de vapor, atarefam-se em torno da cabeça dele.

O corpo soergue-se uma fracção do centímetro acima da areia e uma bolha de ar escapa-se-lhe da boca com um gorgolejo húmido. Em seguida roda suavemente na água.

Algures, lá longe, na curva escurentada do mundo, o Sol e a Lua puxam, e a fímbria de água no planeta terráqueo apega-se ao bojo de contorno suave, enquanto o âmago sólido vai girando. O grande vagalhão da maré alastra pela ilha e a água engrossa. Brandamente, engrinaldado de curiosas criaturas brilhantes, o corpo de Simão, figura argêntea sob as constelações firmes, voga para o mar largo.

X - O BÚZIO E OS ÓCULOS O Bucha contempla cuidadosamente o vulto que se adianta. Reparava agora

que, às vezes, via mais distintamente se tirava os óculos e mudava a lente única para o outro olho. Mas mesmo através do olho bom, depois do que acontecera, Rafael permanecia iniludivelmente Rafael. Ele vinha agora do lado dos coqueiros, claudicante, sujo, com folhas secas presas ao manhuço do cabelo cor de espiga. Um olho era uma fenda na face inchada, e, no joelho direito, formara-se uma grande crosta. Pára um momento e espreita o vulto que se desenha no terraço.

― Bucha? És tu o único que me resta? ― Há ainda alguns miúdos. ― Esses não contam. Não há crescidos? ― Oh!... Samuel e Érico. Foram à lenha. ― Mais ninguém?

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― Não, que eu saiba! Rafael sobe com cautela para o terraço. A relva áspera era ainda rala no sítio em que a assembléia costumava sentar-se; o alvo búzio frágil rebrilhava ainda junto do assento polido. Rafael senta-se na relva, diante do assento do chefe e do búzio. O Bucha ajoelha-se à sua esquerda e, durante um minuto, pesa o silêncio.

Por fim, Rafael pigarreia e murmura qualquer coisa. O Bucha responde-lhe num sussurro.

― Que dizes? Rafael fala alto: ― Simão. O Bucha não profere palavra, mas acena solenemente com a cabeça.

Permanecem sentados, mirando com vista enfraquecida o assento do chefe e a lagoa faiscante. A luz verde e manchas lustrosas do sol brincavam com os corpos imundos.

Por último, Rafael ergue-se e dirige-se para o búzio. Pega nele com ambas as mãos, como se o acariciasse, e ajoelha, encostando-se ao tronco.

― Bucha. ― Hum! ― Que vamos fazer? O Bucha acena com a cabeça para o búzio. ― Podias... ― Convocar uma assembléia? Rafael ri-se amargamente ao pronunciar a

palavra e o Bucha franze o sobrolho. ― Tu ainda és o chefe. Rafael ri-se de novo. ― És. O nosso chefe. ― Eu tenho o búzio. ― Rafael! Acaba com esse riso! Olha que não é preciso para nada, Rafael! Que

vão pensar os outros? Finalmente Rafael domina-se. Treme. ― Bucha. ― Hum! ― Era o Simão. ― já disseste isso antes. ― Bucha. ― Hum! ― Foi um assassínio. ― Acaba lá com isso! ― impõe o Bucha asperamente. ― De que te serve

falares desse modo? De supetão, põe-se de pé, sobranceiro a Rafael. ― Era escuro. Havia, depois, o diacho daquela... daquela dança. Havia

relâmpagos, trovões e chuva. Estávamos cheios de medo! ― Eu não tinha medo! ― corrige Rafael lentamente. ― Eu estava... eu nem sei

o que é que estava. ― Estávamos com medo! ― protesta o Bucha excitado. Tudo podia acontecer.

Não foi... não foi o que tu disseste.

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Ele gesticulava em busca de uma fórmula. ― Oh, Bucha! A voz de Rafael, cava e magoada, detém os gestos do Bucha,

que se curva e espera. Rafael, acarinhando o búzio, balança-se de trás para diante. ― Não compreendes, Bucha? As coisas que fizemos... ― Talvez ele ainda esteja... ― Não. ― Talvez estivesse apenas a fingir.. A voz do Bucha esmorece à vista do rosto

de Rafael. ― Tu estavas de fora. Fora do círculo. Tu nunca entraste naquilo. Tu não viste

o que nós... o que eles fizeram? Havia repulsa e, ao mesmo tempo, uma espécie de excitação febril na sua voz. ― Tu não viste, Bucha? ― Não vi lá muito bem, não! Eu agora só tenho um olho. já devias saber isso,

Rafael. Rafael continua a balançar o corpo. ― Foi um desastre! ― afirma o Bucha subitamente. ― Foi o que foi. Um

desastre! ― A sua voz, mais uma vez, torna-se aguda. ― Vir assim no escuro... não tinha nada que vir assim a rastejar lá do escuro! Era pírulas! Estava mesmo a pedir que lhe acontecesse uma destas! ― Gesticulava agora com largueza. Foi um desastre!

― Tu não viste o que eles fizeram... ― Olha, Rafael! Temos que esquecer isto. Não nos faz bem nenhum pormonos

a atenazar no caso, percebes? ― Tenho medo. Tenho medo de nós. Quero voltar para casa. Oh, meu Deus,

quem me dera em casa! ― Foi um desastre ― persiste o Bucha teimosamente. ― É o que foi! Ele toca no ombro nu de Rafael, que estremece ao contacto humano. ― Outra coisa, Rafael ― o Bucha olha furtivamente à sua roda, depois

aproxima-se mais ― não reveles que estivemos naquela dança. Nem palavra a Samuel e a Érico.

― Mas nós estávamos lá! Todos nós! O Bucha abana a cabeça. ― Não estivemos até ao fim. Não nos notaram no escuro. Em todo o caso, tu

disseste que eu estava de fora... ― Também eu ― murmura Rafael. ― Eu também estava de fora. O Bucha faz que sim com a cabeça, ansiosamente. ― Isso mesmo. Estávamos de fora. Não fizemos nada, não vimos nada. O Bucha faz uma pausa e, em seguida, prossegue: ― Vamos viver, sozinhos, só nós os quatro... ― Só quatro! Não chegamos para manter uma fogueira acesa. ― Havemos de tentar. Vês? Eu acendi-a. Samuel e Érico aparecem dos lados

da mata, a arrastar um grande madeiro. Abandonam-no ao pé da fogueira e encaminham-se para a piscina. Rafael põe-se de pé, num rompante.

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― Eli! Vocês os dois! Os gêmeos detêm-se um momento, depois continuam a andar.

Vão-se banhar, Rafael. É melhor acabar com isto. Os gêmeos surpreendem-se de ver Rafael. Coram e olham distraidamente para o ar.

― Olá! Tem piada como a gente se encontrou, Rafael. ― Vimos da mata... aonde fomos à lenha para a fogueira... perdemo-nos ontem

à noite. Rafael examina os dedos dos pés. ― Perderam-se depois da... O Bucha limpa a lente. ― Depois da festa ― esclarece Samuel numa voz velada. Érico anui com a

cabeça. ― Sim, depois da festa. ― Viemos embora um pouco mais cedo ― esclarece o Bucha rapidamente ―,

porque estávamos cansados. Foi o que nós fizemos. muito cedo... estávamos muito cansados.

Samuel toca um arranhão na testa e, apressadamente, tira logo a mão. Érico palpa o lábio rachado. ― Sim. Estávamos muito cansados ― repete Samuel ―, de modo que

partimos cedo. Foi boa... O ar carrega-se de um conhecimento indizível. Samuel torce-se todo e, por fim,

escapa-se-lhe a palavra obscena: a dança? A recordação da dança em que nenhum deles tinha tomado parte abala os

quatro rapazes convulsivamente. ― Partimos cedo. Quando Rogério chegou ao esporão de terra que ligava o Castelo de Rocha à

ilha não ficou surpreendido que o interpelassem. Tinha calculado, durante a noite terrível, que encontraria, ao menos, alguns rapazes da tribo, entrincheirados contra os horrores da ilha no lugar mais seguro.

A voz vibrou duramente das alturas, lá onde os penhascos, que iam diminuindo, se equilibravam uns nos outros.

― Alto lá! Quem vem aí? ― Rogério. ― Avança, amigo. Rogério adianta-se. ― Tu podias ver quem eu era. ― O chefe disse que devíamos interrogar toda a gente. Rogério olha para cima. ― Não poderias impedir-me de subir, se eu quisesse. ― Não podia? Sobe e vem cá ver. Rogério trepa pela falésia em forma de

escada. ― Olha para isto. Um madeiro fora entalado sob o pedregulho mais elevado e

outra alavanca posta por debaixo. Roberto apoia-se levemente na alavanca e o pedregulho regouga. Um esforço enérgico teria despenhado a pedra, com um trovão, até à ponta do esporão. Rogério admira a obra.

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― É um chefe a valer, não é verdade? Roberto acena com a cabeça. Vai-nos levar a caçar.

Estica o pescoço na direcção dos abrigos distantes, donde se elevava para o céu um fio de fumo branco. Rogério, sentado mesmo à beira da falésia, olha sombriamente para a ilha enquanto mexe com os dedos num dente solto. Os seus olhos fixam-se no cume da montanha longínqua e Roberto muda de assunto sem resposta.

― Vai bater no Alfredo. ― Para quê? Roberto abana a cabeça com dúvida. ― Não sei. Ele não disse nada. Zangou-se e mandou-nos amarrar o Alfredo.

Tem estado... ― solta uma risadinha de excitação ― tem estado amarrado horas a fio, à espera...

― Mas o chefe não disse porquê? ― Eu não o ouvi. Sentado em cima dos pedregulhos tremendos ao sol tórrido,

Rogério recebe esta notícia como uma iluminação. Acaba de mexer no dente e queda-se ali silencioso, a assimilar as possibilidades da autoridade irresponsável. Depois, sem uma palavra, desce a lomba dos rochedos em direcção à caverna e ao resto da tribo.

O chefe estava ali sentado, nu da cintura para cima, o rosto barrado de branco e vermelho. A tribo fazia um semicírculo diante dele. Ao fundo, Alfredo, ainda amarrado, apesar de ter sido espancado, fungava ruidosamente. Rogério agacha-se no meio dos outros.

― Amanhã ― prossegue o chefe ―, voltamos a caçar. Aponta com a lança para um ou outro selvagem: ― Alguns vão ficar aqui para melhorar a caverna e defender a entrada. Eu levarei comigo alguns caçadores e trarei a carne. Os defensores vigiarão a entrada, a fim de que os outros não se metam cá dentro...

Um selvagem levanta a mão e o chefe volta para ele uma cara sombria e pintada.

― Por que hão-de querer meter-se cá dentro, chefe? O chefe é vago mas severo. ― Hão-de querer fazê-lo. Gostam de estragar o que nós fazemos. De modo que

os vigias da entrada têm de ser cautelosos. E depois... O chefe faz uma pausa. Vêem dardejar um triângulo surpreendentemente róseo,

que lixe passa ao longo dos lábios e torna a desaparecer. ―... e depois a fera pode tentar entrar cá dentro. Lembrem-se de como ela

rastejava... O semicírculo estremece e murmura o seu acordo. ― Veio... disfarçada. Pode voltar de novo, apesar de lhe termos dado a cabeça

da nossa presa para que ela a coma. Portanto, vigiem e estejam atentos! Estanislau ergue o braço acima do rochedo e espeta um dedo interrogativo. ― Que há? ― Mas nós não, não ... ? Encolhe-se todo e olha para baixo.

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― Não! No silêncio que se segue cada selvagem esquiva-se à sua memória individual.

― Não! Como poderíamos nós... matá-la? Meio-aliviados, meio atemorizados pela implicação de terrores subsequentes, os selvagens, mais uma vez, murmuram o seu assentimento.

― De maneira que não se metam à montanha ― declara o chefe solenemente ― e dêem-lhe a cabeça da presa, se forem à caça.

Estanislau espeta novamente o dedo: ― Eu acho que a fera se disfarçou. ― Talvez ― perora o chefe. Apresentava-se agora uma especulação teológica. ― Em todo o caso, o melhor é não a assanharmos. Não podemos imaginar o

que ela é, capaz de fazer. A tribo reconsidera esta afirmação e sente percorrê-la um estremecimento,

como se a fustigasse uma guinada de vento. O chefe repara no efeito das suas palavras e ergue-se abruptamente.

― Mas amanhã vamos à caça e, quando tivermos carne, damos uma festa... Bill levanta a mão: ― Chefe. ― O que é? ― De que nos serviremos para acender a fogueira? O rubor do chefe oculta-se sob a greda branca e vermelha. No silêncio incerto a

tribo derrama uma vez mais o seu murmúrio. Depois o chefe estende a mão ao alto: ― Tiramos o fogo aos outros. Oiçam! Amanhã vamos caçar e teremos carne.

Hoje à noite vou sair com dois caçadores... Quem quer vir? Maurício e Rogério levantam o braço. ― Maurício... ― Sim, chefe! ― Onde é que eles têm a fogueira? ― No mesmo sítio ao pé da rocha. O chefe acena a cabeça. ― Os outros podem deitar-se assim que vier o crepúsculo. Mas nós os três,

Maurício, Rogério e eu, temos trabalho a fazer. Partiremos um pouco antes do pôr-do-sol...

Maurício espeta o dedo no ar: ― Mas que acontecerá, se encontrarmos... ? O chefe despede as objecções com um aceno de mão: ― Seguiremos pela areia. E depois, se ela vier, dançamos a nossa dança mais

uma vez. ― Só nós os três? O murmúrio engrossa novamente e logo esmorece. O Bucha passa os óculos a

Rafael e aguarda que ele lhe devolva a vista. A lenha estava húmida e era a terceira vez que a tinham acendido.

Rafael dá uns passos atrás, falando consigo mesmo.

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― Não queremos outra noite sem fogo. Olha à volta culpadamente para os três rapazes que se quedam ali ao pé. Era

esta a primeira vez que ele admitia a dupla função da fogueira. Decerto uma delas era enviar para o ar uma coluna de fumo, como sinalefa,

mas a outra era a de lhes dar agora lareira e agasalho até adormecerem. Érico sopra a lenha até ela se avermelhar e expedir uma chamazinha. Cresce logo, subindo, uma onda de fumo branco e amarelo. O Bucha recebe os óculos e olha para o fumo com prazer.

― Se, ao menos, pudéssemos construir um aparelho de rádio!... Ou um avião... ―... ou um barco. Rafael explora o seu conhecimento

evanescente do mundo. ― Podíamos ser prisioneiros dos vermelhos. Érico puxa o cabelo para trás. ― Seriam melhores do que... Não nomeia nome de gente e Samuel termina a

frase por ele, acenando com a cabeça ao longo da praia. Rafael lembra-se da figura desajeitada num pára-quedas. ― Ele disse qualquer coisa a respeito de um morto... Cora dolorosamente perante a admissão de que presenciara a dança. Com o

corpo, faz movimentos urgentes para o fumo. ― Vá, não pares! Continua... ― O fumo está cada vez mais ralo. ― Precisamos de mais lenha, nem que esteja molhada. ― A minha asma... A resposta é mecânica. ― Bolas para a tua asma! ― Se eu começo para aí a buscar lenha, a minha asma ainda fica pior. Eu bem

desejaria que assim não fosse, Rafael, mas é como é. Os três rapazes internam-se na mata e recolhem braçadas de lenha velha. E uma vez mais o fumo sobe, amarelo e grosso. ― Vamos comer qualquer coisa. Dirigem-se juntos para as árvores de fruto,

levando as lanças, enchendo a boca apressadamente. Quando saem da floresta, o sol vai no ocaso e só brasas brilham no fogo, sem que houvesse fumo.

― Eu já não posso acartar mais lenha ― queixa-se Érico. Estou estafado. Rafael pigarreia. ― Mantivemos a fogueira acesa lá em cima. ― Lá em cima era pequena, mas esta tem de ser grande. Rafael leva um

fragmento para a fogueira e observa o fumo que ondeia no crepúsculo. Temos de manter isto aceso.

Érico estende-se no solo. ― Estou completamente estafado. E de que serve? ― Érico! ― exclama Rafael numa voz alarmada. ― Não fales assim! Samuel ajoelha ao lado de Érico. ― Bem! De que serve? Rafael tenta lembrar as vantagens com indignação. Havia uma coisa boa acerca do fogo. Uma coisa extraordinariamente boa.

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― Rafael já está farto de vos dizer ― frisa o Bucha, mal-humorado. ― Como virão salvar-nos?

― Claro! Se não fizermos fumo... Agacha-se diante deles na escuridão que se adensa.

― Vocês não compreendem? De que serve estar para aí a desejar rádios e barco?

Estende a mão e torce os dedos num punho cerrado. ― Só há uma coisa que podemos fazer para sair deste sarilho. Qualquer pode

brincar às caçadas, qualquer pode arranjar carne... Olha de rosto para rosto. Depois, no momento de maior paixão e convicção, a

cortina ondula-lhe dentro do crânio e ele esquece o objectivo que visava. Ajoelha-se ali, de punho cerrado, encarando solenemente com um e com outro. Em seguida a cortina desvanece-se.

― Oh, sim! De maneira que temos de fazer fumo, e mais e mais fumo... ― Mas não conseguimos mantê-lo! Olhem para aquilo!

O fogo morria. ― Dois para cuidarem do fogo ― diz Rafael, meio para si mesmo. ― Isto faz

doze horas por dia. ― Já não podemos ir buscar mais lenha, Rafael... no escuro é impossível... à

noite é impossível... ― Podemos acendê-lo todas as manhãs ― alvitra o Bucha. Ninguém vai ver o

fumo no escuro. Samuel faz que sim com a cabeça, vigorosamente. Era diferente quando a fogueira estava... lá em cima. Rafael ergue-se, sentindo-se curiosamente sem defesa ante a escuridão que o

comprometia a toda a volta. ― Deixa-se, então, morrer o fogo por esta noite. Guia o caminho para a primeira cabana, que ainda se aguentava de pé, embora

um pouco abalada. O leito de folhas e maravalhas encontrava-se ali dentro, seco e ruidoso ao tacto. No abrigo ao lado, um miúdo falava no meio do sono. Os quatro crescidos enfiam para a cabana e aconchegam-se sob as folhas. Os gêmeos dormiam juntos e Rafael e o Bucha na outra ponta. Durante algum tempo ouve-se o estalido contínuo e o restolhar das folhas, enquanto buscam comodidade.

― Bucha. ― Há! ― Estás bem? ― SIM. Por fim, salvo uma restolhada ocasional, a choça cai no silêncio. Um rasgão oblongo de escuridão, animado por lentejoulas brilhantes, pende

diante deles e da restinga vem o som cavo da maré. Rafael acomoda-se para o jogo nocturno das suposições...

Supondo que os levavam para Inglaterra num avião a jacto, então, antes da madrugada, aterrariam naquele grande aeródromo de Wiltshire. Seguiriam de automóvel; não, para as coisas serem perfeitas, iriam de comboio todo o caminho até

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Devon e viveriam de novo naquele cottage. Depois, ao fundo do jardim, os poldros selvagens viriam espreitar por cima do muro.

Rafael vira-se com desassossego nas folhas. Dartmoor era selvagem, assim como os poldros. Mas a atracção da vida selvagem desvanecera-se.

O seu espírito desliza para a imagem de uma cidadezinha onde nunca pudesse chegar o estado de selvajaria. Que podia haver de mais seguro do que uma estação de autocarros com as suas rodas e faróis?

E imediatamente Rafael dançava em torno do poste de um candeeiro. Um autocarro saía da estação, um autocarro estranho...

― Rafael! Rafael! ― Que é? ― Não faças tanto barulho... Da escuridão, do outro canto da cabana, vinha um

queixume terrível, e eles agitavam as folhas no seu temor. Samuel e Érico, presos num mesmo abraço, lutavam um com o outro. ― Samuel! Samuel! ― Eli!... Érico! Num momento tudo sossegou. O Bucha cicia brandamente ao ouvido de Rafael. ― Temos de nos tirar desta. ― Que queres tu dizer? ― Temos de nos salvar. pela primeira vez nesse dia, e apesar da escuridão

envolvente, Rafael solta uma risadinha. ― Falo a sério ― murmura o Bucha. ― Se não voltamos depressa, não tardará

muito que não demos em pírulas. Chanfrados. Tarados. Doidos. Rafael afasta dos olhos os fios húmidos do

cabelo. ― Escreve uma carta à tua titi. O Bucha considera esta proposta solenemente. ― Não sei onde ela está agora. E não tenho um envelope nem um selo. E não

há aqui marco postal. Nem carteiro. O êxito deste pequeno chiste esmaga Rafael. O riso torna-se indomável, o

corpo salta-lhe e estorce-se todo. O Bucha increpa-o com dignidade: ― O que eu disse não tem assim tanta

piada... Rafael continua a rir, ainda que lhe doa o peito. Todo aquele estorcer-se tinha-o deixado exausto, e queda-se estendido, esbofado e descoroçoado à espera de novo espasmo. Durante uma destas pausas cai na emboscada do sono.

― ... Rafael! Não tornes a fazer barulho. Cala-te, Rafael... porque... Rafael iça-se nos cotovelos no meio das folhas. Tinha razão para agradecer que o seu sonho fosse interrompido, pois o autocarro aproximara-se mais e distinguia-se melhor...

― Há ... ! Porquê? ― Está calado... e escuta. Rafael deita-se cuidadosamente, acompanhado de

um longo suspiro das folhas. Érico murmura qualquer coisa e depois aquieta-se. A escuridão, exceptuando o rasgão oblongo e inútil de estrelas, era de uma grossura de granito.

― Não consigo ouvir nada.

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― Há qualquer coisa que se mexe lá fora. À cabeça de Rafael sobe um formigueiro. O latejar do sangue afoga tudo o mais e depois serena.

― Continuo a não ouvir nada. ― Escuta a não ouvir nada. ― Escuta. Escuta um momento. Bem clara e enfaticamente, e apenas a uma

jarda ou duas da retaguarda da cabana, estala um ramo. O sangue zune de novo nos ouvidos de Rafael, imagens confusas perseguem-se umas às outras no labirinto do seu espírito. Em torno das choças ronda um composto de tudo isto. Podia sentir a cabeça do Bucha contra o ombro e o apertar convulsivo da sua mão.

― Rafael! Rafael! ― Cala-te e escuta. Desesperadamente, Rafael orava no sentido de que a fera

preferisse os miúdos. Uma voz murmura horrivelmente lá fora. ― Bucha... Bucha ... ! ― Chegou! ― exclama o Bucha num sussurro. verdadeiro! Agarra-se a Rafael e procura ganhar o fôlego. ― Bucha, vem cá para fora. Eu quero ver-te, Bucha. A boca de Rafael cola-se

ao ouvido do Bucha. ― Não digas nada! ― Bucha, onde estás tu, Bucha? Há qualquer coisa que roça contra as traseiras

do abrigo. O Bucha mantém-se um momento silencioso e, de súbito, é acometido de um acesso de asma. Arqueia o dorso e rui no meio das folhas. Rafael afasta-se do Bucha.

Ouve-se um rosnar maldoso à entrada da cabana e o choque de coisas vivas. Alguém tropeça em Rafael e o canto do Bucha torna-se uma complicação de

baques, rosnar de dentes e voar de membros. Rafael bate às cegas. Rola de cambulhada com o que lhe parecia mais uma

dúzia de outros, socando, mordendo, arranhando. Rasgam-no e esbofeteiam-no. Encontra dedos dentro da boca e morde-os. Um punho retira-se, volta como um êmbolo, e a cabana inteira explode num clarão de luz. Rafael guina para o lado sobre um corpo que se torce, e sente no rosto um hálito quente. Começa a esmurrar a boca que se encontra debaixo, usando o punho cerrado como um malho. Bate com uma histeria cada vez mais apaixonada, à medida que a cara lhe foge. Um joelho entala-se-lhe entre as pernas e ele cai de lado, dobrado sobre a sua própria dor, enquanto a luta lhe rola por cima. Depois a choça rui com uma finalidade abafante, e os vultos anónimos esbracejam.

Figuras negras desenvencilham-se dos destroços e escapam-se, até que os gritos dos miúdos e o arfar do Bucha são mais audíveis.

Rafael brada numa voz trémula: ― Todos os miúdos que durmam. Tivemos uma briga com os outros. Agora

durmam. Samuel e Érico aproximam-se a piscar os olhos para Rafael. ― Vocês estão bem?

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― Creio que sim... ―... Deram-me uma coça. ― A mim também. Como está o Bucha? Içam o Bucha do meio dos destroços

e encostam-no a uma árvore. A noite estava fresca e depurada de terror imediato. A respiração do Bucha

torna-se um pouco mais fácil. ― Estás ferido, Bucha? ― Pouco. ― Era Jack e os caçadores ― diz Rafael amargamente. Porque é que nos não

deixam em paz? ― Levaram qualquer coisa para se lembrarem ― acrescenta Samuel. A

honestidade obriga-o a prosseguir: ― Pelo menos tu. Eu atrapalhei-me todo ali no canto.

― Eu dei uma tosa a um deles ― conta Rafael. ― Rebentei-o. Esse não há de querer cá voltar tão depressa.

― Eu também tratei da saúde a um ― volve Érico. ― Quando acordei, estava um gajo a dar-me pontapés na cara. Parece-me que tenho a cara toda cheia de sangue, Rafael. Mas dei cabo dele no fim.

― O que é que tu fizeste? ― Levantei o joelho ― esclarece Érico com orgulho simples e dei-lhe uma

porrada nos tomates. Devias ouvi-lo ganir! Esse também não há de ter pressa em cá voltar. De maneira que não nos saímos mal.

Rafael move-se subitamente no escuro, mas depois ouve Érico mexer na boca. ― Que tens? ― Um dente solto. O Bucha encolhe as pernas. ― Estás melhor, Bucha? ― Pensei que eles queriam o búzio. Rafael desanda pelo areal baço e salta para

o terraço. O búzio rebrilhava ainda junto do assento do chefe. Contempla-o durante um ou dois minutos e vai ter com o Bucha.

― Não levaram o búzio. ― Já sei. Não vieram por causa do búzio. Vieram buscar outra coisa. Rafael, que vou eu fazer agora? Lá longe e ao longo da aduela da praia, três vultos caminham em direcção ao

Castelo de Rocha. Caminham arredados da mata e pela borda d'água. De vez em quando cantam brandamente e, uma vez por outra, fazem o pino até

à estria movediça da fosforescência. O chefe guia-os, a passo firme, exultante com o seu feito. Agora era um chefe de verdade, e movia a lança como se apunhalasse um inimigo invisível. Da sua mão esquerda pendiam os óculos quebrados do Bucha.

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XI - CASTELO DE ROCHA Na friagem breve da alvorada, os quatro rapazes reúnem-se em torno da

mancha negra onde estivera a fogueira, enquanto Rafael se ajoelha e sopra. Cinzas baças, leves como penas, cirandam de um lado para o outro, impelidas pelo seu bafo, mas nenhuma chispa brilha entre elas. Os gêmeos observam ansiosamente e o Bucha queda-se sentado, sem expressão, detrás da muralha luminosa da sua miopia. Rafael continua a soprar até que os ouvidos lhe doem com o esforço, mas a primeira brisa da madrugada tira-lhe a tarefa das mãos e cega-o com cinza. Agacha-se, inclinando-se para trás, pragueja e esfrega a água dos olhos.

― Não vale de nada. Érico olha para ele através da máscara de sangue seco. O Bucha pisca os olhos em direcção a Rafael.

― Claro que não vale de nada, Rafael. Agora não temos fogueira. Rafael aproxima-se e pára a dois passos da cara do Bucha. ― Consegues ver-me? ― Um pouco. Rafael deixa que o vergão inchado da face lhe torne a fechar o

olho. ― Eles têm o nosso fogo. A raiva afia-lhe a voz: ― Roubaram-no! ― Eles são assim ― diz o Bucha. ― A mim cegaram-me. Vês? É assim Jack

Merridew. Convoca uma reunião, Rafael, temos de decidir o que vamos fazer. Uma reunião só para nós? É tudo o que nos resta. Samuel, deixa apoiar-me no

teu braço. Encaminham-se para o terraço. ― Sopra o búzio ― pede o Bucha. ― Sopra tão forte quanto puderes A

floresta reecoa e aves levantam voo, gritando do alto do arvoredo, como naquela primeira manhã há tanto tempo já. A praia encontra-se deserta de ambos os lados. Alguns miúdos saem das cabanas. Rafael senta-se no tronco polido e os outros três quedam-se diante dele. Acena com a cabeça e Samuel e Érico sentam-se à sua direita. Rafael coloca o búzio nas mãos do Bucha, o outro segura cuidadosamente o objecto rebrilhante e pisca os olhos em direcção a Rafael.

― Vá! ― Eu só tenho o búzio para dizer isto. Eu não consigo ver e preciso que me

devolvam os óculos. Têm-se feito coisas horríveis nesta ilha. Eu votei em ti como chefe. Ele é o único que conseguiu fazer alguma coisa. Agora fala tu, Rafael, e diz-nos o que... Ou então...

O Bucha interrompe-se, choramingando. Rafael tira-lhe o búzio quando ele se senta.

― Uma simples fogueira. Supomos que somos capazes de a fazer, não é verdade? Só uma fogueira para que nos vejam e nos salvem. Somos selvagens, ou o quê? Simplesmente, agora não há qualquer sinal que vá para o ar. Podem estar a passar navios. Não vos lembrais de como ele foi caçar e o fogo se apagou, enquanto

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passava um barco? E todos pensam que ele é o melhor como chefe. Depois houve, houve... Também isso foi culpa dele. Se não fosse ele, aquilo nunca teria acontecido. Agora o Bucha não pode ver, e eles vieram pela calada ― a voz de Rafael sobe de tom ―, de noite, no escuro, e roubaram o nosso fogo. Roubaram-no.

Nós estávamos dispostos a dá-lo, se o pedissem. Mas preferiram roubá-lo, e não há qualquer sinal no ar e não nos poderão salvar. Não compreendeis o que eu quero dizer? Nós teríamos dado o fogo, mas roubaram-no. Eu...

Faz uma pausa desajeitada quando a cortina lhe desce sobre o espírito. O Bucha estende as mãos para o búzio: ― Que vamos fazer, Rafael? Isto é apenas falar sem decidir. Eu quero os meus

óculos. ― Estou cá a pensar. Supondo que nós vamos mais ou menos como

costumávamos ser, lavados e penteados... Afinal, nós não somos selvagens e o salvamento não é brincadeira nenhuma...

Abre o olho sobre o papo e encara com os gêmeos: ― Nós podíamos afinar-nos um pouco e depois ir...

― Devíamos levar lanças ― alvitra Samuel. ― Até mesmo o Bucha. ― porque podemos precisar delas.

― Tu não tens o búzio! O Bucha ergue o búzio. ― Podeis levar lanças, se quereis, mas eu não levo. De que serve? Em qualquer

caso tereis de me levar como um cego. Sim, ride-vos. Vá, ride-vos! Estão aqui na ilha esses que se riem de tudo. E que aconteceu?

Que irão pensar os adultos? O pequenino Simão foi assassinado. E havia também aquele outro miúdo que tinha uma mancha na cara. Quem o viu mais desde que nós para cá viemos?

― Bucha! Cala-te um momento! ― Eu tenho o búzio. Vou ter com esse Jack Merridew e dizer-lho, lá isso

VOU. ― Ficarás magoado. ― Que maior mal me pode ele fazer do que o que já fez? Eu lhe direi o que são

as coisas. Deixa-me levar o búzio, Rafael. Eu lhe mostrarei a única coisa que ele não tem.

O Bucha faz uma pausa durante um momento e pisca os olhos à sua roda para os vultos baços. O feitio da antiga assembléia calcada na relva escutava-o.

― Eu vou falar-lhe com este búzio nas mãos. Vou erguê-lo ao alto. Olha, vou eu dizer, tu és mais forte do que eu e não tens asma.

Tu podes ver, vou eu dizer, e dos dois olhos. Mas eu não te peço que me devolvas os óculos como um favor. Não te peço que sejas um tipo às direitas, vou eu dizer, não lá porque tu sejas forte, mas porque o que é de direito é de direito. Dá-me os óculos, vou eu dizer; tens de mos dar!

O Bucha termina, afogueado e trémulo. Passa o búzio rapidamente para as mãos de Rafael, como se estivesse com pressa de se libertar dele, e enxuga as

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lágrimas nos olhos. O lume verde que neles brilha é de brandura, e o búzio jaz aos pés de Rafael, frágil e alvo. Uma simples gota de água, que escorrera dos dedos do Bucha, rebrilha agora na curva delicada como uma estrela.

Finalmente, Rafael senta-se direito e alinha o cabelo. Muito bem. Quero eu dizer: podes tentar, se o desejas. Vamos contigo. ― Estará pintado ― adverte Samuel timidamente. ― Sabes como ele é... não

nos ligará meia... se ele se irrita, estamos prontos... Rafael franze o sobrolho na direcção de Samuel. Lembra-se vagamente de qualquer coisa que Simão lhe dissera uma vez ao pé dos rochedos.

― Não sejas parvo! ― exclama ele. E depois acrescenta rapidamente: ― Vamos!

Oferece o búzio ao Bucha, que cora desta vez com orgulho. ― Tu é que tens de o levar. ― Quando estivermos prontos eu levo-o... O Bucha procura no espírito as palavras que melhor pudessem exprimir a sua

vontade de levar o búzio contra todos os riscos. ― Eu não me importo. Ficarei muito contente, Rafael, mas tereis de me guiar. Rafael torna a pousar o búzio no tronco reluzente. ― É melhor comermos, e depois aprontamo-nos. Encaminham-se para as

devastadas árvores de fruto. Ao Bucha têm de lhe servir a comida, e uma parte descobre-a ele pelo tacto. Enquanto comem, Rafael pensa na tarde.

― Será tudo como antes. Iremos lavar-nos. Samuel engole de um trago e protesta: ― Mas nós banhamo-nos todos os dias! Rafael olha para os objectos de imundície que tem diante de si e suspira.

― Devíamos pentear-nos. Mas o cabelo está demasiado comprido. ― Eu tenho ainda um par de peúgas que deixei na cabana afirma Érico. ―

Podíamos enfiá-las na cabeça como bonés, ou coisa parecida. ― Talvez se pudesse arranjar qualquer coisa ― alvitra o Bucha ― para atar o

cabelo atrás. ― Como uma menina! ― Não. Claro que não! Érico faz um gesto de expectativa. ― Mas eles estarão todos pintados! Sabeis como é... Os outros anuem com a

cabeça. Compreendiam demasiado bem a libertação selvagem que dava a pintura ocultadora.

― Pois nós não iremos pintados ― declara Rafael ―, porque não somos selvagens.

Samuel e Érico entreolham-se. ― Em todo o caso... Rafael berra: ― Nada de pintura! Tenta lembrar-se. ― Fumo ― diz ele ―, fumo é o que nós queremos. Volta-se com ferocidade

para os gêmeos. ― Eu disse "fumo"! Temos de ter fumo. Há um silêncio, com excepção do

zumbido multitudinário das abelhas. Por fim, o Bucha fala com afaBilldade.

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― Claro que sim. Porque o fumo é um sinal e não nos poderão salvar se não tivermos fumo.

― Isso já eu sabia! ― grita Rafael. Deslaça o braço do Bucha. ― Estarás tu a insinuar... ? ― Estou apenas a repetir o que tu sempre disseste ― acrescenta o Bucha

pressurosamente. ― Pensei por um momento... ― Eu não! ― replica Rafael em alta voz. ― Tenho sempre isso presente. Não me tinha esquecido. O Bucha acena com a cabeça, propiciatório: ― Tu és o chefe, Rafael. Tu lembras-te de tudo. ― Eu não me tinha esquecido. ― Claro que não. Os gêmeos examinavam Rafael com curiosidade, como se o vissem pela

primeira vez. Partiram ao longo da praia numa pequena coluna. Rafael ia à cabeça, coxeando

um pouco, com a lança pousada no ombro. Via as coisas parcialmente através da tremulina da caloraça no areal faiscante e do seu próprio cabelo comprido e do rosto magoado.

Atrás seguiam os gêmeos, agora ligeiramente preocupados mas cheios de uma insaciável vitalidade. Falavam pouco e arrastavam pelo chão o conto das lanças de pau, pois o Bucha descobrira que, olhando para baixo e pondo a mão em pala sobre a vista cansada do sol, podia ver suficientemente estas pontas a moverem-se na areia. Caminhava, portanto, entre os dois trilhos riscados pelas lanças, transportando o búzio cuidadosamente entre as mãos.

Os rapazes formavam um pequeno grupo compacto que se deslocava no areal, quatro sombras como chapas que dançavam e se misturavam debaixo deles. Não havia qualquer vestígio da tempestade e a praia tinha sido completamente varrida, como uma lâmina areada. O céu e a montanha encontravam-se a uma distância imensa, rebrilhantes sob o calor, e o recife subia com a miragem, flutuando numa espécie de lagoa de prata a meio-caminho do céu.

Passaram o sítio onde a tribo dançara. Gravetos carbonizados jaziam ainda nos rochedos, onde a chuva os empapara, mas a areia à borda d’água tornara-se lisa. Passaram o local em silêncio.

Ninguém duvidava de que a tribo se encontraria no Castelo de Rocha e, quando o avistaram, detiveram-se de comum acordo. A riça mais espessa da ilha, uma maranha de raizedo retorcido, verde, negro e impenetrável, estendia-se à esquerda, e uma relva alta ondulava diante deles.

Agora Rafael avançava. Lá estava a relva calcada, onde todos se tinham deitado, quando ele fizera a sua

batida. Lá estava o esporão de terra, o rebordo que debruava o rochedo, e lá estavam, no alto, os pináculos vermelhos.

Samuel toca-lhe no braço: Fumo.

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Havia uma delgada mancha de fumo que ondeava no ar do outro lado do rochedo.

― Algum fogo... Não creio. Rafael volta-se: ― Porque nos escondemos? Fura o biombo de relva e encaminha-se para o

pequeno espaço descoberto que levava ao estreito esporão. ― Vocês os dois seguem atrás de mim. Eu vou à frente, depois o Bucha um

pouco atrás. Tenham as lanças prontas. O Bucha piscava os olhos ansiosamente para o véu luminoso que se estendia

entre ele e o mundo. ― Não há perigo? Não há aí um precipício? Eu ouço o mar. ― Mantém-te ao pé de mim. Rafael avança ao longo do esporão. Dá um pontapé numa pedra que salta para

a água. Em seguida o mar retira-se com um sorvo, revelando um quadrado vermelho e limoso, a quarenta pés ao fundo do lado esquerdo de Rafael.

― Estou aqui seguro? ― inquire trémula a voz do Bucha. Sinto-me tão mal... Da altura em frente deles, dos pináculos, vem um brado súbito, e depois uma

imitação de grito de guerra, a que responde uma dúzia de vozes detrás do rochedo. ― Dá-me o búzio e está quieto. ― Alto lá! Quem vem aí? Rafael atira a cabeça para trás e enxerga o rosto

moreno de Rogério lá no alto. ― Podes muito bem ver quem eu sou! ― berra ele. ― Não faças de parvo! Leva o búzio aos lábios e sopra. Assomam selvagens, pintados a ponto de ser

impossível reconhecê-los, seguindo a curva do rebordo em direcção ao esporão. Trazem lanças e dispõem-se a defender a entrada.

Rafael continua a soprar e ignora os terrores do Bucha. Rogério grita: ― Tu toma cuidado, hein! Por fim Rafael descola os lábios e faz uma pausa

para tomar fôlego. As suas palavras saem de jacto, mas audíveis: convocar uma assembléia.

Os selvagens que guardam o paço murmuram entre si, mas não fazem qualquer movimento. Rafael avança meia dúzia de passos. Uma voz sussurra urgentemente por trás dele:

― Não me deixes, Rafael. ― Ajoelha-te ― diz Rafael de lado ― e espera aqui até que eu volte. Queda-se a meio caminho ao longo do esporão e fita intensamente os

selvagens. Desinibidos pela pintura, tinham atado o cabelo atrás e estavam mais à vontade do que ele. Rafael decide que também deve atar o cabelo atrás. Na verdade sente-se quase capaz de lhes dizer que esperem e de o fazer ali mesmo; mas isso era impossível. Os selvagens soltam risadinhas e um deles faz um gesto na direcção de Rafael com a lança. Em cima, Rogério tira as mãos da alavanca e debruça-se para ver o que se passa. Os rapazes no esporão encontram-se na mancha da sua própria sombra, reduzidos a cabeças desmazeladas. O Bucha agacha-se, de dorso informe como um saco.

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― Vou convocar uma assembléia. Silêncio. Rogério apanha uma pedrinha e atira-a rente aos gêmeos, falhando propositadamente a pontaria. Eles sobressaltam-se e Samuel mantém-se com dificuldade no lugar. Uma fonte de poder oculta pulsa no corpo de Rogério.

Rafael fala de novo em voz alta: ― Vou convocar uma assembléia. Corre os olhos por eles. ― Onde está o Jack Os rapazes agitam-se e consultam-se entre si. Uma cara

mascarada fala com a voz de Roberto: ― Anda à caça. E disse-nos que não te deixássemos entrar. ― Eu vim por causa do fogo ― explica Rafael ― e por causa dos óculos do

Bucha. O grupo move-se e gargalhadas retinem abertamente, gargalhadas leves,

excitadas, que ecoam pelas quebradas dos rochedos altos. Uma voz fala por detrás de Rafael: ― Que é que tu queres? Os gêmeos passam Rafael como uma seta e colocam-se entre ele e a entrada. Ele volta-se rapidamente. Jack, identificável pela personalidade e a cabeleira

ruiva, avançava das bandas da mata. Postado de cada lado acompanhava-o um caçador acocorado. Estavam todos três mascarados de negro e verde. Atrás deles, o corpo decapitado e estripado de uma porca jazia na relva, onde o tinham abandonado.

O Bucha lamuria: ― Rafael! Não me deixes! Com uma cautela caricata abraça o rochedo,

alagando-se contra ele acima do mar sugador. As casquinadas dos selvagens sobem a um grito de irrisão.

Jack berra acima do vozerio: ― Vai-te embora, Rafael. Não saias da tua ponta. Esta é a parte que me

pertence e à minha tribo. Deixa-me em paz. Os apupos morrem. ― Tu pinaste os óculos ao Bucha ― acusa Rafael, ofegante, Tens de os

devolver. ― Tenho de os devolver? Quem mo manda? A irritação de Rafael rebenta: ― Mando eu! Votaste em mim como chefe, Não ouviste o búzio? Fizeste uma

malandrice... nós ter-te-íamos dado o fogo se no-lo pedisses... O sangue afluía-lhe ao rosto e o olho esmurrado palpitava. ― Poderias ter fogo sempre que quisesses. Mas não! Preferiste ir às

escondidas, como um ladrão, e roubaste os óculos ao Bucha. ― Diz isso outra vez. ― Ladrão! Ladrão! O Bucha grita: ― Rafael! Cuidado comigo! Jack precipita-se e visa uma pontoada ao peito de

Rafael com a lança. Rafael pressente a posição da arma, ao ver o braço de Jack, e desvia o golpe com o conto da sua. Depois roda a ponta e colhe a orelha de Jack

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com um farpão. Defrontam-se peito a peito, arfando com raiva, empurrando-se, de olhar coruscante.

― Quem é ladrão? ― Tu e só tu! Jack desembaraça-se e brande a lança contra Rafael. Por comum acordo

usavam agora as lanças como sabres, não ousando mais atingirem-se com os pontos letais. O golpe embate com a lança de Rafael e escorrega, para lhe cair, numa agonia, sobre os dedos. Em seguida apartam-se mais uma vez, de posições invertidas, Jack na direcção do Castelo de Rocha e Rafael do lado de fora, no caminho da ilha.

Os dois rapazes arfavam violentamente. ― Ora vá... ― Vem, se és capaz... Crescem truculentos um para o outro, mas mantendo-se

à distância de luta. ― Vá, vem, e verás o que comes! ― Vem cá tu... O Bucha, agarrado ao terreno, esforça-se por atrair a atenção de Rafael. Este aproxima-se, curva-se e mantém Jack sob um olhar vigilante. ― Rafael, lembra-te do motivo por que aqui vieste. O fogo e os meus óculos. Rafael anui com a cabeça. Deslassa os músculos retesados para a luta, queda-se

à vontade e fixa no solo o conto da lança. Jack observa-o, imperscrutável sob a pintura. Rafael mira os pináculos e olha depois para o grupo de selvagens.

― Escutai. Nós viemos aqui dizer isto. Primeiro tendes de devolver os óculos ao Bucha. Sem eles, não pode ver. Não é a maneira de brincar...

A tribo dos selvagens pintados solta outra risadinha e o espírito de Rafael vacila. Puxa o cabelo atrás e examina a máscara verde e negra que tem perante si, tentando reconstituir os traços de Jack.

O Bucha murmura: ― E o fogo. ― Ah, sim! E depois o fogo. Torno a dizer o mesmo. Tenho estado a dizer isto

desde que aqui caímos. Estende a lança e aponta para os selvagens. ― A vossa única esperança é manter uma fogueira a arder como sinal,

enquanto houver luz. Poderá acontecer, então, que um navio repare no fumo e nos venha salvar, levando-nos para Inglaterra. Mas sem esse fumo teremos de esperar até que algum barco chegue aqui por acaso. Poderemos esperar anos, até sermos velhos...

A gargalhada trémula, argentina e irreal dos selvagens derrama-se e perde-se no eco. Uma rajada de fúria abala Rafael. A sua voz trai a emoção:

― Mas vós não compreendeis, ó palermas mascarados? Samuel, Érico, o Bucha e eu, nós não bastamos. Tentámos manter a fogueira acesa, mas não conseguimos. E, entretanto, vós ides brincar às caçadas...

Aponta além deles para onde o fio de fumo se dispersava no ar perlado.

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― Olhai para aquilo! Chamais àquilo um fogo para dar sinal? Aquilo é um fogo de cozinha. Agora ides comer e depois não haverá mais fumo. Mas não compreendeis? Quem sabe se haverá um barco lá fora...

Detém-se, derrotado pelo silêncio e pelo anonimato pintado do grupo que guarda a entrada. O chefe abre a boca rosada e dirige-se a Samuel e Érico, que se encontram entre ele e a tribo.

― Vocês os dois. Recuem. Ninguém lhe responde. Os gêmeos, intrigados, entreolham-se, ao passo que o Bucha, serenado pela cessação da violência, se ergue cautelosamente. Jack olha de soslaio para Rafael e depois para os gêmeos.

― Agarrem-nos! Ninguém se move. Jack berra irritado: ― Agarrem-nos! Já disse. O grupo pintado move-se, nervosa e desajeitadamente, em torno de Samuel e

Érico. O riso argentino dispersa-se uma vez mais. Samuel e Érico protestam do âmago da civilização: Oh, não! ―... francamente! Arrancam-lhes as lanças. ― Amarrem-nos! Rafael grita desesperançado contra a máscara verdenegra. ― Jack! ― Vá! Amarrem-nos! Agora o grupo pintado sentia a alteridade de Samuel e

Érico, sentia o poder nas suas próprias mãos. Derrubam os gêmeos desajeitadamente e com excitação. Jack estava inspirado. Sabia que Rafael tentaria socorrê-los. Ataca por trás num círculo zumbente e Rafael mal consegue parar o golpe. Para além deles a tribo e os gêmeos eram um montão gritante a contorcer-se. O Bucha agacha-se de novo. Depois os gêmeos ficam prostrados no solo, atónitos, e a tribo faz um cerco à sua roda. Jack volta-se para Rafael e fala entre dentes: ― Vês? Eles fazem o que eu quiser.

Volta novamente o silêncio. Os gêmeos estão prostrados, imperitamente amarrados, e a tribo observa Rafael para ver o que ele faria. Ele conta-os sob a franja, vislumbra o fogo ineficiente.

A sua irritação estala. Berra para Jack: ― Tu és uma besta, um canalha e um ladrão! Investe contra o outro. Jack, sabendo que esta era a crise, investe também. Embatem um no outro e

saltam. Jack gira o punho e apanha Rafael na orelha. Rafael fere Jack no estômago e fá-lo grunhir. Depois encaram novamente um com o outro, arquejantes e furiosos, mas sem se enervarem com a respectiva ferocidade. Dão-se conta do anuído que constitui o pano de fundo desta luta, o encorajamento constante e agudo da tribo por detrás deles.

A voz do Bucha chega até Rafael: ― Deixa-me falar. Queda-se na poeirada da luta, e, quando a tribo viu a sua

intenção, o encorajamento agudo mudou para um apupo constante. O Bucha ergue o búzio e os apupos diminuem um pouco, depois sobem de

novo com vigor. ― Eu tenho o búzio! Ele brada: ― já vos disse: eu tenho o búzio!

Surpreendentemente faz-se então um silêncio.

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A tribo tem curiosidade em ouvir que coisa divertida ele terá para dizer. Um silêncio e uma pausa; mas, no silêncio, um curioso ruído no ar perto da

cabeça de Rafael. Ele presta-lhe meia atenção, e aí vinha ele de novo: um débil zunido. Alguém atirava pedras: era Rogério que as lançava, pousando a outra mão na alavanca. A seus pés, Rafael era um manhuço de cabelo e o Bucha um saco de gordura.

― Tenho que dizer isto. Procedeis como um bando de garotos. As vaias sobem de tom e morrem de novo, quando o Bucha levanta o búzio

mágico e alvo. ― Que vale mais: ser um bando de pretos mascarados, como vós sois, ou ser

sensato como Rafael? Um alto clamor eleva-se do meio dos selvagens. O Bucha grita de novo: ― Que é melhor: ter um regulamento e chegar a acordo, ou andar a caçar e a

matar? De novo o clamor e o zunido. Rafael grita contra a vozearia: ― Que é melhor: lei e salvamento, ou caçadas e desordem? Agora Jack

também berrava e Rafael já não se podia fazer ouvir. Jack encostara-se à tribo e todos eles eram um sólido magote de ameaça com as lanças ristadas. Desenhava-se a intenção de um ataque; preparavam-se para isso e o esporão seria varrido. Rafael enfrenta-os a pé firme, ligeiramente inclinado para um lado, a lança pronta. Junto dele estava o Bucha, segurando ainda o talismã, a frágil e rebrilhante beleza do búzio.

A tempestade de ruído fustiga-os, um encantamento de ódio. Acima deles, Rogério, com um sentido de abandono delirante, carrega com todo o peso na alavanca.

Rafael ouve o pedregulho enorme muito antes de o ver. Dá-se conta de um solavanco na terra, que se alteia contra ele, pela vibração na planta dos pés e pelo estardalhaço de pedras soltas no alto da falésia. Depois a coisa monstruosa e vermelha salta de través pelo esporão e ele alaga-se ao solo, enquanto a tribo guincha.

O pedregulho desfere, do queixo ao joelho, um golpe fulminante no Bucha: o búzio explode em milhares de alvas estilhas e deixa de existir. O Bucha, sem proferir palavra, sem tempo sequer para um gemido, voa pelo ar à desbanda do pedregulho, virando-se no trajecto.

O pedregulho ressalta duas vezes e perde-se na mata. O Bucha cai de uma altura de quarenta pés e estatela-se de costas naquele quadrado, no rochedo vermelho, do mar. A cabeça racha e sai dela uma massa avermelhada.

Os braços e pernas do Bucha torcem-se um pouco, como um porco ao morrer. Depois o mar gorgoleja de novo num lento e longo suspiro, a água referve alva e rosada sobre o rochedo, e, quando se retrai, num novo sorvo, o corpo do Bucha tinha desaparecido.

Desta vez o silêncio é completo. Os lábios de Rafael formam uma palavra mas não articulam qualquer som.

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De súbito, Jack salta do meio da tribo e começa a gritar violentamente: ― Vês? Vês? É isto o que tu apanhas! Era o que eu dizia! já não há tribo para

ti! O búzio foi-se... Corre para diante, agachando-se: ― Sou eu o chefe! Maldosamente, com intenção declarada, arremessa a lança

contra Rafael. A ponta rasga-lhe a pele e a carne acima das costelas, depois resvala de farpão e tomba na água. Rafael cambaleia, sentindo não dor mas pânico, e a tribo, agora em grita com o chefe, começa a avançar. Outra lança, uma arqueada, que não voaria direito, passa-lhe diante da cara, e outra, ainda, vem do alto, onde Rogério se encontrava. Os gêmeos jazem ocultos por detrás da tribo e anônimos carões de diabos enxameiam o esporão. Rafael volta-se e corre.

Uma grulhada enorme, como a das gaivotas, levanta-se atrás dele. Obedece a um instinto que não sabia possuir e guina para um lado, para fora da clareira, de modo que as lanças se espalham. Vê o corpo sem cabeça da porca e salta a tempo. Rompe pelo meio da folhagem e de pequenos ramos, e a floresta encobre-o.

O chefe pára ao pé da porca, volta-se e ergue as mãos: ― Para trás! Para trás! Para o forte. Agora a tribo regressa ruidosamente para o

esporão, onde Rogério se lhes junta. O chefe interpela-o irritado: ― Porque não estás de vigia? Rogério encara com ele gravemente: ― Acabo de descer.. O horror do carrasco paira à sua volta. O chefe não profere mais uma palavra,

mas olha para baixo, para Samuel e Érico. ― Vocês têm de entrar para a tribo. ― Larga-me... ―... e a mim. O chefe arrebata uma das poucas lanças que restam e pica as costelas de

Samuel. ― Que queres tu dizer com isso, hein?! ― pergunta o chefe ferozmente. ― Que quer dizer isso de vir para aqui com lanças? Que quer dizer isso de não

querer entrar para a minha tribo? As picadelas tornam-se rítmicas. Samuel grita. ― Não é essa a maneira. Rogério passa rente ao chefe, não o empurrando com

o ombro por um triz. Os gritos cessam e Samuel e Érico olham para cima com terror. Rogério avança para eles como o detentor de uma autoridade sem nome.

XII - O GRITO DOS CAÇADORES Rafael jaz alapardado numa moita sem saber o que há-de fazer às suas feridas.

A carne magoada cobre alguns centímetros de diâmetro acima das costelas do lado direito, com um vergão inchado e sangrento onde a lança o atingira. Tem o cabelo

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sujo e enredado como as gavinhas de uma trepadeira. Tem o corpo todo arranhado e magoado devido à fuga pela floresta. Na altura em que a respiração se normaliza, já calculara que o banho a essas feridas teria de esperar. Como poderia ouvir pés descalços se estivesse a chapinhar na água? Como poderia estar seguro ao pé do riacho ou no areal escampado?

Rafael escuta. Não estava, efectivamente, muito longe do Castelo de Rocha, e, durante o primeiro pânico, pensara que ouvia ruídos de perseguição.

Mas os caçadores tinham feito apenas uma incursão até à orla da verdura, talvez para recuperar lanças, e depois haviam-se escapado para o rochedo soalhento, como se os aterrorizasse a escuridão sob a folhagem. Chegara mesmo a enxergar um deles, todo barrado de castanho, preto e vermelho, e supusera que fosse o Bill1. Mas, na verdade, pensara Rafael, aquele não era o Bill. Era um selvagem, cuja figura recusava fundir-se com a daquele retrato antigo de um rapazinho de camisa e calções.

A tarde agonizava; as manchas circulares da luz do Sol moviam-se constantemente sobre frondes verdes e a fibra cor de chocolate, mas nenhum ruído vinha do outro lado do rochedo. Por último, Rafael sai do meio dos fetos, rastejando como uma minhoca, e esgueira-se até à borda daquele matagal impenetrável que entestava com a ponta de terra em feitio de esporão. Espreita com elaborada cautela por entre as ramadas, em direcção à borda, e pode ver o Roberto sentado de guarda no alto da falésia. Na mão esquerda empunhava uma lança e, com a direita, atirava ao ar um seixinho que tornava a apanhar. Detrás dele elevava-se uma grossa coluna de fumo, de modo que as narinas de Rafael farejam e a boca enche-se-lhe de água. Limpa o nariz e a boca às costas da mão e, pela primeira vez desde manhã, sente fome. A tribo devia estar sentada em torno do porco desventrado, observando a gordura a escorrer e a arder no meio das cinzas. Deviam estar concentrados.

Um outro, irreconhecível, aparece ao pé do Roberto e dá-lhe qualquer coisa, depois volta-se e some-se por detrás do rochedo. Roberto pousa a lança ao lado, no rochedo, e começa a roer qualquer coisa entre as mãos erguidas. Era evidente que a festa começara e o vigia tinha recebido o seu quinhão.

Rafael reconhece que, por enquanto, estaria salvo. Coxeia entre as árvores de fruto, atraído pela idéia do sustento miserável, mas amargado com a lembrança da festa. Uma festa hoje, outra amanhã...

Argumenta consigo mesmo e sem convicção que o deixariam em paz, que talvez o tomassem como um fora-da-lei. Mas, depois, voltava-lhe de novo o fatal conhecimento irracional. O búzio partido e as mortes do Bucha e do Simão pairam sobre a ilha como um vapor. Estes selvagens pintados haviam de ir cada vez mais longe. Existia, depois, aquela ligação indefinível entre ele e o Jack, que, por conseguinte, o não deixaria em paz, nunca.

Detém-se, ralado de sol, segurando um ramalho, preparado a esquivar-se por debaixo dele. Um espasmo de terror fá-lo estremecer e grita em voz alta:

― Não. Não são tão maus como isso. Foi um desastre. Baixa a cabeça sob o ramo, corre desajeitadamente, depois pára e escuta.

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Desemboca no pomar devastado numa área de muitos hectares e come com avidez. Vê dois garotos e, não tendo idéia da sua própria aparência, não entende por que motivo eles gritam e fogem.

Depois de comer encaminha-se para a praia. Os raios do Sol obliquavam agora para as palmeiras ao pé da cabana destruída. Lá estavam o terraço e a piscina. A melhor coisa a fazer era ignorar aquele sentimento no coração, pesado como chumbo, e confiar no bom senso deles, no seu perfeito juízo com que voltaria a claridade do dia. Agora que a tribo se tinha alimentado, a melhor coisa a fazer era tentar mais uma vez. E, de qualquer modo, ele não podia passar ali toda a noite numa choça vazia junto do palmar. A pele arrepia-se-lhe e tirita ao sol da tarde. Sem fogo, sem fumo, sem salvamento. Volta-se e coxeia de novo através da floresta em direcção à extremidade da ilha, que é o reino de Jack.

Os raios oblíquos do Sol perdiam-se no meio das ramadas. Por fim, chega a uma clareira na mata, onde a rocha impedia o crescimento de vegetação. Era agora uma lagoa de sombras, e Rafael ia quase a estender-se por detrás de uma árvore, quando viu qualquer coisa erecta no centro. Mas depois repara que o rosto branco era osso e que a caveira do porco lhe arreganhava os dentes do alto de um pau. Avança devagar para o meio da clareira, onde a caveira, que rebrilhava com a alvura que tinha sido outrora a do búzio, parecia escarnecer dele cinicamente. Uma formiga inquiridora explorava uma das órbitas, mas, salvo ela, aquilo não tinha vida.

Ou era que tinha? Pequenas agulhas de sensação percorrem-lhe a espinha de cima abaixo. Queda-se ali, a caveira mais ou menos ao nível do rosto, e aparta o cabelo com ambas as mãos. Os dentes arreganhados, as órbitas vazias pareciam sustentar o seu olhar magistralmente e sem esforço.

O que era aquilo? A caveira fitava Rafael como alguém que sabe todas as respostas e as não revela. Apodera-se dele um medo doentio e raiva.

Com ferocidade bate na coisa imunda que o defronta e que sobe e desce como um brinquedo, tornando sempre, arreganhando ainda os dentes, de sorte que ele zurze-a e grita-lhe o seu nojo. Em seguida passa a língua pelos nós dos dedos magoados e mira o pau descoberto, pois a caveira jaz por terra, fendida em duas partes, com um arreganho de uma braça de largo. Arranca da fenda o pau fremente e empunha-o como uma lança, posta entre ele e os cacos de brancura. Depois recua, de rosto voltado para a caveira que jaz ali num arreganho para o céu.

Quando o clarão verde se esvai do horizonte e a noite se estende por completo, Rafael regressa ao matagal em frente do Castelo de Rocha. Espreitando, consegue ver que o alto ainda continuava ocupado, e que, quem lá estava, empunhava uma lança. Ajoelha na sombra e sente amargamente o seu Isolamento. É certo que os outros eram selvagens, mas eram seres humanos, e aproximavam-se os temores cheios de ciladas da noite profunda.

Rafael emite, de leve, um queixume. Embora cansado, não pode repousar e cair num abismo de sono com receio da tribo. Não seria possível dirigir-se com ousadia para o forte e dizer: "Trago paz", rir levianamente e dormir com os outros? Pretender que eles eram ainda rapazinhos, rapazinhos do liceu que diziam "Sim, senhor

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doutor!", e traziam boné? A claridade do dia poderia responder sim, mas a escuridão e os horrores da morte diziam não. Ali deitado no escuro sabia que era um proscrito.

Claro que eu é que tive Juízo. Esfrega o queixo no braço, aspirando o odor acre a sal e suor e o ranço da sujidade. Para a esquerda, as ondas do oceano arfavam, sugavam o rochedo e referviam, depois, sobre ele.

Ruídos vinham do outro lado do Castelo de Rocha. Escutando cuidadosamente e furtando o espírito ao embalo do mar, Rafael podia distinguir um ritmo familiar.

Mata a fera! Corta-lhe o pescoço! Espalha o sangue! A tribo dançava. Algures, na outra banda daquela parede rochosa, havia um círculo negro, um

fogo vermelhejante e carne. Estariam a saborear comida e o conchego da segurança. Um ruído mais perto, ao alcance da mão, fá-lo estremecer. Selvagens trepavam

ao Castelo de Rocha, mesmo até ao cocuruto, e podia ouvir vozes. Adianta-se algumas jardas e, sorrateiro, vê no alto do rochedo um vulto que se

move e alarga. Havia apenas dois rapazes na ilha que se moviam ou falavam assim. Rafael pousa a cabeça nos braços e aceita este novo facto como uma ferida. Samuel e Érico faziam agora parte da tribo. Guardavam o Castelo de Rocha

contra ele. Não tinha ensejo de os livrar para formar uma tribo fora-da-lei, do outro lado da ilha. Samuel e Érico eram selvagens como os outros; o Bucha morrera e o búzio estava feito em estilhas.

Por último a guarda retira-se. Os dois vigias que ficam, pouco mais parecem do que uma negra extensão do rochedo. Uma estrela lucila por trás deles e é momentaneamente eclipsada por um movimento qualquer.

Rafael avança como um cego, tacteando o caminho sobre a superfície desigual. À sua direita havia léguas de uma água indefinida, e o oceano, inquieto, estendia-se à sua esquerda, tão aterrador como a boca de um poço. A cada minuto a água arfava à volta do rochedo da morte e florejava num campo de alvura. Rafael rasteja até sentir o rebordo da entrada bem firme, dentro da palma da mão. Os vigias encontram-se imediatamente acima e ele pode ver a ponta de uma lança projectada no rochedo.

Chama brandamente: ― Samuel! Érico!... Não obtém resposta. Para que a voz os alcance, tem de

falar mais alto, e isso sobressaltaria essas criaturas listradas e inimigas na sua festança ao pé do fogo. Cerra os dentes e começa a trepar, descobrindo as pegas pelo tacto. A vara, que tinha sustentado uma caveira, embaraça-o, mas não quer apartar-se da sua única arma. Está quase ao nível dos gêmeos, quando torna a falar:

― Samuel! Érico!... Ouve um grito e uma restolhada no rochedo. Os gêmeos, agarrados um ao outro, tartamudeavam qualquer coisa.

― Sou eu, Rafael. Aterrado com a idéia de que eles pudessem desarvorar e dar alarme, iça-se até mostrar a cabeça e os ombros. Abaixo do sovaco, via o florejar luminoso em torno do rochedo.

― Sou só eu. Rafael. Por último eles curvam-se e espreitam-lhe o rosto. ― Nós pensámos que era... não sabíamos o que era... nós pensámos...

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Vem-lhes à memória a sua nova e vergonhosa lealdade. Érico cala-se, mas Samuel tenta cumprir o seu dever.

― Tens de te ir embora, Rafael. Agora vai-te embora... Agita a lança e ensaia ferocidade.

― Gira daqui para fora. Não ouves? Érico acena a cabeça em assentimento e fere o ar com a lança. Rafael apoia-se nos braços e não parte.

― Eu vim ver-vos. A sua voz engrossara. Doía-lhe agora a garganta, embora ela não estivesse ferida.

― Eu vim ver-vos... Palavras não podiam exprimir a negra mágoa destas coisas. Cala-se, enquanto as estrelas lucilantes se derramam e dançam em todos os sentidos.

Samuel remexe-se, incómodo: ― Francamente, Rafael, é melhor que te vás embora. Rafael encara de novo

com eles. ― Mas vocês não estão pintados. Como podem... ? Se houvesse luz... Se houvesse luz, a vergonha queimá-los-ia ao admitirem tais coisas. Mas a noite era negra. Érico fala por sua vez, e os gêmeos começam o seu

discurso aririfónico: Tens de te ir embora porque não é seguro... ―... eles obrigaram-nos. Feriram-

nos ... Quem? O Jack? Oh, não ... ― Curvam-se e baixam a voz: ― Põe-te a andar, Rafael... é uma tribo ... forçaram-nos... não podíamos fazer

nada... Quando Rafael fala de novo, a sua voz é baixa e parece faltar-lhe o fôlego. ― Mas que é que eu fiz? Eu gostava dele... e queria que nos salvassem... Mais uma vez as estrelas se esparzem no céu. Érico abana a cabeça com

severidade. ― Escuta, Rafael. O bom senso já não importa. Isso acabou... ― já não

interessa que tu sejas o chefe... ... tens de te ir embora para teu bem. ― O chefe e o Rogério... ―... sim, o Rogério... ― Odeiam-te, Rafael. Vão liquidar-te. ― Vão dar-te caça amanhã. ― Mas porquê? ― Não sei. E Rafael, Jack, o chefe, diz que será perigoso... ― ... e teremos de estar atentos e arremessar as nossas lanças, como se faz a

um porco. ― Vamo-nos espalhar numa grande linha através da ilha... partiremos numa

avançada desta ponta... até te encontrarmos. ― Temos de dar sinal, assim. Érico levanta a cabeça e consegue reproduzir uma débil ululação, batendo na

boca aberta. Depois deita uma olhadela rápida para trás, nervosamente. Assim... mas, claro, será mais alto. Mas eu não fiz nada ― murmura Rafael

urgentemente. Eu só quis manter uma fogueira acesa! Faz uma pausa momentânea,

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pensando miseramente no dia seguinte. Ocorre-lhe um assunto de uma importância esmagadora.

― E vocês, que vão ... ? Não consegue ser preciso, de início, mas, depois, o medo e a solidão aguilhoam-no.

― Que vão vocês fazer quando me descobrirem? Os gêmeos calam-se. Lá no fundo, o rochedo da morte florejava mais uma vez.

― Que vão eles... Oh, meu Deus, que fome! O rochedo erecto como uma torre parece girar-lhe debaixo dos pés. ― Bem... que...? Os gêmeos respondem à sua pergunta indirectamente: ―

Agora tens de te ir embora, Rafael. ― Para teu bem. ― Mantém-te afastado. O mais longe que puderes. ― Vocês não querem vir comigo Três... sempre tínhamos uma safa. Após um momento de silêncio, Samuel fala numa voz estrangulada: ― Tu não conheces o Rogério. É um horror! E o chefe... são ambos...

horríveis... o Rogério, só por si... Os dois rapazes ficam siderados. Alguém vem ao seu encontro das bandas da

tribo. ― Ele vem ver se nós estamos de guarda. Depressa, Rafael! Quando se

preparava para escorregar ao longo da falésia, Rafael agarra-se à última vantagem que poderia conseguir deste encontro.

― Eu vou esconder-me aqui perto, naquele matagal lá em baixo ― murmura ele. ― Distraiam-nos dali. Nunca imaginarão que eu estou aqui ao pé...

Os passos ainda ressoam a uma certa distância. ― Samuel... eu estarei lá bem, não é verdade? Os gêmeos tornam a calar-se. ― Toma! ― diz Samuel subitamente. ― Leva isto... Rafael sente que ele lhe

passa um naco de carne e agarra-o. ― Mas que vão vocês fazer quando me apanharem? Silêncio em cima. As suas

próprias palavras parecem-lhe tolas. Desce ao longo do rochedo. ― Que vão vocês fazer .. ? Do alto do rochedo vem a réplica incompreensível: ― O Rogério aguçou uma vara nas duas pontas. O Rogério aguçou uma vara nas duas pontas. Rafael busca dar um sentido à

frase, mas não consegue. Usa todos os palavrões de que se lembra, num acesso de ira, logo desvanecida num bocejo. Quanto tempo poderia passar sem dormir? Ansiava por uma cama e lençóis, mas aqui a única brancura era a lactescência, lentamente derramada, luminosa em torno do rochedo lá ao fundo de uma altura de quarenta pés donde o Bucha tinha caído. O Bucha estava em toda a parte, estava naquele esporão de terra e tornara-se terrível na escuridão e na morte. Se o Bucha voltasse agora do meio das águas com o crânio fendido... Rafael choraminga e boceja como um miúdo. A vara na sua mão torna-se uma muleta a que se ampara.

Em seguida fica novamente tenso. Vozes sobem de tom no topo do Castelo de Rocha. Samuel e Érico altercavam com alguém. Mas a moita de fetos e a relva

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encontravam-se perto. Aquele seria o seu fojo, a sua toca, ali mesmo ao pé do matagal que lhe serviria de esconderijo para o dia seguinte.

Aqui ― e as suas mãos tocavam a relva ― aqui estava um lugar para passar a noite, não muito longe da tribo, de maneira que, se os horrores do sobrenatural emergissem, poderia misturar-se, ao menos por enquanto, com seres humanos, ainda que isso significasse...

Significasse o quê? Uma vara aguçada nas duas pontas. Que havia naquilo? Eles tinham atirado lanças e falhado; todas menos uma. Talvez falhassem também para a próxima.

Agacha-se no meio da relva alta, lembra-se da carne que Samuel lhe tinha dado e começa a rilhá-la vorazmente. Enquanto come, ouve novos ruídos ― gritos de dor que partem de Samuel e Érico, gritos de pânico, vozes coléricas. Que significava aquilo? Alguém se encontrava em dificuldades, sem ser ele, pois, ao menos, um dos gêmeos levava para tabaco. Depois as vozes perdem-se ao longo do rochedo e ele deixa de pensar neles. Apalpa o matagal com as mãos e, adossadas a ele, acha frescas e delicadas frondes. Aqui estava, pois, o covil para a noite. Ao primeiro alvor da manhã enfiaria para o matagal, trataria de se entalar entre dois pés do raizame e de se anichar tão profunda-mente que só ali pudesse chegar alguém que rastejasse como ele; e aquele que lá chegasse seria picado. Ficaria ali sentado, os batedores passariam ao largo, o cordão ondula-ria, ululando ao longo da ilha, e ele estaria livre.

Ajeita-se entre os fetos, cavando um túnel. Pousa a vara ao lado e aconchega-se na escuridão. Teria que despertar ao primeiro alvor da manhã, a fim de enganar os selvagens, e não se dá conta de como o sono vem rapidamente e o arremessa pela escura ladeira interior.

Desperta antes de abrir os olhos, escutando um ruído que se aproxima. Descerra um olho, dá com um torrão a um centímetro ou mais do rosto e crava nele os dedos. A luz coa-se através dos fetos. Mal tem tempo para compreender que haviam passado os pesadelos da queda e da morte, velhos como o tempo, e que a manhã já nascera, quando torna a ouvir o mesmo som. Era uma ululação vinda do lado da praia, a que respondia agora o selvagem mais próximo e depois outro. O grito passa por ele de raspão, atravessando a estreita ponta da ilha, indo do mar até à lagoa, como o grito de uma ave em voo. Não perde tempo a pensar, mas agarra a vara aguçada e desliza pelo meio dos fetos. Dentro de segundos fura como uma enguia para o matagal, mas não sem que lobrigue as pernas de um selvagem enviado ao seu encontro. Alguém pisa os fetos. Ouve pernas que se movem na relva alta. O selvagem, quem quer que ele fosse, ulula duas vezes, o grito repete-se nos dois sentidos e morre logo. Rafael agacha-se, muito quieto e enredado no meio da balseira, e, durante algum tempo, nada ouve.

Por fim examina a própria balseira. Decerto que ninguém o poderia atacar aqui, e, de mais a mais, estava com sorte. O enorme pedregulho, que tinha matado o Bucha, havia rolado para este matagal e saltado ali mesmo para o centro, abrindo, de cada lado, uma clareira cilindrada em alguns pés de extensão. Quando Rafael se

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acoita neste sítio, sente-se seguro e inteligente. Senta-se cautelosamente no meio do raizedo esmagado e espera que passe a caçada. Espreitando entre a folhagem, vislumbra alguma coisa vermelha. Aquilo devia ser o topo do Castelo de Rocha, distante e livre de ameaças. Dispõe-se a ouvir em triunfo os sons da caçada, morrendo ao longe.

Mas ninguém faz qualquer ruído e, à medida que os minutos passam, no sombreiro verde desvanece-se o seu sentimento de triunfo.

Finalmente ouve uma voz, a voz do Jack, mas abafada: ― Tens a certeza? O selvagem a quem ele se dirige não ruge. Talvez tenha feito um gesto. Rogério fala: ― Se estás a chuchar connosco... Logo após estas palavras vem um suspiro e

um guincho de dor. Rafael agacha-se instintivamente. Um dos gêmeos estava ali, da banda de fora do matagal, com o Jack e o Rogério.

― Tens a certeza de que ele queria dizer aqui? O gémeo murmura debilmente e depois guincha de novo. ― Ele disse que se ia esconder aqui? ― Sim... sim... Oh!... Uma risada argentina vibra no meio das árvores. De maneira que eles sabiam. Rafael pega na vara e prepara-se para a batalha. Mas que podiam eles fazer?

Levar-lhes-ia uma semana para romper um atalho através do matagal e quem quer que furasse por ali estaria perdido. Palpa a ponta da lança com o polegar e sorri sem divertimento. Quem tentasse a aventura seria espetado e guincharia como um porco.

Eles agora afastavam-se em direcção à torre de rocha. Podia ouvir o remexer de pés e depois alguém a rir. Em seguida aquele grito alto, como o de uma ave, corre ao longo da linha. A ser assim, alguns estavam ainda a vigiá-lo; mas só alguns... ?

Sobrevem um longo silêncio em que mal respirava. Rafael repara que tem aparas na boca de tanto remorder a lança. Ergue-se e espreita para cima, para o Castelo de Rocha.

Ao fazê-lo, ouve a voz de Jack lá no alto: ― Iça! Iça! Oh, iça! O rochedo róseo que ele podia ver no topo da falésia desvanece-se como uma

cortina e consegue ver figuras contra o céu azul. Um momento depois a terra abala com um sacão. Há o estampido de uma vaga a rolar pelo ar e o topo do matagal tinha sido como que arrepanhado por mão de gigante. O pedregulho pula e regula, com um som cavo e esmagador a caminho da praia, enquanto um chuveiro de gravetos partidos e de folhas cai sobre ele. Para além do matagal, a tribo berrava o seu aplauso.

De novo o silêncio. Rafael mete os dedos na boca e morde-os. Havia só mais outro rochedo lá em cima que eles poderiam deslocar. Mas era quase do tamanho de uma casa, tão grande como um carro ou um tanque. Imagina o seu progresso provável com uma clareza aflita: começaria lentamente, cairia de aresta em aresta e rolaria ao comprido do esporão como um cilindro de tamanho descomunal.

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― Iça! Iça! Oh, iça! Rafael pousa a lança, depois torna a pegar nela. Puxa o cabelo irritavelmente para trás, dá dois passos apressados no pequeno

reduto e volta ao ponto de partida. Queda-se a olhar para as pontas quebradas dos ramos.

Mais silêncio. Repara na subida e descida do diafragma e surpreende-se ao ver a rapidez com

que respira. No lado esquerdo, as palpitações do coração eram bem visíveis. Pousa novamente a lança.

― Iça! Iça! Oh, iça! Um aplauso prolongado e agudo. Alguma coisa cresce no rochedo róseo, depois a terra dá um salto e começa a estremecer continuadamente, à medida que o ruído aumenta, Rafael é disparado para o ar, atirado ao solo, arremessado contra os ramos. À sua direita, e apenas a uns pés de distância, o matagal dobra-se e as raízes gritam como se saíssem todas juntas da terra. Vê qualquer coisa vermelha que rola e rebola lentamente como uma azenha. Em seguida o objecto vermelho passa e o seu progresso de elefante diminui a caminho do mar.

Rafael ajoelha no solo lavrado e espera que a terra volte ao sítio. Num momento os tocos brancos e partidos, os arbustos estalados e a maranha

do matagal refluem ao centro. No corpo, onde tinha observado o próprio pulso, sente como que um peso.

Novo silêncio. Mas não por completo. Cochichavam lá fora, e, de repente, os ramos são furiosamente sacudidos em dois pontos à sua direita.

Surge a ponta aguçada de uma vara. Em pânico, Rafael enfia a sua própria vara pela fenda e descarrega o golpe com toda a força.

― Aaa-ah! A lança torce-se ligeiramente nas mãos e ele crava-a mais uma vez. ― Ooh-ooh!... Alguém geme lá fora e eleva-se uma vozearia. Trava-se uma

argumentação feroz e o selvagem ferido continua a gemer. Sobrevem depois um silêncio; fala uma única voz e Rafael decide que não era a do Jack.

― Vês? Eu bem te disse: o tipo é perigoso. O selvagem ferido torna a gemer. Que mais ainda? O que se seguiria? Rafael aperta nas mãos a lança remordida, e o cabelo cai-lhe para a cara.

Alguém murmura qualquer coisa, apenas a umas Jardas do Castelo de Rocha. Ouve um selvagem dizer "Não!", numa voz chocada, e logo a seguir um riso reprimido. Ne-se de cócoras e mostra os dentes ao muro de ramadas. Ergue a lança, arreganha os dentes e aguarda.

Mais uma vez o grupo invisível solta risadinhas. Ouve um curioso som gotejado e depois uma crepitação mais alta, como se alguém estivesse a desdobrar grandes lençóis de celofane. Um arbusto estala e ele sufoca a tosse. O fumo trespassava os ramos em novelos brancos e amarelos, o rasgão de céu azul toma a cor de uma nuvem de tempestade e o fumo ondula à sua volta.

Alguém ri excitado e uma voz grita: ― Fumo! Rompe pelo matagal no sentido da floresta, mantendo-se, a coberto

do fumo, tão longe dela quanto possível.

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Vê uma aberta e as folhas verdes da orla do matagal. Um selvagem pequenote punha-se entre ele e o resto da floresta, um selvagem listrado de vermelho e branco e armado de lança. Tossia e lambuzava a pintura à roda dos olhos com as costas da mão, à medida que tentava ver através do fumo crescente. Rafael precipita-se como um gato; golpeia com a lança, arreganhando os dentes e o selvagem dobra-se em dois. Vem um brado d'além matagal e Rafael corre no meio do restolho com a presteza do medo. Dá com um trilho de porco, segue-o, talvez umas cem jardas, e desvia de súbito. Atrás dele a ululação estende-se pela ilha e uma só voz grita três vezes. Adivinha que era aquele o sinal de avançar e abala de novo velozmente até o peito lhe arder. Depois estira-se debaixo de uma moita e espera que a respiração normalize. Corre cautelosamente a língua pelos dentes e pelos lábios e ouve ao longe a ululação dos seus perseguidores.

Havia muitas coisas que podia fazer. Podia subir a uma árvore, mas isso seria queimar todos os cartuchos de uma só vez. Se o descobrissem, nada mais fácil para eles do que esperar.

Se ao menos tivesse tempo para pensar! Outro grito duplo a pouca distância dá-lhe uma idéia do plano que eles concertavam. Qualquer selvagem impedido na floresta soltaria o grito duplo e susteria a linha até se libertar. Desta maneira poderiam manter o cordão unido de uma ponta à outra da ilha. Rafael pensa no porco-montês que passara por eles com tanta facilidade. Se necessário, quando o cerco apertasse muito à sua roda, poderia investir contra o cordão enquanto este fosse ralo, rompê-lo e tornar atrás. Mas tornar atrás aonde? O cordão daria a volta e desdobrar-se-ia de novo. Mais cedo ou mais tarde ele teria de comer e dormir e então despertaria com mãos a esgatanhá-lo, e a caçada redundaria numa açougada. Que poderia ele fazer, então? A árvore? Romper a linha como um cerdo?

Em qualquer dos casos a escolha era terrível. Um só grito acelera-lhe as palpitações do coração e, saltando, arremete em

direcção ao oceano e à selva espessa até ficar enredado no meio das lianas. Acoita-se ali um minuto, de jarretes frementes. Se, ao menos, pudesse haver

uma trégua, uma pausa demorada, tempo para pensar! E aí estava de novo, aguda e inevitável, a ululação a varrer a ilha. Àquele som espanta-se como um cavalo no meio das lianas e desarvora uma

vez mais, até o peito lhe estalar. Estende-se no meio dos fetos. A árvore ou a investida? Domina a respiração por um momento, enxuga a boca e impõe-se calma a si mesmo. Samuel e Érico estavam algures naquela linha, e detestando tudo aquilo. Ou não? E supondo que encontrava o chefe em vez deles, ou o Rogério, que trazia a morte nas mãos?

Rafael puxa o cabelo emaranhado para trás e enxuga o suor do olho melhor. Fala alto: ― Pensa. Qual era a coisa mais sensata a fazer? já não havia o Bucha para falar

com bom senso. já não havia uma assembléia solene para um debate, nem a dignidade do búzio.

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― Pensa. Mais do que tudo começa a recear a cortina que poderia ondular-lhe no cérebro, obnubilando-lhe o sentido do perigo, emparvecendo-o.

Uma terceira idéia seria esconder-se tão bem que a linha, ao avançar, passasse sem o descobrir.

Estica a cabeça e escuta. Havia agora outro ruído a considerar: um ruído cavo e resmungão, como se a própria mata estivesse zangada com ele, um rumor sombrio através do qual as ululações eram como um riscar lancinante na pedra de uma ardósia. Sabe que ouvira aquele ruído algures, mas não tem tempo para se lembrar onde.

Romper a linha. Uma árvore. Esconder-se e deixá-los passar. Um grito mais próximo fá-lo erguer-se e fugir imediatamente, correndo veloz no meio de espinhos e silveiredos. De súbito dá consigo em campo descoberto, acha-se de novo naquela clareira... e lá estava o arreganho da caveira, uma braça de largo, já não a zombar dum rasgão do alto céu azul, mas escarninha num véu de fumarada. Rafael corre sob as árvores, tendo compreendido o resmungo da floresta. Haviam-no cercado de fumo e pegado fogo à ilha.

Esconder-se era melhor do que uma árvore, porque teria ensejo de romper a linha, se o descobrissem.

Então, toca a esconder! Pergunta-se se um porco concordaria, e faz uma careta por nada. Encontrar as brenhas mais espessas, o buraco mais negro na ilha inteira, e enfiar lá para dentro. Enquanto corre, espreita à sua roda. Barras e manchas de sol deslizam sobre ele e o suor escorre-lhe pelo corpo sujo em regos reluzentes. Os gritos vêm agora de longe, frouxos.

Por último encontra o que lhe parecia o lugar adequado, embora a sua decisão fosse desesperada. Aqui os arbustos e uma selvática riça de lianas formavam uma alfombra que excluía a luz do Sol. Por baixo havia um vão, talvez com um pé de altura, ainda que trespassado em toda a sua extensão por muitas raízes paralelas e erectas. Se rastejasse até ao meio ficaria a cinco jardas da borda e bem escondido, a não ser que o selvagem decidisse deitar-se e espreitar. Mesmo assim, estaria completamente no escuro, e, se o pior acontecesse e o outro o visse, ensejaria uma investida, desorientaria a linha inteira e tornaria atrás.

Cautelosamente, arrastando a lança consigo, Rafael fura entre o raizedo erecto. Ao alcançar o centro da alfombra estende-se e escuta.

O incêndio era grande e o rufo de tambor, que ele pensava ter deixado lá tanto para trás, acercava-se cada vez mais. O fogo não poderia ultrapassar um cavalo a galope? Dali podia ver o terreno encharcado de sol numa área de umas cinqüenta jardas: e, enquanto olhava, a luz do Sol piscava no capim em direcção ao seu esconderijo. Parecia-se tanto com a cortina que lhe flutuava no cérebro que, por um momento, supôs que era dentro dele que havia todo aquele piscar de luzes. Mas lumes piscaram mais intensamente no capim, embaçaram e extinguiram-se, e uma grossa barreira de fumo levantou-se entre a ilha e o Sol.

Se espreitasse sob as moitas e conseguisse lobrigar carne humana, poderia acontecer que fossem Samuel e Érico, que pretenderiam não ver nada e nada diriam.

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Cola a face à terra cor de chocolate, corre a língua pelos lábios secos e cerra os olhos. Debaixo do matorral a terra vibrava levemente. Ou talvez houvesse aí um ruído sob o trovão evidente do incêndio e das ululações ocasionais, demasiado abafadas para se ouvirem.

Alguém berra. Rafael ergue, de repelão, a face da terra e olha para a luz embaçada. Deviam andar perto, pensa ele, e o coração começa a bater-lhe de rijo. Esconder-se, romper a linha, trepar a uma árvore... qual seria a melhor solução? Ele só tinha uma única saída.

O fogo acercava-se cada vez mais; aquelas descargas eram como membros enormes, como trombas a estalarem. Que parvos! Parvos! O fogo devia estar quase a pegar-se às árvores de fruto. Que comeriam eles no dia seguinte?

Rafael remexe-se inquieto na toca estreita. Não perdiam nenhuma oportunidade!

Que lhe podiam eles fazer? Bater-lhe? E então? Matá-lo? Uma vara aguçada nas duas pontas.

Gritos, subitamente mais próximos, sobressaltam-no. Podia ver um selvagem listrado desenvencilhando-se apressadamente de uma maranha verde e dirigindo-se para a alfombra onde ele se escondia, um selvagem armado de lança. Rafael crava os dedos na terra. Prepara-te, caso seja necessário!

Rafael segura a lança, tacteando-a, de maneira a ristá-la bem de frente, e repara agora que a vara do outro estava aguçada nas duas pontas.

O selvagem pára a uma distância de quinze jardas e solta o seu grito. Talvez ele oiça o meu coração acima do crepitar do fogo. Não grites. Prepara-te!

O selvagem avança e pode vê-lo apenas da cintura para baixo. Aquele era o conto da lança. Agora podia vê-lo do joelho para baixo. Não grites.

Uma vara de porcos desembesta, aos guinchos, da verdura atrás do selvagem e desaparece na mata. Aves gritam, ratos guincham e qualquer coisa, aos saltinhos, vem aninhar-se sob a alfombra.

A umas cinco jardas, o selvagem detém-se ao pé do matorral e grita. Rafael flecte os joelhos e fica agachado. Nas mãos do outro está o pau, o pau aguçado nas duas pontas, o pau que vibrava com tanta violência, que crescia e encurtava, simultaneamente leve e pesado.

A ululação espalha-se de praia a praia. O selvagem ajoelha à beira do matorral, e há lumes que crepitam na floresta por trás dele. Pode ver um joelho assente na terra. Depois outro. Duas mãos. Uma lança. Uma cara.

O selvagem espreita a obscuridade debaixo do matorral. Podia perceber-se que via luz de um lado e do outro, mas não no meio: ali. No meio havia uma bolha de escuridão e o selvagem franze o rosto, tentando decifrar o escuro.

Os segundos prolongam-se. Rafael olha a direito nos olhos do selvagem. Não grites. Hás de voltar. Agora viu-te. Está a certificar-se. Uma vara aguçada.

Rafael solta um grito, um grito de terror, de raiva e desespero. As pernas endireitam-se, os gritos tornam-se contínuos e espumantes.

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Desembesta, rompe o matorral, vem a terreiro, gritando, arreganhando os dentes, sangrando. Faz vacilar o pau e o selvagem rola pelo chão, mas já outros vêm sobre ele, aos aulidos. Esquiva-se a uma lança que lhe passa de lado, e depois cala-se, largando a correr. De supetão, os lumes que bruxuleavam em frente fundem-se, o rugido da floresta sobe a um trovão e as altas moitas, que se erguiam directamente no seu caminho, rebentam numa grande golfada flamífera em forma de leque. Guina para a direita e corre desesperadamente depressa, com o calor a dar-lhe do lado esquerdo e o fogo a galgar diante como uma maré. A ululação eleva-se atrás dele e espalha-se ― uma série de gritos breves e ásperos, o sinal de que o avistaram. Uma figura castanha assoma à direita e tomba. Eles corriam todos, gritavam todos doidamente. Podia ouvi-los a rolarem pelo capim. À esquerda, estoirava o ardente e brilhante trovão do fogo.

Esquece as feridas, a fome e a sede, e torna-se o próprio medo, medo desesperançado em pés que voam, precipitando-se pela floresta a caminho da praia escampada! Diante dos olhos saltam-lhe choffias em círculos vermelhos, que se alargam rapidamente até os perder de vista. Debaixo dele rendem-se à fadiga as pernas de um outro, e a ululação desesperada avança, como uma franja recortada de ameaça prestes a cair-lhe em cima.

Tropeça numa raiz e o grito que o perseguia sobe ainda mais alto. Vê uma cabana irromper em chamas. O fogo diminui à sua direita. Surge o rebrilho da água. Vai a terra, rolando e rebolando na areia quente, agachando-se, de braço erguido, num gesto de prevenção, tentando gritar um pedido de misericórdia.

Cambaleia, erguendo-se, tenso, à espera de mais terrores, e depara-se-lhe um enorme quépi de pala. Era um quépi branco e largo na copa, e sobre o verde sombreado de pala havia uma coroa, uma ancora e folhagem de oiro. Vê um linho branco, platinas, um revólver, uma fileira de botões dourados num uniforme.

Um oficial de Marinha, de pé, fita Rafael num pasmo cauteloso. Na praia, detrás dele, está um escaler de proa erguida e segura por duas praças. Na popa outra praça empunha uma pistola-metralhadora.

A ululação vacila e morre. Durante um segundo o oficial olha duvidoso para Rafael, depois tira a mão da

coronha do revólver. ― Olá! Um pouco retraído, cônscio da sua aparência imunda, Rafael responde

timidamente: ― Olá! O oficial acena com a cabeça, como se lhe tivessem respondido a uma

pergunta. ― Há alguns adultos... alguns crescidos convosco? Rafael abana a cabeça em

silêncio. Dá meia volta na areia. Um semicírculo de rapazinhos, de corpos listrados com greda colorida, de varas aguçadas na mão, quedava-se na praia sem fazer o mínimo ruído.

― Brincadeiras e jogos ― diz o oficial.

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O fogo alcançava os coqueiros ao pé da praia e devorava-os ruidosamente. Uma labareda, aparentemente isolada, bamboleia-se como um acrobata e lambe o topo das palmeiras do terraço. O céu enegrecia.

O oficial sorri, encorajador, para Rafael: ― Nós vimos o vosso fumo. Que têm estado vocês a fazer? Uma guerra? Rafael anuiu com a cabeça. O oficial examina o pequeno espantalho que tem

diante de si. O garoto precisava de um banho, um corte de cabelo, limpar o nariz e pôr alvaiade na cara.

― Não há mortos, pois não? Algum cadáver? ― Só dois. E desapareceram. O oficial inclina-se e perscruta o rosto de Rafael: ― Dois? Mortos? Rafael faz outra vez que sim com a cabeça. Por trás dele a

ilha inteira estremece num brasido de chamas. O oficial sabia, em regra, quando alguém lhe dizia a verdade. Assobia de leve.

Outros rapazinhos aparecem agora, petizes alguns deles, morenos, com o ventre descaído de pequenos selvagens. Um deles abeira-se do oficial e olha para cima.

― Eu sou, eu sou... Mas nada mais sairia. Persival Wemys Madison busca na cabeça um

encantamento que há muito se desvanecera. O oficial volta-se para Rafael: ― Vamos embarcá-los todos. Quantos sois aqui? Rafael abana a cabeça. O

oficial desvia a vista para o grupo de rapazes pintados: ― Quem é o chefe? ― Eu ― exclama Rafael em voz alta. Um rapazelho, com o frangalho de um

extraordinário boné negro a cobrir-lhe a grenha ruiva e que trazia preso à cinta o que fora um par de óculos, dá um passo em frente, muda de opinião e detém-se.

― Vimos o vosso fumo. E não sabeis quantos sois? ― Não, senhor. ― Eu pensava ― profere o oficial ao imaginar a busca que tem diante de si ―,

eu pensava que um grupo de rapazes britânicos ― sois todos britânicos, não é verdade? ― seria capaz de fazer bem melhor do que isto... Quero eu dizer...

― Era assim ao princípio ― volve Rafael ―, antes de as coisas... Pára. ― Então estávamos todos unidos... O oficial acena a cabeça a ajudá-lo. ― Bem sei. Bem bonito! Sim, senhor! Como a Ilha de Coral. Rafael olha para

ele e emudece. Por um momento tem diante dos olhos um quadro passageiro do estranho encanto que havia envolvido outrora aquelas praias.

Mas a ilha estava carbonizada como lenha velha, Simão estava morto e Jack tinha... As lágrimas saltam-lhe dos olhos e os soluços sacodem-no.

Entrega-se-lhes agora pela primeira vez desde que pisara aquela ilha; grandes e estremecidos espasmos de mágoa, que pareciam torcer-lhe todo o corpo. A sua voz

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eleva-se sob a negra fumarada perante os destroços ardentes da ilha, e, infectados por aquela emoção, os outros rapazinhos tremem e soluçam. E, no meio deles, de corpo imundo, cabelo emaranhado e nariz sujo, Rafael chora o fim da inocência, o negrume do coração do homem e a queda pelo ar daquele verdadeiro e sensato amigo que se chamava o Bucha.

O oficial, rodeado destes ruídos, sente-se comovido e um pouco embaraçado. Afasta-se para lhes dar tempo a que se recomponham e espera, repousando os olhos no cruzador brunido que paira ao largo.

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ÍNDICE I - A voz do búzio 3 II - Fogo na montanha 21 III - Cabanas na praia 32 IV - Caras pintadas e cabelo comprido 39 V - A fera da água 52 VI - A fera do ar 66 VII - Sombras e árvores esguias 76 VIII - Uma oferenda à escuridão 86 IX - Uma visão da morte 101 X - O búzio e os óculos 108 XI - Castelo de Rocha 119 XII - O grito dos caçadores 128