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O S O UTROS SEIS DIAS

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O S O U T R O S

SEIS DIAS

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TRADUÇÃO

Neyd Siqueira

O S O U T R O S

SEIS DIAS

R. PAUL STEVENS

VOCAÇÃO, TRABALHO E MINISTÉRIO NA PERSPECTIVA BÍBLICA

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PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO

E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

EDITORA TEXTUSCaixa Postal 107.00624360-970 Niterói, RJE-mail: [email protected]

Publicado originalmente por Paternoster Press

Título original em inglêsThe Abolition of the Laith, by R. Paul Stevens.© 1999 by Paternoster Press. Publicado com autorização pela

Paternoster Press – P.O. Box 300, Carlisle, Cumbria, CA3 0QS, UK

© Editora Textus

Primeira edição em portuguêsAbril de 2005

RevisãoBilly Viveiros e Carlos Buczynski

CapaNext Nouveau – Divisão Publicidade

Esta é uma co-edição com

EDITORA ULTIMATO LTDA.Caixa Postal 4336570-000 Viçosa, MGTelefone: 31 3891-3149 — Fax: 31 3891-1557E-mail: [email protected]

Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação eClassificação da Biblioteca Central da UFV

Stevens, R. Paul, 1937-

Os outros seis dias / R. Paul Stevens ; tradução Neyd Siqueira. —Viçosa, MG : Ultimato, 2005.

272p. : il. ; 23cm.

ISBN 85-86539-80-5

Tradução de: The other six days : vocation, work, and ministry inbiblical perspective.

Publicado em 1999, no Reino Unido, sob o título “The abolition ofthe laity” e em 2000, nos Estados Unidos, sob o título “The other six days”.

1. Leigos (Religião). 2. Ministério leigo. I.Título. CDD 22.ed. 262.15

S945o2005

Todas as citações bíblicas foram retiradas da Nova Versão Internacional,da Sociedade Bíblica Internacional.

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SUMÁRIO

Apresentação à Edição Brasileira 7

PRIMEIRA PARTE: UM POVO SEM “LAICATO E CLERO”

1. Teologia do Povo 13“De” todo o povo de Deus: além da teologia clerical 14“Para” todo o povo de Deus: além da teologia não-aplicada 17“Por” todo o povo de Deus: além da teologia acadêmica 22

2. Reinventando o Laicato e o Clero 27Um povo sem “laicato” 28Um povo sem “clero” 32A emergência do clero 39

3. Um Deus – Um Povo 47Dois povos ou um? 48Um Deus – três pessoas 52Comunhão ou união? 56

SEGUNDA PARTE: CHAMADO E EQUIPADO POR DEUS

4. Chamado Numa Era Pós-vocacional 65Vocação pessoal 67Vocação cristã 75Vocação humana 80

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5. Fazendo o Trabalho do Senhor 93Mudanças no trabalho 94O trabalho ontem e hoje 96O trabalho nas Escrituras 99O trabalho de Deus 104O trabalho é bom 108

6. Ministério – Transcendendo o Clericalismo 115Ministério hoje 116Ministério nas Escrituras 117Serviço trinitariano 123Líderes ministradores 127

TERCEIRA PARTE: PARA A VIDA DO MUNDO

7. Profetas, Sacerdotes e Reis 139Três papéis de liderança 140O povo profético 143O povo sacerdotal 146O povo real 152Profetas, sacerdotes e príncipes no mundo 157

8. Missão – Um Povo Enviado por Deus 159O Deus que envia 160A missão de Deus 161O envio 164O povo enviado 169Preparando para a missão 173

9. Resistência – Enfrentando os Poderes 179Descrevendo os poderes: confusão contemporânea 180Experimentando os poderes: resistência em vários níveis 183Compreendendo os poderes: teologia bíblica 186Enfrentando os poderes: missão e ministério 190A pacificação final dos poderes: escatologia 195

Epílogo: Vivendo Teologicamente 201Ortodoxia 202Ortopraxia 205Ortopatia 209

Notas 213Bibliografia 261

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APRESENTAÇÃO ÀEDIÇÃO BRASILEIRA

NOS ANOS 70, NO Rio de Janeiro, alguns grupos de jovens evangélicoscostumavam cantar uma música bem humorada chamada “CrenteDomingueiro”. O texto era assim:

Domingueiro nunca queira ser;no domingo ele é santarrão,na segunda, terça , quarta, quinta, sexta e sábado,ele não é santo não.

Não lembro quem foi o autor, mas reconheço que ele foi genial aodescrever dessa forma o dilema que vivíamos como jovens evangélicos.Essa música provocava um reboliço toda vez que a cantávamos, pois ocostume era cantar apontando para o outro como se dissésemos: “Estou deolho”. O fato é que muitos vivíamos uma “vida dupla”; a fé tinha dia elugar específicos: o domingo e o templo. Nos outros dias da semanaestávamos liberados para viver a nossa vida “normal”. Com o tempo

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8 OS OUTROS SEIS DIAS

percebemos que deveríamos ser santos todos os dias, mas ainda assim, oenfoque se limitava à ética individual (não se falava em “ética do sistema”),ao comportamento adequado do cristão, algo do tipo “o que faria Jesus emseu lugar”.

Depois percebemos que devíamos fazer incursões evangelísticas nomundo, contudo nossa forma de pensar refletia uma realidade em queexistia o tempo e lugar destinados ao “sagrado” e o tempo e lugar destina-dos à “vida secular”. A situação se tornou ainda pior quando alguns perce-beram que sua compreensão de fé não lhes dava a base adequada paraentender o que se passava no lado “secular” de sua vida, devido aos dilemasque o país vivia naquele momento. Alguns encontraram uma forma depensar que superou esses dualismos; outros simplesmente se acomodaramna figura do “crente domingueiro”.

Minha percepeção, obviamente limitada, é de que a grande maioria con-tinuou presa a essa forma dupla de pensar, reforçando dicotomias ou crian-do novos paradoxos. Apesar da disciplina de buscar versículos bíblicos quenos dessem suporte, seguimos em nossa forma dicotômica de pensar. Ter-minamos por fazer com que a Bíblia se ajustasse à nossa forma de ver omundo e não o contrário, como nos recomenda Lutero, ao sugerir quedevemos ler o texto bíblico contra nós. Olhando com mais atenção a his-tória da igreja evangélica no Brasil, vamos perceber que este problema ante-cede, em muito, a experiência dos jovens dos anos 70 no Rio de Janeiro eque sua abrangência geográfica ultrapassa os limites de minha querida cida-de, cobrindo todo o território nacional. Mesmo considerando a históriarecente da Igreja e os vários sinais de superação dessas dicotomias, aindaestamos diante de um problema crônico relacionado com a nossa forma depensar e agir biblicamente.

O tempo passou, temos novas canções, mas a mentalidade do “crentedomingueiro” segue vigente na Igreja, agora de forma predominante. De-vido ao expressivo crescimento evangélico, estamos chegando a ocupar umlugar social de maior destaque, no entanto a forma de pensar na “esferasecular da vida” segue os paradigmas da “mentalidade do crentedomingueiro”. Agora temos o “crente domingueiro” todos os dias da se-mana em todas as esferas da vida pessoal e social. Isso me faz pensar queestamos precisando de uma nova versão da música para, por meio de uma

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APRESENTAÇÃO 9

boa dose de ironia “profética”(usando o adjetivo do momento), abalar osfundamentos de nossa forma de compreender a fé em Jesus Cristo, omundo, a vida e tudo mais.

Se ainda não temos a música, temos agora este excelente livro, que sepropõe a ser mais um recurso disponível para a igreja em seu esforço deamar a Deus e ao próximo. Este texto nos possibilita compreender melhoro que significa pensar biblicamente e revisitar temas fundamentais paraa vida da igreja, como vocação, ministério, povo de Deus, teologia,trabalho, liderança, poder e missão. O texto vai além da mentalidadedo “crente domingueiro”, quando nos propõe o desafio de viver teolo-gicamente.

Esta publicação é oportuna por causa dos desafios que temos comoigreja evangélica em nossos dias, entre os quais posso citar a preocupaçãocom os rumos de nosso crescimento (O que está crescendo? Em que dire-ção está crescendo? Como podemos cuidar deste crescimento?); o perigoque representa os vários modelos de liderança narcisista que desejam con-trolar o que se pensa e o que se faz na igreja; as novas formas de ataque aorebanho do Senhor, por aqueles que o tratam como “curral eleitoral” oucomo “segmento de mercado”; a sempre presente atitude que mistura arro-gância e superficialidade ao se considerar suficiente para oferecer respostasrápidas sobre tudo para todos num contexto cada vez mais complexo; orisco de uma igreja voltada para si mesma e compulsiva (presa em dinâmi-cas de pseudo-transcendência e fuga da realidade). Esta lista poderia conti-nuar, mas o que está nela é suficiente para sugerir o tamanho do desafio.

Este livro não pretende ser a resposta final para todas as perguntas. Oseu formato reflete a preocupação do autor em provocar o diálogo pormeio das muitas perguntas que ele sugere e de tantas outras que, nós osleitores, podemos fazer. Meu primeiro contato com Dr. Paul Stevens foipor meio de seus livros, seguido pela oportunidade de estudar com váriosde seus ex-alunos e, mais recentemente, de ser também seu aluno no RegentCollege. Estar em suas classes é uma experiência de tranformação devido àmaneira como organiza seus cursos e como nos envolve no processo deaprendizado. Com ele aprendemos a olhar para o cotidiano com outrosolhos e a encontrar a espiritualidade presente em todo e qualquer ato denossa existência de forma mais integrada.

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10 OS OUTROS SEIS DIAS

O mestre que na sala de aula nos surpreende com a seriedade,profundidade, dedicação e disciplina na forma como lida com sua tarefadocente, nos desafia a considerar como objetivos principais do estudo teo-lógico o amar mais profundamente a Deus e nos tornarmos plenamentehumanos. Justamente por isso que a sala de aula não é o único espaço deaprendizado que ele nos oferece; juntamente com sua esposa Gail, ele nosrecebe com alegria para o convívio mais próximo em que podemos atentarpara a vida deles e ,consequentemente, a nossa.

Estou muito agradecido a Deus pelas iniciativas que tornaram possível àigreja evangélica brasileira ter acesso a este livro. Uma leitura atenta domesmo pode abrir um debate necessário entre todos aqueles que desejam,nas palavras do Dr. Paul Stevens, pensar de forma coerente, crítica e piedo-sa. Para os que estão preocupados com a superação dessa forma dupla depensar, representada pelo personagem do “crente domingueiro”, este livro éum recurso fabuloso. Para os que já superaram este dualismo, este livroabre novos caminhos sobre o pensar biblicamente em todas as áreas denossa vida.

Desejo-lhe uma boa leitura, mente e coração atentos para as descobertasque este texto lhe porporcionará, e, sobretudo, que seu amor a Deus e aopróximo cresça e que você possa viver em plenitude sua humanidade.

Forte abraço,ZIEL MACHADO

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APRESENTAÇÃO 11

PRIMEIRA PARTE

UM POVO SEM“LAICATO E CLERO”

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Capítulo 1

TEOLOGIA DO POVO

Em última análise só pode haver uma teologia sadia esuficiente do laicato, e esta é uma eclesiologia total... serátambém uma antropologia e até uma teologia da criaçãoquando associada à cristologia.

YVES CONGAR1

ESTE LIVRO FAZ UMA proposta absurda. O laicato deve ser abolido?2

Isso é possível? Yves Congar disse certa vez que sempre haverá leigos naIgreja: ajoelhados diante do altar, sentados abaixo do púlpito e com a mãono bolso.3 Ao longo de quase toda a sua história, a Igreja tem sido com-posta de duas categorias de pessoas: os que fazem o ministério e aquelespara quem ele é feito. Os leigos são o objeto e não o sujeito do ministério.Eles o recebem, pagam por ele, promovem-no e talvez até aspirem a ele.Mas quase nunca chegam a ser ministros por razões do fundo da alma daIgreja: razões teológicas que serão examinadas neste livro, razões estruturaise culturais que foram exploradas em muitos livros contemporâneos sobreo assunto.4 Apesar de a divisão clero-leigo não encontrar base no NovoTestamento, ela persiste tenazmente.

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14 OS OUTROS SEIS DIAS

A maioria dos esforços no sentido de recuperar a visão do NovoTestamento sobre o ministério de cada membro não passa de meias-medidas. Eles se concentram na atuação do cristão na igreja – pregadoresleigos, assistência pastoral leiga e líderes de adoração leigos. O que necessi-tamos é de um fundamento bíblico abrangente para a vida do cristão nomundo, assim como na Igreja; uma teologia para donas-de-casa, enfermei-ras e médicos, encanadores, corretores, políticos e fazendeiros. Recuperaristo, como afirmaram Gibbs e Morton há décadas, seria como descobrirum novo continente ou encontrar um novo elemento.

Como é evidente, isto levanta a questão de o que é teologia e o que éteologia aplicada, assuntos sobre os quais não há acordo entre os teólogos,embora eu possa notar de passagem que a palavra “teologia” dificilmentefoi usada no sentido de teologia-não-aplicada até o Iluminismo.5 Minhamaior preocupação neste livro é recuperar uma base realmente bíblica parao empreendimento teológico, especialmente no que se refere à pessoa co-mum, não só na Igreja, como no mundo. Neste capítulo, vou adaptar asconhecidas palavras de Lincoln e introduzirei uma teologia do povo, para opovo e pelo povo, apropriando-me de cada preposição como esclarecedorado empreendimento teológico na sua relação com todo o povo de Deus.6

1. “DE” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIACLERICAL

Como mencionado acima, Yves Congar, católico francês, declarou comrazão: “Em última análise só pode haver uma teologia sadia e suficiente dolaicato, e esta é uma ‘eclesiologia total’”.7 Para obter, porém, essa “eclesiologiatotal”, devemos tratar com alguns mal-entendidos insistentes.

Primeiro, procuramos em vão no Novo Testamento uma teologia laica.Não há leigos nem clero.8 A palavra “leigo” (laikoi) foi primeiramenteusada por Clemente de Roma no fim do primeiro século, mas nunca em-pregada por um apóstolo inspirado nas Escrituras para descrever cristãos desegunda classe, despreparados e não-equipados. Ela devia ser eliminada donosso vocabulário. “Laicato”, em seu sentido certo de laos – o povo deDeus – no Novo Testamento, é um termo de grande dignidade, denotando

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TEOLOGIA DO POVO 15

o enorme privilégio e missão de todo o povo de Deus. Não éramosantes absolutamente um povo, mas agora em Cristo somos uma “geraçãoeleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus” (1Pe 2.9;Êx 19.6).

A palavra “clero” vem do grego klêros, que significa os “indicados oudotados”. Não é usada nas Escrituras para os líderes do povo, mas paratodo o povo.9 Ironicamente, em sua constituição, a Igreja é um povo semleigos no sentido usual dessa palavra, mas cheia de clérigos no verdadeirosentido dessa palavra – dotado, comissionado e apontado por Deus paracontinuar o Seu serviço e missão no mundo. A Igreja não “tem”, então,um ministro; ela é um ministério, o ministério de Deus. Ela não tem umamissão; é uma missão. Há um povo, um povo trinitariano, um povo quereflete o Deus uno que é amante, amado e amor, como disse certa vezAgostinho,10 e um Deus que envia, é enviado e está enviando.

No decorrer de quase toda a sua história, a Igreja tem sido composta dedois tipos de pessoas – os que são ministros e os que não são. O ministériotem sido definido como o que o pastor faz e não em termos de os cristãosserem servos de Deus nos negócios, na igreja, no lar, na escola ou notrabalho. Entrar no “trabalho de Deus” significa tornar-se pastor oumissionário e não ser colaborador de Deus em Sua obra criadora,sustentadora, redentora e aperfeiçoadora, tanto na Igreja como nomundo.

Segundo, o resultado deste estado de coisas lamentável é que escreveruma chamada “teologia do laicato”é geralmente algo que serve para contra-balançar, tentando corrigir o desequilíbrio, elevar o leigo não-clerical,geralmente às custas do leigo clerical. Um dos primeiros a escrever essetipo de teologia, na atualidade, foi Yves Congar, alguém com enormeinfluência no Vaticano II. A teologia de Congar leva, porém, em direção auma eclesiologia em que distinção e posição são inevitáveis. A suposiçãofundamental que ele introduz em seu estudo basilar é que a Igreja não é sóa comunidade formada por Deus, mas também o meio pelo qual o Senhorfaz com que a humanidade se aproxime dele.11 A hierarquia é essencial comeste propósito.12 Ele termina então propondo uma relação complementarde clero e laicato, única maneira pela qual a plêròma (plenitude) da Igrejapode ser experimentada.13

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16 OS OUTROS SEIS DIAS

Logo depois de Congar ter escrito seu “estudo”, Hendrik Kraemerproduziu A Theology of the Laity. Esta obra representa igualmente umaestratégia compensatória e falha em suprir o que Congar considera tãonecessário: uma compreensão bíblica de todo o povo de Deus (umaeclesiologia total), um povo amando e servindo a Deus tanto na Igrejacomo no mundo. 14

Então, uma teologia de todo o povo de Deus não deveria ser clericalnem anticlerical. O que devemos adotar é um aclericalismo, um povo semdistinção, exceto de função, um povo que transcende o clericalismo.15

Terceiro, uma teologia de todo o povo de Deus deve abranger não só avida do povo de Deus reunido, a ekklésia, como também a Igreja dispersano mundo, a diáspora, nos negócios, governo, profissões liberais, escolas elares. Confirmo aqui o chamado de Yves Congar para uma teologia dolaicato, que não é só uma eclesiologia total, mas também uma “antropolo-gia e até mesmo uma teologia da criação em sua relação com a cristologia”.16

Esta deve ser uma teologia que abranja as realidades terrenas e esclareça oque é braçal, trivial e o necessário: lavar, limpar, manter a estrutura destemundo, brincar, jogar, arte, lazer, vocação, trabalho, ministério, missão elidar com os principados e potestades. Ela deve ajudar-nos a compreendere experimentar a sexualidade, a família e a amizade. Deve mostrar-nos olugar ocupado pelo repouso e pelo sono. Deve ajudar-nos a viverabençoadamente com o automóvel, viagens, telefone, computador e cor-reio eletrônico.

Em último lugar, a teologia de todo o povo de Deus deve levar a sério asituação contemporânea. O trabalho da teologia nunca termina. Ele é denatureza elíptica, com um foco na Palavra eterna de Deus e outro no con-texto. Devemos considerar então, hoje, o final da cristandade e a predomi-nância da cultura pós-moderna.17 Ellen T. Charry coloca isto combrilhantismo:

Agora que o cristianismo está desestabilizado e a população em geralmais familiarizada com o secularismo ou as expressões modernas dopaganismo do que com o cristianismo, os teólogos devem dedicar-se ademonstrar que a fé apostólica possui recursos e apresenta a promessade uma versão da personalidade humana tanto digna como honrada.

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TEOLOGIA DO POVO 17

Em outras palavras, o fato de conhecer e amar a Deus deve determinarnovamente a posição das pessoas no mundo.18

Uma teologia de todo o povo de Deus deve esclarecer então a suaunidade, explorando o significado da vida dispersa, assim como da reunidadesse povo. Este livro se ocupa essencialmente de uma teologia de todo opovo de Deus: um povo sem distinção entre laicato e clero (Primeira Par-te), chamado e preparado por Deus (Segunda Parte) para a vida do mundo(Terceira Parte). Mas, ao mesmo tempo, ele servirá a um segundo propó-sito subsidiário, uma teologia para todo o povo de Deus. Teologia que,como veremos, é inerentemente prática.

2. “PARA” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIANÃO-APLICADA

A teologia para o chamado laicato é geralmente considerada como co-municar ao cristão “comum”, não treinado na teologia acadêmica, como asgrandes verdades da fé influem na sua vida. Isto equivale algumas vezes auma teologia sistemática ou bíblica “diluída” – colocando a lata de biscoi-tos numa prateleira mais baixa. Mas, na melhor das hipóteses, uma teolo-gia para o laicato é exatamente o sentido da teologia: a tarefa contínua edinâmica de traduzir a palavra de Deus em situações onde as pessoas viveme trabalham. A teologia bíblica é completamente prática e é herético pro-mover, como as instituições teológicas têm feito há décadas, a teologianão-aplicada.19

Para a maioria das pessoas, a teologia acadêmica formal parece isoladada vida, uma questão que Lesslie Newbigin lamenta ao notar como a obrados eruditos faz parecer ao cristão comum que ninguém que não seja trei-nado em seus métodos pode entender realmente qualquer coisa que a Bí-blia diz. “Estamos...”, afirma ele, “...numa situação análoga àquela da qualos grandes reformadores se queixaram.”20 O que significaria recuperar umateologia para todo o povo de Deus?

Primeiro, a praticidade da teologia é superior à relevância da sua teoria.A teologia, como dizem freqüentemente, é prática por ser a base da açãocheia de fé e de vida. Ela ajuda as pessoas a conhecerem a verdade de Deus

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18 OS OUTROS SEIS DIAS

para satisfazer a sua necessidade básica de conhece-rem a Deus e interagiremde maneira correta com o mundo. Mas, neste aspecto, a teologia aplicadaou prática é essencialmente o mecanismo de entrega – comunicando epersuadindo os indivíduos da verdade e da sua necessidade de agir quantoa ela.21

Esta é a velha maneira linear de fazer teologia: você consegue primeiro ateoria e, depois que tiver obtido a verdade, passa geralmente a aplicá-la nocaso da educação teológica, depois de formar-se no seminário. Mas, e se aação for parte da verdade? E se toda a ação for carregada de teoria e todateoria carregada de ação? O que faremos também com as palavras e obrasde Jesus, que, como diz Alister McGrath, é “o principal explicandum dateologia cristã... algo e alguém que requer ser explicado”.22 Jesus disse: “Sealguém quiser fazer a vontade de Deus, saberá se meu ensino vem de Deus”(Jo 7.17, adaptação). O termo hebraico para “saber” é o mesmo usadopara “intercurso”. Nas palavras de Robert Banks, convidar alguém parafazer um curso sobre um assunto é convidar para um intercurso com oassunto.23

É claro que a expressão “teologia aplicada” não aparece na Bíblia. Mas aidéia de ligar o pensamento à ação, associar fé e vida, unir doutrina comprática ética, a idéia de que a verdade envolve o amor a Deus e ao próximoé tão fundamental que a única teologia verdadeiramente cristã é aquela queé aplicada.

Muitas das palavras de Jesus enfatizam que a obediência é o órgão darevelação.24 Em Lucas 16.31, Jesus afirma que se as pessoas não estiveremagindo na luz que possuem (a lei e os profetas): “Tampouco se deixarãoconvencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”, sugerindo assimque a sua própria ressurreição terá pouco valor como evidência para aquelesque não estiverem pondo em prática o seu co-nhecimento. Francisco deAssis declarou certa vez: “A humanidade possui tanto conhecimento quan-to aquele que põe em prática”. Isso significa que aquilo que você saberealmente – no sentido plenamente bíblico e hebraico – é o que você vive.Lesslie Newbigin diz muito bem: “Em vista da realidade suprema na Bí-blia ser pessoal... não somos levados a conformar-nos com esta realidademediante um processo de teoria e prática de dois passos... mas pela açãoúnica composta de ouvir, crer e obedecer”.25

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TEOLOGIA DO POVO 19

Segundo, ao longo da história da atividade teológica cristã, a separaçãoentre teoria e prática não teve lugar até bem recentemente. Desde a funda-ção da igreja até o século dezessete, a teologia não era a base da ação prática,embora fosse em si mesma essencialmente prática. Em sua obra By theRenewing of Your Mind Ellen Charry descreve a sua experiência de trabalharapoiada nos escritos de Paulo, Atanásio, Basílio de Cesaréia, Agostinho,Anselmo. São Tomás, Dama Juliana e João Calvino. Ela confessa que asdivisões no currículo teológico moderno faziam cada vez menos sentido.26

A autora pede uma recuperação da “sapiência” – envolvendo Deus a talponto no amor que conhecedor e conhecido fiquem emocionalmenteligados – algo perdido em grande parte na modernidade, quando a teolo-gia se tornou a justificação intelectual da fé.27 Desse modo, a teologia comoteologia prática e a teologia como teologia espiritual foram dissociadas,fragmentadas. Compreender a história desta fragmentação da teologia éessencial, embora eu só possa lidar com isto em largas pinceladas.28

Na igreja primitiva, a teologia estava integrada na vida das comunidadesou monastérios cristãos locais. Ela dizia respeito a assuntos e questões prá-ticas referentes à liturgia e vida do povo de Deus.29 Era um habitus prático– a disposição da alma, a verdade vivida e a phronésis, sabedoria prática.30

Não havia separação entre teoria e prática. O indivíduo não estudava teo-logia durante três anos, acumulando informação sobre Deus e depois, aoformar-se, aplicava isto no campo. Congar nota que “até o final do séculodoze, a teologia é essencial e, podemos dizer com acerto, exclusivamentebíblica”.31

Ela permaneceu assim até boa parte do século onze, mesmo depois dosurgimento das universidades, sendo estas, a princípio, anexas aosmonastérios e catedrais. Mas, no século doze, as universidades se tornarammais independentes, os acadêmicos adotaram um modelo aristotélico depensar, que visava demonstrar conhecimento racional e ordená-lo por suaprópria causa. A teologia se tornou uma ciência especulativa, especialmentecom Tomás de Aquino32, marcando desse modo o fim do acordo de que ateologia era prática em sua essência, embora não fosse assim na igrejaoriental até muito mais tarde.33

À medida que a teologia se tornou cada vez mais reduzida a fórmulaslógicas e racionais, a questões de aplicação, os assuntos relativos à vida real

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das pessoas no mundo foram relegados a uma única seção dos livrosdidáticos abrangentes, como são hoje. A teologia aplicada é vista comoum subconjunto da teologia sistemática, juntamente com a ética, missiologiae outras subsidiárias. Apesar do protesto dos franciscanos, a teologia práticatornou-se marginalizada, enquanto as teologias acadêmicas buscavam umaanálise rigorosa e imparcial da verdade. A teologia era procurada nas uni-versidades, enquanto os teólogos práticos, na maior parte centralizados nosmonastérios, buscavam a espiritualidade cristã, exemplificada na Imitaçãode Cristo, de Thomas à Kempis. Devemos ver essas obras como teológicaspara o povo de Deus e até teologias por leigos (assim chamados),34 emborageralmente considerados como clássicos da teologia espiritual. A Reformafoi em si mesma uma reação à igreja medieval, e Lutero disse certa vez: “Averdadeira teologia é prática, a teologia especulativa pertence ao diabo noinferno”.35

No século dezoito, a teologia pastoral surgiu como uma disciplinaseparada da teologia moral e se ocupava de poimenics – as atividadesdo pastor. No século dezenove, o cativeiro clerical da teologia aplicadaestava quase completo. Portanto, na maioria dos modernos seminários,a teologia prática tem sido quase sempre reduzida a cursos do tipo comofazer, no geral medidos pela eficiência e sucesso no crescimento da Igre-ja, sem levar em conta se tais ações são normativamente cristãs e semuma reflexão teológica adequada.36 E a teologia “pura” foi reduzida àconversa piedosa dos consoladores lastimáveis de Jó: racional, objetivae abstraída.

A teologia pode ser recuperada? Há alguns sinais encorajadores derenovação.

Terceiro, estamos testemunhando a recuperação da teologia comophronésis, sabedoria prática, especialmente com muitos teólogos contem-porâneos, inclusive as teologias de libertação de Segundo, Gutiérrez e Boninoe as teologias nativas de grupos de povos em todo o mundo.37 Apesar detodos os problemas dessas teologias – questões cuidadosamente criticadaspelos evangélicos por sua hermenêutica falha e o que Stott chama, no casoda teologia da libertação, sua “perigosa inocência”38 – elas, não obstante,recuperaram algo essencial. Isto foi expresso por Henri Nouwen quandovisitou o Peru. Em suas palavras: “teologia não é principalmente um meio

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de pensar, mas de viver. Os teólogos da libertação não pensam em umnovo estilo de vida, mas vivem num novo estilo de pensamento”.39

Estamos então, agora, em melhor situação para definir teologia demaneira a conservar sua natureza essencialmente prática. Isto foi feitobrilhantemente pelo puritano William Perkins, que declarou que teologiaé a “ciência de viver abençoado para sempre”.40 Anos antes dele, MartinhoLutero confessou, com respeito à maneira como suas provações, contro-vérsias e sofrimentos o tornaram um teólogo da cruz: “É mediante a expe-riência do tormento da cruz, morte e inferno que a verdadeira teologia e oconhecimento de Deus surgem... Só a cruz é a nossa teologia” (CRUX solaest nostra theologia).41 É precisamente esta “teologia arrancada da vida” quesublinha a celebrada declaração de Lutero relativa às qualificações do verda-deiro teólogo: “viver, ou antes, morrer e ser condenado é que faz o teólogo,não compreender, ler ou especular”.42

Só uma revolução curricular pode remediar essa bifurcação de modo anão só pensarmos teologicamente, mas também vivermos teologicamente.Se todas as disciplinas da academia teológica fossem ensinadas consistente-mente na direção apontada pela Bíblia – fé ativa em amor – com a teoria ea prática ligadas em mútua dependência, em vez de simplesmente coloca-das de maneira linear, haveria qualquer necessidade de uma disciplina sepa-rada com o nome de teologia aplicada?

O que é teologia para todo o povo de Deus? Não é apenas uma sistemá-tica “diluída” e popularizada; mas, como disse William Perkins: “a ciênciade viver abençoado para sempre”. Ela explica e dá poder à vida do crentecomum no mundo. Mas, significa ainda mais: considera os atos de fé comonão só aplicando mas também descobrindo a doutrina. Em 1949, Ian Fraserescreveu um artigo original no Scottish Journal of Theology, intituladoTeologia e Ação, no qual diz:

A obediência ao Deus vivo deve estar além dos muros teológicos queservem atualmente de limites. Quando Abraão partiu, ele não tinhaidéia para onde ia. O alvo da teologia não é circunscrever tal açãoobediente. Deve alimentar-se dela... A teologia extrai a sua própriavida da adoração e nessa vida extrai seu alimento da obediência.43

É justamente a questão da obediência – verdade vivida – que dá lugar auma terceira distinção: a teologia por todo o povo de Deus.

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3. “POR” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIAACADÊMICA

Em julho de 1859, John Henry Newman publicou um artigo em TheRambler, intitulado Consultas aos Fiéis em Questões de Doutrina. Ele foijulgado escandaloso!44 Seria bom se esse escândalo pudesse proliferar! Alémdo mais, William Hordern diz: “Não temos simplesmente alternativas deteologia ou não teologia. Nossas alternativas são de uma teologia bem pen-sada, que passou pelo teste do pensamento crítico, ou uma teologia deconceitos confusos, preconceitos e sentimentos não analisados”.45 Vamosexaminar isto ponto por ponto.

Primeiro, a vida diária positivamente eriçada com a necessidade da re-flexão teológica. As questões existenciais enfrentadas pela maioria das pes-soas clama positivamente por uma teologia objetiva: Quem sou? Ondeestou? Qual o propósito da minha vida? A quem pertenço? Meu trabalhodiário tem algum significado? O que acontecerá quando eu morrer? Oplaneta tem um futuro? A tarefa teológica é não só interpretar a Escrituracomo também a vida e fazer essas coisas ao mesmo tempo.46

Alister McGrath oferece uma crítica mordaz da teologia acadêmica combase no fato de que Deus desceu à terra em Jesus Cristo:

A teologia deve ser prática; servir a igreja é sua missão para o mundo –e se ela não for prática, deve ser forçada a isso, marginalizando de talforma a teologia acadêmica na vida da igreja que ela deixe de ter qual-quer importância para essa igreja, a fim de que uma teologia orientadano sentido das necessidades pastorais e missiológicas da igreja possadesenvolver-se em sua esteira.47

Segundo, muitos teólogos importantes ao longo da história da igrejatêm sido não-clericais, não-profissionais: Tertuliano, Clemente de Alexandria,Orígenes; e na Igreja Oriental, Sócrates e Sozomen.48 A Reforma foi essencial-mente um movimento leigo. João Calvino disse em uma de suas cartas: “Nuncafui nada mais que um leigo (laicus) comum, como o povo afirma”.49 Medianteum “acidente na história”, a saber, a conquista do Império Romano no Ociden-te pelos bárbaros e a preservação da cultura religiosa pelos monges e sacerdo-tes, a igreja ocidental reservou a pesquisa teológica para o clero. Na igrejaoriental, todavia, havia um monopólio clerical menor, de modo que até os

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tempos modernos as cátedras de teologia eram ocupadas por leigos,embora lamentavelmente não o fossem por mulheres leigas.50

Ao comentar sobre a teologização da comunidade no verão indiano domundo antigo, William Frend nota que a teologia era a paixão dominantedo cristão provincial. Em Constantinopla, capital do império, pontos dedoutrina eram discutidos nos bazares, mercados e banhos públicos, nãopor teólogos, mas por cristãos comuns intelectuais. Gregório de Nazianzodeclarou, em 379 d.C.: “Se você pedir troco a qualquer um nesta cidade,ele vai debater com você se o Filho é gerado ou não-gerado.”51 (No séculovinte, o leigo C.S. Lewis se destacou pela sua teologização.)

Isto incorre em risco, como Alister McGrath mostra em seu estudo TheGenesis of Doctrine. Embora a vida religiosa dos monastérios tenha geradoo conceito da Mariologia, a piedade popular fez surgir o dogma da assunçãode Maria.52 A teologia tem sido preparada por cristãos cons-cienciosos eeducados, que não fazem parte do clero ou da academia.

Terceiro, a teologia está sendo feita hoje por pessoas comuns. Como opersonagem na peça de Molière que ficou surpreso ao saber que estavafalando prosa todo o tempo, o cristão sério mas não-clerical pode surpre-ender-se ao descobrir que está fazendo teologia a maior parte do tempo.53

A teologia do “povo” prolifera em filmes e livros, assim como nas conver-sas particulares: teologia vernacular, teologia no-impulso-do-momento,teologia improvisada e teologia indígena.

Por exemplo, uma amiga “atéia” de minha neta pequena contou-lhe quenão existe Deus no céu.

– Olhe – disse ela –, se não existe céu, por que então morrer? – purateologia!

No filme A Man for All Seasons (Um Homem Para Todo Tempo),Thomas More diz à filha: “Quando um homem faz um juramento, eleestá guardando nas mãos seu próprio ser. Como a água. Se abrir os dedosentão – não precisa esperar que venha a encontrar-se de novo”. More estárefletindo sobre a natureza da pessoa humana, sobre palavras e votos.

Isto é teologia sendo feita “de baixo para cima”. Grande parte dateologia que está sendo feita é inadequada, mas está sendo feita! A teologianativa, improvisada, embora quase sempre reacionária, freqüentementerevela dimensões inexploradas da verdade cristã.54

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Quarto, esta teologia vinda de baixo não é simplesmente uma curiosidade,sendo porém fundamental para todo empreendimento teológico. É notávelque em seu preâmbulo, Karl Barth afirma que através dos séculos o que elechama de “dogmática irregular” tem sido a regra – teologia feita como umadiscussão livre dos problemas da proclamação. A “dogmática regular” temsido a exceção. Ele inclui Atanásio e Lutero na primeira, em contraste comMelanchthon e Calvino na última. Barth alerta contra a comparaçãodepreciativa entre uma e outra. Ele de fato admite que a dogmática regular– na escola teológica e com vistas à perfeição e consistência racional –“sempre teve sua origem na dogmática irregular e jamais poderia terexistido sem o seu incentivo e colaboração”.55

Em contraste, o processo de “escorrimento” da instrução teológica naacademia e no púlpito oferece a verdade “pré-digerida” sem o privilégio dodiálogo e do aprendizado participativo. Ray Anderson toca num pontoimportante quando diz: “Intimidado pelas exigências dos eruditos bíblicose teólogos cuja carreira profissional é avaliada e afirmada por outros estudi-osos, a igreja se sujeita ao ceder seu papel na determinação de sua própriaagenda teológica”.56

Quinto, para recuperar a teologia por todo o povo de Deus, a tarefateológica deve ser relocada. A academia precisa trabalhar com a congrega-ção, o lar e o mercado. Por exemplo, no caso da congregação, nossa com-preensão do que constitui educação teológica começa a mudar quando umacongregação redefine sua área principal de ministério como a vida diária deseus membros, em lugar do serviço domiciliar.57 Por definição, mercado éo lugar onde coisas – mercadorias, serviços, informação – são trocadas.Como parte de meu aprendizado, passo duas semanas por ano no merca-do. Um curso requerido no programa de Mestre em Divindades no RegentCollege coloca cada aluno, durante 20 horas, ao lado de um cristão co-mum no trabalho, ouvindo perguntas, orando e tentando descobrir comoa igreja pode preparar pessoas para um ministério de tempo integral nomundo.58

Sexto, os teólogos profissionais têm um papel crucial na recuperação deuma teologia do povo. Eles também fazem parte da comunidade que con-tribui com sua pesquisa e perspectiva histórica. A tentação de deturpar todoo evangelho está sempre presente e os teólogos profissionais podem fazer

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com que o propósito redentor de Deus tenha forte influência sobre osnovos movimentos. Isto deve ser teologia feita por todo o povo de Deuse não simplesmente por uma parte dele. John Macquarrie chama isto de“co-teologizar”. Em um certo sentido, pode ser inadequado chamar istodemocratização da teologia, porque não é sobre kratos (poder), nem sobredireitos, nem sequer sobre corrigir um desequilíbrio, mas sim recuperaruma comunhão ao fazer teologia juntos.59 Poderíamos chamar isto de demo-teologizar ou koino-teologizar? Temos muito a aprender dos crentes sobreisto no mundo em desenvolvimento.60

Em contraste com a dicotomia da teologia e prática na academia dehoje, o Novo Testamento pressupõe uma comunidade em que cada pessoaé um teólogo de aplicação, tentando fazer sentido da sua vida a fim de viverpara o louvor da glória de Deus: teologia do, para e por todo o povo deDeus.

Este volume se apóia e está em débito com obras já mencionadas; masele se aproveita também da rica experiência e no geral das reflexões perceptivasdo corpo docente, de amigos e de estudantes do Regent College.61 Istoficará aparente em várias referências e notas no final de cada página. É umprojeto do povo. Parte desta obra teológica foi literalmente cravadadurante meus anos de carpintaria e negócios, assim como complementadae desafiada por teologias nativas de igrejas no mundo em desenvolvimentoonde minha esposa e eu servimos a cada ano. É só “com todos os santos”(Ef 3.18) que podemos saber quão largo, longo, alto e profundo é o amorde Cristo. E o amor, como veremos, é a essência do ministério e missão dopovo de Deus – nada mais nada menos. Teologia é a ciência de viver comamor e abençoado para sempre.

Nos capítulos seguintes iremos apresentar uma descrição bíblica do povode Deus, um povo sem laicato ou clero. A seguir, examinaremos comoesse povo é chamado e preparado por Deus no que se refere à vocação,trabalho e ministério. Consideraremos finalmente o que significa, para essepovo, ser entregue à vida do mundo como profetas, sacerdotes e reis, comoum povo missionário em conflito com as potestades.

Oro para que esses pensamentos possam ajudar os pastores a preparar ossantos (Ef 4.11-12); professores de faculdade que precisam de um livrodidático que envolva os cristãos comuns com o chamado superior de

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Cristo e seguidores zelosos que querem que sua vida tenha sentido,enquanto tentam equilibrar o que parece ser três empregos de tempointegral: ministério da igreja, trabalho diário e família. O livro pode serusado como uma base de estudo em pequenos grupos ou classes, usando oguia no final de cada capítulo. Como se tornará aparente de imediato, estelivro é a minha história.

PARA ESTUDO E DISCUSSÃO

1. Identifique a teologia expressa em cada um dos itens seguintes:

• um filme secular• um hino de adoração contemporâneo (cantamos nossa verdadeira

teologia)• um hino tradicional (por exemplo, um de Wesley)• um romance que tenha lido• uma peça de arte contemporânea (por exemplo, um quadro de Van

Gogh)

2. Escreva as perguntas que surgiram neste estudo, nas três áreasexaminadas neste capítulo:

• teologia do laicato• teologia para o laicato• teologia pelo laicato

3. Medite sobre as palavras solenes de Jesus no final do Sermão doMonte, no qual Ele usa o termo para sabedoria prática, phronésis:

Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reinodos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que estános céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, nãoprofetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demôniose não realizamos muitos milagres?’ Então eu lhes direi claramente:Nunca os conheci. [...] Quem ouve estas minhas palavras e aspratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobrea rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos ederam contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicercesna rocha (Mt 7.21-25).