o segredo do adriático

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84 v & V visão vida & viagens maio 2011 Rovinj é o bilhete-postal da cidade istriana à beira- -mar plantada. Um local abençoado que escapou aos bombardeamentos da II Guerra Mundial e, diz-se, na Idade Média, nem a peste aqui entrou

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Ístria, na Croácia, é uma península abençoada, que reúne o melhor do mundo: o mar tem a cor das águas caribenhas, o campo é bonito e bucólico como na Provença, a gastronomia é um best off de Itália e o tempo é ameno como em terras lusas. Há poucos lugares assim...

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O segredodo AdriáticoRovinj é o bilhete-postal da cidade istriana à beira-

-mar plantada. Um local abençoado que escapou aos bombardeamentos da II Guerra Mundial e, diz-se, na Idade Média, nem a peste aqui entrou

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Ístria, na Croácia, é uma península abençoada, que reúne o melhor do mundo: o mar tem a cor das águas caribenhas, o campo é bonito e bucólico como na Provença, a gastronomia é um best off de Itália e o tempo é ameno como em terras lusas. Há poucos lugares assim...

Pedro Miguel Santos HANS MADEJ/LAIF/4SEE

O segredodo Adriático

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UMA ALDEIA MEDIEVAL perdida no tempo, daquelas de contos de fadas. Um conjunto de casas, que se erguem 288 metros acima do nível do mar, todas encavalitadas num monte rodeado de planícies. A torre da igreja vê-se antes de tudo, altiva, qual vigilante observando a paisagem em redor: os extensos olivais, as

vinhas, os campos que ladeiam o rio Mirna e o levam a desaguar no mar Adriático, a vinte e pouco quilómetros de distância, junto a Novigrad. Se o tempo perguntar ao tempo quanto tempo Grožnjan tem, o tempo responderá que Grožnjan tem muito tempo. As pedras das ruas estão gastas, redondas, luzidias. Há ervas, trepadeiras, flores nas fachadas dos edifícios, que se unem uns aos outros através de pátios, escadas, varandas, arcos. As artérias do lugar misturam-se umas nas outras, como cobras, entre pequenos largos e árvores frondosas. Já aqui mandaram os venezianos, os austro-húngaros, Napoleão e Tito, e isso nota-se na arquitetura, no perfil das casas.

Mas nas ruas de Grisignana, o nome italiano da povoação – este é o único local da Croácia onde a população da «bota» supera a nacional –, quem agora governa são espíritos livres e pachorrentos – os gatos. Há-os por todo o lado e para todos os gostos: grandes, pequenos, com e sem dono, comuns e de raça. Parados como esfinges, a rebolar no chão ou a correr uns atrás dos outros, aproveitam enquanto não começam a chegar outros espíritos livres com quem dividem a cidade durante o final da primavera e o verão – os artistas.

No dia 2 de maio de 1965, quando Tito governava a Repúbli-ca Socialista Federativa da Jugoslávia instituiu-se, aqui, a Cidade das Artes. Degradada e abandonada durante a II Guerra Mundial, Grožnjan transformou-se numa colónia de músicos, pintores e es-cultores croatas e eslovenos que aqui viviam e trabalhavam, durante todo ano. A ocupação da aldeia devolveu-lhe a vida e fez com que as casas, muitas delas em mau estado de conservação, fossem recupe-radas. No século XXI, é um exemplo notável de povoado medieval, que alberga mais de trinta galerias, ateliês de arte e lojas de artesa-nato.

Este castelo, como também já foi chamado, é um reino de cultura. É lá a sede do Centro Internacional da Juventude Musical Croata, responsável por inúmeros cursos de formação na área da educação musical, que promove o intercâmbio entre músicos de todo o mun-do, e organiza concertos de música clássica, recitais e o famoso Fes-tival Internacional de Jazz – Jazz is Back! (1 de junho a 1 de agosto). De 22 a 25 de setembro, o Ex Tempore, festival internacional de artes performativas, invade tudo de cor, alegria e movimento. A Academia Cinematográfica Immaginaria, um centro de arte dramática e cul-tura alternativa, bem como o Centro Cultural Polivalente da Região Istriana completam a corte.

No povoado onde moram pouco mais de cem pessoas cabem todos os mundos e todas as culturas. Basta entrar no Kaya Energy Bar & Design Gallery – um espaço que vende mobiliário, de sofás trendy a candeeiros vintage, e é também um belo café com esplanada – e

ÉA aldeia medieval de Grožnjan é uma Cidade das Artes, que acolhe mais de trinta galerias e importantes espetáculos culturais e performativos durante todo o ano.

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Motovun surge como um miradouro, a 277 metros, sobre o vale do rio Mirna

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estar atento ao som ambiente: «... A chuva molhava-me o rosto/Gela-do e cansado/As ruas que a cidade tinha/Já eu percorrera...». Mariza, no seu melhor.

O ambiente cosmopolita que se sente em Grožnjan/Grisignana – opte-se por qualquer dos nomes, pois o Italiano é a segunda língua deste território e até os sinais de trânsito são bilingues – não é um acaso. É um reflexo da história da Croácia – que celebra a 25 de junho 20 anos a sua independência da Jugoslávia – e da sua geografia: metade do país olha para Itália, a outra metade confina com países balcânicos. A Ístria é maior península do mar Adriático, entre o golfo de Trieste e o golfo de Quarnero, e o seu território é dividido entre a Eslovénia e a Itália mas, sobretudo, a Croácia.

Os anais mostram como a região foi disputada, seja pelas suas riquezas naturais, seja pela posição geoestratégica para controlo do Mediterrâneo. Aqui estiveram todos os povos e impérios que consti-tuem o património da Europa e da cultura ocidental: celtas, gregos, romanos, bizantinos, otomanos, venezianos, austro-húngaros, italianos, alemães.

A Ístria tem exemplos desta diversidade em todo o seu território. Pula é um exemplo da ocupação romana, com o seu imponente e bem conservado anfiteatro e um arco triunfal que, dizem os locais, inspirou Napoleão, quando por lá passou, a construir o mais famoso arco de

França. Poreč conserva, orgulhosa, a Basílica Eufrasiana, um dos mais importantes exemplares da arquitetura bizantina chegados aos dias de hoje, declarada Património da Humanidade pela Unesco. E toda a costa tem um ar de Veneza, seja em Umag/Umago ou Rovinj/Rovigno. Continuemos por aí, então…

A cidade dos gigantesA vinte minutos de Grožnjan, seguindo para montante, ao longo do rio Mirna, encontramos uma quase réplica da Cidade das Artes. Só que esta é a Cidade do Gigantes e chama-se Motovun. Rezam as histó-rias populares que Montona (it.), com seus campos férteis e florestas, era terra de gigantes. Com o tempo, as criaturas foram desapare-cendo, devido ao domínio das pessoas comuns. Mas ficou um bom colosso, por todos hoje recordado, e que simboliza o espírito distinto e amável do povo istriano, de seu nome Veli Jože. Este é o nome do personagem principal de um conto popular evocativo do combate ao fascismo, de Vladimir Nazor, primeiro chefe de Estado da Croácia Moderna e um dos seus mais conhecidos autores.

Povoado medieval, com muralhas originais levantadas nos séculos XIII e XIV que resistem até hoje, as suas construções são resultado de séculos de história de ocupações. Nas casas, na porta de entrada na cidade, nas torres e arcos de vários períodos arquitetónicos – românico, gótico,

Umag, uma conhecida marina e estância balnear desde os tempos romanos

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A Croácia tem 1 278 km da costa e 1 244 ilhas, ilhotas e penhascos

renascentista – os leões e os brasões de família são a grande marca do domínio de cinco séculos da Sereníssima República de Veneza.

Subir de carro até ao topo dos 277 metros de altura só é permitido até determinado ponto, porque a circulação dentro de Motovun é feita a pé, como na Idade Média. Mas o prémio compensa: uma vista a 360º sobre todo o território interior norte.

Desde 1999 o cartão-de-visita é o festival de cinema alternativo e independente, Motovun Film Festival (25 a 29 de julho), que utiliza a Piazza Andrea Antico como auditório ao ar livre e é uma espécie de festival de verão, versão sétima arte, com acampamento incluído.

Na mesma praça, a esplanada do Hotel Kaštel não pede que nos sentemos. Obriga. Por entre mesas e cadeiras, frondosos castanheiros cobrem toda a área com ramos velhos e largos, mas seguros. É o sítio ideal para apreciar a paisagem e ver a Floresta de Motovun. O local onde habitavam os gigantes é, agora, dominado por seres de outro porte: quatro patas, cauda dançante, nariz e olhos colados à terra,

como quem vê o que se esconde debaixo do lamacento chão. Cães. Em busca da mais apreciada e singular túbera (um corpo frutífero que cresce debaixo do solo, da família dos fungos) pelo qual os homens se apaixonaram. O ouro gastronómico que tem projetado a Ístria como região gourmet mundial – a trufa branca – só cresce nesta floresta (de setembro a janeiro) e em Alba, Piemonte, Itália, e alguns gramas podem custar milhares de euros. Vamos apanhar uma?

Fungos de ouroPor volta das nove da manhã, Mário Tikel, 58 anos, aguarda calmo e bem-disposto a chegada dos turistas que o vão ver procurar os tão afamados fungos. Os melhores períodos para a apanha são por volta das cinco, seis da manhã ou sete, oito da noite, porque há mais humi-dade e os cães sentem melhor o cheiro. Veremos como corre.

Firme no passo, mas vagaroso no andar, Mário conhece os cami-nhos desta floresta como ninguém. Há mais de trinta anos que se

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dedica a apanhar trufas, tarefa que só pode ser feita por croatas, mediante uma autorização especial. Segue os cães, que aqui são quem mais ordena. Treinados pelo menos durante quatro anos para sentir o cheiro único e inimitável das túberas, estes rafeiros – os cães de raça não prestam para este serviço – podem valer mais de €4 000 e são parte essencial do trabalho. Percorrem a mata entre choupos, salgueiros, carvalhos, álamos, tílias, bordos-negros e aveleiras cobertas de musgo. Avançam uns metros e param. Cheiram o chão atentamente, tornam a seguir. Nada.

A procissão de curiosos prossegue, preocupada em não se enterrar na lama, desviar-se dos espinheiros e afugentar as nuvens de mos-quitos que estão por todo o lado. Mário Tikel continua a caminhar, em passo de passeio, muito direito, de mãos atrás das costas, assobiando aos bichos de vez em quando, e segurando a vadilica (do verbo vaditi, que em croata significa sacar), instrumento que serve para retirar as trufas de debaixo da terra, esperando que os caníde-os deem sinal e comecem a escavar. O «acontecimento» ocorreu a meio da manhã: uma pequena Tuber magnatum Pico foi retirada da base de um carvalho. Todos festejam, mas o comandante não parecia muito excitado. Afinal, soube-se depois, fora ele colocar a trufa, apenas para os turistas verem. A grande semana tinha sido a anterior, com a lua cheia, época em que se apanham mais e melhores espécimes, dizem.

Não estava lua cheia a 2 de novembro de 1999, quando Giancarlo

Zigante e a sua cadela Diana descobriram a maior túbera alguma vez conhecida – 1 310 gramas – que entrou para o Livro de Recordes do Guinness. O feito foi de tal forma importante que colocou a Croácia nos holofotes do mundo e as ofertas para compra do alimento atin-giram preços de dezenas de milhares de euros. Zigante não vendeu e, num magistral golpe de marketing, ofereceu uma jantar a mais de 100 pessoas, convidando a elite istriana e croata a provar as maravilhas produzidas na floresta centenária.

Assim, colocou a pequena aldeia de Livade, que fica mesmo aos pés da Motovun, no mapa e tornou-a o centro mundial das trufas. O local já é famoso pelo restaurante de Zigante, sede da sua empresa de transformação, exportação e preparação de túberas e por acolher, anualmente, o Tuber Fest, uma feira de outono dedicada aos sabores desta época – como cogumelos e fruta – mas, sobretudo, empenhado na divulgação da trufa. Estão presentes algumas dezenas de apanha-dores a leiloar as suas «colheitas», em contacto direto com o público. Há para todos os gostos – brancas, pretas, grandes, pequenas, caras e baratas – e muitos produtos e derivados deste impressionante alimento.

Mas nem só de espetáculo vive a gastronomia da região. Meia hora de caminho até Špinovci, em direção ao agroturismo de Mário Tikel, e é lá que, pela primeira vez, se descobrirá o verdadeiro sabor da iguaria que se crê ter sido inventada por Júpiter – a lenda diz que num ataque de fúria, quando lançava raios sobre a Terra, um deles bateu na raiz

Mosaicos bizantinos da Basílica Eufrasiana, em Porec

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Aqui estiveram todos os povos e impérios que constituem o património da Europa

de um carvalho e... plim. O prato é simples: ovos mexidos com fatias muito finas de trufa por cima. Tão só isto. Tão só divinal. E nem vale a pena tentar descrever o sabor. Há que provar.

O azul Croácia Deixamos o interior da Ístria e avançamos em direção à costa, percor-rendo o rio Mirna quase até à foz. Seguimos o mesmo caminho que as árvores da Floresta de Motovun, há uns séculos, faziam – depois de cortadas, seguiam até Novigrad e, daí, eram levadas para Veneza, usadas na construção das fundações da cidade. Pelo caminho veem-se olivais e vinhas das castas Teran e Malvasia. Estas são as outras gran-des âncoras do turismo rural/gastronómico da Ístria, o vinho e o azei-te. Porque os solos são bons, o clima é mediterrâneo mas, sobretudo, porque os novos agricultores são jovens, com formação, e estão a criar projetos de agroturismo ligados aos seus centros de produção. Adegas e lagares para provas estão um pouco por todo o lado, como em Buje/ /Buie, conhecida capital do finíssimo azeite virgem extra croata, e que é considerado dos melhores do mundo.

Seguimos em direção a Umag/Umago. A cidade, localizada no no-roeste da Croácia, a poucos minutos da Eslovénia, é detentora de uma conhecida marina e estância balnear desde os tempos romanos.

Enquanto a estrada nos conduz a Novigrad, é imperioso falar no mar. O país beija o Adriático ao longo de 1 278 km da costa, à qual perten-cem 1 244 ilhas, ilhotes e penhascos. A zona costeira divide-se em duas partes: entre a península de Ístria, onde nos encontramos, e o golfo de Kvarner e a Dalmácia, com Dubrovnik a definir o fim da região.

O oceano aqui tem uma cor especial, singular, complexa. Não é bem azul-turquesa porque aqui e ali há reflexos ora mais escuros, ora mais claros. Não se pode dizer que seja transparente, porque tem uma cor intensa e luminosa. A cor deste mar ficará conhecida como azul-croá- cia. Um azul daqui, muito próprio e especial, que é resultado das águas calmas sob a costa calcária, com pouca areia em suspensão.

Continuando até Novigrad/Cittanova encontramos outro exemplo da estância de férias veneziana, com casas e villas de traços góticos e ruas de projeto medieval. Como sempre, há uma torre de igreja que domina o cenário e a praça principal. Mas o inimitável aqui é o lungomare,

Durante cinco séculos, a Sereníssima República de Veneza governou os destinos de Ístria. O leão veneziano, marca desse tempo, encontra-se por todo o lado

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o passeio marítimo que contorna toda a cidade. Em passo vagaroso, calmo, são necessárias duas horas para calcorrear todo este percurso. Saltita-se de pedra em pedra, sobem-se e descem-se escadinhas, des-viam-se os pés da beira-mar para ver os barcos e o porto dos pescadores e avança-se em direção aos pinheiros que guardam a baía, por entre as estranhas praias. Estranhas porque ali não se podem fazer caste-los, nem enterrar ninguém na areia. Simplesmente não há areia. Há grandes pedaços de calcário, na melhor das hipóteses existe cascalho. É assim por todo litoral da Croácia. Praia significa, na maioria das vezes, uma grande plataforma de cimento, como um grande e largo paredão, com reentrâncias a fazer lembrar uma piscina.

Voltando ao passeio marítimo, percorra-o noite, após um belo e demorado jantar. Parta por volta da uma da manhã e prepara-se para sentir o mar de outra forma, ouvindo-o.

O caminho sagradoRumamos a Poreč para ver o complexo episcopal da Basílica Eufrasia-na, o maior conjunto de arquitetura bizantina inicial do Adriático, da-tado do século VI, erigido no local onde, duas centenas de anos antes, se tinham já erigido as igrejas do Adriático. A sua importância é reco-nhecida pela classificação como Património Mundial da Humanidade e deve-se ao facto de manter quase intactas as suas estruturas: batis-tério octogonal (sec. VI), torre do sino (sec. XVI), palácio episcopal (sec. VI) e capela memorial (sec. XVII e XIX). Dentro da nave principal da igreja duas coisas chamam imediatamente a atenção: o altar-mor e os capitéis das colunas que sustentam a nave central. O primeiro é um exemplo notável da minuciosa arte decorativa bizantina, que cria figuras e quadros bíblicos em fantásticos mosaicos, feitos de pequenas pedras cobertas de ouro, semipreciosas, conchas, madrepérolas. O segundo mostra como os construtores do templo aproveitam muitas

da ruínas romanas como matéria-prima: as colunas gregas têm dois capitéis, ora com motivos vegetalistas e de forma piramidal invertida, ora usando capitéis coríntios.

Se as forças deixarem que suba até à torre da igreja, para ver toda a grandiosidade de Poreč, vai ver destroços dos templos de Marte e de Neptuno, e imaginar como estas ruas foram já local onde as legiões romanas descansaram ou a burguesia veneziana vinha veranear nas suas belas casas em estilo românico e gótico, viradas para o mar.

Com o Adriático por quase todos os lados, está a cidade de Rovinj/Rovigno – o verdadeiro bilhete-postal da cidade pitoresca istriana no litoral. Talvez seja por ser um local tão bonito e mágico que escapou ilesa aos bombardeamentos, durante a II Guerra Mundial, o que só veio acrescentar fama, à fama que já tinha de local onde não havia doenças, nem pestes e o ar era mais puro. Uma crença que não vem de agora, e a tornou, no século XVIII o segundo mais populoso local da Ístria vene-ziana, depois de Kopar. Era tal a fé de que em Rovinj não havia males, que todos lá queriam morar, ainda a pequena elevação era uma ilha e não tinha ligação continental. Durante anos, só podia vir habitar a po-voação quem tivesse uma profissão útil à sociedade da época. Essa so-brelotação também se nota na fisionomia da urbe, que escala o pequeno monte até à Igreja de Santa Eufémia. Há ruas estreitas e acidentadas, ruelas, ruinhas, becos, casas encavalitadas umas nas outras, cheias de anexos e arcos por cima das vias. O quadro ainda é mais bonito e caótico por causa de centenas de janelas e portadas de madeira que parecem furar este corpo comum e disforme de construções.

O melhor espaço para assimilar todo este conjunto e ver as mais de 28 ilhas que estão ao largo de Rovinj é o terreiro da Igreja de Santa Eufémia. Dentro do templo existe um enorme sarcófago de mármo-re onde, rezam as profecias, está mumificado o corpo original desta mártir católica. O santuário marca a paisagem da cidade, domina

O imperador Vespasiano mandou erigir em Pula, a Arena. No século I os gladiadores defrontavam-se aqui contra homens e animais, sob o olhar de 23 000 espetadores, sedentos de sangue

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tudo, impõe-se como nenhum outro, serve de guia. A torre, com 60 metros de altura, sustenta uma estátua da padroeira da cidade, em cobre, que roda com o vento. Esta engenhosa construção é uma referência para os pescadores – sim, porque apesar do turismo, esta ainda é uma terra de lobos-do-mar – que decidem a saída para faina consoante o local para onde a imagem estiver voltada. Por falar em homens de mar, é impossível não comer bom peixe e marisco nesta cidade. A grande especialidade são os diferentes petiscos e pastas à base de peixe e marisco, sejam lagostins, lulas, vieiras, mexilhão, sardinha, polvo ou, até, bacalhau.

A cidade triunfalEm direção à maior e mais importante urbe da Ístria, Pula/Pola, a orografia torna-se plana e sucedem-se planícies de oliveiras guar-dadas por muros de pedra. No meio dos terrenos surgem Kažun, construções circulares de pedra, de telhado cónico, totalmente amplas por dentro. Primitivas, mas engenhosas, as pequenas casas servem para os agricultores se abrigarem e guardarem as suas ferramentas. A grande peculiaridade é serem feitas de pedras sobrepostas umas sobre nas outras. Nada mais as segura. Mesmo o teto é feito sem um único pilar ou trave.

São uma boa mostra de como os sulistas istrianos têm no seu código genético o jeito para a engenharia e a construção. Pula é o expoente máximo da ocupação romana no sul da península e

guarda testemunhos notáveis dessa presença. A pedra basilar do património é a Arena – o grande anfiteatro que se ergue à entrada da cidade onde gladiadores se batiam entre si e animais. Com 32 metros de altura e 130 m por 105 m, a sua forma elíptica acomodava cerca de 23.000 espetadores e foi mandado erigir pelo imperador Vespasiano no século I. Hoje é o sexto maior anfiteatro romano no mundo e está razoavelmente conservado, apesar de ter sido bombardeado durante a II Grande Guerra. O Arco Triunfal de Sergi, a Porta de Hércules, o Teatro Romano e o Forum – praça onde se localiza o Templo de Augustus, em que funciona o município local, são outros exemplos da cultura romana na cidade. A melhor maneira de conhecer com detalhe toda a história é visitar o Museu Arqueológico da Ístria, que aqui tem sede.

Mas, atenção, é melhor não escavar nada por aqui. Cada vez que se constrói um edifício, a obra para por causa dos achados arqueo-lógicos. Há três anos, bem perto da Arena, saiu das fundações de um anódino prédio a cair, o maior conjunto de ânforas intactas em toda a Europa. Como diz o presidente da câmara local: «O melhor aqui é não mexer e manter enterrado. É a melhor forma de preservar».

Nas traseiras do Museu há uma colina que tem uma das melhores vistas sobre a cidade. Veem-se os guindastes e gruas do porto que fazem de Pula um importante estaleiro de construção naval. Além disso, vê-se a grande Arena, e o pôr do Sol, e imagina-se como era vida nos tempos dos contos de fadas... romanos.

A Arena de Pula é o sexto maior anfiteatro romano existente no mundo