o sagrado resumo - cópia

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ISSN 1678-7730

N. 61 FPOLIS, DEZEMBRO, 2004.

FASCNIO E TERROR: O SAGRADODora Maria Dutra Bay

Editor Prof. Dr. Rafael Raffaelli Conselho Editorial Prof. Dr. Hctor Ricardo Leis Profa. Dra. Jlia Silvia Guivant Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe Profa. Dra. Miriam Grossi Prof. Dr. Selvino Jos Assmann Editores Assistentes Cludia Hausman Silveira Dora Maria Dutra Bay Elisa Gomes Vieira Katja Plotz Fris Maria da Graa Agostinho Faccio Silmara Cimbalista Secretria Executiva Liana Bergmann

FASCNIO E TERROR: O SAGRADODora Maria Dutra Bay Doutoranda

Bernini O xtase de Santa Teresa (1645-52) A nica atitude espiritual que nos permite ver a possibilidade do sobrenatural e do santo a humildade. Humildade que se funda, nem mais nem menos, em julgarmo-nos pelo que somos, Santa Tereza de vila advertia que a humildade est na verdade. Perdemos a humildade sempre que nos rebaixamos ou nos exaltamos mais que a medida. (Basave, apud Birck, 93, p.53)

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RESUMO Este artigo trata da questo da natureza do sagrado a partir da abordagem de Rudolf Otto em sua obra clssica, O Sagrado. Levanta pontos essenciais visando o entendimento claro da idia central do autor: o sagrado, como um conceito composto e complexo, possuindo intrnsecas relaes entre seus elementos irracionais e racionais. O artigo dedica especial ateno compreenso do numinoso, a essncia irracional da religio. Apresenta tambm um quadro demonstrativo dos componentes do sagrados e suas subdivises. Destaca a abordagem fenomenolgica e compreensiva de acesso ao sagrado, abraada pelo autor, restabelecendo o valor dos elementos irracionais na idia de um Deus transcendente. Aponta ainda a relevncia do legado de Rudolf Otto para as investigaes posteriores sobre teologia, filosofia e histria das religies. Palavras chave: sagrado, irracional, racional, numinoso, sublime. ABSTRACT This article deals with Rudlf Ottoss concept of sacred from his classic book The Holy. It highligts esencials topics aiming at the understading of the authors central idea: the sacred, as a compost and complex concept, has intrinsic relationship between its rational and irrational elements. The article gives special attention to the comprehension to the numinous, the irrational religions essential, and presents a demonstrative table of the rational and irrational elements and its subdivisions. Also it makes considerations about the author's phenomenological and comprehensive approach of the holy, reaffirming the value of the irrational element in the idea of a transcendent God. In addiction it points out Rudolf Ottos significant legacy for further researches about theology, philosophy and history of the religions. Key words: holy, irrational, rational, numinous, sublime.

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Gelar o sangue alguma coisa de sobrenatural. Qualquer pessoa capaz de analisar com preciso os estados psquicos, reconhecer que tal temor no se distingue somente em grau e em intensidade do temor natural e nem um grau particularmente elevado deste ltimo. inteiramente independente de todo grau de intensidade. (Otto, apud Birck, 93, p. 72)

Rudolf Otto viveu de 1869 a 1937, na Alemanha. Telogo, filsofo e historiador das religies, lecionou Teologia nas Universidades de Gttingen, de Breslau e de Marburg, onde exerceu o cargo de reitor. Participou da vida poltica como membro do Parlamento Prussiano e da Cmara Constituinte em 1918. Luterano convicto, austero e profundamente dedicado aos estudos, foi apelidado de o santo por seus alunos na universidade de Marburg onde criou o acervo, a Coleo Religiosa, reunindo informaes sobre smbolos, rituais e aparatos religiosos, instituindo um centro de estudos das religies. Sua obra capital, Das Heilige (O Sagrado), publicada em 1917, constitui-se numa anlise, de base kantiana, da essncia irracional da religio, o numinoso, e a relao deste com seu par, o componente racional. Esta obra, O Sagrado, apresenta uma sntese das preocupaes filosficas, fenomenolgicas e tericas j evidenciadas em seus trabalhos anteriores, tais como Die Anschauung vom Heilien Geiste bei Luther (A Percepo do Esprito Santo por Lutero) e Naturalistische und Religise Weltansicht (Naturalismo e Religio). Da mesma forma, foi decisiva para suas investigaes posteriores, como as anlises comparativas entre o Hindusmo e o Cristianismo, Die Gnadenreligion Indiens und das Christentum (A Religio da Graa na ndia e o Cristianismo), West-stliche Mystk (Misticismo Ocidente e Oriente) e Reich Gottes und Menschensohn (O Reino de Deus e o Filho do Homem). No exguo espao desse comentrio no pretendemos esgotar o tema tratado no livro, nem mesmo apresentar um resumo da obra, mas somente levantar alguns pontos essenciais numa tentativa de entendimento da tese do autor. Ressaltamos que adentrar no tema s ser possvel se nos permitirmos um certo desprendimento da racionalidade que nos cerca, como j o autor nos adverte, e aceitarmos trabalhar com categorias que se situam no plano do no-racional que caracterizam o sagrado. Acreditamos que tal

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desapego no seja de todo improvvel, uma vez que ainda contamos com certos vestgios, conforme nos explica Franz Brseke:A impressionante habilidade que o homem ganhou quando comeava aplicar os conhecimentos cientficos no campo do trabalho, e o imenso crescimento dos seus conhecimentos na explorao do mundo, contriburam para o esquecimento gradual mas progressivo das irracionalidades que fundamentam e envolvem o seu fazer. Parece oportuno lembrar daquilo que no est no alcance de nossas mos e dos nossos clculos racionalizantes. Lembrar-se somente possvel quando ainda tm vestgios na nossa alma daquilo que esquecemos. Um desses vestgios um conceito que ainda est presente no pensamento contemporneo e que nos diz ainda alguma coisa, apesar da decadncia dos grandes sistemas religiosos; o conceito do sagrado. (Brseke, 2000,p.1)

A tese principal do autor a idia do sagrado compreendido como algo divino, diferente de qualquer realidade natural perceptvel e que escapa aos processos de racionalizao. J no subttulo do livro Otto nos assinala o caminho percorrido: uma anlise dos elementos irracionais e racionais que compem o sagrado, um conceito composto e complexo, portanto, e as intrnsecas relaes que se estabelecem entre eles. Mircea Eliade, tambm estudioso das religies, ressalta que o diferencial do livro de Otto a originalidade de seu ponto de vista, que oferece um acurado exame da experincia religiosa em si. Uma tal anlise somente viabilizou-se em decorrncia dos profundos conhecimentos do autor sobre Lutero e do entendimento do significado da idia de Deus Vivo, que inclui o poder terrvel e a clera divina.(Eliade, 95, p. 15). Elementos estes que, como veremos adiante, esto no cerne da definio de sagrado. Bruno Birck observa que Otto procura trazer para a filosofia da religio e para a teologia contempornea o elemento no-racional da religio distorcido pela racionalizao descomedida dos ltimos duzentos anos, justamente o componente que aponta para uma natureza supra-racional. No entanto, no pretende ele excluir a religio do domnio racional, mas realar sua parte originria no-conceitual, do Deus inefvel. (Birck, 93, p. 26)

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Os Elementos do Sagrado Objetivando encontrar uma forma de acesso racional ao sagrado, limitado este ao campo do religioso, Rudolf Otto desenvolve um extenso estudo da construo deste conceito nas diversas religies. Apresentado-o, portanto, como uma categoria, de interpretao e avaliao exclusiva e complexa. O termo categoria empregado pelo autor em seu sentido primeiro, como noo fundamental. A complexidade do sagrado decorre principalmente de sua composio: o elemento irracional, o numinoso, e o elemento racional, o predicador. Somente uma imperiosa necessidade racional capaz de estabelecer a interconexo entre os dois termos, o que acontece pela esquematizao. Esclarece que por irracional, ao contrrio do que pode parecer primeira vista, entende o que singular e no passvel de explicao conceitual, parte de uma obscura profundidade. J o racional no sagrado ou divino, o que o nosso entendimento apreende e interpreta, o que nos familiar e pode ser explicitado num conceito, campo de pura clareza.

O Irracional no Sagrado - O Numinoso

No intuito de elucidar as caractersticas irracionais peculiares do sagrado o autor cria o neologismo numinoso, derivado do termo latino numen, que significa deidade ou influxo divino. Explica ele que o elemento numinoso pode ser identificado como um princpio ativo presente na totalidade das religies, portador da idia do bem absoluto. Quando se refere ao numinoso esclarece que uma categoria especial de interpretao e de avaliao e, da mesma maneira, de um estado de alma numinoso que se manifesta quando esta categoria se aplica, isto , sempre que um objeto se concebe como numinoso. (Otto, 92, p. 15). Desta forma a categoria do numinoso caracteriza-se como algo sui generis, no passvel de definio explcita, mas sim de observao e descrio, como todo fenmeno originrio. A presena do numen desencadeia um estado de alma, uma reao consciente

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que pode ser objeto de anlises psicolgicas ou fenomenolgicas, as quais procuram descrever o sentimento numinoso. H estreita semelhana entre o numinoso e o mana, fora divina de algumas religies primitivas do Pacfico, tambm amoral e no-racional, e o orenda, o poder mstico dos iroqueses da Amrica do Norte. Nas palavras do autor:Quando a alma se abre s impresses do Universo, a elas se abandona e nelas mergulha, torna-se suscetvel, segundo Schleiermacher, de experimentar intuies e os sentimentos de algo que , por assim dizer, um excesso caracterstico e livre que se acrescenta realidade emprica, um excesso no apreendido pelo conhecimento terico do mundo e da conexo csmica, tal como est constitudo pela cincia. (Otto, op. Cit., p.188)

Os elementos que compem a parte irracional do sagrado so descritos pelo autor a partir da reao sentimental que vivenciamos diante do objeto numinoso, uma vez que este, o numinoso, pertence ao plano da experincia vivida, da vivencia religiosa. A presena do numen, do divino, provoca uma reao emocional denominada de estado de criatura, ou sentimento de ser criatura, que desencadeia uma espcie de aniquilamento do ser, ou percepo de pura existncia. Este sentimento de nfima criatura frente ao mistrio do divino experienciado como se fosse a projeo de uma sombra, oriunda do objeto numinoso, na conscincia. neste momento que estamos perante o mysterium tremendum et fascinans, o conjunto de sentimentos que correspondem apreenso do numinoso. O elemento mysterium a forma; seu contedo qualitativo repulsivo o temendum, pois provoca terror; e o fascinans, que exerce fascinao, o que nos atrai. Birck sintetiza explicando que:O divino apresenta-se em nosso sentimento como mistrio inefvel, supraracional. Este ser numinoso, qualitativamente diferente, exerce sobre ns uma estranha harmonia de contrastes: uma repulso, um terror demonaco e, ao mesmo tempo, uma atrao que fascina e cativa.(Birck, op. Cit.,p.32)

Assim entendemos que o mysterium que arrebata e comove constitui-se no elemento primeiro, e o sentimento de ser criatura j secundrio, dele decorrente.

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O mysterium gera trs sentimentos, os quais passamos a explicar. O mysterium tremendum que em sua forma primitiva faz tremer, causa calafrio. Manifesta-se pelo tremor mstico, o grau de maior profundeza e interioridade do sentimento religioso. Este elemento muitas vezes descrito nos textos bblicos como a ira de Deus, que na forma racionalizada transforma-se na justia divina, punio das transgresses. O segundo aspecto do mysterium o poder da majestade divina, o majestas, tambm manifestao do Deus vivo na experincia religiosa. Representa a superioridade mais absoluta do poder, tremenda majestas. Frente ao poder do numen, gera o sentimento de ser criatura, de dissoluo do ego, pois capta a soberania absoluta do objeto; ao mesmo tempo leva ao sentimento de plenitude de ser, plena presena, desenvolvido pelas diversas formas de misticismo, o que o autor denomina misticismo da majestas. O terceiro elemento a energia do numinoso, a org ou org, que se manifesta principalmente no misticismo e no amor. Caracteriza-se como a energia impetuosa da experincia religiosa, a qual provoca na alma o estado de excitao, de ardor herico, de impulsividade, o Deus que queima, demonaco. No entanto, como elemento irracional s pode ser representado por ideogramas que apontem apara algo indizvel, sendo, portanto a mais completa anttese do deus filosfico, racionalizado e moral. O autor adverte que estes trs elementos, o tremendum, o majestas e a org, os quais formam a qualidade positiva do objeto numinoso, encontram-se num plano exterior a ns, e se manifestam atravs dos sentimentos que chamamos de mysterium tremendum. No esgotam a idia do mysterium; mistrio este que pode ser descrito como um mirum, a surpresa do que secreto, incompreensvel, inexplicvel, que nos paralisa. Para Otto este sentimento numinoso compe-se de trs nveis evolutivos, que so: a simples surpresa de algo incompreensvel ao conhecimento comum; o paradoxo que mostra sua face antiracional; e a antinomia, o grau mais elevado do mirum que mostra os enunciados irreconciliveis e irredutveis entre si. Desta forma, contraditrio e antinmico, o mysterium alm de incompreensvel e supra-racional, apresenta ainda a caracterstica de ser antiracional, ou seja, incompatvel com a razo. o totalmente outro levado ao extremo nas

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teologias msticas e tambm nas idias jbicas de Lutero, originrias do livro de Job, do irracional na noo de Deus, e suas investidas contra a razo prostituta. Outro elemento do mysterium o que suscita uma atrao especial, tpica fascinao, que juntamente com o tremendum cria uma harmonia de contrastes. o fascinans, cuja experincia capaz de maravilhar, seduzir e embriagar, estados descritos atravs de expresses como abismo de prazer ou delcia sem fim. Caracteriza-se como o componente dionisaco do numen, das religies, capaz de exacerbar-se no delrio. No mbito do racional este elemento esquematizado na forma de amor, compaixo, benevolncia e piedade. O elemento do fascinans, enquanto valor subjetivo do numen, apresenta dois componentes denominados augustus e sebastus. O augustos ou o sanctum, o santo, que expressa a mais alta qualidade do numinoso, a santidade absoluta. A percepo da presena deste valor nos desperta a conscincia da profanidade, de no sermos dignos do numen, tambm do pecado, e da necessidade de buscarmos tal dignidade atravs da purificao, ou de atitudes espirituais como a humildade. O fascinans ainda nos depara com o componente sebastus, a indicao da essncia do objeto numinoso, que alude prudncia e ao respeito diante de Deus. O fascinans e o sebastus balizam valores ticos e morais, uma vez que a tica em sua essncia algo mais que uma elaborao social ou cultural num momento histrico, uma racionalizao decorrente dos sentimentos que o numinoso desencadeia. fundamental esclarecermos aqui que o autor ao descrever os elementos do numinoso procurou apresentar indicaes baseadas em analogias, mas no pretendeu caracterizar tal estudo como uma anlise conceitual ou mera racionalizao reducionista do fenmeno irracional. Nas palavras de Birck:Otto no quer cair num irracionalismo, mas estabelecer uma doutrina rigorosa, cientificamente vlida, mesmo usando smbolos de conceitos em lugar de noes adequadas. Esta doutrina no implica uma racionalizao do no-racional, mas visa aplicar com exatido smbolos, ideogramas, conceitos anlogos para captar e

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fixar os elementos do numinoso como se manifestam no sentimento. (Birck, op. Cit., p. 59)

O extenso e completo estudo realizado por Otto centra-se em sua concepo do sagrado como uma categoria a priori, de base kantiana. Afirma Kant que todo o conhecimento tem incio na experincia, ao mesmo tempo em que no possvel comprovar que todo ele seja proveniente da experincia. H uma diferenciao entre o conhecimento originrio das impresses sensveis, diretas do mundo exterior, o emprico, e o que acontece a priori, a partir de um estmulo exterior que incita uma capacidade interna de conhecer. Para Otto esta a uma fonte de conhecimento muito profunda que existe originalmente na alma. No pode ser considerada independente de dados exteriores ou anteriores s experincias sensveis, mas coloca-se nelas e entre elas, surge a partir delas, indiretamente. uma disposio, ou mais exatamente uma predisposio para o alcance de conhecimentos atravs dos sentimentos, uma espcie de fonte ou princpio gerador, uma forma de conhecimento a priori. O numinoso bem como os sentimentos dele decorrentes pertencem categoria de conceitos puros do entendimento, no originrios da percepo sensvel, como no o so tambm as idias de perfeio, entidade, necessidade e absoluto, dentre outras. Portanto no devem ser tomados por resultado de percepes, ou modificao de percepes em conceitos, mas como uma faculdade da alma, um impulso interno. Afirma Otto que existe no ser humano um instinto religioso, uma predisposio da razo humana, um princpio fundamental que o torna propenso ao sentimento religioso. Esta predisposio para a experincia do sagrado prpria do esprito do homem, caracteriza-se como um conhecimento a priori que o torna um esprito impressionvel, capaz de descobrir e de se deixar cativar, revelar. No intuito de exemplificar, o autor lana mo da analogia com o belo:Um objeto belo s pode causar impresso pela sua beleza, se existir e na medida em que existe a priori no prprio homem um critrio de apreciao pessoal, especificamente um critrio esttico. Uma tal predisposio s se explica mediante um obscuro saber originrio, que tem como objeto o valor do belo. Uma vez que este saber est no homem, ou antes, uma vez que o homem capaz de ter e formar, est apto a reconhecer a beleza quando se encontra na presena de um

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dado objeto que belo e de sentir que este objeto corresponde ao critrio escondido que o homem possui em si mesmo. Tal precisamente a impresso. (Otto, op. Cit., p. 202/203)

O Racional no Sagrado O autor entende por racional, no contexto do sagrado, algo que permite a compreenso direta pelo pensamento conceitual. Algumas vezes apresenta-se como caracterstica conceitual empregada para descrever as divindades, de modo a torn-las claras e acessveis ao entendimento comum. aqui que entra em cena o predicador, o predicado racional, o atributo que convm como apoio, mas que seguramente no esgota o sentido maior do sagrado. A ttulo de ilustrao citamos alguns predicados, dentre os mais utilizados, apontados por Birck: todo-poderoso, onipotente, esprito, sumo bem e unidade de essncia. Esses atributos so importantes, principalmente para o ensinamento da f, da doutrina religiosa, mas so sintticos, isto esto diretamente na dependncia de um objeto o qual amparam, mas do qual no captam a essncia maior, s percebida na experincia religiosa situada muito alm dos enunciados. Desta forma percebe-se que o elemento racional, o predicado, estabelece a ligao com o irracional, esquematiza-o, ambos caracterizam-se como a priori, o conceito kantiano de sentimento puro. Nas palavras do autor:Os elementos racionais e irracionais da categoria complexa do sagrado so, portanto, elementos a priori. Os ltimos so-no tanto quanto os primeiros. A religio no est sob a dependncia de telos (finalidade) nem de ethos (moral) e no vive de postulados. E o que nela h de irracional tem tambm uma origem independente e mergulha directamente as suas razes nas profundidades ocultas do esprito. (Otto, op.cit. p.177)

No decorrer evolutivo da histrica das religies foi acontecendo uma especial conexo entre os elementos do sagrado; os racionais esquematizando os irracionais, princpios a priori. Assim que possvel apontar alguns exemplos. O tremendum, elemento repulsivo do numinoso e sua correspondente esquematizao por meio dos conceitos racionais de

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vontade moral e de justia, da clera divina.

O fascinans, elemento atrativo, e sua

esquematizao pelo amor, bondade e misericrdia, transforma-se na graa divina. J o elemento mirum passa pela esquematizao que o transforma no absurdo, o predicado racional das divindades, ao mesmo tempo em que no mbito da teologia, na investigao e reflexo sobre o absoluto ligado ao conceito de Deus, conceito este incompreensvel pelo raciocnio. Por sua vez o elemento mysterium do numinoso tem por esquema a manuteno do componente irracional, impedindo a religio de se adulterar em puro racionalismo, ao mesmo tempo em que a conserva longe do fanatismo ou do misticismo exacerbado. Sua funo , pois de harmonizao, a qual assegura a superioridade de certas religies em relao s outras; no caso o autor indica o Cristianismo como religio superior, devido a feliz proporo existente entre seus elementos, que o leva forma de clssico e nobre. Otto adverte para o fato de que ao longo da histria das religies houve um excesso de dogmatismo, o qual ocasionou a supremacia do elemento racional sobre o irracional, resultando no racionalismo do Deus filosfico. No entanto, faz-se necessrio esclarecer a relao entre os dois elementos bsicos, pois a religio no nem puro misticismo, nem puro racionalismo; o sentimento religioso interage com a razo, como por exemplo, na forma de linguagem conceitual que empregada para exprimir sua vivncia, mesmo que no alcance sua totalidade de objeto inefvel. A prpria histria das religies mostra a constante relao interna existente entre os dois elementos. Um exemplo a diversidade de divindades criadas pela imaginao ao longo do caminho trilhado pela humanidade. Novamente recorrendo a Kant, o autor explica que a teoria do esquematismo transcendental aplica-se para elucidar a permeao que acontece entre os elementos, ou seja, o numinoso passa por um processo de esquematizao atravs de noes racionais. Assim a descrio do numinoso que se manifesta no mysterium tremendum et fascinans, inefvel e no conceitual, faz-se atravs de analogias que apresentam certa aproximao associativa. importante observar que anteriormente So Toms de Aquino j havia desenvolvido um estudo sobre o conhecimento de Deus por meio da relao de similitude. A analogia que mais permite aproximao ao mistrio a do sentimento do sublime, oriundo do domnio da esttica. O sublime caracteriza-se tambm como uma

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categoria no passvel de anlise, por trazer em seu ntimo algo de misterioso, repulsivo e atrativo, fato que o torna similar ao numinoso e adequado ao estudo por analogia. A lei da associao de idias que permite a analogia pertence ao campo da psicologia; demonstra que idias semelhantes sofrem atrao e provocam o aparecimento de outras igualmente similares. Para o autor o mesmo acontece com os sentimentos, sendo que um sentimento estimula a vibrao de um outro, de modo que se torna possvel passar de um sentimento ao seguinte, numa forma de transio gradativa. Ocorre um tipo de transferncia da realidade do sentimento, uma evoluo qualitativa, mas no uma transformao. Desta forma os sentimentos operam por semelhanas. O sentimento do sublime e o do numinoso por suas similaridades excitam-se mutuamente em funo de suas competncias a priori, suas correspondncias internas essenciais, inalterveis e estveis. A esquematizao o resultado de tal ligao ntima, o que permite a Otto afirmar que o sublime o esquema do sagrado, pois a noo racional esquematiza o numinoso irracional, partindo de uma necessidade externa e agindo no interno a priori, transcendental. Exemplificando o autor fala da msica, esclarecendo que a letra, ou poema musicado o elemento racional e os componentes sonoros so os noracionais que se relacionam e esquematizam os sentimentos, os quais provocam emoes que servem de expresso do numinoso. No entanto, o estado da alma que a msica proporciona, a forma como ela comove, no pode ser expresso por conceitos, mas interpretado por meio de analogias, de signos lingsticos. Outra forma de expresso do numinoso na arte, atravs do sublime, acontece na arquitetura. Desde a poca megaltica gigantescos blocos de pedra, independentes ou ordenados, j se revestiam de sentido mgico-religioso abrigando o numinoso. Da mesma forma as construes monumentais egpcias buscavam ser solenes e grandiosas, capazes de vibrar a alma, criando sentimento sublime de expresso numinosa. O autor aponta como expresso mxima do numinoso na arte ocidental o Estilo Gtico, no somente pela sublimidade que transmite, mas pela impresso mgica, um encanto que aproxima da verdade atravs do silncio e da obscuridade, a penumbra que

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mstica. Os elementos arquitetnicos que expressam o verticalismo, como os arcobotantes, as ogivas, as torres e os pinculos, juntamente com os grandes painis de luz e cor, os vitrais, foram largamente empregados para enfatizar sentimentos de elevao aos cus, de procura do infinito e de misticismo nas catedrais gticas. Igualmente as criaes ornamentais chinesas, japonesas e tibetanas influenciadas pelo budismo e taosmo provocam a impresso de verdadeiramente mgicas. Perceptvel por todos, independente de conhecimentos anteriores ou origem cultural, este sentimento do mgico uma forma abrandada do numinoso. Tambm nas pinturas paisagsticas e sagradas da China executadas durante as dinastias Tang e Sung encontram-se imagens de profundos mistrios, a um tempo velados e revelados, portadores do conhecimento sublime do Tao. Juntamente com o silencio e a obscuridade, o vazio e o nada orientais, posteriormente levados s ltimas conseqncias pelo budismo, so capazes de despertar a impresso do numinoso, uma vez que se caracterizam como negao, do real, abrindo lugar a presena do totalmente outro: eterno, indiferenciado, perfeito. A msica a expresso artstica que o a autor elege como a mais apropriada para anunciar o sagrado. Indica como exemplo o momento mais numinoso da missa, o da transubstanciao, no qual a msica se cala, deixando o silencio ser ouvido dando lugar ao pressentimento do mistrio. Aqui ilustra com a Missa em Si Menor de Bach, cuja parte mais mstica centra-se no encadeamento de fugas que enfraquecem at alcanar o pianssimo que anuncia o mistrio. Otto enfatiza que o sublime e o mgico da arte, sejam eles manifestados em maior ou menor intensidade, no passam de meios indiretos de representao ou expresso do numinoso, em sua forma atenuada e diluda. De forma direta o numinoso s pode ser vivenciado pelo esprito quando provocado ou despertado por situaes sagradas que alterem o estado da alma, numa forma de revelao interna, quando a alma se abre s impresses do Universo, a elas se abandona e nelas mergulha... O quadro apresentado abaixo oferece uma visualizao esquemtica dos elementos racionais e irracionais que compem a categoria complexa do sagrado.

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O SAGRADO COMPLEXIDADE DO CONCEITO TREMENDUM (Temor) S A G R A D O RACIONAL TREMENDUM TICA MORAL FASCINANS IRRACIONAL MYSTERIUM MAJESTAS (Poder) ORG (Energia) AUGUSTOS (Santo) SEBASTUS (Prudncia)

Consideraes Finais Ao demonstrar que a histria das religies se confunde com a histria do homem Otto atribuiu ao sentimento numinoso o estatuto de ontolgico. Colocou o sagrado antes do tico e para alm do racional, definindo sua essncia como numinosa, portadora de uma ambigidade que a constitui, a um mesmo tempo fascinante e tremenda. Deixando de lado os mtodos histricos, positivos e explicativos, o autor lanou mo de uma abordagem fenomenolgica e compreensiva de acesso ao sagrado, com base na interpretao emptica da essncia vivida. Alcanou plenamente seus objetivos ao restabelecer o valor dos elementos irracionais na idia de um Deus transcendente. Elementos estes que esto na mais autntica e imperscrutvel origem do sentimento religioso e que foram paulatinamente sendo relegados ou fragmentados pela secularizao das religies. A capital relevncia do legado de Rudolf Otto para as investigaes contemporneas sobre teologia, filosofia e histria das religies incontestvel. O Sagrado, publicado no incio do sculo passado, permanece um clssico e originou incontveis outras pesquisas. Mais recentemente, numa retomada do tema do sagrado, em contraponto a hiper-

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secularizao das religies, encontramos constantes referncias a seus estudos em obras de filsofos e telogos, mesmo que determinadas vezes alguns team crticas, pertinentes ou no. Dentre os questionamentos levantados, citamos o de Bruno Birck, que aponta a inviabilidade da aplicao da teoria do esquematismo de Kant para o estudo do sagrado, e defende a idia de que na verdade Rudolf Otto serviu-se do mtodo fenomenolgico de descrio para analisar a experincia religiosa. Igualmente seu pensamento est bem presente nas investigaes de estetas e outros tericos envolvidos no debate filosfico em torno das afinidades existentes entre as estruturas internas da arte e da religio; relaes estas que apontam para o campo de hierofanias artsticas, isto , a revelao de algo sagrado na obra de arte. Uma das significativas repercusses dos estudos de Otto a que pode ser constatada nas investigaes do Crculo de Eranos, do qual foi fundador, juntamente com Olga Frbre-Kaptein, e Carl G. Jung. Consta inclusive que o nome Eranos, que em grego significa comida em comum, numa clara aluso a Plato, foi por ele sugerido poca da criao do grupo. Embora seja considerado padrinho de Eranos, Otto nunca chegou a participar das Conferncias devido doena que o acometeu. No entanto os desdobramentos de sua abordagem fenomenolgica de acesso ao sentido da realidade e da existncia, levaram os erosianos criao de uma Hermenutica dos Sentidos e atestam a permanncia de suas reflexes no centro desse grupo pioneiro em estudos interdisciplinares. Sua influncia pode ser percebida em Carl G. Jung, na construo do conceito de arqutipo, entendido como estrutura simblica do inconsciente coletivo e como urdidura do sentido, quase numen, portador de energia numinosa. Nota-se o alcance de suas idias tambm nos estudos de Henri Corbin, Mircea Eliade, Walter Otto, Karl Kernyi e Gilbert Durand, centrados no pensamento mtico-mstico, um dos pilares de sustentao do Crculo de Eranos.

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Referncias Bibliografias 1. BIRCK, Bruno Odlio (1993) O Sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2. BRSEKE, Franz Josef (2000) Formas Irracionais de Pensar: o Pensamento Mstico. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Cincias Humanas. Florianpolis: CFH/UFSC. 3. ELIADE, Mircea (1995) O Sagrado e o Profano. So Paulo: Martins Fontes. 4. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA (1974) 15td edition, Chicago: H. H. Benton Publisher, Volume 13, pginas 769-770. 5. ORTIZ-OSS, Andrs (1986). El Crculo de Eranos: Origen y Sentido, in Una Hermenutica Simblica Del Sentido, Anthopos n.153. Barcelona: Editorial del Hombre. 6. OTTO, Rudolf (1992) O Sagrado. Sobre o Irracional na Idia do Divino e sua Relao com o Irracional. Lisboa: Edies 70. Referncia Iconogrfica 1. Gianlorenzo Bernini. O xtase de Santa Teresa (1645-48), mrmore em tamanho natural. Igreja de Santa Maria da Vitria, Roma, Itlia. Fonte:HOVING, Thomas. (1997) Greatest Works of Art of the Western Civilization. New York: Artisan/ Workman Publishing Company.

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NA FRIEZA DA PEDRA, O XTASE DA ALMAUma coisa acreditar na existncia do supra-sensvel, outra fazer dele uma experincia vivida; uma coisa ter idia do sagrado, outra percepcion-lo como um fator activo e operante que se manifesta atravs de sua aco. (Otto, 92, p. 185)

A escultura O xtase de Santa Teresa o ponto de maior interesse da Igreja de Santa Maria da Vitria, em Roma. Localizase na Capela Cornaro, encomendada e patrocinada pelo cardeal do mesmo nome, construda entre 1645 e 1652. Criada por Gianlorenzo Bernini, o grande mestre do Perodo Barroco Italiano, a capela considerada a pea mais deslumbrante do barroco religioso. O conjunto pode atualmente ser visto como uma obra multimdia, pois envolve componentes da arquitetura, escultura e pintura, alm da ao do meio natural. Do ponto de vista estilstico, esto a presentes algumas caractersticas barrocas evidentes, tais como a composio em diagonal, a movimentao e sntese das formas, o drapejamento, os acentuados contrastes de luz e sombra, bem como o realismo e a intensificao dos sentimentos. A escultura representa a experincia mstica da religiosa espanhola Santa Tereza Dvila, que no sculo XVI defendeu a reforma da Ordem a qual pertencia, criando a primeira instituio das Carmelitas Descalas. Mostra o momento no qual um anjo crava em seu corao a flecha do amor divino. Sabe-se que Bernini debruou-se sobre os relatos deixados por ela narrando o acontecimento, de modo a tentar melhor materializ-los na escultura. A figura escultrica representando Santa Teresa encontra-se colocada em um nicho central, sobre o altar ricamente decorado, rodeado de personagens da famlia Cornaro, representadas em relevo. A luz natural do dia, filtrada atravs de uma abertura na extremidade superior da capela, incide sobre as figuras da santa e do anjo, iluminando Teresa de modo a ressaltar a expresso de xtase. Seus olhos fechados acentuam um certo ar de prazer orgstico que resplandece em sua face. No entanto, distante do carnal, este prazer representa o supremo xtase da santa, sua transposio para o paraso espiritual, a unio da alma com o esprito divino. Frente obra tem-se a impresso de que os escritos da santa devem verdadeiramente ter tocado os mais profundos recnditos da imaginao e da emoo do artista. Os sublimes sentimentos da experincia mstica esto magistralmente cinzelados na mais fria e dura condio natural do mrmore. A obra quase uma epifania...

Artigo entregue em 30 de novembro de 2004. Dora Maria Dutra Bay

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