o sagrado na cultura gastronômica do candomblé

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Saúde Coletiva ISSN: 1806-3365 [email protected] Editorial Bolina Brasil Beltrame, Ideraldo Luiz; Morando, Marsal O sagrado na cultura gastronômica do Candomblé Saúde Coletiva, vol. 5, núm. 26, janeiro-fevereiro, 2008, pp. 242-248 Editorial Bolina São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=84202605 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Page 1: O sagrado na cultura gastronômica do Candomblé

Saúde Coletiva

ISSN: 1806-3365

[email protected]

Editorial Bolina

Brasil

Beltrame, Ideraldo Luiz; Morando, Marsal

O sagrado na cultura gastronômica do Candomblé

Saúde Coletiva, vol. 5, núm. 26, janeiro-fevereiro, 2008, pp. 242-248

Editorial Bolina

São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=84202605

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Beltrame IL, Morando M. O sagrado na cultura gastronômica do Candomblé

antropologia e saúde

O sagrado na cultura gastronômica do CandombléO ritual de comer sinaliza um dos mais marcantes momentos das diferentes éticas e profundamente antropológicas. O homem encontra no candomblé, mais precisamente no orixá, o ciclo perfeito em que através da materialização da fé, em grãos, legumes, carne, papas, quitutes e temperos, ele nutre e é nutrido. O orixá se alimenta e transfere ao homem seu axé, mas para que esse pro-cesso ocorra, é preciso que o alimento oferecido a ele seja bem preparado, dentro dos procedimentos da culinária afro-descenden-te. Este trabalho foi desenvolvido a fim de buscar dentro da gastronomia do Candomblé, a razão pela qual os deuses se alimentam e qual é o reflexo da alimentação dos deuses na vida do homem. Esta é uma revisão bibliográfica utilizando documentos secundá-rios disponíveis em língua portuguesa. A leitura antropológica aqui realizada sugere que as preparações no Candomblé estão liga-das diretamente a quem são oferecidas; sua simbologia vai ao encontro das suas características físicas, psicológicas, o elemento a qual tem domínio. Através de todo conteúdo descrito é possível afirmar que a alimentação ultrapassa valores nutricionais, ela une o homem e sua crença, otimiza a aproximação e concretização daquilo que se quer e deseja para si e para o mundo à sua volta.Descritores: Antropologia, Gastronomia, Candomblé.

The ritual of eating signals one of the most meaningful moments of different and deeply anthropological ethics. The man finds in candomblé, more precisely in Brazilian orixá, the perfect cycle where through the materialization of faith, in grains, vegetables, meat, popes, tidbits and condiments it nourishes and is nourished. Orixá feeds itself and transfers to the man its axé, but in order to such a process occurs, it is necessary that the offered food be well prepared, within the procedures of the cookery afro-descendant. This work was developed in order to search inside of the gastronomy of the Brazilian candomblé, the reason why gods are fed and what is the consequence of the feeding of gods in the life of the man. This is a bibliogra-phical revision that uses available secondary documents in Portuguese language. The anthropological reading carried out suggests that the preparations in Brazilian candomblé are directly linked to whom it is offered; its symbol study is related to the physical characteristics, psychological characteristics, and the element which has domain. Through all described content it is possible to confirm that the feeding exceeds nutritional values, it links the man and its belief, optimizes the approach and concretion of what it desired and desire for himself and for the world around him.Descriptors: Anthropology, Gastronomy, Brazilian candomblé.

El ritual de comer señala los momentos mas marcantes de las diversas éticas y profundamente antropológicas. El hombre encuentra en el candomblé más especificamente en el orixá, el ciclo perfecto en que a traves da materialización de la fe, en granos, carne, papas, quitutes y temperos el nutre y es nutrido. El Orixá si alimenta y transfere al hombre su axé, pero para que ocurra este proceso, es necesario que el alimento ofrecido sea preparado dentro de los procedimientos de la culinária afro-descendiente. Este trabajo fue desarrollado para buscar dentro de la gastronomia del Candomblé, la razón por la cual los deuses si alimentan y cual es la consecuencia de la alimentación de los deuses en la vida del hombre. Esta es una revi-sión bibliográfica usando documentos secundarios disponibles en la lengua portuguesa. La lectura antropológica hecha aquí sugiere que las preparaciones en el Candomblé están conectadas directamente a quienes les son ofrecidos los alimentos; su simbologia va al encuentro de sus características físicas, psicologicas, el elemento que tiene dominio. A través de todo el contenido descrito es posible afirmar que la alimentación excede valores nutricionales, él une el hombre y su creencia, opti-miza el acercamiento y la concretización de lo que se desea y deseó para si mismo y para el mundo a su vuelta. Descriptores: Antropología, Gastronomía, Candomblé.

Ideraldo Luiz Beltrame: Cientista Social. Mestre e Doutor em Saúde Pública pela FSP/USP. Professor Titular na Diretoria de Ciências da Saúde/UNINOVE. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CoEP/UNINOVE) e pesquisador do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva e da Família (NESCOF/UNINOVE)[email protected]

Marsal Morando: Nutricionista. Pesquisador colaborador junto ao Curso de Nutrição/UNINOVE

Produção de fotos: Casa Ilê Obá Ketu Axé Omin' la (Pai Rodney de Oxóssi) – Tel.: (11) 2995-2410/ 8415-2127Mãe Kathia de Oya – Tel: (11) 7300-7190

INTRODUÇÃO

Supõe-se que o homem primitivo, ao se alimentar, tenha usa-do seus sentidos de um jeito espontâneo, atraído mais pela

intensidade dos cheiros e aromas do que qualidade do gosto. Com a manipulação do fogo, houve a grande descoberta da humanidade e deu-se início aos conhecimentos dos processos de cocção. Aos poucos, a inteligência e a imaginação aperfei-çoaram seus conhecimentos e o que era simples necessidade transformou-se em prazer.

Ao longo dos séculos, o homem aprendeu a manipular os in-

Recebido: 10/09/2008Aprovado: 14/11/2008

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gredientes oferecidos pela natureza, criando pratos para garantir a sobrevivência da espécie. Depois descobriu que poderia traba-lhar esses ingredientes, de modo a melhorar seu sabor e torná-los mais atraentes. Surgiu, assim, a gastronomia, que faz parte da história do desenvolvimento da humanidade. Comer bem é um atrativo para o homem desde o nascimento das primeiras ci-vilizações e tornou-se um componente cultural para os antigos egípcios, gregos e romanos1. A partir daí pode-se compreender a alimentação como um conceito cultural, do mesmo modo que a língua, os costumes e as festas mais tradicionais de um povo.

A Nutrição é a ciência que estuda os alimentos e os nutrien-tes, bem como sua ação, interação e balanço em relação à saúde e a vida. Alimento é toda substancia que, ingerida ou absorvida por um ser vivo o alimenta ou nutre. O alimentar-se implica em atos biológicos, culturais e também sociais2,3.

A convencionalidade de comer nasce da ne-cessidade de cada prato, tipos de ingredientes, locais de feitura e de oferecimento. O ritual de comer sinaliza um dos mais marcantes momentos das diferentes éticas e profundamente antropológi-cas. A boca do homem é um espaço culturalmente sacralizado e indicado para receber a comida. Aí se inicia um processamento palatável, que é pre-cedido pelo visual, pelo olfativo, formando estéti-cas próprias para compreensão dos alimentos4,5.

As relações entre o biológico e o social tornam-se uma justaposição que permite designar limites precisos, mas são marcadas por uma série de inte-rações. Para além da nutrição biológica, não me-nos importante, é preciso alimentar a alma, suprir necessidades de energia não palpáveis. O homem encontra no candomblé mais precisamente no ori-xá, o ciclo perfeito em que através da materializa-ção da fé, em grãos, legumes, carne, papas, quitu-tes e temperos ele nutre e é nutrido6-8.

A força de cada detalhe é contida e transmi-tida a partir de certos elementos materiais, de certas substâncias. A energia contida é transfe-rida por essas substâncias aos seres e aos ob-jetos que mantém e renovam neles os poderes de realização. A força está totalmente ligada a uma grande variedade de elementos represen-tativos do reino animal, vegetal e mineral quer sejam da água (doce e salgada) da terra da floresta ou do espa-ço urbano9. Comer além da boca, como tudo, é uma ampliação do conceito de comer nas religiões afro-brasileiras. Comer é acionar o axé - energia e força fundamentais a vida do homem. Certo que os modos de preparar, ao lado dos saberes, irão fa-zer a transmissão do axé5,10. O orixá se alimenta e transfere ao homem seu axé, mas para que esse processo ocorra, é preciso que o alimento oferecido a ele seja bem preparado, dentro dos procedimentos da culinária afro-descendente. A falta de um ingrediente implica na não aceitação da divindade. Os deuses não são apenas comilões, mas também finos gourmets; sabem apreciar o que é bom, como o comum dos mortais, não co-mem de tudo3,11. Os elementos e alimentos são maravilhosos, misturam sem pudor, sagrado e secular12.

Este trabalho foi desenvolvido a fim de buscar dentro da gastronomia do Candomblé, a razão pela qual os deuses se ali-

mentam e qual é o reflexo da alimentação dos deuses na vida do homem. Este artigo é resultado de uma revisão bibliográfica com levantamento abrangente utilizando documentos secundá-rios disponíveis em língua portuguesa.

O CAMDOBLÉA primeira e mais curta definição de religião foi dada por Edward Tylor: “a crença em seres espirituais”, ou segundo Au-rélio crença na existência de força ou forças sobrenaturais. Os dados acumulados sobre as crenças e práticas são inúmeros e os infoques variados. Os antropólogos, em geral, concordam que a religião é formada por um sistema de crenças e práticas e que todas as sociedades possuem a sua “visão de universo”13,14.

Tudo aquilo que escapa aos sentidos do homem, que foge à

compreensão humana, à observação e ao entendimento é consi-derado sobrenatural, ou seja, esta acima das leis naturais ou físi-cas, em outra dimensão. O sobrenatural pode ser considerado o cerne da religião a base dos sistemas religiosos. Não é possível comprová-lo cientificamente ou por meios mecânicos15.

Segundo Aurélio14, Candomblé é uma religião introduzida no Brasil por escravos no qual crentes novos ou ancestrais, re-ais ou míticos eram divinizados. Do século XVI até meados do século XIX, milhões de negros foram trazidos para o Brasil. E com eles vieram seus deuses. A base da economia brasileira era o sistema escravista, e os escravos eram trazidos de suas regiões africanas: num primeiro momento do oeste do continente (An-gola, Congo e Moçambique) e posteriormente do leste (Nigéria, Daomé e Costa do Ouro)16. As principais etnias provenientes dessas regiões eram os bantos e os sudaneses, respectivamente. As diferenças entre eles não se resumiam aos deuses, mas tam-

Mãe Kathia de Oya apresenta o acarajé de Iansã e Pai Rodney de Oxóssi, o axoxó de Oxóssi

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puderam se organizar em irmandades é que surgiram oficialmen-te as primeiras casas de Candomblé. E muitas vezes foi o vínculo com a igreja que livrou muitos locais de culto aos orixás da per-seguição policial e da destruição. As mulheres tornaram-se, num primeiro momento, as sacerdotisas centrais da religião dos ori-xás. Uma possibilidade histórica para esse fato é que eram bene-ficiadas pela alforria muito antes dos homens, além, é claro, de desempenharem tarefas domésticas, não raro nas cozinhas, local imprescindível para o Candomblé3,4,10.

Reconstruir a família africana, que foi completamente es-facelada com o processo de escravidão, foi o que permitiu ao Candomblé definir-se como um elemento de resistência negra no Brasil, pois se tornou sinônimo de sobrevivência de deuses, ritos tradições e do próprio negro como pessoa. Foi a história do negro no Brasil que possibilitou o surgimento do Candom-blé como religião, e, portanto, sempre que se pretende com-preender o complexo mundo dos orixás é preciso recorrer a ela, analisando a inserção do negro na sociedade brasileira3,10. Então, Candomblé é uma religião afro-brasileira fruto da disper-são de povos em virtude da perseguição de políticas intoleran-tes, que ganha visibilidade a partir do século XIX na Bahia; em contrapartida, no estado de São Paulo o mesmo permanece nas sombras até meados do século XXI10.

OS ORIXÁSDentre a variedade de seres sobrenaturais imaginados pelo ho-mem, estão os ancestrais divinizados, provenientes do culto aos orixás na África. Nesta cultura existem duas características

de poderes divinos: um é o ancestral pro-priamente dito conhecido tanto na África como no Brasil com o nome de Egúnún; outro é o ancestral divinizado, conhecido como orixá. A diferença reside, no primeiro caso, na experiência da morte. O Egúnún, ao contrário do orixá, experimentou a mor-te e sabe seus mistérios, os orixás por sua vez, foram em vida seres excepcionais, que detinham grande poder e que não morrem simplesmente, fazendo, na verdade, uma passagem da condição mortal de seres hu-manos, para condição imortal de orixá, que se dá num momento de grande emoção, paixão, cólera ou desespero, no qual a sua

parte material desaparece restando apenas o poder no estado de energia pura. Esta energia pura e vital do orixá, ou o próprio deus, retorna a terra para saudar seus descendentes e receber as devidas homenagens10,13,17,20.

O conceito de ancestral divinizado se deve ao fato de na África o orixá estar relacionado à família, sendo transmitida inclusive de pai para filho, comprovando que todos são seus descendentes. Por ser um antepassado comum ao grupo, o cul-to a determinado orixá muitas vezes restrito a uma região es-pecífica, sendo, em certos casos, completamente desconhecido em lugares mais distantes16. O culto do orixá na África não é homogêneo, não há um panteão definido em toda parte negra do continente. Alguns orixás conhecidos em certas cidades são completamente desconhecidos em outras e seu culto fica restrito às cidades de que foram reis ou senhores. Essa é uma diferença fundamental com o culto no Brasil, no qual há um

bém incluía os dialetos, os costumes, os traços culturais e até aspectos físicos10,17. Era prática comum durante a escravidão permitir que os negros cantassem e dançassem, rememorando suas práticas ‘tribais’ para que fossem acirrados as ‘disputas’ e o ‘ódio’ decorrente de suas diferenças étnicas. Assim os proces-sos de sincretismo e amálgamas entre os mais variados deuses da África originaram uma religião no Brasil que devolveu ao negro muito do que havia perdido com as crueldades da escra-vidão, sobretudo os laços familiares10. Da mesma forma que os negros uniram seus deuses em um único culto, identificaram-nos com os santos da igreja católica, e isso permitiu a religião ser mantida nas próprias senzalas.

A possibilidade de se criar confrarias e suas próprias cape-las foi vista pelos senhores como uma maneira de se desenvol-ver rituais e formas particulares de devoção aos santos. Porém, foi justamente das confrarias de negros ‘católicos’ que surgiram oficialmente as primeiras casas de Candomblé10,16,17. Desde o inicio, as religiões afro-brasileiras, mais precisamente o Candom-blé, formaram-se em sincretismo com o catolicismo e em grau menor com religiões indígenas.

O culto católico aos santos, de um catolicismo popular de molde politeísta, ajusta-se perfeitamente ao culto dos pante-ões africanos. O fenômeno do sincretismo é um dos temas que mais tem ganhado destaque nos últimos anos dentro das ciên-cias sociais. Embora possa ser observado em todas as épocas, no Brasil foi utilizado preconceituosamente, para caracterizar os cultos de origem africana, reorganizados pelos seus descen-dentes. Nos dicionários, a palavra sincretismo alcança diversos sentidos como mistura, confusão, combina-ção, amálgama, conciliação, superposição, fusão e síntese4,8. Tal palavra se aproxima de ecletismo, de percepção confusa ou in-fantil, enfim, na grande maioria das vezes, é compreendido como algo pejorativo, daí se entenda o porquê de adeptos de uma re-ligião considerada sincrética o rejeitar.

Prandi descreve que não faz nenhum sentido associar santos católicos com ori-xás do Candomblé, mas também afirma que seria prova de ignorância negar que a religião dos deuses africanos sobreviveu com a ajuda do sincretismo16. A maior evi-dência da importância do sincretismo para esta religião só se manteve de maneira expressiva em países de colonização portuguesa e espanhola, portanto, católicos4,18. Os negros que difundiram o Candomblé no Brasil foram batizados católicos, mas mesmo com essa obrigatoriedade suas convic-ções religiosas trazidas da África continuaram a ser cultivadas no Brasil. A importância de se tornar católico, sobretudo para o negro, era uma condição de existência10,19.

Nas confusões geradas pelo sincretismo, associar Exu ao dia-bo cristão foi o que mais prejudicou. Ogum foi sincretizado como Santo Antônio na Bahia e São Jorge no Rio de Janeiro; Oxóssi é São Jorge e no Rio, São Sebastião; Omolu foi associado a São Lázaro; Oxumaré, a São Bartolomeu; Oxum, a Nossa Senhora da Conceição; Yemanja, a Nossa Senhora dos Navegantes; Xangô a São Pedro ou São Jerônimo e Oxalá, ao Senhor do Bonfim10. Com toda polêmica que envolve o sincretismo, os autores em comum descrevem, que é importante ressaltá-lo, pois quando os negros

Supõe-Se que O hOmem primitivO, aO Se alimentar, tenha uSadO SeuS SentidOS

de um jeitO eSpOntâneO, atraídO maiS pela

intenSidade dOS CheirOS e arOmaS dO que pelO gOStO

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gavam deteriorados e sem valor nutritivo24. Antes dos negros chegarem ao Brasil, às mulheres européias,

donas de casa, contavam com a ajuda das índias mamelucas no preparo das refeições. Porém isso não resultava em aprimoramen-to de sabores uma vez que a européia não contava a mão com os ingredientes de sua terra e as índias não sabiam nada de artes culi-nárias, já que, de acordo com as tradições de seu povo, eram de-dicadas apenas ao trabalho da lavoura. Diante deste quadro, é de se imaginar a surpresa com que foram recebidos os pratos feitos pelas escravas negras quando estas começaram a utilizar os tem-

peros desconhecidos, trazidos da terra natal, bem como os doces de sabores exóticos e os diferentes molhos22. Nas casas das grandes fazendas, houve a mudança dos cozinheiros, que antes eram portugueses e passaram a ser escravos e escravas negras, que não trabalha-vam em serviço bruto, na sua grande maioria eram de dois a três efetuando exclusivamente a função de cozinhar25.

Somente a crença não bastaria para pre-servar o candomblé como religião, ela de-veria estar ligada diretamente a prática. O sincretismo foi quem a manteve viva, mas ao longo dos anos, a variedade de formas das re-ligiões afro-brasileiras, o dinamismo cultural e a oralidade como veículos de transmissão dos conhecimentos levaram a muitas trans-formações abertas ao modismo, à multimí-

dia e a mundialização da cultura. Fator determinante para união e preservação da ação dos deuses foi a alimentação sagrada10,17,21. Nas cozinhas das grandes fazendas os muitos pratos que constituí-am o cardápio implantado pelos escravos, possibilitavam o conhe-cimento das minuciosas características dos deuses e como agrada-los, mantendo assim a vida religiosa15.

OS RITUAIS QUE ENVOLVE O ALIMENTOSegundo a antropologia, ritual trata-se da manifestação dos sentimentos por um ou vários indivíduos, em qualquer meio, através da ação. Embora o caráter religioso ou mágico, não seja tão persistente quanto o culto. Consiste em um tipo de ativida-de padronizada, em que todos agem mais ou menos do mesmo modo, e que se volta para um ou vários deuses, para seres es-pirituais ou forças sobrenaturais, com uma finalidade qualquer. Varias religiões possuem rituais ou preceitos que envolvem os alimentos, elas apresentam um comportamento tradicional e revelam, implícita ou explicitamente, crenças, idéias, atitudes e sentimentos das pessoas que os praticam13.

Segundo Wilges, os hindus não consomem carne de animais, acredita-se que animais mortos são cadáveres como qualquer ser humano falecido. Não se deve consumir carne desse animal, pois no momento do abatimento carregou consigo mágoas, rancores, ódio, e todos esses sentimentos são transferidos para o indivíduo que ingere. De acordo com a filosofia do Budismo o jejum é uma prática comum, ocorrendo no dia da oração, quando os seus adep-tos não ingerem nenhum tipo de carne e rezam com intensidade27.

Cohon27 relata que os judeus seguem as leis dietéticas que provem da Bíblia, em Deuteronômio 14, portanto ingerem ape-nas a carne de animais de pata fendida e ruminantes. Na comu-nidade cristã atual, não há restrição alimentar o que significa

panteão homogêneo e deuses das mais diversas procedências do continente africano, onde são reverenciados num único culto10. Na África, os orixás eram muitas vezes os elementos primordiais de uma cultura social baseada em linhagens de parentesco. A primeira preocupação dos senhores era desfazer esses laços, dispersando os grupos de uma mesma etnia para evitar possíveis revoltas de escravos. Todavia, esse fato levou os africanos e seus descendentes a se voltar para tudo àquilo que, em meio à hostilidade dos senhores, poderia preservar sua identidade, ou seja, as histórias e rituais de seus orixás10,17. Os motivos socializadores de oferecer rituais e comidas aos deuses do Candomblé au-xiliam no fortalecimento dos laços religio-sos e éticos que unem os adeptos das reli-giões afro-brasileiras, contribuindo para o aumento do contato entre os homens e os orixás. O costume de oferecer reforça a fé e as identidades. Os muitos procedimentos da culinária sagrada, os detalhes e a sofis-ticação dão qualidades especiais a cada prato individualmente, forma, estética, sa-bor, sentidos simbólicos aos alimentos. Há sentido e função em cada ingrediente e há significado nas quantidades e nos procedi-mentos, pois comer é antes de tudo se re-lacionar12,21.

PRESERVANDO O CANDOMBLÉOs negros trazidos ao Brasil eram provenientes de Moçambique, da Costa do Marfim, da Costa da Malagueta, de Serra Leoa, da Gâmbia, da Nigéria, da Libéria, do Congo, de Cabinda e de Bis-sau. Pertenciam a diversas culturas, dentro de um mesmo con-tinente, algumas de tradição milenar. Foram capturados com violência e jogados nos porões dos navios. O preço deles não era contado em dinheiro, eles eram trocados por canivetes, arma de fogo, fumo, tecido e cachaça. Eram marcados com ferro em brasa nas coxas, braços ou costas para serem identificados como escravos. Devido às péssimas condições de higiene e a ausência de alimentos, muitos não sobreviviam à longa travessia do Atlân-tico.

Os navios que iam comprar escravos levavam o fumo em solo para a troca nos porões, bruacas e surrões de farinha para o sustento dos futuros escravos embarcados. Antes de pisar na terra do Brasil vinham comendo mandioca, não apenas a farinha era fornecida nos barcos negreiros, antes do embarque quando o escravo era adquirido recebia o “carapatel”, saco com farinha de mandioca, aipim, milho fresco ou assado. Era a farinha de mandioca que lhe dava as boas vindas, depois se tornando seu alimento preferido23. Nesta época comia-se muito, porém muito mal. A carne quando suficiente era de péssima qualidade, devi-do a pouca quantidade e qualidade dos pastos, pelo mesmo mo-tivo não havia gado leiteiro e a população era privada do leite, as frutas já se encontravam bichadas antes mesmo do seu ama-durecimento, os vegetais eram raros e até a mandioca, hábito introduzido pelos índios, chegava a faltar. Os alimentos que os portugueses mais consumiam eram o peixe e as carnes salgadas, os senhores de engenho mais abastados, mandavam que sua ali-mentação viesse de Portugal, porém devido às más condições de higiene da época e a morosidade da viagem, os alimentos che-

reCOnStruir a família afriCana, que fOi

COmpletamente eSfaCelada COm O prOCeSSO de

eSCravidãO, fOi O que permitiu aO CandOmblé

definir-Se COmO um elementO de reSiStênCia

negra nO braSil

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que seus adeptos podem ingerir de acordo com o livre arbítrio, contudo, a religião tem como norma a moderação; salvo que na “Semana Santa” o motivo pelo qual não se come carne, é de sig-nificado penitencial e de reflexão, pois a mesma lembra um ali-mento substancioso além de estar ligada ao sacrifício de alguma forma.

As leis dietéticas Católico-Romanas se baseiam em que todos a partir de 21 anos até os 59, devem obedecer a lei do jejum, com exceção de mulheres grávidas ou mães amamentando. Somente uma refei-ção completa é permitida, ou duas refei-ções leves, suficientes apenas para manter-se e podem ser ingeridas de acordo com as necessidades individuais. A carne pode ser consumida na refeição principal durante o dia de jejum, exceto na quarta-feira de Cin-zas. Quando a saúde ou a capacidade de trabalho estiver atingida a lei do jejum não se aplica27.

Conforme a literatura, o Candomblé é uma das religiões que mais possuem rituais interligados por alimentos, onde maneiras de preparar, de oferecer, atitudes e os rituais propriamente ditos estão repletos de significados sim-bólicos, econômicos e sociais, sendo de alta importância para comunicação em linguagem própria – a comida. Oferecer ali-mento aos deuses do Candomblé é ter insigne honra de “co-mer” com eles, garantindo, dessa forma, a presença dos orixás na vida das pessoas20,22.

ALIMENTAÇÃO SAGRADAA amplitude da culinária sagrada dos deuses do Candomblé se mostra muito diversificada, sendo estabelecida a base de car-nes, peixes, farinhas, temperos, óleos e outros ingredientes que, ordenados de acordo com os preceitos, resultarão em comidas desejadas e de agrado dos orixás. O gosto e hábitos alimentares nos rituais do Candomblé estão condicionados as suas ações sa-gradas21. Assim é contido nas substâncias essenciais de cada um dos seres animados ou não, simples ou complexos, que com-põe o mundo. Os elementos agrupados formam um conjunto de peculiaridades que podem ser classificadas em três categorias: “sangue vermelho”, “sangue branco” e “sangue preto”. Isto é, o azeite de dendê, o álcool e o sumo das folhas; respectivamente, os sangues representam a manutenção de energia dos orixás9.

O cardápio é composto por elementos significativos onde o aroma do azeite de dendê, do vinho e do mel perfumam as cozinhas das casas de Candomblé e escondem seus segredos e intenções, que serão elo entre terra e céu. Sendo assim todo e qualquer produto utilizado na preparação e elaboração de um prato terá significado ativo no mesmo11,16.

A cozinha ritualística é organizada seguindo critérios de uti-lização no preparo de muitos pratos constituintes dos cardápios dos deuses. As disposições dos objetos, a confecção dos uten-sílios e as atitudes das pessoas que têm o mistério de cozinhar para os orixás vão dar importantes campos de análise, quando se observa complexos gastronômicos que irão atender a fome dos deuses, satisfazer e cumprir as necessidades dos adeptos que, por meio do preparo dos alimentos, conseguem criar um momento importante no conjunto das cerimônias votivas dos terreiros.

Freyre ressalta que as especialistas da cozinha dos deuses são mulheres que conhecem os segredos e rigores dos pratos dos orixás. As cozinheiras dos deuses devem atuar no espa-ço sagrado de suas cozinhas como se tivessem no interior dos santuários, e os alimentos que não pertencem ao cardápio ri-tual deverão sair desses locais, deverão ocupar cozinha pró-

pria5,19,25. Segundo Moura a culinária do Candomblé

não alimenta somente, deuses, mas também ancestrais que conhecem a morte; o ebó, co-nhecido vulgarmente como “trabalho espiritu-al”, também é constituído por comidas sagra-das, que os deuses nem os homens comem, trata-se de alimentos preparados e agregados a objetos não comestíveis, úteis somente para asseio do corpo espiritual “alma”12.

As comidas também se tornam moti-vo de festa, em que o alimento que passou por consagração dentro dos rituais secretos, alimentará os convidados. A unidade e o sentido social dos terreiros têm nos alimen-

tos comunitários verdadeiros prolongamentos das alimentações secretas dos “pejis” (quarto de santo), quando os deuses satisfa-zem seus desejos do mel, farinha, dendê, papas, frutas, frituras e temperos. O alimento preferido do deus pertence-lhe com exclu-sividade. É uma marca de seu poder a qual seus adeptos estão necessariamente submissos4,5. Em dias de festa nas casas de Can-domblé, a refeição é um importante momento sócio-religioso. Após as danças rituais dos orixás, grandes mesas são armadas e farto banquete é oferecido a todos os convidados. Comidas per-tencentes ao cardápio dos orixás ou comidas comuns, chamadas de “comidas de branco”, são servidas obedecendo a uma seqü-ência hierárquica. A oferta de alimentos e a variedade de pratos convidam a todos os adeptos ou visitantes a consumir os assa-dos, as frituras de dendê e muitas outras comidas. Em dias de festa, compartilhar as comidas com os orixás é parte da comuni-cação que estabelece entre os deuses e a comunidade.

Os terreiros de Candomblé são ótimos locais de fé, de festa e principalmente centros gastronômicos de grande fartura e diver-sidade de alimentos para se comer11,28. Comidas para ver, tocar na alma, para os espaços, para locais determinados na nature-za. Comidas para comer, para ingerir energia, para comunicar, para unir e fortalecer laços entre homens, deuses e ancestrais. Comidas para festejar, lembrar, marcar, expressar características de indivíduos e grupos, terreiros, nações, de vinculações mais próximas com Áfricas, umas idealizadas, outras transformadas e, outras ainda, etnograficamente reconhecíveis12,29.

A ALIMENTAÇÃO SAGRADA NA VIDA DO HOMEMPara melhor entender a interação entre oferecer o alimento, sua simbologia e como este refletirá na vida do homem, é preciso conhecer as características dos deuses. Associando o que é ofe-recido e a quem é oferecido, podendo assim compreender o sentido do ritual. Para que a troca ou transferência de energia ocorra, é preciso que o homem esteja em sintonia no momento do ritual, com seus objetivos e com o orixá4,17.

Exu é a figura mais controvertida do panteão africano, o mais humano dos orixás, o senhor do principio e da transformação. Deus da terra e do fogo. Ele é a ordem, aquele que se multiplica

OfereCer rituaiS e COmidaS aOS deuSeS dO CandOmblé auxilia nO fOrtaleCimentO

dOS laçOS religiOSOS e étiCOS que unem OS adeptOS

daS religiõeS afrO-braSileiraS

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e se transforma na unidade elementar da existência humana. To-dos que tem uma vida próspera no Candomblé sabem cultuar Exu. Nenhum sacerdote da religião em São Paulo pode negar que quem traz dinheiro para o terreiro é Exu, e que uma farofa cobrindo a rua (sua moradia) opera os maiores milagres emergênciais. Esta farofa tem como constituinte na sua preparação o azeite de dendê, esta é a principal comida do orixá Exu, é uma representação do alimen-to diário. Sua preparação se dá através da mistura de farinha de mandioca grossa com azeite de dendê, em quantidades proporcio-nais16,19,20.

A maior de todas as guerras, que se trava desde os pri-mórdios da humanidade, é a luta pela sobrevivência. Ogum consagrou-se um grande guerreiro porque sempre conduziu a humanidade na luta pelo sustento, pelo pão e pelo progresso. Desbravador e corajoso não tardou em ser coroado rei. Con-quistou vários territórios e foi saudado com fervor em toda Áfri-ca negra. Ogum é guerreiro que, além de caminhar incansa-velmente sobre a terra, arranca dela seu sustento e divide com outros orixás como Oxaguiã, o gosto pelo inhame, com a dife-rença que Ogum prefere assado, ou seja, a comida que o serve é menos elaborada e por isso vem de encontro as suas caracte-rísticas. Aquele que está frente a grandes batalhas pode recorrer a Ogum, ofertando-lhe o pão de cada dia (inhame), assado em brasa e deixado em uma longa e plana estrada, que é muito bem aceito por este orixá16,20.

Oxóssi é o orixá da caça, senhor das florestas e de todos os seres que a habitam, orixá da fartura e da riqueza, protetor dos agriculto-res, símbolo de prosperidade, não há adepto desta religião que não o alimente, ofertando-lhe milho cozido com fatias de coco fresco aos pés de uma árvore, em busca de sucesso econômico21.

Kó sí ewé, kò sì orixá, ou seja, (sem folha não há orixá). Os-sain conhece os segredos e as palavras que despertam o poder das folhas, é conhecido como um grande feiticeiro. Quem busca cura em tratamen-tos medicinais não deve esquecer-se desse orixá, deixando no centro de uma mata fe-chada uma grande cumbuca de barro com milho vermelho, lascas de fumo, camarões secos, regados com o perfume e aroma do mel e do dendê20.

Omolu é a terra. Essa afirmação resume perfeitamente o perfil desse orixá, o mais temido entre os deuses do Candomblé, o orixá da varíola e de todas as doenças con-tagiosas. É preciso esclarecer que Omolu está ligado ao interior da terra e isso denota uma intima relação com o fogo, já que esse elemento como comprova os vulcões em erupção, domina as camadas mais profundas do planeta. O indivíduo enfermo recorre sempre a este orixá, ofertando-lhe um cesto de pipocas (que representam feridas espalhadas pelo seu corpo) com las-cas de coco fresco em contato direto com a terra3,12,17.

Quando se visualiza o arco-íris, é possível sentir a presença de Oxummaré o orixá de todos os movimentos, de todos os ciclos. Se um dia Oxumaré perder suas forças o mundo acabará, porque o universo é dinâmico e a terra também se encontra em constan-te movimento. Não é possível imaginar o planeta terra sem mo-vimentos, translação e rotação; Oxumaré é o eixo do mundo, os adeptos que almejam o equilíbrio se curvam a esse orixá ofertan-do-lhe uma rica farofa de dendê com ovos cozidos20.

Nanã é a deusa dos mistérios, sua origem é simultânea à criação do mundo, pois quando Odudua (Deus das águas sal-gadas) separou a água parada que já existia, libertou do “saco da criação” a terra, no ponto de contato desses dois elemen-tos formou-se a lama nos pântanos, local onde se encontram os maiores segredos de Nanã. Senhora de muitas conchas Nanã sintetiza a morte. As grandes mulheres do Candomblé se reve-renciam a esse orixá por toda trajetória de suas vidas, fazendo com que o tempo de sua existência se estenda. Aos sábados no cair da noite sempre iam ao mangue oferecer uma comida chamada Andaré. Trata-se de um vatapá de feijão fradinho, sem adição de dendê. O ritual não aparece no momento de ofere-cer a comida, mas no momento de prepará-la, pois aí se sente sua presença10,19.

Generosa e digna, Oxum é a rainha de todos os rios. Vai-dosa, é a mais importante entre as mulheres da cidade, é a dona da fecundidade das mulheres, a dona do grande poder feminino. As mulheres que querem engravidar se recordam de Oxum, presenteando-a com uma bacia de louça contendo fei-jão fradinho, dendê, camarão seco, cebola e ovos inteiros co-zidos. Quando seu pedido é atendido levam até uma nascente de água doce bijuterias como forma de agradecimento. Oxum adora ser lembrada20.

Logunedé é o orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e de Oxóssi, Deus da terra e da água. É sem dúvida, um dos mais belos orixás do Candomblé já que a beleza é uma das principais características de seus pais. O caçador abilidoso e príncipe soberbo, Logunedé reúne os domínios de Oxóssi e Oxum e quase tudo que se sabe a seu respeito gira em torno de sua paternidade. Como sua principal característica é a bele-za, as pessoas recorrem a ele quando querem ser notadas, pois a alquimia de oferecer-lhe milho cozido, com feijão fradinho

acompanhado de um peixe assado em fo-lha de bananeira transfere a este indivíduo o encanto deste orixá11.

O maior e mais importante rio da Nigé-ria chama-se Niger, é importante e atravessa todo país. Rasgado espalha-se pelas principais cidades através de seus afluentes e por esse motivo tornou-se conhecido pelo nome de Odò Oya, já que na língua iorubá ya, significa rasgar, espalhar. Esse rio riu e é a morada da mulher mais poderosa da África negra, a mãe dos nove céus, dos nove filhos, do rio de nove

braços, Iansã. Embora seja saudada como a deusa do rio Niger, esta relacionada ao elemento fogo. Na realidade, indica a união de ele-mentos contraditórios, pois nasce da água e do fogo, da tempesta-de, do raio que corta o céu no meio da chuva, é a filha do fogo. A tempestade é o poder manifesto de Iansã, rainha dos raios, das ventanias, do tempo que fecha sem chover. Iansã é lembrada como a senhora dos nove partos. O número nove é parte integrante de seu nome e aparece em várias passagens de sua história. Mas com nove acarajés (sua comida) pode-se conseguir vencer grandes bata-lhas e atingir as maiores dadivas junto a Iansã. Esta deusa também se alimenta de farofa de mandioca refogada no dendê, camarão de-fumado e cebola ralada tudo levado ao fogo com uma pitada de sal11,19,20.

A grande rainha de todas as água do mundo sejam elas doces ou salgadas, dos rios ou dos mares, a deusa sincretizada no Bra-

OS muitOS prOCedimentOS da Culinária Sagrada, OS detalheS e a SOfiStiCaçãO

dãO qualidadeS eSpeCiaiS a Cada pratO

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sil como protetora dos navegantes e pesca-dores. Diferente do que todos pensam, Ye-manja é cultuada na África em rio de água doce, que leva seu nome, somente no Brasil ela foi unificada as águas salgadas, as gran-des sacerdotisas ressaltam que o correto lu-gar para o culto desse orixá é o encontro de águas, salgadas e doces. Na Bahia os devo-tos de Yemanja oferecem a ela uma refeição a base de canjica molho de camarão defu-mado, cebola ralada e azeite doce. Fazendo seus pedidos de proteção e boa pesca15.

Nem seria preciso falar do poder de Xangô, porque o poder é sua síntese. Xangô nasce do poder e morre em nome do poder. Rei absoluto, forte e imbatí-vel. O prazer desse orixá é o poder, ele manda nos poderosos, manda em seu reino e em reinos vizinhos. Xangô é rei entre todos os reis, não existe uma hie-rarquia entre os orixás, nenhum possui mais energia que o outro, apenas Oxalá, que representa o patriarca da religião e é o orixá mais velho, goza certa. O amalá é a comida mais elaborada do Candom-blé. Representa dignidade e o poder de Xangô é a própria organização do reino de Oió (cidade da África). Este preparo compõe-se de quiabo, dendê, pó de camarão seco, cebola e gengibre, todos os ingredientes levados ao fogo bem apura-dos, posteriormente servido em gamela (forma de madeira), os pedidos de justiça ao evocar Xangô são inúmeros16.

Na África, todos os orixás relacionados a criação são designados pelos nomes de Orixalá, ou seja, (o grande orixá), que nas terras de

Igbó e Ifé é cultuado como Obatalá, o rei do pano branco. Eram cerca de 154 os orixás, mas no Brasil, a quantidade se reduz signifi-cativamente, sendo que dois orixás Olúfón, rei de Ifon (Oxalufã), o bom comedor de inhame e rei de Egigbó (Oxaguiã), tornam-se suas expressões mais conhecidas.

Oxalá é o Deus que cria; aquele que veste branco, o sábio, que prega a paz. Na turbulenta movimentação das grandes cida-des os òmo orixá (filho do deus), encontram a paz, a serenidade e o equilíbrio para o re-começo de uma nova jornada alimentando-o com uma grande bacia de canjica branca cozida17,20. As comidas oferecidas aos deuses são elemento de aproximação entre o fiel e seu orixá, momento de estabelecer uma profunda intimidade, dividindo o alimento, as alegrias, e os dissabores com eles. No Candomblé, o alimento é uma força de oração, é um ritual, é um fundamento9.

CONSIDERAÇÕES FINAISO presente estudo não teve como foco for-necer receitas da alimentação dos deuses, mas identificar como o alimento oferecido está ligado a vida e como ocorre a intera-

ção entre nutrir e ser nutrido. Observou-se que as preparações estão ligadas diretamente a quem são oferecidas. Sua simbologia vai ao encontro das suas características físicas, psicológicas ele-mento a qual tem domínio. Observa-se que a alimentação ultra-passa os valores nutricionais, une o homem e sua crença, otimi-za a aproximação e concretização daquilo que se quer.

De cima para baixo: acaçá de todos os orixás, omolo-cum de Oxum, acarajé de Iansã e axoxó de Oxóssi