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O SAGRADO E O PROFANO NAS IGREJAS EVANGÉLICAS E AS ELEIÇÕES PARA PRESIDENTE DO BRASIL Alberto Pereira dos Santos 1 Resumo Este trabalho tem como objetivo discutir as relações entre sagrado e profano na espacialidade das igrejas evangélicas no contexto das eleições presidenciais no Brasil, em 2018. Nossa hipótese é que, por um lado, o sagrado é vivido pelos crentes nos múltiplos lugares sagrados, isto é, nos templos ou igrejas evangélicas e, por outro, o sagrado se mistura com o profano das rivalidades políticas e disputas territoriais nos anos eleitorais, com especial destaque para as eleições presidenciais no País. O método utilizado se concentra na reflexão crítica da bibliografia que discute as relações entre religião e política, bem como, também se apoia em trechos de discursos do presidente eleito, veiculados pela grande imprensa. Ao identificarmos o sagrado na espacialidade das igrejas evangélicas, não se nega a existência do profano que se expressa com especial destaque nos anos eleitorais para presidentes do Brasil. Por sua vez, a Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional tem se apropriado do espaço público para a realização de cultos religiosos-políticos. Segundo Huntington (1997), a religião se imiscui cada vez mais na política e nas coisas públicas neste século XXI, tanto em nível nacional como em nível internacional. No caso do Brasil, as evidênci as indicam que o lema “Deus acima de todos”, utilizado nas eleições presidenciais de 2018, com a eleição do atual presidente da República, expressa o simbolismo da mistura entre sagrado e profano na espacialidade evangélica. O fato de o atual presidente eleito em 2018 ter vencido as eleições com o lema “Deus acima de todos” supostamente o legitimaria com o uso do sagrado, porém, para atender interesses profanos. Com aceno ao eleitorado evangélico, o presidente prometeu em campanha e tentou cumprir a promessa de transferência da Embaixada brasileira de Tel-Aviv para a cidade sagrada de Jerusalém. Em nome do sagrado os eleitores elegeram deputados federais evangélicos que defenderam interesses profanos em esquemas de corrupção na CPI das ambulâncias em 2006 (BATISTA, 2009). A partir das geopolíticas das igrejas evangélicas, o sagrado tem conquistado cada vez mais os “profanos”, isto é, convertidos, novos crentes que, por sua vez, contribuem para as ofertas e pagamentos dos dízimos que tem gerados milhões para os cofres de empresas evangélicas. Por outro lado, existem também as disputas profanas pelo sagrado entre as próprias igrejas evangélicas (SANTOS, 2015). Em nível internacional, Peter Berger advoga que existe articulação do evangelismo com encontros realizados nos Estados Unidos para análises da expansão do evangelismo ao modo pentecostal (BERGER & HUNTINGTON, 2004). Na espacialidade da geopolítica das igrejas evangélicas no Brasil, o sagrado se mistura com o profano, quase de modo natural, para os interesses de “César” e glória de “Deus acima de todos”. Afinal, recomenda Maquiavel que o “Príncipe”, o governante, mesmo que não seja, deve passar a imagem de homem religioso. (MAQUIAVEL, 1998). Palavras-chave: igrejas evangélicas, sagrado, profano, geopolítica, eleição presidencial Abstract This paper aims at discussing the relationship between the sacred and the profane within the domain of evangelical churches in the context of the Brazilian presidential elections in 2018. Our hypothesis is that, on the one hand, the sacred is experienced by believers in the multiple holy places, namely, in the temples or evangelical churches and, on the other hand, the sacred mixes with the profane political 1 Doutor em Geografia Humana pela USP e Docente do PPGEO-UERJ – Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

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Page 1: O SAGRADO E O PROFANO NAS IGREJAS EVANGÉLICAS E AS ......ou ao governante que, para conquistar e se manter no poder – mesmo não possuindo as cinco qualidades – o “Príncipe”

O SAGRADO E O PROFANO NAS IGREJAS EVANGÉLICAS E AS

ELEIÇÕES PARA PRESIDENTE DO BRASIL

Alberto Pereira dos Santos1

Resumo

Este trabalho tem como objetivo discutir as relações entre sagrado e profano na espacialidade das

igrejas evangélicas no contexto das eleições presidenciais no Brasil, em 2018. Nossa hipótese é que,

por um lado, o sagrado é vivido pelos crentes nos múltiplos lugares sagrados, isto é, nos templos ou

igrejas evangélicas e, por outro, o sagrado se mistura com o profano das rivalidades políticas e disputas

territoriais nos anos eleitorais, com especial destaque para as eleições presidenciais no País. O método

utilizado se concentra na reflexão crítica da bibliografia que discute as relações entre religião e política,

bem como, também se apoia em trechos de discursos do presidente eleito, veiculados pela grande

imprensa. Ao identificarmos o sagrado na espacialidade das igrejas evangélicas, não se nega a

existência do profano que se expressa com especial destaque nos anos eleitorais para presidentes do

Brasil. Por sua vez, a Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional tem se apropriado do

espaço público para a realização de cultos religiosos-políticos. Segundo Huntington (1997), a religião

se imiscui cada vez mais na política e nas coisas públicas neste século XXI, tanto em nível nacional

como em nível internacional. No caso do Brasil, as evidências indicam que o lema “Deus acima de

todos”, utilizado nas eleições presidenciais de 2018, com a eleição do atual presidente da República,

expressa o simbolismo da mistura entre sagrado e profano na espacialidade evangélica. O fato de o

atual presidente eleito em 2018 ter vencido as eleições com o lema “Deus acima de todos”

supostamente o legitimaria com o uso do sagrado, porém, para atender interesses profanos. Com

aceno ao eleitorado evangélico, o presidente prometeu em campanha e tentou cumprir a promessa de

transferência da Embaixada brasileira de Tel-Aviv para a cidade sagrada de Jerusalém. Em nome do

sagrado os eleitores elegeram deputados federais evangélicos que defenderam interesses profanos

em esquemas de corrupção na CPI das ambulâncias em 2006 (BATISTA, 2009). A partir das

geopolíticas das igrejas evangélicas, o sagrado tem conquistado cada vez mais os “profanos”, isto é,

convertidos, novos crentes que, por sua vez, contribuem para as ofertas e pagamentos dos dízimos

que tem gerados milhões para os cofres de empresas evangélicas. Por outro lado, existem também as

disputas profanas pelo sagrado entre as próprias igrejas evangélicas (SANTOS, 2015). Em nível

internacional, Peter Berger advoga que existe articulação do evangelismo com encontros realizados

nos Estados Unidos para análises da expansão do evangelismo ao modo pentecostal (BERGER &

HUNTINGTON, 2004). Na espacialidade da geopolítica das igrejas evangélicas no Brasil, o sagrado se

mistura com o profano, quase de modo natural, para os interesses de “César” e glória de “Deus acima

de todos”. Afinal, recomenda Maquiavel que o “Príncipe”, o governante, mesmo que não seja, deve

passar a imagem de homem religioso. (MAQUIAVEL, 1998).

Palavras-chave: igrejas evangélicas, sagrado, profano, geopolítica, eleição presidencial

Abstract

This paper aims at discussing the relationship between the sacred and the profane within the domain of

evangelical churches in the context of the Brazilian presidential elections in 2018. Our hypothesis is

that, on the one hand, the sacred is experienced by believers in the multiple holy places, namely, in the

temples or evangelical churches and, on the other hand, the sacred mixes with the profane political

1 Doutor em Geografia Humana pela USP e Docente do PPGEO-UERJ – Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

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rivalries and territorial disputes in the electoral years, especially in the presidential elections in the Brazil.

The method applied focuses on the critical reflection of the bibliography that discusses the relations

between religion and politics, and it also relies on excerpts from speeches of the president-elect,

published by the mainstream press. When we identify the sacred within the domain of the evangelical

churches, the existence of the profane that expresses itself with special emphasis in the electoral years

for presidents of Brazil is not denied. To its turn, the Evangelical Parliamentary Front in the National

Congress has been taking hold of the public space for the performance of religious-political cults.

According to Huntington (1997), religion is increasingly involved in politics and public affairs in the 21st

century, both nationally and internationally. In Brazil, the evidence indicates that the motto "God above

all", used in the presidential elections of 2018, with the victory of the current president, expresses the

symbolism of the mixture between sacred and profane in the evangelical domain. The fact that the

current president elected in 2018 won the dispute with the motto "God above all" would allegedly

legitimize him with the use of the sacred, but to serve profane interests. Nodding to the evangelical

constituency, the president made a campaign promise to transfer the Brazilian Embassy from Tel-Aviv

to the sacred city of Jerusalem and tried to keep it. In the name of the sacred voters elected evangelical

federal representatives who defended profane interests in corruption schemes in the CPI (Parliamentary

Investigation Committee) of ambulances in 2006 (BATISTA, 2009). Based on the geopolitics of the

evangelical churches, the sacred has increasingly conquered the "profane", that is, it has been

converting new believers who, in turn, contribute to the offerings and tithes that have generated millions

to the assets of evangelical companies. On the other hand, there are also profane disputes over the

sacred between the evangelical churches themselves (SANTOS, 2015). At international level, Peter

Berger argues that there is an articulation of evangelism analyzed in encounters held in the United

States to study the expansion of evangelism in the Pentecostal way (BERGER & HUNTINGTON, 2004).

In the domain of the geopolitics of the evangelical churches in Brazil, the sacred mixes with the profane,

almost in a natural way, for the interests of "Caesar" and the glory of "God above all." After all,

Machiavelli recommends that the "Prince", the ruler, must show the image of a religious man, even if it

is not the case. (MAQUIAVEL, 1998).

Keywords: evangelical churches, sacred, profane, geopolitics, presidential election

1 – Introdução

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João, 8:32). Eis o versículo

bíblico mais utilizado, dito repetidas vezes, pelo ”presidente evangélico eleito” em

outubro de 2018 para a República Federativa do Brasil.2

Até que ponto o “espaço sagrado” não se mistura com o “espaço profano”? Ou,

em outras palavras, até que ponto o espaço das religiões não se imbrica com o espaço

da política partidária?

2 Doravante utilizarei a expressão “presidente evangélico eleito” em referência ao Exmo. Sr. Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, eleito em outubro de 2018. Os presidentes Café Filho – Presbiteriano – e Ernesto Geisel – Luterano -, chegaram à Presidência da República por via indireta.

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A Geografia, enquanto ciência, busca entender as inter-relações dos humanos

no espaço geográfico. Cada especialidade da Geografia se aprofunda em um

determinado aspecto da realidade geográfica (urbana, agrária, política, cultural, etc).

A meu ver, a especialidade da “geografia das religiões” (SANTOS, 2002) buscar

entender e explicar a dinâmica das populações religiosas no espaço geográfico, as

territorialidades das populações como manifestações do poder religioso sobre os

territórios. Nesse sentido, entendemos que o sagrado e o profano se misturam na

medida que existem as rivalidades de poderes e influências sobre as populações

religiosas nos territórios, isto é, existem as geopolíticas das igrejas (SANTOS, 2015).

O objetivo deste artigo é discutir, sucintamente, as relações entre sagrado e

profano na espacialidade das igrejas evangélicas no contexto das eleições

presidenciais no Brasil, em 2018. Nossa hipótese é que, por um lado, o sagrado é

vivido pelos crentes nos múltiplos lugares sagrados, isto é, nos templos ou igrejas

evangélicas e, por outro, o sagrado se mistura com o profano das rivalidades políticas

e disputas territoriais nos anos eleitorais, com especial destaque para as eleições

presidenciais no País.

Maquiavel, o clássico da ciência política, que no século XVI renegou a moral

cristã e preconizou que os “fins justificam os meios”, também recomenda ao Príncipe

ou ao governante que, para conquistar e se manter no poder – mesmo não possuindo

as cinco qualidades – o “Príncipe” deve passar a impressão de homem misericordioso,

sincero, íntegro, humanitário e religioso. Em suas palavras, “nada, aliás, se faz mais

indispensável do que passar a impressão de possuir esta última qualidade. ”

(MAQUIAVEL, 1998, p.102).

O presidente evangélico eleito foi batizado nas águas do rio Jordão, em Israel,

pelo Pastor evangélico Everaldo Pereira (PSC – Partido Social Cristão) da Igreja

Assembleia de Deus, em 12 de maio de 2016.

Figura 1 – Batismo de Jair Bolsonaro

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O batismo nas águas é um ato simbólico de forte significado sagrado. Aliás, se

levarmos em consideração o fundamentalismo no qual se apoiam os evangélicos –

em especial os pentecostais e neopentecostais – o batismo é sagrado e de forte

simbolismo especialmente no rio Jordão onde, conforme a Bíblia, Jesus foi batizado:

“Então Jesus veio da Galileia ao Jordão para ser batizado por João” (Mateus, 3:13).

O método para produção deste trabalho se concentra na reflexão crítica da

bibliografia que discute as relações entre religião e política, bem como, também se

apoia em trechos de discursos do presidente eleito, veiculados pela grande imprensa.

Ao utilizar trechos jornalísticos vale ressaltar que se faz necessário o pensamento

crítico no tocante aos cuidados científicos que se deve ter quanto à verdade ou não

dos mesmos, uma vez que, como sugere Milton Santos (2000), a globalização tem

suas fábulas e a sociedade dos humanos vem sendo impactada pela tirania do

dinheiro e da informação neste século XXI. De fato, não se pode negar os impactos

da tirania da comunicação (RAMONET, 2007).

Ao identificarmos o sagrado na espacialidade das igrejas evangélicas, não se

nega a existência do profano que se expressa com especial destaque nos anos

eleitorais para presidentes do Brasil. Por sua vez, a Frente Parlamentar Evangélica

no Congresso Nacional tem se apropriado do espaço público para a realização de

cultos religiosos-políticos na Câmara dos Deputados. A eleição de parlamentares

evangélicos tem se configurado como uma das estratégias da geopolítica das igrejas.

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Afinal, o sonho e a meta de eleger um presidente evangélico existe desde a década

de 1980 (SANTOS, 2015).

Segundo Huntington (1997), a religião se imiscui cada vez mais na política e

nas coisas públicas neste século XXI, tanto em nível nacional como em nível

internacional. Em nível internacional, Peter Berger advoga que existe articulação do

evangelismo com encontros realizados nos Estados Unidos para análises da

expansão do evangelismo ao modo pentecostal (BERGER & HUNTINGTON, 2004).

O fato de o atual presidente eleito em 2018 ter vencido as eleições com o lema

“Deus acima de todos” supostamente o legitimaria com o uso do sagrado, porém, para

atender interesses profanos. Com aceno ao eleitorado evangélico, o presidente

prometeu em campanha e tentou cumprir a promessa de transferência da Embaixada

brasileira de Tel-Aviv para a cidade sagrada de Jerusalém. Essa notícia foi

amplamente divulgada pelos maiores jornais da imprensa brasileira, como Folha de

S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, no primeiro semestre de 2019.

No caso do Brasil, as evidências indicam que o lema “Deus acima de todos”,

utilizado nas eleições presidenciais de 2018, com a eleição do atual presidente da

República, expressa o simbolismo da mistura entre sagrado e profano na

espacialidade evangélica.

Em nome do sagrado os eleitores elegeram deputados federais evangélicos

que defenderam interesses profanos em esquemas de corrupção denunciados na CPI

das ambulâncias em 2006 (BATISTA, 2009). A partir das geopolíticas das igrejas

evangélicas, o sagrado tem conquistado cada vez mais os “profanos”, isto é, pessoas

convertidas, novos crentes que, por sua vez, contribuem para as ofertas e

pagamentos dos dízimos que tem gerados milhões para os cofres de empresas

evangélicas. Por outro lado, existem também as disputas profanas pelo sagrado entre

as próprias igrejas evangélicas, a exemplo das disputas entre a Igreja Universal e a

Igreja Mundial (SANTOS, 2015).

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Na espacialidade da geopolítica das igrejas evangélicas no Brasil, o sagrado

se mistura com o profano, quase de modo natural, para os interesses profanos de

“César” e supostamente para a glória de “Deus acima de todos”.

2 - O sagrado e o profano nas igrejas evangélicas

Segundo Mircea Eliade (2001), o sagrado e o profano constituem duas

modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem

ao longo da sua história. Sagrado é tudo que se refere às coisas divinas, à religião,

aos ritos ou cultos religiosos. Para os crentes - as pessoas religiosas, aqueles que

acreditam em Deus ou deuses - o sagrado é algo profundamente respeitável,

venerável, enfim algo santo, voltado para as coisas de Deus ou dos deuses. O que

não é sagrado só pode ser profano, ou seja, não pertence à religião, é contrário às

coisas sagradas. Profano, portanto, é tudo que diz respeito às coisas mundanas, em

detrimento das coisas espirituais, sagradas. A porta de entrada de uma igreja

representa o limiar que separa os dois mundos, o sagrado e o profano.

As igrejas são instituições sociais que administram a religião. E para Durkheim

(2004, p.79) “uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas

relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que

unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem”.

De acordo com a geógrafa Zeny Rosendahl (1996), um lugar sagrado é

controlado por uma autoridade religiosa que zela pela conservação dos aspectos

divinos, pela sacralidade do lugar. Nesse sentido, os templos das igrejas evangélicas

são lugares sagrado, porque são lugares controlados por uma autoridade religiosa,

um pastor evangélico, que zela pelos aspectos religiosos daquele lugar.

Contudo, a dicotomia entre sagrado e profano no espaço social muitas vezes

se rompe. A separação se dá muito mais numa tentativa de análise científica, porque

a realidade é muito mais complexa e desafiadora. E na espacialidade das igrejas

evangélicas - como, de modo geral, em todas as igrejas e religiões –, em certa

medida, o sagrado se mistura com o profano.

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Embora as igrejas evangélicas sejam lugares sagrados, seus líderes e seus

fiéis se relacionam com o mundo profano. Muitas vezes, as coisas profanas de “César”

são misturas com as coisas sagradas da religião.

De acordo com Max Weber (2004) a ação religiosa é uma ação racional, ou

pelo menos se orienta pelas regras da experiência, e está voltada para este mundo

(não para o além), sendo que seus fins são de natureza econômica. Na obra “A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Weber demonstra a importância fundamental

de certo protestantismo – o calvinismo – na formação do capitalismo, uma vez que a

doutrina calvinista da predestinação interpreta o êxito material como garantia da graça

divina.

É nessa perspectiva que na geografia das religiões no Brasil podemos

constatar dois aspectos que se relacionam: de um lado, o crescimento da população

evangélica – 6,2% (1980), 9,1% (1991), 15,4% (2000), 22,5% (2010) e estimativa de

31% (2020) – e, de outro, o crescimento da “bancada evangélica” de parlamentares

no Congresso Nacional, dos anos 1982 a 2018.

Figura 2 – Parlamentares evangélicos no Congresso Nacional

Parlamentares Evangélicos no Congresso Nacional

1982 1990 1998 2002 2006 2010 2014 2018

12 23 51 60 36 73 75 84

Fonte: DIAP – Depto. Intersindical de Assessoria Parlamentar- 2018

Como já constatamos, embora a ideologia político-religiosa fundamentalista

dos pentecostais e neopentecostais tenha contribuído enormemente para as eleições

de deputados evangélicos, os fatos revelam que muitos desses deputados não têm a

menor preocupação com a ética. Por exemplo, em 2006, no caso do escândalo de

corrupção “sanguessuga”, denunciado pelo Ministério Público Federal, dos 72

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parlamentares indiciados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da máfia das

ambulâncias, 40% eram deputados evangélicos. (SANTOS, 2015).

3 – As igrejas evangélicas e o presidente evangélico eleito em 2018.

O batismo no rio Jordão, em Israel, do presidente evangélico eleito, teria sido

um ato simbólico sagrado ou um ato de profanação do sagrado?

Em que pese a opinião da jornalista Anna Virginia Balloussier (2018), da Folha

de S. Paulo, tentando, de uma lado, vincular o candidato à religião Católica e, de outro,

desvincular o presidente evangélico eleito da conversão à religião Evangélica pelo

batismo, porém, para muitos evangélicos pentecostais e neopentecostais, o batismo

realizado pelo Pastor Everaldo foi um ato sagrado sobre um homem político que viria

a ser um “ungido pelo Espírito Santo” para ser o presidente evangélico eleito pelo povo

de Deus, isto é, o povo das igrejas evangélicas. Essa afirmação foi veiculada pela

mídia evangélica, exemplo do jornal Gospel Prime:

Jair Messias Bolsonaro encontrou com o Messias Jesus Cristo. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) e pré-candidato à presidência da República surpreendeu ao ser batizado por um pastor no rio Jordão, em Israel. (...) Bolsonaro até o momento não se identificava publicamente como evangélico. Ele é amigo de vários pastores, como Marco Feliciano, e Silas Malafaia. Sabe-se ainda que sua esposa é membro da Assembleia de Deus Vitória em Cristo no Rio de Janeiro. (Gospel Prime, 12 de maio, 2016).

Como se pode constatar no trecho acima, os leitores e fieis evangélicos

receberam a notícia afirmativa de que o homem político pré-candidato à presidência

da República se encontrou com Jesus, e foi batizado no rio Jordão por um pastor

evangélico. E a partir desse ato simbólico o pré-candidato passou a se identificar

publicamente como evangélico.

Em outro veículo de comunicação evangélica, no Guiame.com.br, a notícia do

batismo foi divulgada como verdadeira e com forte significado sagrado:

Na manhã desta quinta-feira, a jornalista Rachel Sheherazade publicou um vídeo em sua página oficial do Facebook, na qual mostra o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC - RJ) sendo batizado no Rio Jordão (Israel), após reconhecer a morte e ressurreição de Jesus Cristo.(...) Na postagem da jornalista, muitas pessoas declararam sua satisfação em ver a decisão do

parlamentar. (...) Antes de ser mergulhado nas águas do Jordão,

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Bolsonaro respondeu às perguntas do pastor Everaldo, reconhecendo a

morte e ressurreição de Jesus Cristo. (guiame-.com.br, 12 de maio, 2016).

Não se pode negar a vinculação do batismo do presidente evangélico eleito

com os votos dos eleitores evangélicos. De acordo com os dados estatísticos do

Datafolha, os votos dos eleitores evangélicos foram, de fato, o poder político religioso

decisivo para a vitória do presidente evangélico eleito em outubro de 2018, como se

pode constatar na tabela abaixo:

Figura 3 – Religião e votos dos eleitores para Presidente do Brasil - 2018

Os dados acima dos votos segundo as religiões demonstram que a diferença

entre os dois candidatos à presidentes, Bolsonaro e Haddad, de modo geral não foi

tão expressiva, com exceção aos votos dos evengelicos que representaram uma

diferença com mais de 10 milhões de votos a favor do presidente evangélico eleito.

Portanto, foram os votos dos eleitores evangélicos que deram a vitória ao candidato

que recebeu, do Pastor Everaldo Dias Pereira, da Assebleia de Deus, o batismo no

rio Jordão.

Além dos votos dos eleitores evangélicos, outro fator que corrobora para a

identificação do presidente evangélico eleito e convertido pelo batismo no rio Jordão

à religião Evangélica, tem sido o apoio explícito de líderes evangélicos como o pastor

Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e o bispo Edir Macedo

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proprietário da Rede Record e presidente fundador da IURD – Igreja Universal do

Reino de Deus.

O cartograma “Populações evangélicas pentecostais no Brasil 2018”, a seguir,

demonstra que a região Nordeste concentra os menores índices de populações

evangélicas, podendo chegar até 7,6% como estimativa demográfica para o ano 2018,

enquanto que nas regiões Norte e Sudeste esses indices podem atingir até 31% de

população evangélica. Por outro lado, nessa região a popução católica atingiu até

mais de 90%, especialmente no estado do Ceará por influência da tradição religiosa

em devoção ao padre Cícero, em Juazeiro do Norte.

Figura 4 – Populações evangélicas pentecostais no Brasil - 2018

No cartograma “Eleição para presidente do Brasil – 2018”, a seguir, nota-se que

o presidente evangélico eleito perdeu em todos os estados da região Nordeste, na

qual a religião católica ainda é predominante.

Figura 5 – Eleição para Presidente do Brasil - 2018

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O presidente evangélico eleito, como gratidão ao seus seguidores religiosos do

segmento evengélico, tem sinalizado que não basta ter um presidente evangélico na

Presidência da República. Além da conquista do Poder Legislativo representado pelos

parlamentares evangélicos no Congresso Nacional, segundo o presidente evangélico

eleito, está na hora de conquistar também o Poder Judiciário com a indicação de um

Ministro evangélico para o STF – Supremo Tribunal Federal, como foi veiculada sua

opinião em vários jornais de grande poder na imprensa brasileira, a exemplo da Folha

de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo e outros.

4- Considerações finais

Este artigo buscou refletir sucintamente a respeito das interfaces entre o

sagrado e o profano nas igrejas evangélicas e a eleição para presidente do Brasil em

2018. Com base nas tabelas e cartogramas revelando os dados da população

religiosa evangélica e a distribuição dos votos, podemos inferir que as igrejas

evangélicas e os votos de seus eleitores foram determinantes para a vitória do

primeiro presidente evangélico eleito de forma direta.

Embora seja polêmico e questionável, não se pode negar a verdade do fato de

que o presidente evangélico eleito recebeu o batismo, ato sagrado e simbólico, no rio

Jordão, realizado pelo Pastor Everaldo da Igreja Assembleia de Deus e presidente do

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PSC (Partido Social Cristão), em 12 de maio de 2016, quando era pré-candidato à

Presidência da República.

Se houve profanação do batismo, isto é, uma ação maquiavélica pautada na

máxima “os fins justificam os meios”, cabe aos eleitores evangélicos refletirem sobre

a crise moral na qual mergulhou o movimento evangélico brasileiro que desde a

década de 1990 vem revelando sinais de corrupção em nome das igrejas.

O Brasil é um País laico, isto é, segundo a Constituição Federal, um Estado de

Direito Democrático, embora com fortes fragilidades em suas instituições

especialmente no Congresso Nacional onde se consolidou a “bancada evangélica” ou

Frente Parlamentar Evangélica com mais de 80 parlamentares eleitos a partir da

geopolítica das igrejas (SANTOS, 2015).

Não se pode negar o sagrado nas igrejas evangélicas, uma vez que os templos

são lugares que reúnem uma comunidade com base na mesma moral religiosa. Por

outro lado, as evidências tem demonstrado inúmeros fatos de profanação, corrupção

e até assassinatos cometidos por pastores de igrejas, a exemplo do assassinato de

Mirele Souza, uma jovem mulher de 22 anos, mãe de uma criança de oito meses, que

foi morta em Mogi das Cruzes, em janeiro de 2019, segundo a Polícia Civil, a mando

do pastor Adir Neto Teodoro, da Assembleia de Deus do ministério do Belem (São

Paulo).

A meu ver, atualmente o Brasil passa por uma profunda crise moral. Crise essa

na qual o que era sagrado passou a ser contaminado pelo profano. Não se deve

confundir o conceito de “moral” do latim “mos”, com o conceito de Ética, do grego

“ethos” (carater, Bem Supremo, segundo Aristóteles). A Ética é a vigilante crítica de

toda e qualquer moral. Toda e qualquer pessoa tem moral, todo e qualquer ato é

moral, mas nem sempre é ético. Nesse sentido, a moral religiosa, supostamente

sagrada, está sendo corrompida pela política segundo a concepção de Maquiavel que,

no século XVI, preconizou o abandono da “moral cristã”.

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Se os políticos e seus partidos aplicam a máxima de Maquiavel, “os fins

justificam os meios”, para quem se preocupa com uma Geoética é, no mínimo,

desafiador pensar sobre a aparente e/ou frágil dicotomia entre o sagrado e o profano

na espacialidades das religiões e das religações e/ou reconexões para um caminho

do homem ético neste mundo complexo.

Referências

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AnnaBlume, 2009.

BERGER, P. & HUNTINGTON, S. (org.) Muitas Globalizações – diversidade cultural

no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Porto Alegre: L&PM, 1998.

RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

ROSENDAHL, Zeny. Espaço e Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 1996.

SANTOS, A. P. Geopolítica das Igrejas e Anarquia Religiosa no Brasil – Por uma

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SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,

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WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. S. Paulo: Martin Claret,

2004.

Fontes eletrônicas

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/catolico-bolsonaro-investe-em-pauta-evangelica-e-

domina-segmento.shtml. acesso em 01 de julho de 2019

https://www.gospelprime.com.br/jair-bolsonaro-batizado-rio-jordao. acesso em 01 de julho de 2019.

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https://guiame.com.br/gospel/videos/jair-bolsonaro-confessa-jesus-cristo-e-se-batiza-no-rio-jordao-

assista.html acesso em 01 de julho de 2019