o romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica Márcia Ferreira de Carvalho Orientadora: Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista JOÃO PESSOA – PB 2006

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Page 1: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

O romanceiro ibérico de amor desgraçado:

uma abordagem semiótica

Márcia Ferreira de Carvalho

Orientadora: Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

JOÃO PESSOA – PB

2006

Page 2: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

MÁRCIA FERREIRA DE CARVALHO

O romanceiro ibérico de amor desgraçado:

uma abordagem semiótica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba para obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração em Lingüística e Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

JOÃO PESSOA - PB

2006

Page 3: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

Que as mulheres fiquem caladas nas

assembléias, como se faz em todas as

igrejas dos cristãos, pois não lhe é

permitido tomar a palavra. Devem ficar

submissas, como diz também a lei.

(Coríntios 14, 34-35)

Page 4: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

À pesquisadora e professora Francisca Neuma

Fechine Borges pela sua incansável luta em defesa

das manifestações e tradições literárias que

integram o universo da nossa cultura popular. Sua

ação neste ofício constitui uma vida inteira, sem

poupar esforços e talento, com intuito de preservar,

expandir e divulgar a memória e os feitos culturais

do nosso povo. É com muito orgulho e espírito de

grandeza que dedicamos o presente trabalho a esta

princesa do cordel e musa das narrativas orais.

Page 5: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

DEDICATÓRIA

A Deus, que conhece a fundo nossos pensamentos, ajudando-nos a vencer os obstáculos

que surgem na vida.

A João Malaquias de Carvalho e Joana Ferreira de Carvalho, meus pais, a quem admiro e

devo tudo que tenho na vida.

A meus irmãos, Marta, Verônica, Marconi, José e Mônica, pelo incentivo, apoio e força

que sempre me dão.

A meu grande amor e alma rica de sublime poesia, Nélson, por deixar muitas vezes de lado

seus problemas para ajudar a solucionar os meus e que sempre está presente com amor,

apoio e estímulo.

A minha cunhada Jane, as minhas sobrinhas Lídia, Kallyne, Ana Victória, Kamylla e as

minhas amigas, Valquíria,Thaís e Núbia pelo afeto e admiração.

Page 6: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

AGRADECIMENTOS

À professora doutora Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista, pelas ponderações de

Mestre, pelos inestimáveis subsídios bibliográficos e pelo estímulo e confiança;

A seu Álvaro pela generosidade de nos facultar o seu conhecimento em informática;

A Raquel pela boa vontade ao transmitir nossos recados a professora Fátima.

A Aparecida que muito nos ajudou, traduzindo, com amor, textos em língua estrangeira.

Page 7: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

ABREVIATURAS USADAS NESTE TRABALHO

Dor = Destinador ___ Dor = Anti-destinador S = Sujeito __ S = Anti-sujeito Adj. = Adjuvante Op. = Oponete Ov. = Objeto de valor ZF = Zona fluída entre os conjuntos Ø = Inexistência semiótica PN = Programa narrativo Sg = Segmento

Page 8: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

RESUMO

Este trabalho constitui uma análise do romanceiro ibérico de amor desgraçado sob a

perspectiva semiótica. Para isso, realizamos um levantamento em coletâneas brasileiras ou

ibéricas, de dezessete versões do romance antigo Aparição, que trata da morte da mulher

amada e de sua aparição depois de morta. Apesar de terem a mesma origem, cada versão

apresenta particularidades quanto à forma, dependendo do ambiente e do momento em que

foram colhidas, o que pode ou não afetar os valores estruturais das mesmas. A partir dessa

concepção, levantamos o seguinte questionamento: Que valores do sujeito (homem/mulher)

os romances orais evidenciam de maneira a contribuir para a compreensão da ideologia?

Para respondê-lo, consideramos como objetivo geral a análise, do ponto de vista da

semiótica greimasiana das versões escolhidas, como corpus, a fim de descobrir a ideologia

subjacente aos textos. Como Objetivos específicos realizamos um estudo da Literatura oral,

evidenciando a classe temática de amor desgraçado e escolhendo desta o romance de

Aparição. Deste preparamos as versões Afonso XII, Pomba sem fel, Iracema, Alfredo e

Margarida e A sete de setembro para análise dos níveis narrativo, discursivo e fundamental.

Por fim, uma vez realizada a análise, foi possível detectarmos a existência de dogmas e

tabus que mantêm viva a ideologia do preconceito e exclusão social, onde as mulheres,

assim como os negros e os pobres, são as principais vítimas.

PALAVRAS-CHAVE: semiótica, romance oral e amor desgraçado

Page 9: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

RESUMEN

Este trabajo constituye una análisis del romancero ibérico de amor desgraciado bajo la

perspectiva semiótica. Para tanto, realizamos un levantamiento en coetáneas brasileñas o

ibéricas, de diecisiete versiones del romance antiguo Aparición, que trata de la muerte de la

mujer amada y de su aparición después de muerta. A pesar de tiñeren la misma origen, cada

versión presenta particularidades cuanto la forma, dependiendo del ambiente y del

momento en que fueron cogidas, el que puede o no afectar los valores estructurales de las

mismas. A partir de esa concepción, levantamos e siguiente cuestionamiento: Que valores

del sujeto (hombre/mujer) los romances orales evidencian de manera a contribuir para la

comprensión de la ideología? Para lo responder, consideramos como objetivo general la

análisis, del punto de vista de la semiótica greimasiana de las versiones escogidas, como

hábeas, a fin de descubrir la ideología mientras estando debajo de los textos. Como

Objetivos específicos realizamos un estudio de la Literatura oral, evidenciando la clase

temática de amor desgraciado e escogiendo de esa el romance de Aparición. De ese,

preparamos las versiones Afonso XII, Pomba sem fel, Iracema, Alfredo e Margarida y A

sete de setembro para análisis de los niveis narrativo, discursivo e fundamental. Por fin,

una vez realizada la análisis, fue posible nosotros descubrimos la existencia de dogmas e

tabús que mantienen viva la ideología del preconcepto e exclusión social, donde las

mujeres, así como los negros y los pobres, son las principales víctimas.

PALABRAS-LLAVE: semiótica, romance oral y amor desgraciado

Page 10: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................01

1. TEORIA SEMIÓTICA...................................................................................................04

1.1. Signo e significação....................................................................................................04

1.2. Nível fundamental.......................................................................................................07

1.3. Nível narrativo............................................................................................................09

1.4. Nível discursivo..........................................................................................................11

1.5. Discursos etnoliterários ..............................................................................................16

2. A PROPÓSITO DO ROMANCEIRO ..........................................................................23

2.1. Na literatura oral: uma narrativa poético-musical......................................................23

2.2. O romance oral............................................................................................................28

2.3. Levantamento do corpus.............................................................................................33

2.4. Textualização e segmentação......................................................................................40

2.5. Escolha da amostragem...............................................................................................62

3. ANÁLISE DAS VERSÕES............................................................................................63

3.1. Afonso XII (CAR)........................................................................................................63

3.1.1. Nível narrativo......................................................................................................63

3.1.2. Nível discursivo....................................................................................................68

3.1.3. Nível fundamental.................................................................................................72

Page 11: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

3.2. Pomba sem fel (BRA)..................................................................................................74

3.2.1. Nível narrativo......................................................................................................74

3.2.2. Nível discursivo....................................................................................................80

3.2.3. Nível fundamental.................................................................................................84

3.3. Alfredo e Margarida (BA4)..........................................................................................87

3.3.1. Nível narrativo......................................................................................................87

3.3.2. Nível discursivo....................................................................................................93

3.3.3. Nível fundamental.................................................................................................98

3.4. Iracema (BA2) e A sete de setembro (BA5)...............................................................102

3.4.1. Preliminares.........................................................................................................102

3.4.2. Nível narrativo....................................................................................................102

3.4.3. Nível discursivo..................................................................................................106

3.4.4. Nível fundamental...............................................................................................111

CONCLUSÕES.................................................................................................................114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................118

ANEXOS............................................................................................................................124

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INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pleiteamos analisar, com base na teoria semiótica, versões do

romance popular oral, pertencentes à classe temática de amor desgraçado.

O romance oral, segundo Batista (2000: 20), é uma peça literária caracterizada pela

natureza poético-musical, pelo conteúdo épico ou épico-lírico, bem como, pela forma

dialogada ou dramatizada, pela linguagem popular e pela riqueza de variação no conteúdo e

na forma. Situa-se a sua criação, segundo os estudiosos, entre os séculos X e XII. Prestava-

se a ser recitado e/ou cantado por jograis nos serões e festas da corte, sendo, acompanhado,

em sua origem, por instrumentos musicais como a lira e a flauta. A partir dos séculos XV e

XVI, foi adaptado para o gênero popular e levado às colônias, neste caso, de Portugal para

o Brasil, com a intenção de divulgar os valores dos reis, bondade e beleza de suas donzelas,

valentia de seus nobres, servindo ainda de instrumento catequizador para os jesuítas.

Os romances abordam temas bastante variados. Batista (1999: 87-115), em sua

proposta de classificação temática, considera a existência de dez classes: amor desgraçado,

amor fiel, raptos/prisioneiros, cativos, naufrágios, conquistas amorosas, sedução,

burlas/astúcias, valentia e religiosos. Dentre essas classes, a temática de amor desgraçado

destaca-se pela grande quantidade de romances. Só no Nordeste do Brasil, a autora

levantou trinta tipos diferentes, com trezentos e dezessete variantes. Este fato constitui um

registro cultural muito importante que estava a merecer um estudo mais aprofundado.

Como o próprio nome diz, a temática amor desgraçado trata de uma desgraça

ocorrida com um par amoroso, abrangendo morte do(a) amado/amada, amor incestuoso que

culmina com a morte do amante, infidelidade amorosa etc. A tragédia, mesmo em sua

forma mais simples e corriqueira, atrai a atenção do povo que, nesse gênero, produziu belos

espécimes orais. Foi esta a razão que nos levou a escolher a desgraça amorosa como corpus

deste trabalho.

Page 13: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

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Nosso interesse por esse tema teve início no curso de graduação em Letras quando

participamos do projeto de pesquisa intitulado O discurso semiótico da poesia oral

tradicional no Nordeste do Brasil: romanceiro e cancioneiro, orientado pela professora

Maria de Fátima Batista. Naquela época, examinamos do ponto de vista semiótico o

romance oral Alfredo e Margarida com o objetivo de determinar os valores dos sujeitos

investidos na narrativa, com vistas a estabelecer a ideologia imanente nos textos,

procurando determinar a estrutura actancial, bem como a modalização, responsável pelo

agir do Sujeito. Observamos que a narrativa, embora curta, não poderia ser classificada

como simples, uma vez que se apresenta ideologicamente marcada por conflitos de

natureza subjetiva, ocorrendo no interior dos atores.

A teoria semiótica se presta, perfeitamente, à análise do corpus escolhido. Por outro

lado, vai além da Lingüística, uma vez que se preocupa com significações que ultrapassam

os limites da expressão verbal, fazendo situar a linguagem em meio a outros valores sócio-

culturais que acompanham sua realização como o gesto, o canto e a dramatização,

permitindo compreender o homem em sua totalidade.

Vale salientar que as versões estudadas, apesar de terem a mesma origem (romance

Aparição) apresentam particularidades quanto à forma, dependendo do ambiente e do

momento em que foram colhidas, o que pode ou não afetar os valores estruturais das

mesmas. A partir dessa concepção, levantamos o seguinte questionamento: Que valores do

sujeito (homem/mulher) os romances orais evidenciam de maneira a contribuir para a

compreensão da ideologia? Para responder a esse questionamento, consideramos como

objetivo geral a análise, do ponto de vista da semiótica greimasiana das versões escolhidas,

como corpus, a fim de descobrir a ideologia subjacente aos textos. Como Objetivos

específicos, foi realizado um estudo da Literatura oral, centrando-se no romance Aparição

pertinente à classe temática de amor desgraçado para que fosse analisado nos níveis

narrativo, discursivo e fundamental.

Como trilha metodológica, consideramos o levantamento, em coletâneas brasileiras

ou ibéricas, de dezessete versões do romance antigo Aparição ou Palmero que trata da

morte da mulher amada e de sua aparição depois de morta. Estas versões retomam, segundo

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Moreno & Santos (1980:413) a canção de Afonso XII, surgida por ocasião da morte de sua

primeira esposa, Maria das Mercedes de Orleans no século XVII. Considerando a

classificação de Fontes (1997:18), são narrativas orais que merecem ser incluídas no grupo

dos romances de cordel, tendo em vista o período em que foram compostas. O autor,

embora faça esta afirmação, não cita a data de composição do texto. As versões foram

codificadas com as iniciais dos nomes dos autores que as coletaram e depois, resumidas.

Foi feito, ainda, a segmentação das mesmas que, segundo Greimas (390: 1979), é a

primeira etapa empírica a ser realizada num trabalho dessa natureza. Entre as versões, cinco

foram escolhidas para análise semiótica, de acordo com o percurso da significação, nos

níveis narrativo, discursivo e fundamental. As versões escolhidas foram Afonso XII, Pomba

sem fel, Iracema, Alfredo e Margarida e A sete de setembro.

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1. A TEORIA SEMIÓTICA

1.1. Signo e significação

Os estudos que envolveram a semiótica estavam concentrados na teoria do signo. A

preocupação não era com a linguagem, mas como essa linguagem se estruturava na forma

de signo.

Foi a partir de Peirce que a Semiótica deixou de se preocupar, exclusivamente com

o signo, para se dedicar, com mais intensidade, à semiose. Peirce definiu o signo e a

semiótica, numa visão pansemiótica do mundo. Para ele, tudo era semiótica.

No século XX, Saussure (2002: 24) propôs o nome Semiologia para a ciência dos

signos:

Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeîon, “signo”).

Já os ingleses e os alemães da linha saussuriana conceberam essa mesma ciência

com o nome de Semiótica.

Considerando a existência de uma teoria com dois nomes, foi necessário separar

por campo de atuação, a Semiótica da Semiologia. Para isso, a primeira proposta sugerida

foi apresentada por Jakobson. Essa proposta, oficializada pela Associação Internacional de

Semiótica em 1969, teve o objetivo de considerar a semiótica como ciência geral dos

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signos, inclusive os verbais e não-verbais, e a semiologia serviria, unicamente, para os

signos humanos, culturais e sobretudo os textuais.

A segunda proposta foi apresentada por Hjelmslev que é considerado o melhor

intérprete do pensamento de Saussure. Em seus estudos para a elaboração de uma teoria da

linguagem, retoma o modelo de sígnico, apresentado por Saussure (2002: 80), que é uma

entidade psíquica de duas faces, ou seja, o resultado de uma união indissociável entre o

conceito e imagem acústica. Esses depois são substituídos, pelo próprio Saussure (2002:

99) por significante (imagem acústica) e significado (conceito). Hjelmslev (1975: 62)

reinterpreta o pensamento saussuriano apliando-lhe as idéias sobre o signo que define como

a relação de dependência entre conteúdo e expressão. Eis o que diz o lingüista dinamarquês

sobre o assunto:

[...] parece mais adequado utilizar a palavra signo para designar a unidade constituída pela forma do conteúdo e pela forma da expressão e estabelecida pela solidariedade que denominamos de função semiótica.

Dessa forma, permite o estabelecimento dos limites da Semiótica em oposição à

Semiologia. Esta seria o estudo do signo lingüístico, enquanto que semiótica seria o estudo

da significação, entendida como a relação de dependência entre conteúdo e expressão, tanto

dos signos verbais, como dos não-verbais e dos complexos ou sincréticos

Uma ciência semiótica, propriamente da significação, somente começou a ganhar

forma a partir dos anos sessenta do século dezenove, conforme relato de Pais (In:

GREIMAS: 1976, XI): No desenvolvimento dos estudos lingüísticos, não tem vinte anos o

tratamento estrutural dos problemas do significado e é ainda mais recente a criação da

semiótica, entendida como projeto científico.

A partir de então, com base nos estudos de Hjelmslev, Greimas, Courtés, Pottier e

seus discípulos formaram, no início dos anos 70, a chamada Escola Semiótica de Paris que

complementou a concepção de significação proposta por Hjelmslev, ampliou o campo da

semiótica à descrição dos sistemas não lingüísticos, reformulou a idéia saussuriana de

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sincronia/diacronia , criando a pancronia latu sensu e ainda apresentou propostas para os

níveis de estudos semióticos.

Assim entendida, a significação compreende um percurso que vai, segundo Pais

(2003) da mente do falante à mente do ouvinte, sendo constituída de níveis de estudo

analítico. Entretanto, tal classificação foi instituída para efeito essencialmente didático. Na

verdade, o referido percurso é uma operação íntegra, contínua e ininterrupta.

A seguir, apresentamos a forma como cada um desses níveis do percurso gerativo

da significação são articulados semioticamente.

Greimas & Courtés (1979:209) mencionam que o percurso da significação é

composto das estruturas sêmio-narrativas e das discursivas. As primeiras comportam dois

componentes (sintáxico e semântico) e dois níveis (profundo e de superfície). As segundas

apresentam também dois componentes (sintático e semântico), sendo que, no sintático, está

a discursivização (actorialização, temporalização e espacialização), e no semântico a

tematização e a figurativização:

PERCURSO GERATIVO

componente

sintáxico

componente

semântico

Estruturas

Sêmio-

narrativas

nível SINTAXE

profundo FUNDAMENTAL

nível de SINT. NARRATIVA

superfície DE SUPERFÍCIE

SEMÂNTICA

FUNDAMENTAL

SEMÂNTICA

NARRATIVA

Estruturas

discursivas

SINTAXE

DISCURSIVA

Discursivização

actorialização

temporalização

espacialização

SEMÂNTICA

DISCURSIVA

Tematização

Figurativização

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Atualmente, os autores separam as estruturas sêmio-narrativas em duas:

fundamental e narrativa. Assim, três são os níveis do percurso gerativo da significação:

nível fundamental ou profundo, nível narrativo ou intermediário e nível discursivo ou

superficial. Em cada nível existe um componente sintático e um semântico.

1.2. Nível fundamental

Segundo Greimas & Courtés (1979:351), o nível fundamental, considerado

subjacente ao enunciado, é oposto ao nível discursivo que pertence ao domínio observável.

Compreende uma sintaxe e uma semântica. Estas, conforme Fiorin (1999:20) representam o

primeiro momento do percurso gerativo, tratando de explicar a produção, o funcionamento

e a interpretação do discurso.

A organização do nível fundamental pode ser representada, segundo Greimas &

Courtés (1979: 364) por um quadrado semiótico que é a representação visual da articulação

lógica de uma categoria semântica qualquer.

A partir de um termo, podemos obter mais três outros, mediante as operações da

descoberta dos contrários, dos contraditórios e das implicações. O termo ser, por exemplo,

é contrário de parecer. Ser implica não-parecer e tem por contraditório não-ser. Parecer

implica não-ser e tem por contraditório não-parecer, conforme mostramos no exemplo do

quadrado seguinte1:

ser parecer

não-parecer não-ser

1 : relação de contradição - - - - - - : relação de contrariedade : relação de complementaridade

Page 19: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

8

As relações estabelecidas entre os quatro termos permitem obter mais quatro que

resultam da junção dialética entre os primeiros, fazendo surgir não mais um quadrado e sim

um octógono. O exemplo que segue ilustra essa constatação.

Verdade

ser parecer

segredo mentira

não-parecer não-ser

falsidade

Verdade resulta da tensão dialética entre ser e parecer; segredo está entre ser e

não-parecer; a mentira, entre parecer e não-ser e a falsidade entre não-parecer e não-ser.

Modernamente, o octógono semiótico aparece esquematizado da forma seguinte:

2

(PAIS, 1991: 455)

2A tensão dialética da narrativa se estabelece entre S1 e S2. As relações, entre S1 e S2 definem o sujeito de

um querer, enquanto que S2 e S1 representam o dever. S1 e S2 correspondem a inexistência semiótica, daí está

representada pelo zero cortado .

S2S1

__ S2

Querer Dever

Tensão dialética

__ S1

Ø

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9

O que acabamos de descrever constitui a sintaxe fundamental. Entretanto, há

autores que consideram a existência de uma semântica fundamental, representada pela

categorização única.

Segundo Fiorin (1999:18-19), a semântica fundamental abriga:

As categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. No nosso exemplo, a categoria do nível fundamental é /parcialidade/ versus /totalidade/. Em outro texto, poderia ser /natureza/ versus /cultura/; em outro, /vida/ versus /morte/ e assim por diante. Uma categoria semântica fundamenta-se numa diferença, numa oposição. No entanto, para que dois termos possam ser apreendidos conjuntamente, é preciso que tenham algo em comum e é sobre esse traço comum que se estabelece uma diferença.

Dessa forma, os termos ser e parecer do octógono semiótico podem ser considerados

eufóricos ou disfóricos, dependendo da intenção do autor.

1.3. Nível narrativo

Segundo Greimas (1975: 143), o nível narrativo dá conta do aspecto sintagmático

da manifestação e impõe a determinação de papéis.

Barros (1990:11) considera que na narrativa,

(...) os elementos das oposições semânticas fundamentais são assumidos como valores por um sujeito e circulam entre sujeitos, graças à ação também de sujeitos. Ou seja, não se trata mais de afirmar ou negar conteúdos, de asseverar a liberdade e de recusar a dominação, mas de transformar, pela ação do sujeito, estados de liberdade ou de opressão.

Page 21: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

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No nível narrativo, temos uma sintaxe e uma semântica. A sintaxe, segundo Batista

(2001:150), acontece em torno do desempenho de um Sujeito que realiza um percurso em

busca do seu Objeto de valor, sendo instigado por um Destinador que é o idealizador da

narrativa e ajudado por um Adjuvante, ou prejudicado por um Oponente.

Nessa sintaxe narrativa, existem dois tipos de enunciado elementar:

a) enunciado de estado: o que estabelece uma relação de junção: disjunção, não ter

alcançado ou conservado o objeto; e a conjunção, ter ou conservar o objeto.

b) enunciado de fazer: o que mostra as transformações, que correspondem à passagem

de um enunciado de estado a outro.

Segundo Greimas & Courtés (1979: 435), podem chamar de programa narrativo

(PN) a estrutura constituída por um enunciado do fazer, regendo um enunciado de estado.

Os programas narrativos são demonstrados através de diagramas onde os actantes

são usados na sua forma abreviada:

Dor Adj. S

Existe o percurso narrativo do sujeito que representa a aquisição pelo sujeito da

competência para agir; o percurso narrativo do destinador-manipulador que representa a

influência do destinador sobre o sujeito e o percurso narrativo do destinador-julgador que

se refere à sanção do sujeito.

O encadeamento dos referidos percursos constitui o esquema geral de qualquer

narrativa que segundo Fiorin (1999: 22) apresenta-se estruturada em quatro fases:

manipulação, competência, performance e sansão. Na manipulação, o destinador age sobre

um sujeito para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma atividade; na competência o

Dário Dor

Ov S

Op.

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sujeito é munido de um dever/poder fazer e um querer/saber fazer; na performance, o

sujeito inicia a realização da atividade e na sansão o sujeito é premiado ou castigado por

sua ação.

A semântica narrativa trata da natureza da relação do sujeito com os valores

investidos nos objetos. Conforme Fiorin (1999: 28), dois tipos de objetos aparecem numa

narrativa: os objetos modais e os objetos de valor. Os primeiros são o querer, o dever, o

saber, o poder fazer e o crer. A obtenção desses objetos é imprescindível para que o sujeito

semiótico realize a sua performance em busca do seu Objeto de valor. Os segundos são

aqueles com os quais o sujeito semiótico entra em conjunção ou disjunção.

Essas relações do sujeito com os valores inscritos nos objetos que aparecem nas

narrativas são marcadas pela modalização do ser e/ou do fazer.

Quanto ao estudo da modalização do ser, Barros (1990: 45) aponta dois aspectos:

(...) modalização veridictória, que determina a relação do sujeito com o objeto, (...) e o da

modalização pelo querer, dever, poder e saber(...)

A modalização do fazer deve ser apreendida sob dois ângulos: a atuação do

destinador em relação ao destinatário-sujeito e a performance propriamente dita desse

sujeito.

1.4. Nível discursivo

A concretização das formas abstratas do nível narrativo acontece nesse nível do

percurso gerativo da significação.

Greimas & Courtés (1979: 208) destacam que o nível discursivo é encarregado de

retomar as estruturas semióticas de superfície e colocá-las em discurso. O sujeito

enunciador organiza as categorias de sujeitos do discurso, os atores, o espaço, o tempo, os

temas, bem como as figuras que os põem em discurso, para convencer o enunciatário

daquilo que ele deseja afirmar.

O nível discursivo, assim como o fundamental e o narrativo, possui uma sintaxe e

uma semântica.

Page 23: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

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Na sintaxe discursiva são consideradas as relações intersubjetivas e de espaço e

tempo. O enunciador discursa com o propósito de persuadir seu enunciatário de que lhe diz

a verdade. Essa é transmitida pelo enunciador através de dois mecanismos discursivos: os

efeitos de proximidade ou distanciamento da enunciação (embreagem e debreagem) e a

referência à realidade (atorialização, espacialização e temporalização). Esses efeitos servem

como instrumentos de persuasão, sedução e/ou manipulação do enunciador em relação ao

enunciatário. Isso é o que abordamos a seguir.

Greimas & Courtés (1979: 40) fazem referência à embreagem como uma (...)

identificação entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, enquanto que

debreagem é o distanciamento entre ambos.

Toda embreagem pressupõe uma operação de debreagem que lhe é logicamente

anterior e definida por Greimas & Courtés (1979: 95) da seguinte maneira:

A debreagem é a operação pela qual a instância da enunciação disjunge e projeta fora de si, no ato de linguagem e com vistas à manifestação, certos termos ligados à sua estrutura de base, para assim constituir os elementos que servem de fundação ao enunciado-discurso. Se se concebe por exemplo a instância da enunciação como um sincretismo de “eu-aqui-agora”, a debreagem, enquanto um dos aspectos constitutivos do ato de linguagem original, inaugura o enunciado, articulando ao mesmo tempo, por contrapartida, mas de maneira implícita, a própria instância da enunciação.

A debreagem distancia o sujeito enunciador do enunciado e da enunciação e

portanto, do tempo, do espaço e do ator. A embreagem aproxima-os.

Segundo Fiorin (1999: 41), a debreagem é o mecanismo em que se projeta no

enunciado quer a pessoa (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação, quer a

pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (lá) do enunciado. No primeiro caso (projeção do

eu-aqui-agora), ocorre uma debreagem enunciativa; no segundo (projeção do ele-então-

lá), acontece uma debreagem enunciva.

Barros (1990: 54-55) usa o termo desembreagem para mostrar que o sujeito da

enunciação faz várias opções para articular o discurso conforme os efeitos de sentido

pretendidos. E relata que o principal procedimento é o de produzir o discurso em terceira

Page 24: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

13

pessoa, no tempo do “então” e no “espaço” do lá. Esse procedimento denomina-se

desembreagem enunciva e opõe-se a desembreagem enunciativa, em primeira pessoa.

Os mecanismos de referência à realidade são a atorialização, a espacialização e a

temporalização.

A atorialização acontece quando os actantes da narrativa assumem o papel de ator

no discurso. É a unidade léxica do discurso que é caracterizada, segundo Greimas (1975:

240-241), pelos semas:

a) entidade figurativa (antropomórfica, zoomórfica ou outra), b) animado e c) susceptível de individuação (concretizado, no caso de algumas narrativas, sobretudo literárias, pela atribuição de um nome próprio), percebe-se que tal ator é capaz de assumir um ou vários papéis. (...) papel é uma entidade figurativa animada, porém anônima e social; o ator, por outro lado, é um indivíduo integrando e assumindo um ou vários papéis.

Para Benveniste (1989: 70), dentre as formas lingüística reveladoras de experiências

subjetivas, as mais ricas são aquelas que exprimem o tempo. Apesar da confusão com que o

mesmo é tratado no interior das línguas flexionais e não flexionais. O tempo é classificado

em três níveis distintos: o tempo físico do mundo, o tempo crônico e o tempo lingüístico. O

primeiro é um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade. Correlaciona-se

com o homem numa duração infinitamente variável, podendo ser medido por suas

comoções e pelo ritmo de sua vida interior. O segundo é o tempo dos acontecimentos que

engloba a vida em geral enquanto seqüência de acontecimentos que estão localizados neste

tempo. Dentro do tempo crônico, há uma preocupação das sociedades humanas em

estabelecer controles sobre esse tempo. Este, uma vez estudado, disciplinado e socializado,

é denominado o tempo do calendário. Em épocas remotas, quando o homem não detinha

tecnologia, utilizava-se de fenômenos naturais como a sucessão do dia, da noite, das fases

da lua, dos movimentos dos mares, da posição do sol, das estações do ano, do clima e da

vegetação.

Page 25: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

14

Há ainda traços comuns nos calendários que indicam as condições a que devem

atender. Essas são classificadas em três condições: a estativa, a diretiva e a mensurativa. A

primeira faculta às coisas uma nova direção, partindo de um ponto inicial. Com exemplo,

tem-se o nascimento de Cristo. A segunda condição é a diretiva que decorre da primeira,

basea-se em termos opostos, no eixo de referência. Exemplos: antes/ depois; cedo/ tarde. A

terceira condição é a mensurativa que resume unidades para medir os intervalos constantes

entre as referências de fenômenos cósmicos. Exemplos: o intervalo entre o nascer e o pôr

do sol que se denomina dia. O mesmo procedimento utiliza-se para medir semana, mês,

ano, século etc.

O tempo lingüístico está, organicamente, relacionado com o exercício da fala e se

define como função do discurso. Apresenta três articulações distintivas e limitadas: para

trás (ontem e anteontem); para frente (amanhã e depois-de-amanhã) e trás-antes-de-ontem

(depois de depois de amanhã).

A temporalidade lingüística está centrada no hoje e só pode ser deslocada para trás

ou para frente no intervalo de dois dias.

Na concepção de Pais (1995: 137), o tempo apresenta diversas relações: o tempo da

História, através do qual se desloca o discurso. O tempo cronológico (T). Há também, o

tempo do discurso que se desdobra em tempo de discurso do emissor (T’) e tempo do

discurso do receptor (T’’). T’ jamais é igual a T’’, no máximo equivalente. E mais: há um

tempo da história com h minúsculo (T*), inscrito no texto, produzido pelo discurso. Além

da temporalização, Pais (1995: 140) aborda a espacialização, que muito se assemelha à

temporalização, pois apresenta também múltiplas relações. Na espacialização há o espaço

do contexto social-cultural (E*) que na linguagem oral contém o espaço da enunciação do

emissor (E’) e o da decodificação do receptor (E’’). Logo E’ e E’’ são equivalentes (e não

idênticos), uma vez que a percepção do espaço é diferente para cada interlocutor, nunca

igual. Há também o espaço da história (E*), inscrito no discurso.

Na semântica discursiva, de acordo com Barros (1990: 68), os valores assumidos

pelo sujeito da narrativa são disseminados sob a forma de percursos temáticos. Estes

recebem revestimentos figurativos. Tem-se então na semântica discursiva duas categorias

representativas: a tematização e a figurativização.

Page 26: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

15

Antes de apresentarmos quaisquer definições sobre os componentes da semântica

discursiva, faz-se necessário abordar o termo ideologia, considerando que tal termo ajuda

na compreensão dos temas e das figuras existentes no discurso.

Segundo Fiorin (1995: 28), ideologia é um conjunto de idéias ou representações que

servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as

relações que ele mantém com os outros homens. Dessa forma, entende-se que a classe

dominante se utiliza de desculpas para justificar as desigualdades e as injustiças que o

sistema impõe à maioria da população. Esse mesmo poder dominador distorce o conceito

do termo ideologia, alegando que se trata de algo verdadeiro, justo e bom para todos.

Entre os diversos recursos que possuem comprovada eficiência técnica para

apreensão da ideologia de um texto, destacam-se os temas e as figuras utilizadas pelo autor.

Por mais que este queira expressar uma construção textual alheia a sua formação cultural,

não conseguirá, porque a arquitetura básica do seu vocabulário irá revelar, sutilmente, a sua

verdadeira formação ideológica, através desses dois termos.

Conforme Fiorin (1995: 24), os temas e as figuras equivalem a duas maneiras de

dizer uma mesma coisa, distinguindo-se apenas um do outro no fato de um ser mais

abstrato e o outro mais concreto. São dois níveis de concretização dos elementos

semânticos da estrutura profunda.

Page 27: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

16

1.5. Discursos etno-literários

Em pesquisa realizada sobre discursos etno-literários, Pais (1982-1984) utilizou

como questão importante na teoria semiótica a tipologia do discurso e dos universos de

discurso. Para tanto, Pais agrupou diversos critérios de autores relevantes, como modo de

existência e produção, as estrutura de poder, as relações de enunciação e enunciado, os

efeitos de sentido e outros, tecendo uma combinação dinâmica entre eles. Foi necessário

distinguir o discurso enquanto processo discursivo de produção e o texto, produto

enunciado.

Partindo das semióticas-objeto verbais ou eminentemente verbais, as línguas

naturais e seus discursos, podemos considerar a existência de discursos literários e não

literários.

Com o avanço das teorias semióticas e lingüísticas, os pesquisadores foram

adotando novas denominações e concepções pertinentes ao discurso. É nessa perspectiva

que é fundada na França, precisamente no ano de 1978 uma nova disciplina da semiótica,

numa concepção social: a sociossemiótica. Esta ciência é delimitada por Pais (2005: 02) da

seguinte maneira:

A sociossemiótica estuda os discursos sociais não-literários, tais como, os discursos científico, tecnológico, político, jurídico, jornalístico, publicitário, pedagógico, burocrático, religioso, dentre outros. Esses universos de discurso são ditos sociais, porque, embora tenham emissor e receptor individuais, caracterizam-se por enunciador e enunciatário coletivos, um grupo ou segmento social, partidos políticos, legisladores, comunidade científica, grupos profissionais, etc. Denominam-se não literários, porque a função estética, conquanto neles exista, com características específicas, não é determinante de sua eficácia, nem de seu estatuto sociossemiótico, conferido pela sociedade.

A cada um desses universos de discurso integrantes da sociossemiótica agrupam-se

vários discursos que se manifestam e que se reúnem por critérios de equivalência. São

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Macrossemiótica

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discursos que se identificam a partir das relações intertextuais e interdiscursivas,

ambientados num contexto lingüístico que fazem parte da macrosemiótica de uma cultura.

Pode-se imaginar um gráfico para representar tal situação:

Os discursos sociais caracterizam-se por certas peculiaridades, permitindo que haja

entre eles um livre trânsito para que se relacionem e se agrupem, formando um todo de

significado responsável por manifestações e comportamentos sociais. Eles se deixam

traduzir pela sociossemiótica que é subordinada à macrossemiótica de uma cultura. Esses

universos de discursos sociais não literários que são sustentados por grupos ou seguimentos

sociais apresentam, em suas estruturas de poder, mecanismos diversos, destacando-se, entre

os quais, a argumentação, a manipulação, as relações inter-subjetivas e espaço-temporais de

enunciação e enunciado.

Já os universos de discurso literários diferem dos não literários por não adotarem a

verossimilhança que desempenha determinada função entre os sujeitos-enunciatários-

leitores e desprezam a veridicção peculiar aos discursos científico e jurídico. O que

interessa do ponto de vista dos universos de discurso literários é persuadir e seduzir o leitor

Sociossemiótica

Discursos Sociais

Page 29: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

18

ouvinte. Este recurso de poder-fazer-crer o enunciatário é atualmente muito utilizado nos

romances e nas novelas televisivas. Nesse caso, segundo Pais (2005:02):

Os discursos literários parecem ter outras atribuições no seio da vida social. São vistos como ficcionais, despertam emoções, suscitam o prazer do texto e constituem, geralmente, não imitações da vida mas metáforas da vida, que conduzem a uma melhor compreensão desta. A função estética é elemento determinante de sua eficácia e de sua valorização social.

Pais, a partir das proposições teóricas de Greimas (1979), Pottier (1974) e Rastier

(1991), desenvolveu uma concepção mais abrangente do percurso gerativo da enunciação,

de codificação e de decodificação e examinou os microssistemas de valores

correspondentes a normas discursivas distintas, comprovando que existe um mundo

semioticamente construído, que é o das culturas. Nessa dimensão, foram criadas as

condições epistemológica e metodológica para a constituição de uma disciplina

denominada semiótica das culturas que é definida pelo autor (2005: 03) da seguinte forma:

(...) a Semiótica das Culturas (...) estuda, justamente, os processos de elaboração e permanente reelaboração do mundo semioticamente construído em determinada cultura, articulando-se a cognição e a semiose, o fazer do sujeito cognitivo e o fazer do sujeito semiótico.

Os universos de discurso etno-literários têm como principal característica não

apresentarem o mecanismo de verossimilhança. É comum encontrar nesses discursos,

narrativas que não aconteceram de verdade nos moldes em que são explicitada. Seus

autores não são conhecidos. O sujeito enunciador é geralmente apagado ou substituído por

um ente imaginário ou virtual. As marcas de tempo e espaço são apagadas ou muito vagas.

Essas características produzem um efeito de sentido de atemporalidade e remetem a um

espaço que é o da utopia, do não-lugar. Os discursos etno-literários não se submetem aos

Page 30: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

19

mesmos critérios que modelam os discursos literários e os discursos sociais não literários.

Os discursos etno-literários apresentam um sujeito enunciador coletivo que ressurge sempre

que os textos são retomados e modificados de geração a geração. Não se enquadram nos

discursos sociais não literários porque não são ficcionais, nem documentais, contrapondo-se

à memória oficial da história, recriando-se assim um outro tipo de memória social. Nessa

ordem, os discursos etno-literários são guardados na memória e repetidos pelos contadores

durante séculos. Vale ressalvar que a repetição permite variações no texto original que vão

se avolumando com o passar do tempo.

Os contadores que equivalem aos trovadores medievais têm importância

fundamental na manutenção desses discursos, em virtude da persuasão que exercem sob as

pessoas a que contam. E Pais (2005: 03-04) acrescenta o seguinte:

(...) tais textos são percebidos pelos sujeitos-enunciatários-ouvintes simultaneamente como fábulas e como veredictórios, portadores de ‘verdades’ gerais e universais. Têm, também, esses textos um efeito de sentido de permanência, dizem da natureza humana e podem, por isso, ser considerados como representantes de formas de humanismo.

Os discursos etno-literários têm elevada importância no sistema de valores e de

crenças que compõem o imaginário coletivo popular, proporcionando ampla visão de

mundo no universo semiótico. Nesse sentido, constituem documentos de muito valor,

tradutores de uma cultura e do seu processo histórico.

É certo que desde a Idade Média até os dias atuais, cantados ou recitados, na Europa

ou no Nordeste brasileiro, esses textos relatam eventos inverossímeis; aventuras dadas em

tempo e espaços não identificados e servem para divertir o povo. Além disso, proporcionam

lições exemplarem que servem para as pessoas refletirem. Pais (2005: 04) acrescenta ainda:

(...) os discursos etno-literários incorporam, sustentam, caracterizam uma identidade cultural. Representam um saber

Page 31: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

20 compartilhado sobre o mundo, traduzido em amplas sucessões de metáforas. Constituem, pois os discursos etno-literários um patrimônio cultural, por sua riqueza, complexidade e diversidade.

São inúmeros os temas que agrupam as mais diversificadas modalidades de textos

etno-literários. Dentre esses, o romance ocupa expressivo lugar. A temática de Amor

Desgraçado caracteriza-se por apresentar grande número de personagens, ainda que pobres

em sua figurativização. Pais (2005: 05) define essa temática da seguinte maneira:

Na realidade, são tipos humanos, ou tipos sociais, suportes de temas, encarregados da tematização. Observam-se em tais romances grandes temas universais, as oposições amor x morte, vida x morte, amor x alma, riqueza x miséria, bem x mal, poder x fraqueza, fidelidade x traição, etc. Poder-se-iam multiplicar os exemplos. Os grandes proprietários de terras são com freqüência os representantes do poder, da opressão, do mal. Os homens pobres representam freqüentemente o bem, a honestidade, a fraqueza, o sonho de liberdade. As ‘autoridades’ são normalmente apresentadas como gente malvada. O poder está ligado à malvadeza. O diabo aparece, como ele mesmo, ou disfarçado em outra personagem, relacionada ao poder, à riqueza, à autoridade; intervém no destino dos homens.

Nessa perspectiva, a oposição bem versus mal aparece polarizada e evidente nos

conflitos que cercam o ser humano. Por exemplo, o bem se manifesta na fraqueza, no sonho

de liberdade, nos explorados, nos subordinados, na pobreza e na honestidade. Já o mal está

contido no poder, na opressão, nos proprietários de terra, nas autoridades, na riqueza e na

desonestidade.

Assim, para o pesquisador realizar uma análise mais acurada é necessário,

preliminarmente, está familiarizado com as histórias e conhecer bem o pensamento e o

sistema de valores da cultura em questão. Isto em virtude de se tratar de uma outra

linguagem que é preciso aprender para interpretá-la corretamente.

Page 32: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

21

Os discursos etno-literários, cujos textos possuem importantes funções sociais e

culturais, assemelham-se aos mythos da cultura grega antiga; oferecem subsídios para

pesquisas antropológicas e reflexões da psyché-humana; revelam e sustentam sistemas de

valores e de crenças; compartilham um “saber” sobre o mundo que integra o imaginário

coletivo de uma cultura, de uma sociedade; contribuem para o sentimento de sua

permanência no eixo da História e para a configuração de uma identidade cultural da

comunidade em causa; favorecem a compreensão do processo histórico da cultura.

Comparando os discursos etno-literários com os literários tradicionais e os sociais

não literários, Pais (2005: 07) elaborou um modelo semiótico que se configura através do

seguinte octógono semiótico:

Tensão dialética

Discursos etno-literários

Documentais Ficcionais

Discursos sociais Discursos

Não-literários Literários

Não-ficcionais Não-documentais

Ø

Aqui se percebe que os discursos documentais são contrários aos ficcionais. Estes implicam

em não-documentais. Ficcionais e não-documentais se combinam, tendo como resultado os

discursos literários. Documentais implicam em não-ficcionais, dando lugar aos discursos

sociais não-literários. Os discursos etno-literários sustentam-se numa tensão dialética

estabelecida entre os termos documentais e ficcionais, o que segundo Pais confirma a

Page 33: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

22

função mítica e pedagógica dos discursos etno-literários. Na parte inferior do gráfico, tem-

se a inexistência semiótica, produto da combinação entre não-ficcionais e não-

documentais.

O estudo dos discursos etno-literários constitui uma nova tipologia discursiva que

pretendemos utilizar neste trabalho.

Page 34: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

23

2. A PROPÓSITO DO ROMANCEIRO

2.1 Na literatura oral: uma narrativa poético-musical

A literatura oral reúne todas as manifestações culturais de fundo literário, que são

transmitidas sucessivamente de geração para geração, através da oralidade.

Segundo Cascudo (1984: 23), o termo Literatura oral foi usado pela primeira vez,

em 1881, pelo francês Paul Sélibillot ao publicar o livro Littérature Orale De La Haute

Bretagne.

Em qualquer lugar é comum haver manifestações culturais de modalidades diversas

que expressam o pensamento coletivo de um grupo social, constituídas de provérbios,

adivinhações, contos, frases-feitas, orações, cantigas, romances orais e outros.

O debate sobre a literatura oral tem encontrado dificuldades em delimitar um marco

inicial desse gênero. Parece que desde o início da humanidade que o homem narra suas

experiências aos outros, passando de uma geração a outra através da oralidade. As grandes

obras da Literatura universal foram, inicialmente, histórias ditas e reditas pelo gosto

popular, num trabalho perene de construção e reconstrução do saber. Como exemplos, têm-

se as obras de Homero e a Bíblia que de textos correntes na tradição oral, passaram à escrita

pelo laborioso engenho de seus compiladores. É na Idade Média, todavia, que esse

patrimônio oral vai enriquecer-se numa profusão variada de gêneros. A Igreja católica

detinha o controle político e realizava tentativas sistemáticas para estender sua autoridade

moral sobre todos os seus membros em quaisquer que fossem as circunstâncias. Referindo-

se a algumas ações da Igreja, Burns (1975: 357) afirma o seguinte:

Page 35: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

24

Os principais métodos adotados foram a excomunhão e a exigência da confissão auricular. (...) Seus efeitos eram expulsar um indivíduo da igreja e privá-lo de todos os privilégios de um cristão. O corpo do excomungado não podia ser enterrado em campo santo e sua alma era entregue temporàriamente ao inferno. Todos os outros cristãos ficavam proibidos de se associar a êle, sob pena de compartilhar do seu destino. Por vêzes, o decreto de excomunhão contra um rei ou nobre poderoso era fortalecido pelo estabelecimento de um interdito na região por êle governada.

É importante dizer que tanto a excomunhão como o interdito representavam armas

poderosas até o século XIII. Em 1215, através do Quarto Concílio de Latrão, a Igreja exigiu

que todo indivíduo fizesse uma confissão oral de seus pecados a um padre. Este

determinava a sentença a que se submeteria o suposto pecador para se tornar digno de

receber a eucaristia.

Durante esse período medieval em que vigorou a predominância absoluta da Igreja

na administração política do velho mundo, constatou-se, entre os seus componentes

hierárquicos, diversos desentendimentos que provocaram sucessivas reformas. Estas

objetivavam reconquistar o estado de pureza das suas instituições. Serve de exemplo o

movimento cluniacense, ocorrido no mosteiro Cluny3, como também, a grande Reforma do

século XVI que deu origem ao protestantismo através de Martim Lutero.

Os objetivos dos reformadores não se restringiam a purificação da vida conventual,

livre das garras do feudalismo secular. Sobre esses reformadores, Burns (1975: 358)

acrescenta o seguinte:

(...) seus objetivos primordiais eram, agora, eliminar a corrupção e os interêsses terrenos de tôda a igreja, abolir o contrôle feudal tanto sôbre o clero secular como sôbre os monges e estabelecer a supremacia absoluta do papa em assuntos eclesiásticos.

3 Fundado em 910 na Europa.

Page 36: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

25

O mundo não era mais o do mito e sim o da fé e das certezas inabaláveis. Quem não

acreditasse iria para a fogueira. Tudo ocorria voltado para Deus. Por isso esse momento

ideológico é chamado de Teocentrismo, isto é, Deus é o centro do universo e todas as

coisas nele existente devem-lhe render homenagem.

Nesse âmbito medieval, Coelho (1980: 112) caracteriza essa doutrina da seguinte

maneira:

Anseio de espiritualidade, tentativa de conciliação da fé cristã com os postulados da filosofia grega (Aristóteles e Platão). Nesse período predomina a Fé alicerçando a Razão: visão teocêntrica do mundo.

Era reduzidíssimo o número de pessoas que sabiam ler grego e latim, e menos

ainda, os que sabiam escrever. Toda a publicação era controlada pela Igreja porque era ela

quem dizia o que deveria ser divulgado ou não. Tudo que fosse publicado sem a

autorização da Igreja era considerado heresia. Para que esta fosse considerada transgressão

de preceito religioso e o pecador fosse condenado a morte, a Igreja inventou a Inquisição do

século XIII para poder perseguir, torturar e matar em nome de Deus.

O universo medieval era fantasioso e sobrenatural. O pecado estava em quase todos

os feitos humanos e os castigos sobrenaturais eram rigorosos. Nesse ambiente, cantavam-se

a pureza das virgens, a fidelidade das boas esposas, a coragem dos cavalheiros, o amor

platônico e angelical, os castigos pela traição, os milagres, as profecias e o temor ao fim do

mundo. Tudo isso era adicionado aos acontecimentos cotidianos do povo e expresso através

das suas manifestações. Apesar dos prejuízos causados pela Santa Inquisição, na queima de

documentos e na caça às bruxas, restaram algumas produções que foram colhidas pelos

pesquisadores, datando, as primeiras, do século XII da era cristã.

Com as mudanças histórico-sociais, os feitos dessa literatura não cessaram e se

expandiram pelo mundo, ampliando suas modalidades. Sobre a caracterização dessa

literatura, Cascudo (1984: 23-24) faz a seguinte observação:

Page 37: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

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Duas fontes contínuas mantêm viva a corrente. Uma exclusivamente oral, resume-se na estória, no canto popular e tradicional, nas danças de roda, danças cantadas, danças de divertimento coletivo, ronda e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos), nas estrofes das velhas xácaras e romances portugueses com solfas, nas músicas anônimas, nos aboios, anedotas, adivinhações, lendas, etc. A outra fonte é a reimpressão dos antigos livrinhos, vindos de Espanha ou de Portugal e que são convergências de motivos literários dos séculos XIII, XIV, XV, XVI, Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Princesa Magalona, João de Calais, Carlos Magno e os Doze Pares de França(...)

A partir das experiências, o homem foi evoluindo e, com ele, as suas produções

culturais, tanto no tempo quanto no espaço. Geralmente, aventuras de guerra, política,

religião e outras se renovam e são colhidos pela literatura, preservando a forma das velhas

narrativas. Cada vez que uma manifestação discursiva oral se desloca, ocorre uma

adequação para que sejam refeitas as novas condições ambientais da fauna, flora, costume e

mentalidade. Dessa forma, a literatura oral está sempre em constante renovação, enquanto

produto do imaginário popular pautado na tradição e no ambiente lúdico de um

determinado povo. Essa literatura tem como oposição a erudita, que se considera legítima e

oficializada. Esta, obedece aos padrões exigidos pela academias e escolas literárias de

época. Mesmo assim, a maioria das produções literárias eruditas tem, como base estrutural

e ornamentativa, os feitos da literatura oral. No Brasil, servem de exemplo os escritores e

romancistas clássicos da literatura brasileira José de Alencar, Jorge Amado e, mais

modernamente, José Lins do Rego e Ariano Suassuna que se utilizaram dos textos

populares para construir suas obras.

É no âmbito da literatura oral que se armazena toda a sabedoria popular em sua

diversificação máxima. Os colonizadores portugueses precisavam ganhar autoconfiança dos

habitantes do Brasil e, conseqüentemente, estabelecer domínio sobre a colônia brasileira.

Para tanto, trouxeram e difundiram os feitos heróicos de Portugal, apresentando as

conquistas de territórios extracontinentais, bem como suas aventuras marítimas.

Evidentemente, aqui essa literatura sofreu os ajustes para se tornar aceita. Mais tarde, outras

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27

nacionalidades nos trouxeram suas contribuições no sentido de ampliá-la e transformá-la.

Confirma isso Cascudo (1984: 29):

A literatura oral brasileira reúne todas as manifestações da recreação popular, mantidas pela tradição.

Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar adiante o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo. E’ a quase definição dicionarista do Morais, na edição de 1831: “Tradição, notícia que passa sucessivamente de uns em outros, conservada em memória, ou por escrito.” (...)

A literatura oral brasileira se comporá dos elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual. Indígenas, portugueses e africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas e cantores profissionais, uma já longa e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar.

Além dessas três raças, acrescenta-se a nacionalidade francesa que, embora em

menor volume, também trouxe sua colaboração para formar uma literatura que, em sua

totalidade tornou-se ainda mais diversificada. Todas essas produções foram formando a

literatura oral brasileira, de acordo com os fatos ocorridos e o anseio do povo em satisfazer

aos seus desejos.

Foi na região nordestina brasileira que a literatura popular se desenvolveu com mais

vigor. Nesse ambiente de superstição, religiosidade e valentia, a oralidade se manifesta com

força. Personagens europeus fictícios ou não, como Pedro Malasarte, Juvenal, João de

Calais, Carlos Magno, Camões, Cancão de fogo e outros se robusteceram no ambiente

nordestino. Personalidades femininas se evidenciaram no universo popular, em virtude da

rara inteligência, beleza e espírito de justiça. As mais destacadas são a Donzela Teodora,

Princesa Magalona, Princesa de Pedra Fina, Imperatriz Porcina e outras. Há representações

da literatura oral para cada lugar e atividade coletiva do homem, por exemplo, realizam-se

nas novenas: contos, rezas, promessas; nos eitos de trabalhadores: anedotas, causos; nas

calçadas: contos, adivinhações, charadas, cantigas e romances orais. Segundo Batista

(2000: 20), essa literatura subdivide-se em dois grandes gêneros: a prosa e o verso. O

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28

primeiro reúne contos, lendas, mitos, adivinhações, anedotas etc; e o segundo abrange

poemas cantados ou recitados, tais como: cantigas, quadrinhas, parlendas e romances.

Sendo o romanceiro nosso objeto de estudo, o capítulo seguinte lhe será dedicado.

2.2. O romance oral

Para Curtius (1946: 66), há três sentidos para a palavra romance: (...) romance

significa primeiramente “língua popular”, depois, porém, obra escrita nessa língua e, em

seguida, sem restrição, um único gênero literário.

Segundo Pidal (1953: 03), a palavra romance em seu sentido primário significou

língua vulgar, tendo desde a Idade Média, no campo literário, um sentido vago, sendo

aplicado a composições variadas. São chamadas romances diversas composições: poemas,

contos, crônicas, fábulas, canções breves, narrativas épicas, obras literárias.

Batista (1999: 70) conceitua romance da seguinte forma:

Quando falamos em romances, não estamos nos referindo às narrativas em prosa que conhecemos comumente, mas às narrativas poético-musicais, caracterizadas, sobretudo, pelo conteúdo épico, pela riqueza de variações no conteúdo e na forma, advinda de sua natureza oral.

O romance tradicional oral – como uma das modalidades que compõem a literatura

oral, conforme mencionamos antes – corresponde a tipos de composições que, além de

auxiliarem as composições eruditas, guardam bem a memória do povo pelo mundo, desde

há muitos séculos, envolvendo as mais diversas situações da vida humana.

É o romance um gênero poético-narrativo que tem raízes espaciais na Península

Ibérica e, temporais, na baixa Idade Média, conforme afirma Pidal (1953). Chamavam-se

romances também os poemas longos escritos em versos de catorze sílabas que se rezavam

ou recitavam. De qualquer forma, o romance sempre expressou os feitos humanos, ligados

aos seus sentimentos, quer seja em prosa, quer seja em verso, religioso ou não.

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29

Vários autores registraram trabalhos sobre esse gênero, apresentando inovações e

diferentes concepções, sempre nesse contexto. Em momento posterior, entra em oposição

àquelas composições que até então eram apenas recitadas ou rezadas, outras, as gestas

épicas, que se caracterizavam como gênero literário puramente narrativo e eram cantadas

ou lidas.

Os cantos do povo estavam presentes em todos os lugares com nomes diversos.

Sobre isso, comenta Pidal (1953: 05), o seguinte:

En el siglo XV, cuando ya los mismos temas y episodios de los

cantares de gesta se repetían fragmentariamente en breves canciones épico-líricas, es indudable que a éstas se había de aplicar también el nombre de romance.4

Já no século XV, os temas e episódios que representavam o romance passaram a se

constituir de breves canções épico-líricas. Nessa época, marca presença o escritor Alfonso

Martins de Toledo com o romance Corbacho (1438), apresentando páginas escritas em

prosa. Assim, a palavra romance toma o sentido no qual permanece até hoje. Com o passar

do tempo, a expansão do romance já se estende a vários países e, respectivamente, suas

variações.

Os feitos literários que apareceram na Espanha no século XV com nome de

romances difundiram-se pela Europa com o nome de canção narrativa popular. Embora

essas canções fossem versadas e adaptadas para um novo ambiente (considerando a língua

e o local) permaneceram abordando o mesmo tema, envolvendo assuntos amorosos e

cavalheirescos.

Segundo Pidal (1953: 08) os romances foram levados da Espanha para França em

1648, para a Alemanha em 1756 e para a Itália em 1895:

4 No século XV, quando os mesmos temas e episódios dos cantares de gesta já se repetiam fragmentariamente em breves canções épico-líricas, é indubitável que a estas se havia de aplicar também o nome de romance. (tradução nossa)

Page 41: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

30

Por haber sido España la primera nación de Europa que coleccionó y dio a la imprenta sus canciones narrativas, sus romances, propagó también el nombre de sus romanceros, aplicado en la época romántica a varias colecciones de cantos o de poemitas parecidos a los romances. En Francia ya en 1833 se publicó un Romancéro français, y luego un Romancéro de Champagne y otros así, sintiendo en el nombre un grato “perfume de exotismo”. El préstamo de esta voz se extiende también a Italia y Alemania5.

Os romances tiveram origem nas canções de gestas e logo caíram no gosto

aristocrático. Foram compostos para serem cantados por poetas cortesãos. Somente a partir

dos séculos XV e XVI foram popularizados, oferecendo-nos, desde então, abundante série

de textos. Quanto à estruturação da narrativa, Pidal (1953: 63) considera a existência de

dois tipos de romances: o conto e o diálogo. No romance conto, a parte narrada supera a

dialógica, com um foco narrativo em terceira pessoa, como no exemplo A romeira:

Por aqueles montes verdes Uma romeira descia; Tão honesta e formosinha Não vai outra à romaria. Sua saia leva baixa Que nas ervas lhe prendia; Seu chapelinho caído Que lindos olhos cobria! Cavaleiro vai trás dela, De má tenção que a seguia! Não a alcança, por mais que ande, Alcança-la não podia Senão junto a essa oliveira Que está no adro da ermida.(...)

5 Por ter sido a Espanha a primeira nação da Europa que colecionou e deu a imprensa suas canções narrativas, seus romances, propagou também o nome de seus romanceiros, aplicado na época romântica a várias coleções de cantos ou de poeminhas parecidos com os romances. Na França já em 1833 se publicou um Romanceiro francês, e logo um Romanceiro de Champagne e outros assim, sentindo no nome um grato “perfume de exotismo”. O préstamo desta voz se estende também a Itália e Alemanha. (tradução nossa)

Page 42: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

31

No romance diálogo, o narrar se desenvolve numa mudança de turno dialógico entre as

personagens, como no teatro. O foco narrativo é em primeira ou segunda pessoa, da forma

seguinte, extraído do romance Helena:

– “Ai! Que saudades me apertam pela casa de meu pai! Também me apertam as dores, E minha mãe sem chegar!” – “Se as saudades te apertam, bem nas podes ir matar: as dores não serão muitas, toma o caminho – e andar!” – “E à noite meu marido, quem lhe dará de cear? – “Da caça que ele trouver, Eu lha farei amanhar. Do meu pão e do meu vinho O que ele quiser tomar.” – “Onde está mi’ esposa Helena que me não dá de cear?”(...)

São raríssimos os romances velhos dentro do estilo romancístico, tomando como

base a tradição mais antiga e mais original. Os romances velhos peninsulares que se

constituem puramente de uma narração, sem diálogo nenhum, são pouco freqüentes.

Segundo Pidal (1955: 64), os romances denominados contos não eram apreciados

pelos poetas, nem tampouco pelos editores, embora existissem em abundância entre o povo.

Excepcionalmente, foram considerados aqueles que se identificavam com estilo popular

jogralesco. Essa desvalorização do romance-conto causou grande prejuízo para a

posterioridade, considerando-se que boa parte se perdeu no esquecimento, conforme afirma

Pidal (1953: 64): muchas narraciones completas, mucho más sabidas entonces que hoy.

Um exemplo disso está no romance do Conde Arnaldos que não foi publicado de forma

completa, por se tratar de um romance-conto. Há casos em que as narrativas populares

Page 43: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

32

completas ao se tornaram tradicionais, foram cortadas, preservando apenas a parte mais

condizente com a cultura popular.

Já os romances dialogados lograram muito êxito, por serem apreciados desde o

século XVI por seus catalogadores, poetas e editores. A semelhança com o teatro,

provavelmente, responda pelo êxito desta forma poética, direcionada completamente

através de diálogos sem que houvesse a interferência do narrador para emitir qualquer

opinião sobre as personagens. Servem de exemplos, os romances Buen Conde Fernán

González, Durandarte, Durandarte, Afuera, Afuera Rodrigo. Entretanto, percebe-se que há

casos em que os romances diálogos são introduzidos por breves narrativas que, além de

auxiliar na compreensão do mesmo, une um discurso a outro, dando mais viveza e clareza

ao episódio, como no exemplo A peregrina:

Peregrina, a peregrina Andava a peregrinar Em cata de um cavaleiro Que lhe fugiu, mal pesar! A um castelo torreado Pela tarde foi parar: Sinais certos, que trazia Do castelo, foi achar. – “Mora aqui o cavaleiro? Aqui deve de morar.” Respondera-lhe uma dona Discreta no seu falar: – “O cavaleiro está fora, mas não deve de tardar. Se tem pressa a peregrina, Já lho mandarei chamar.” Palavras não eram ditas, O cavaleiro a chegar:(...)

Os romances orais chegaram ao Brasil na época da colonização, trazidos pelos

portugueses e foram difundidos com rapidez, seguramente, devido à maneira como foram

transmitidos, isto é, em representações teatrais (especialmente de ciganos) e encenações em

festas jesuíticas.

Page 44: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

33

Das regiões do Brasil, o Nordeste é privilegiado, uma vez que, distante da

metrópole, manteve os elementos culturais dos antigos. Mesmo aqueles criados no Brasil,

conservaram, na forma e no conteúdo, o estilo luso.

A partir da segunda metade do século XIX, alguns estudiosos começaram a levantar

essas produções orais, aparecendo assim inúmeras coletâneas designadas de Romanceiros.

Dentre os mais conhecidos, vale lembrar o de: Silvio Romero (Os Cantos Populares do

Brasil), Rodrigues de Carvalho (O Cancioneiro do Norte), F. Pereira da Costa (Folk-lore

Pernambucano), Doralice F. Xavier Alcoforado e Maria do Rosário Soares Albãn (O

Romanceiro Ibérico na Bahia), Jackson da Silva (O Folclore em Sergipe), José Aloísio

Vilela (Romanceiro Alagoano), Derífilo Gurgel (O Romanceiro de Alcacus).

2.3. Levantamento do corpus

Os romances abordam temas bastante variados. Batista (1999: 87-115), em sua

proposta de classificação temática, considera a existência de dez classes: amor desgraçado,

amor fiel, raptos/prisioneiros, cativos, naufrágios, conquistas amorosas, sedução, burlas/

astúcias, valentia e religiosos. Dentre essas classes, a temática amor desgraçado destaca-se

pela grande quantidade de romances. Só no Nordeste do Brasil, a autora levantou trinta

tipos diferentes, com trezentos e dezessete variantes. Este fato constitui um registro cultural

muito importante para o povo em geral.

O romance de amor desgraçado, como o próprio nome diz, trata de uma desgraça

ocorrida com um par amoroso, abrangendo morte do(a) amado/amada, amor incestuoso que

culmina com a morte do amante, infidelidade amorosa etc. A tragédia, mesmo em sua

forma mais simples e corriqueira, atrai a atenção do povo que nesse gênero produziu belos

espécimes orais. Foi esta a razão que nos levou a escolher a desgraça amorosa como corpus

deste trabalho, especialmente, o romance Aparição. Deste, foram levantadas dezessete

versões que retomam, segundo Moreno & Santos (1980: 413), a canção de Afonso XII,

surgida por ocasião da morte de sua primeira esposa, Maria das Mercedes de Orleans no

século XVII. É uma recriação do romance medieval chamado de Aparição ou do Palmero.

Esse tipo de romance, considerando a classificação de Fontes (1997: 18), está incluído no

Page 45: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

34

grupo dos romances de cordel, tendo em vista o período em que foi composto. O autor,

embora faça esta afirmação, não cita a data de composição do texto.

Moreno & Santos (1980: 419) afirmam que a Aparição é um tema presente no

Romanceiro desde do século XV, servindo de exemplo os romances de Amor e Palmero. O

primeiro constitui-se de oito versos e foi levantado por Wolf numa folha volante da

Biblioteca de Praga e o segundo, formado de vinte versos, está incluído no Cancioneiro de

British Museum e publicado por Rennert.

O processo de expansão do romance Aparição atingiu diversos países, onde se

deixou influenciar culturalmente, preservando, entretanto, a estrutura temática. Sobre isso,

Moreno & Santos (1980: 427) relatam o seguinte:

Le romance de l’Apparition est devenu une forme qui intègre cette immense bibliothèque de formes qu’est la literature orale. Chaque poète, conteur, homme de théâtre la transforme, la recrée à partir de personajes nouveaux: le pèlerin, le soldat qui a tiré le mauvais numéro, Bernal Francês, Don Pedro de Portugal, Alfonso de Aragon, Alfonso XII, Alfonso XIII et bien d’autres encore...:6 (...)

A seguir, apresentaremos uma descrição das dezessete versões levantadas:

A versão da Espanha, Palmero, aqui codificada com MOR, é formada de vinte e

quatro versos regulares de quatorze sílabas cada, rimando todos os versos em / í /. Foi

transcrita por Morley e publicada na Revista de Filologia Española, em 1922;

A versão da Astúria, La Aparición, codificada com MEN, tem vinte e seis versos

distribuídos em duas estrofes irregulares, sendo a primeira com oito e a segunda com

dezoito versos regulares de quatorze sílabas. Na primeira estrofe, as rimas são ricas com

sons apenas aproximados, em / esta, eza, erra, erla, ... /. Já na segunda, as rimas recaem 6 O romance de Aparição tornou-se uma forma que integra esta imensa biblioteca de formas que é a literatura oral. Cada poeta, contista, dramaturgo a transforma, a recria a partir de personagens novos: o peregrino, o soldado que tirou a má sorte, Bernal Francês, Dom Pedro de Portugal, Alfonso de Aragão, Alfonso XII, Alfonso XIII e muitos outros ainda... (tradução nossa).

Page 46: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

35

também em todos os versos, mas com som de / í /. Esta versão foi levantada por Menéndez

e Pelayo, e publicada em Antología de Poetas Líricos Castellanos, em 1914;

A versão de Murcia, Alfonso XII, cujo código é CAR, é formada apenas por uma

estrofe, contendo vinte e três versos regulares de quatorze sílabas, variando a distribuição

das rimas, embora predominem os sons em / í /. Foi levantada por Carrizo e publicada em

Antología de cantares tradicionales del Tucumán, em 1974;

A versão de Portugal, Aparição, codificada com VAS, foi levantada por Vasconcelos

e publicada no Romanceiro Português, em 1958. Tem vinte e oito versos que variam entre

catorze e dezeseis sílabas, num único corpo. Apresenta inconstância quanto à distribuição

das rimas, embora não apareça versos brancos. As rimas ocorrem em \i\ e \in\: ti, vi, ali etc;

fim, jardim, mim;

Uma outra versão portuguesa, Pomba sem fel, com o código BRA, foi catalogada

por Braga e publicada no Romanceiro Geral Português, em 1982. Possui noventa versos

heptassílabos, exceto o décimo sexto que é octassílabo. Esses se agrupam em oito estrofes

irregulares que variam de quatro a dezoito versos. Apresenta rimas opostas ou interpoladas,

cujas palavras rimadas se sucedem, predominando o uso do ia: ordia\ vivia\ dia\ soberbia;

A versão de Cuba, Afonso doce, cujo código é PON, apresenta uma única estrofe,

contendo dezoito versos de quatorze sílabas, com rimas emparelhadas, predominando

também o som em / í /. Foi levantada por Poncet e publicada em Revista de la Facultad de

Letras Y Ciências, em 1914;

No Brasil foram coletadas, dentro do mesmo tema, várias versões advindas de

regiões diversas. Por exemplo:

A versão de São Paulo, Afonso XII, identificada com o código LIM, foi catalogada

por Lima e publicada no Romanceiro Folclórico do Brasil, em 1971. Apresenta apenas uma

estrofe com nove versos regulares de catorze sílabas cada, emparelhadas, predominando o

som em / í /;

A versão do Espírito Santo, Iracema, com o código NE1, possui vinte versos

distribuídos em cinco quadras, com rimas que obedecem rigorosamente ao esquema ABCB,

predominando o som em / ão / regulares. Foi catalogada por Neves, publicada no

Romanceiro Capixaba, em 1983 e cantado por Maria de Lourdes Marculano, em Guarapari;

Page 47: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

36

A outra versão do Espírito Santo, também é intitulada Iracema, codificada com NE2,

totaliza vinte e oito versos distribuídos em cinco estrofes irregulares, predominando a

quadra, embora todos os versos tenham sete sílabas, cada, com rimas em ABCB. Excetua-

se a estrofe que representa as horas que tem doze versos e quase não apresenta rima. Foi

catalogada por Neves, publicada no Romanceiro Capixaba, em 1983 e cantada por Maria

da Penha Rabelo, em Vitória;

A versão da Bahia, O soldado, cujo código é AL1, tem três estrofes irregulares, em

forma de diálogo, com a interrupção do narrador na apresentação de cada estrofe, em

licença métrica. Totaliza vinte e dois versos de quatorze sílabas, apresentando rima em

todos os versos, com predominância do som tradicional / í /. Foi catalogada por Alcoforado

e Albán, e publicada no Romanceiro Ibérico na Bahia, em 1996, sendo narrada/recitada

em Salvador, em 16/05/1988 por Elvira Corujeira Albán, de 86 anos, natural de Ermida,

Pazos de Borbén, Pontevedra, Espanha;

A outra versão da Bahia, A febre amarela, identificada com o código AL2, está em

uma única estrofe de vinte e quatro versos regulares de quatorze sílabas, apresentando

rimas rigorosamente emparelhadas. Foi catalogada também por Alcoforado e Albán,

publicada no Romanceiro Ibérico na Bahia, em 1996 e também cantada por Elvira

Corujeira Albán, em Salvador, em 16/05/86;

Na Paraíba, levantamos seis versões registradas no Romanceiro na Paraíba e em

Pernambuco (ainda inédito) e foram catalogadas por Batista em datas identificadas nos

resumos citados a seguir:

A primeira, intitulada Anália, cujo código é BA1, apresenta uma estrofe com dez

versos regulares, medindo quatorze sílabas métricas cada, com rimas rigorosamente

emparelhadas. Foi catalogada no dia 7 de maio de 1983, na Fazenda Malhada da Panela,

sendo cantada por Maria José Cordeiro, de 82 anos, do lar, nascida na Fazenda Malhada,

em Boqueirão-PB;

A segunda, Iracema, codificada com BA2, é constituída de uma estrofe de doze

versos regulares de catorze sílabas cada, onde se repete um mote ou refrão. O esquema

rímico é composto por rimas emparelhadas. Foi catalogada no dia 09 de fevereiro de 1984,

Page 48: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

37

em João Pessoa, na Paraíba e cantado por Raimundo Suassuna, de 73 anos, professor,

nascido em Catolé do Rocha-PB;

A terceira, Anália, com o código BA3, possui apenas uma quadra, com versos

irregulares, sendo os dois primeiros de quatorze sílabas e os dois últimos com dez sílabas

métricas, estes, em ritmo de galope, com rimas ricas emparelhadas. Foi catalogada no dia

03 de janeiro de 1987, em Boqueirão e cantada por Maria Cordeiro de Brito (Lia), de 70

anos, professora, nascida na Fazenda Malhada da Panela em Boqueirão-PB;

A quarta, Alfredo e Margarida, cujo código é BA4, é composta por uma estrofe de

oito versos longos, cujo número de sílabas varia entre catorze e dezoito. A rima ocorre em

baixa freqüência, embora o poema apresente uma certa cadência nos versos, que imprimem

melodia e ritmo, o que é comum na oralidade. Apenas nos versos quinto e sexto ocorrem,

necessariamente, a rima / estremeceu / morreu /. Foi catalogada no dia 31 de dezembro de

1987, em Campina Grande, na Paraíba e cantada por Maria do Carmo G. Leite (Carminha),

de 58 anos, funcionária pública, nascida na Fazenda Gravatá em Queimadas-PB;

A quinta, A sete de setembro, codificada com BA5, é formada de uma estrofe

contendo doze versos de quatorze sílabas, com rimas emparelhadas, repetindo-se por três

vezes um mote de dois versos. Foi catalogada no dia 01 de fevereiro de 1988, em Campina

Grande e cantada por Anália de Farias Leite, de 72 anos, doméstica, nascida na Fazenda

Salinas em Boqueirão-PB;

A sexta, Anália, com código BA6, possui uma estrofe de doze versos em quatorze

sílabas, cada, com rima em / eu /, à exceção de dois versos que rimam em sons diferentes.

Foi catalogada no dia 1º de fevereiro de 1988, em Campina Grande e cantada por Anália de

Farias Leite, de 72 anos, doméstica, nascida na Fazenda Salinas em Boqueirão-PB.

O quadro a seguir resume as informações das versões estudadas.

Page 49: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO DAS VERSÕES LEVANTADAS

CÓDIGO

TÍTULO

RECOLHIDA

POR

COLETÂNEA

LUGAR DE ORIGEM

ANO

MOR Palmero Morley Revista de Filologia Española

MEN La Aparição Menéndez y Pelayo Antología de Poetas Líricos Castellanos

Astúrias

CAR Alfonso XII Carrizo Antología de cantares

tradicionales del Tucumán

Múrcia

VAS Aparição Vasconcelos Romanceiro Português

BRA Pomba sem fel Braga Romanceiro Geral Português

Archipélago da Madeira

PON Alfonso Doce Poncet Revista de la Facultad de Letras y

Ciencias

LIM Afonso XII Lima Romanceiro Folclórico do Brasil

São Paulo

NE1 Iracema Neves Romanceiro Capixaba

Guarapari –

NE2 Iracema Neves Romanceiro Capixaba

Vitória –

AL1 O soldado Albán/ Alcoforado Romanceiro Ibérico na Bahia

Espanha/Salvador

1988

AL2 A febre amarela Albán/Alcoforado Romanceiro Ibérico na Bahia

Espanha/Salvador 1986

Page 50: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

BA1 Anália Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Fazenda Malhada da Panela (Boqueirão)

1983

BA2 Iracema Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Catolé do Rocha

1984

BA3 Anália Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Fazenda Malhada da Panela (Boqueirão)

1987

BA4 Alfredo e Margarida Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Fazenda Gravatá (Queimadas)

1987

BA5 A sete de setembro Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Fazenda Salinas (Boqueirão)

1988

BA6 Anália Batista Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco

Fazenda Salinas (Boqueirão)

1988

Page 51: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

40

Observamos neste quadro que, em três versões, a personagem principal é nomeada

Iracema. É o caso do texto Iracema de Adoniran Barbosa, escrito em 1953, que, cantado,

tornou-se um clássico da música popular brasileira. Eis uma parte do texto:

Iracema, eu nunca mais te vi. Iracema meu grande amor foi embora. Chorei, eu chorei de dor porque, Iracema meu grande amor foi você. Iracema, eu sempre dizia, Cuidado ao atravessar essas ruas, Eu falava, mas você não escutava não. Iracema você atravessou na contra mão. E hoje ela vive lá no céu, E ela vive juntinho de nosso senhor. De lembrança guardo somente, Suas meias e seu sapato, Iracema eu perdi o seu retrato.

É interessante notar que o autor é poeta popular e utilizou-se do nome e de vários

elementos do romance oral: pertences, amor ímpar, projeto de casamento, morte da amada,

sofrimento do amado, ida da amada para o céu. Entretanto, o poeta apresenta os seguintes

elementos novos: a causa da morte da amada (atropelamento), o ambiente onde se dá a

morte (avenida São João – São Paulo) e o momento histórico (1953: desenvolvimento da

Indústria em São Paulo).

2.4. Textualização e segmentação

Considerando as diferentes versões examinadas, observamos que elas apresentam um

percurso temático mais ou menos homogêneo, constituído de segmentos que permitiram a

reestruturação de um texto invariante da forma seguinte.

Sg1 Namoro proibido:

Por isso cá fômos ambos

Page 52: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

41 Namorando de porfia, Mas com tamanho segredo; Que ninguém lo sonharia. (BRA)

Namorou catorce meses sem que nadie llo soubese. (AL2)

Sg2 Existência de um amor ímpar:

Nunca houve mais amor (BRA)

Era um amor entre os dois que não se via em ninguém (BA4)

Sg3 Ida do amado para guerra:

Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar (BA4)

Sg4 Sofrimento/doença da amada:

Não me deixe, mãe, morrer Afogada n’esta dor! (...) Depois la Pomba sem fel Cada vez mais adoecia; Cada vez maior magreza, Mais forte febre lhe ardia;(BRA)

Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar (BA4)

Estou a dar contas a Dios e non vexo o meu amor (...)

Cabo dos catorce meses pegoulle a frebre amarela. (AL2)

Quando sube da notícia está pra morrer tua Anália (BA1)

Sg5 Pedido da presença do amado:

Virouse pra súa nai, pediulle com gran favor: – Estou a dar contas a Dios e non vexo o meu amor Súa nai lle preguntou adonde é que ele moraba (AL2)

Não posso dar alma a Deus

Page 53: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

42 Sem me ver com meu amor; Não me deixes, mãe, morrer Afogada n’esta dor! (BRA)

Sg6 Atendimento por parte da mãe:

E la Condessa viuva, Ella mesma, me buscava! (BRA)

Mandou Alá a criada ó cuarto donde el dormia (AL2)

Sg7 Retorno/reencontro do amado:

Nuevas de mi enamorada sí me las sabrás decir. Rrespondióme con nobleza, é me fabló y dixo asy: ¿Dónde vas el escudero, triste, cuydado de ti? (MOR)

¿Adónde va el soldadito á estas horas por aquí? – Voy á ver a la mi esposa, – que ha tiempo que nom la vi. (MEN)

– ¿Dónde vas, Alfonso XII? ¿ Dónde vas tú por aquí? – Voy en busca de Mercedes, Que hace tiempo no la ví!... (CAR)

Onde vás, soldadinho, onde vás agora aqui? Vou ver a minha amada, há sete anos que a não vi. (VAS)

– ¿Dónde vas, Alfonso Doce, dónde vas, triste de ti? – Voó en busca de Mercedes que ayer tarde la perdí. (PON)

– Onde vais, Afonso Doce, o que faz tu por aquí? – Vou à procura de Iracema, que há tempo que não a vi. (LIM)

Corri logo por ‘hi fora; Que não corria, voei; E, mais morto do que vivo, A’ porta d’ella cheguei: (BRA)

– Subindo polas escadas, non sentiu solo gemidos (AL2)

Sg8 Assassinato/morte da amada:

Page 54: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

43

– Mataram a Iracema por causa do retrato (NE1)

– Que morreu envenenada, Oh, pobre da Iracema! (NE2)

Mataram Iracema por causa de um namorado (BA2)

Eu estava em meu jardim a procura de uma dália Quando “sube” da notícia está pra morrer tua Anália Do céu desceu um pastor em minha porta bateu Veio trazer a notícia que a minha Anália morreu (BA1)

Anjo que mataste Anália matai-me a mim que sou teu Matai-me da mesma morte que’a minha Anália morreu (BA3)

Quando soube da notícia que Margarida morreu (BA4)

A sete de setembro foi um dia feriado O noivo de Iracema matou ela envenenada (BA5)

Na dália, “vei” um pastor em minha porta bateu Dando uma triste notícia que minha Anália morreu (BA6)

–Tu namorada ya es muerta, morta que eu bem la vi. Tu namorada es muerta, eu de terra me cubrín. (AL1)

Cabo dos catorce meses pegoulle a frebe amarela Com termo de nove dias toma a morte conta dela. (AL2)

– La tu esposa ya se ha muerto: – su figura vesla aquí. (MEN)

E, no meio d’este beijo, Fechou olhos, e morreu. (BRA)

Muerta es tu enamorada, muerta es, que yo la vy (MOR)

– Merceditas ya se ha muerto... ¡Muerta está, que yo la ví!...(CAR)

Page 55: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

44

– Tua amada já é morta, é morta, que eu bem na vi. (VAS)

– Si Mercedes ya se ha muerto, muerta está que yo la ví. (PON)

– Sua noiva já está morta, fui eu mesma que a vi (LIM)

Sg9 Velório:

Ataút lleba de oro, y lãs andas de um marfil, La mortaja que llevava es de un paño de París, Las antorchas que le lleban triste yo les encendí. (MOR)

Cuatro duques la llevaron por las calles de Madrid; Su carica era de cera, y sus manos de marfil, Y el velo que la cubría era un rico carmesí; Los zapatos que calzaba era de rico charol, Regalados por Alfonso el día que se casó...(CAR)

O caixão era de rosas, a coroa de marfim; Os padres que levava não tinham conta nem fim. A sepultura foi aberta no meio dum jardim. (VAS)

Cuatro duques la llevaban, caballeros, ¡ay de mí! (...) Los zapatos que llevaba eran de rico charol Que se los regaló Alfonso el día que se casó. El mantón que la cubría era todo carmesí, Que se los regaló Alfonso el día que le dio el sí. La corona que llevaba era de oro y de coral Con un letrero que dice “Viva la Familia Real” (PON)

O caixão que ela levava era todo de marfim, o manto que a cobria era puro de cetim. O enterro de Iracema parecia uma procissão,

acompanhado de suas amigas da fábrica de S. João. (LIM)

O enterro de Iracema Parecia uma procissão, Acompanhada de operários Do morro de São João. (NE1)

O caixão de Iracema todo enfeitado de flor

Page 56: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

45 Com seu nome escrito em cima com letrinhas de amor (BA5)

Sg10 Pranto:

Giolhou la mãe commigo A chorar em altos gritos N’este mundo cá ficamos Dois corações aflictos. (...) Sou arvore que está de pé, Mas cortada na raiz (BRA)

Chora pai, chora mãe, Choram todos por compaixão, Por ver a Iracema Esticada no chão. (NE1)

O pai de Iracema Chorava de compaixão, Por ver sua filha morta, Dentro de um roxo caixão.(NE2)

– Veña ve-la súa dama, está na última agonía Subindo polas escadas, non sentiu solo gemidos, A nai pola súa filla, está no última agonia (AL2)

Chora pai, chora mãe, chora todos que ali estão Em ver sua filha morta, deitada em um caixão (BA2)

O povo da caixa d’água chorava pela morena Que morreu envenenada a pobre da Iracema A mãe de Iracema com uma dor no coração De ver sua filha morta naquele triste caixão (BA5)

Sg11 Tristeza do amado:

Alfredo em campos de batalha seu corpo estremeceu Quando soube da notícia que Margarida morreu (BA4)

– ?Ti que tienes, meu soldado, que estás triste em la guerra? ?Es por padre ou por madre, ou por gente de tu terra? –No es por padre ni por madre, ni por gente de mi terra?

Page 57: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

46 Es por mi namoradita, que me ha quedado doncella. (AL1)

Al subir las escaleras Alfonso se desmayó, (PON)

Se corres, eu corro se choras, eu choro Se cantas, eu ando se morres, eu morro(BA3)

Sg12 Aparição:

Aquesto ou yo cuytado, a cavallo yba y cay, Una visión espantable delante mis ojos vi, Hablóme por conortarme, hablóme y dixo asy. “No temas el escudero, no ayas miedo de mí, yo soy la tu enamorada, la que penava por ty; (MOR)

Em la ermitã de San Jorge – uma sombra obscura vi: El caballo se parava, – ella se acercaba á mí. (MEN)

– A la entrada de Palacio una sombra negra ví, cuanto más me retiraba más se aproximaba a mí. – ¡No temas, Alfonso XII, no temas hi huyas así, que soy la reina Mercedes que me vengo a despedir!...(CAR)

– Não te espantes, cavalo, nem cavaleiro que vai em ti; sou a tua amada, há sete anos que te não vi. (VAS)

Na missa do sétimo dia Iracema se apresentou. Foi falar à sua mãe que na terra descansou. (LIM)

Vai, minha filha, vai, Pedir a Deus por mim, De ter deixado a sua mãe Sem nunca ter alegria. (NE1)

Anália depois de morta veio comigo falar (BA1)

Se corres, eu corro se choras, eu choro Se cantas, eu canto se morres, eu morro (BA3)

Margarida, por Deus te peço, pelo santo amor de Deus Quando chegar lá no céu roga por mim a Jesus (BA4)

Page 58: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

47

Assim como as flores morrem a minha Anália morreu Assim como as flores nascem a minha Anália nasceu(BA6)

Sg13 Queixas da amada:

Ojos com que te mirava, vida, non los traigo aquí, Braços com que te abraçava, so la tierra los mety. (MOR)

– ¡ Ojos con que te miraba, la desgraciada de mí, Ya me los comió la tierra: – su figura vesla aquí! (MEN)

– Os sinais que te deram não os tenho agora aqui; estão no inferno a arder, amor, por causa de ti. (...) –A boca com que te beijava, eu não a tenho aqui; está no inferno a arder, amor, por causa de ti. (VAS)

Se presumiran em Dios como presumen em ti, As cadenas do inferno gardáronse para min. (AL1)

Sg14 Busca de solução pelo amado:

“Muéstresme tu sepoltura y enterrarme yo com ty.” (MOR)

– Yo venderé mis caballos, – y diré misas por ti. (MEN)

– Vou vender o meu cavalo e vendo-me também a mim, para te fazer o bem d’alma para vires p’ra o pé de mim. (VAS)

– Yo venderei mi caballo, yo me venderei a min. Yo venderei mi caballo, dareiche misas a ti. (AL1) Margarida, por Deus te peço, pelo santo amor de Deus Quanto chegar lá no céu roga por mim a Jesus (BA4)

Mandei fazer um carneiro em casa junto uma medalha Para servir de uma sobra na cova da minha Anália. (BA1)

Page 59: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

48

Sg15 Aconselhamento dela a ele:

– Não vendas o teu cavalo, não te vendas também a ti; quanto mais bem d’alma fazes, mais me condenas a mim.(...) Se chegares a ter filhas, traze-as diante de ti. p’ra que se não percam por homem, que eu por homem me perdi. (VAS) – Não vendas los tus caballos, – nin digas misas por mí, que por tus malos amores – agora peno por ti. (...) La mujer com quién casares, – non se llama Beatriz; Cuantas más veces la llames, – tantas me llames á mí. ¡ Si llegas á tener hijas, – tenlas siempre junta á ti, non te lãs engañe nadie – como me engañaste á mí! (MEN) – Nin venderás tu caballo, nin te venderás a ti, cuanto máis misas me dás, máis penas me dás a min.(...) Soldado, se te casares, cásate en Valladolid, Alí hai catro doncellas, unha sirve para ti. Se tiverdes unha hija, le ponderás coma min, Cuando a leves á misa, pona diante de ti, Mira que cha non engañen, como me engañache a min. (AL1)

De los algos deste mundo fagáis algund bien por mí: Tomad luego otra amiga y no me olvidedes a mí Que no podíes hazer vida, señor, sin estar asy.(MOR)

– Vuélvete a casar, Alfonso, cásate y no estés así, y a una hija que tu tengas ponle Mercedes, por mí... (CAR)

Anália depois de morta veio comigo falar Qu’eu não amasse a outra que vinha ressuscitar (BA1)

Sg16 Despedida:

– Dá-me um beijinho só, que me quero despedir de ti.(...)

– Adeus, meu lindo amor, para um século sem fim. (VAS)

Dame um beixiño nos lábios sin que che destrelle a terra(...)

Adiós, amor de mi vida, adiós, amor de mi alma.

Page 60: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

49 Ábrete, cuerpo sagrado, nesta terra repisada, Entra o meu cuerpo pra dentro, queda a morte descansada.(AL2) Chegou sua bocca à minha Logo que estas fallas deu, E, no meio d’este beijo, Fechou olhos, e morreu. (BRA)

Sg17 Lamento e desejo do amado de morrer como a amada:

Oh morte, oh cruel morte, Olhae que roubo fizeste: Enterraes meu coração À sombra dos aciprestes! (BRA)

– Ó Morte, tirana Morte, ô morte tão desgraçada tanta gente que tinha no mundo só matasse a minha Anália (...) Morte que andas matando, matai a mim que sou teu Matai-me da mesma morte, que minha Anália morreu (BA6)

Anjo que mataste Anália matai-me a mim que sou teu Matai-me da mesma morte que’a minha Anália morreu (BA3)

Sg18 Relato cronológico da vida e da morte da amada:

À uma ela nasceu, Às duas se batizou. Às três estava de namoro, Às quatro ela se casou. Às cinco estava doente, Às seis estava pra morrer. Às sete em cima da cama, Às oito dentro do caixão Às nove na porta da igreja, Às dez para o cemitério. Às onze debaixo da terra, Às doze a orar no céu.(NE2)

Sg19 Tristeza personificada na natureza:

Los jardines ya no quieren, ya no quieren echar flores, porque se ha muerto Mercedes reina de los españoles. La farola de Palacio ya no quere relumbrar, porque se ha muerto la reina luto le quieren llevar... (CAR)

Page 61: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

50

Los balcones del Palacio no los quieren alumbrar Porque se ha muerto la reina y luto quieren guardar. (PON)

O céu se cobriu de luto, A terra estremeceu. Os passarinhos cantaram A nossa Ira morreu. (NE2)

O céu encheu-se de “nuvi” e o mundo escureceu Quando eu soube da notícia que minha Anália morreu. (BA6)

Esses segmentos não aparecem em sua totalidade nas diferentes versões. Algumas

são mais completas, outras não. A seguir, apresentamos a textualização e a segmentação

específica de cada versão levantada.

A versão MOR inicia-se com um diálogo, onde o mensageiro informa ao soldado

sobre a morte da amada deste. Na intenção de convencer o soldado da veracidade dos fatos,

o romeiro descreve-lhe o cortejo. O soldado não acredita nas informações e segue à procura

da amada. De repente, é surpreendido pela Aparição da amada que lhe confirma que morreu

e depois tenta tranqüilizá-lo. Este, em reação, se oferece ao sacrifício de ser enterrado vivo

na sepultura dela, em troca do perdão e da união pós-morte. Mas ela, tomada de bondade,

sugere que ele se case com outra e que se recorde sempre dela.

A estrutura dessa versão, com relação ao aspecto temático, pode dividir-se nos

seguintes segmentos:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg9 Velório

Sg12 Aparição

Sg13 Queixas da amada

Sg14 Busca de solução pelo amado

Sg15 Aconselhamento dela a ele

Page 62: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

51

A versão MEN apresenta dois diálogos, sendo o primeiro entre o alferes

(mensageiro) e o soldado e o segundo, mais duradouro, entre o soldado e a aparição de sua

amada. Essa apressa a sua morte por não mais suportar os maus tratos e o desprezo

amoroso, razão pela qual está sofrendo no inferno. O amado oferece donativos como forma

de amenizar o sofrimento dela e obter em troca o perdão. Mas esta o rejeita porque a alma

já está perdida. Mesmo assim, a alma se preocupa em evitar a repetição desses fatos, ao

pedir ao amado que não permita que as futuras filhas dele sejam enganadas. A aparição

pede, como desabafo final, que o amado nunca mais pronuncie o nome dela. Eis a

segmentação dessa versão:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg12 Aparição

Sg13 Queixas da amada

Sg14 Busca de solução pelo amado

Sg15 Aconselhamento dela a ele

A versão CAR apresenta um quadro introdutório que associa o amado (rei Afonso

XII), a amada defunta (Mercedes), às boas produções da natureza. O mensageiro anuncia a

morte da amada ao amado e, para ser acreditado, relata em detalhes o cortejo fúnebre. Na

voz do próprio amado, a aparição ocorre quando este chega à entrada do palácio.

Assumindo a voz no discurso, a aparição confirma a sua própria morte e conforta o amado

pedindo-lhe que case com outra e que ponha nas futuras filhas o nome próprio dela para

que seja sempre lembrada. Em conseqüência da morte da amada, a natureza toma parte para

demonstrar tamanha tristeza. Este ato se dá a partir da personificação de elementos que

compõem o ambiente. No caso, as flores e o farol do palácio que não mais exerceram as

suas funções principais.

A textualização dessa versão pode dividir-se nos segmentos:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg9 Velório

Page 63: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

52

Sg12 Aparição

Sg15 Aconselhamento dela a ele

Sg19 Tristeza personificada na natureza

A versão VAS trata da desgraça amorosa que acontece com uma jovem que tem

relações amorosas com o amado, mas não realiza o enlace matrimonial, pois este a deixa e

vai para a guerra. A amada, sentindo-se desprezada, excluída e punida pela família e

sociedade em geral, não consegue resistir e morre de tristeza. Sete anos mais tarde, o

soldado resolve voltar para vê-la. A caminho encontra um mensageiro que dá a notícia da

morte dela. O soldado não acredita na notícia e segue viagem. Nesse momento, a aparição

da amada surge em forma de um turbilhão (borborinho) e com voz própria, atormentando o

amado. Este oferece seus bens para salvar-lhe a alma e tê-la de volta. Ela não aceita a

proposta porque a sua alma já está perdida, apenas pede-lhe que cumpra o dever de pai não

deixando que suas filhas se percam por homem como ela se perdeu. O amado pede-lhe

afetos que são negados por ela, acontecendo assim a despedida.

Essa versão compreende quinze segmentos temáticos, relacionados a seguir:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg9 Velório

Sg12 Aparição

Sg13 Queixas da amada

Sg14 Busca de solução pelo amado

Sg15 Aconselhamento dela a ele

Sg16 Despedida

A versão BRA apresenta um diálogo, onde predomina a voz de um rapaz que

namorava às escondidas a filha de um conde. Este havia morrido, defendendo Portugal. A

viúva só permitiu que sua filha namorasse condes ou marqueses. Já que o amor tem suas

surpresas, a moça se apaixonou pelo humilde rapaz que é o próprio narrador. Para manter o

namoro em sigilo, foi preciso que houvesse muito sacrifício e, conseqüentemente,

infelicidade. Neste clima, a amada adoece e revela a sua mãe todo o segredo, pedindo-lhe

para trazer o amado de quem ela pretende despedir-se antes de morrer. O pedido foi

Page 64: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

53

atendido. Ela morreu e ele ficou lamentando sua própria desgraça, achando-se morto

também. Eis os segmentos temáticos dessa versão:

Sg1 Namoro proibido

Sg2 Existência de um amor ímpar

Sg4 Sofrimento/doença da amada

Sg5 Pedido da presença do amado

Sg6 Atendimento por parte da mãe

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg10 Pranto dos pais/parentes/conhecido

Sg16 Despedida

Sg17 Lamentos e desejo do amado de morrer como a amada

Na versão PON não se faz presente a Aparição, mas tão somente a desgraça

amorosa, por conta da morte da amada (rainha Mercedes) que é integrante da família real

da Espanha. O narrador é o próprio mensageiro que anuncia ao amado (Afonso) sobre a

morte da amada deste. O amado quase não fala porque, logo ao saber da notícia cai em

profundo desmaio, sendo ajudado pelos seus soldados. O narrador é alguém muito próximo

da amada que demonstra ter mais poderes que o próprio amado. Além de testemunhar e

relatar minuciosamente o cortejo fúnebre, promete perpetuar o nome da amada nas futuras

filhas do amado. O luto pela amada defunta ficou a critério da luz que, agindo por conta

própria (personificada) não quis acender.

A estrutura temática dessa versão divide-se em seis segmentos:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg9 Velório

Sg11 Tristeza do amado

Sg19 Tristeza personificada na natureza

A versão LIM revela a morte da amada (Iracema). A notícia é dada por um

mensageiro que encontra o soldado e lhe conta como foi o cortejo da mesma. A aparição da

Page 65: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

54

amada ocorre na missa de sétimo dia, direcionada a sua mãe e com a intenção de

tranqüilizá-la. Nesta versão, a Aparição não tem voz, sua mensagem é retransmitida através

do narrador.

A textualização dessa versão pode dividir-se nos segmentos:

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg9 Velório

Sg12 Aparição

A versão NE1 apresenta a amada (Iracema) assassinada debaixo de uma caixa

d’água por causa de um retrato. Sua morte causa choro e compaixão em todos que estão

presentes, principalmente, no pai e na mãe, a exceção do amado que se distrai, tocando

violão. O velório é acompanhado por operários do morro de São João, após a amada

aparecer a sua mãe. Esta aproveita a ida da filha para o céu e lhe pede que rogue a Deus por

ela. A amada não tem voz no discurso.

A estrutura dessa versão, com relação ao aspecto temático, pode dividir-se em seis

segmentos:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg10 Pranto

Sg9 Velório

Sg12 Aparição

A versão NE2 trata da história da amada (Iracema) que morava no alto da caixa

d’água e que foi morta por envenenamento. Sua morte desperta choro em seu pai e em seu

amado, sendo que o primeiro chorava de compaixão e o segundo de alegria. A natureza

personifica a tristeza advinda da morte da amada. Nessa versão, o narrador faz um relato

cronológico, associado às horas que totalizam um dia, para mostrar como foram tristes e

rápidas a vida e a morte da amada. Essa não tem voz no discurso.

A textualização dessa versão pode dividir-se nos segmentos:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg10 Pranto

Page 66: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

55

Sg19 Tristeza personificada na natureza

Sg18 Relato cronológico da vida e da morte da amada

A versão AL1 inicia com o diálogo entre o amado que é um soldado e alguém a

princípio não identificado. Este pergunta àquele o motivo da sua tristeza. O amado,

pensando se tratar de algum superior, responde-lhe que é por causa da amada, uma donzela

que ficou a sua espera. Esse alguém que é o mensageiro anuncia a morte da amada a que se

refere o amado e descreve passagens do velório. O mensageiro se revela como sendo a

aparição da namorada. O amado a reconhece e lhe oferece bens, inclusive ele próprio para

amenizar o sofrimento dela no inferno. A amada não aceita, contudo, faz-lhe pedidos e dá-

lhe conselhos para que não ocorra com as possíveis filhas dele, o que ocorreu com ela: o

engano e a perdição.

Essa versão compreende oito segmentos temáticos, relacionados a seguir:

Sg11 Tristeza do amado

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg14 Busca de solução pelo amado

Sg13 Queixas da amada

Sg15 Aconselhamento dela a ele

A versão AL2 começa nas palavras do amado que narra o seu romance proibido com

a amada que não tinha pai e sua mãe não queria que ela namorasse. O namoro durou

catorze meses, mas a desgraça amorosa ocorreu quando ela contraiu febre amarela. Ao

sentir-se desenganada, dialoga com a mãe e confessa-lhe o amor pelo amado, pedindo que

esta o traga a sua presença para a despedida final. Quando o amado chega, ocorre entre o

casal, o segundo e último diálogo. A amada vive com o amado os seus derradeiros

momentos de amor. Trata da despedida com declarações apaixonadas e tristeza por sentir a

chegada da morte. Em tom de despedida, narra sua própria morte. Eis a segmentação dessa

versão:

Sg1 Namoro proibido

Sg4 Sofrimento/doença da amada

Sg5 Pedido da presença do amado

Page 67: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

56

Sg6 Atendimento por parte da mãe

Sg7 Retorno/reencontro do amado

Sg10 Pranto

Sg16 Despedida

Sg8 Assassinato/morte da amada

A versão BA1 possui três diálogos. O primeiro ocorre entre o amado e o mensageiro

o qual é dada voz para avisar o grave estado da amada (Anália). O segundo ocorre entre o

amado e o pastor que vem do céu para informar que a amada faleceu. O terceiro dá-se entre

o amado e a aparição da amada. Esta anuncia através do narrador que vai ressuscitar e por

isso pede-lhe que não ame outra. O amado acredita na notícia da ressurreição e põe

alimentos na cova onde a mesma foi sepultada.

Essa versão compreende nove segmentos temáticos:

Sg4 Sofrimento/doença da amada

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg12 Aparição

Sg14 Busca de solução pelo amado

Sg15 Aconselhamento dela a ele

A versão BA2 trata da trágica morte da amada (Iracema), moça simples, mas de boa

índole, cujo amado é um cabo de polícia que enciumado por um suposto outro namorado

dela, resolve matá-la. O acontecido dá-se quando a comunidade em família comemora a

tradicional festa de São Pedro. O cabo de polícia, aproveitando-se de sua autoridade,

envenena a moça. Sua morte causa pranto e desespero aos pais, amigas e naqueles que

compunham a comunidade, uma vez que a amada era muito querida e tinha morrido

inocente. A morte da amada é registrada por um cabo reservista que é poeta e que se

compadece com tamanha covardia. Tanto é que não apenas anuncia o culpado, como

também compõe uma modinha em homenagem a falecida.

A textualização dessa versão pode dividir-se nos segmentos:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Page 68: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

57

Sg10 Pranto

A versão BA3 constitui-se de três momentos. No primeiro, implicitamente, acontece

a morte da amada (Anália). No segundo ocorre um diálogo entre o amado e o anjo

encarregado de executar a morte das pessoas na terra. Nesse diálogo, o amado manifesta o

seu desejo de morrer da mesma forma que morreu a amada. No terceiro momento, o

diálogo ocorre entre o amado e a Aparição que nem fala, nem é apresentada. A esta, que foi

em vida o seu espelho de todas atitudes e decisões tomadas, o amado declara o seu desejo

de morrer para encontrá-la e recuperar o sentido da vida. Eis os cinco segmentos temáticos

dessa versão:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg11 Tristeza do amado

Sg12 Aparição

Sg17 Lamento e desejo do amado de morrer como a amada

A versão BA4 mostra um envolvimento amoroso entre dois jovens, num amor tão

sublime que jamais fora visto entre casais. Já planejavam realizar o matrimônio quando

uma desgraça acontece: a partida do amado (Alfredo) para a guerra. Apesar do amado

prometer retornar para a realização definitiva do casamento, ele não volta. A amada

(Margarida) fica triste, desiludida de esperar pelo amado e acaba morrendo. Em seguida,

dá-se a aparição da amada ao amado. Este lhe pede que interceda por ele a Deus.

A estrutura temática dessa versão pode dividir-se nos segmentos:

Sg2 Existência de um amor ímpar

Sg3 Ida do amado para a guerra

Sg4 Sofrimento/doença da amada

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg11 Tristeza do amado

Sg12 Aparição

Sg14 Busca de solução pelo amado

Page 69: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

58

A versão BA5 tem a marca brasileira do feriado da Independência. A desgraça

amorosa ocorre quando a amada (Iracema) é envenenada e morta pelo seu amado. O

narrador descreve o velório da amada destacando, com efeito, o choro do povo da Caixa

d’água em toda a versão; a dor da perda no coração da mãe da amada e as ornamentações

dentro e fora do caixão.

A textualização dessa versão comporta os seguintes segmentos:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg10 Pranto

Sg9 Velório

Na versão BA6, o mensageiro é um pastor que vem, numa dália, anunciar ao amado

a morte da amada (Anália). A desgraça amorosa dá-se através da personificação da tristeza.

Em seguida, ocorre um diálogo entre o amado e a morte a quem ele esconjura por matar-lhe

a amada. Em seus desabafos, por um lado o amado repudia a crueldade da morte, em

vitimar a sua amada em meio a tanta gente. Por outro lado, deparando-se com o inevitável,

pede para morrer da mesma forma que morreu a amada. Finalmente, o amado compara a

existência da amada ao ciclo vital das flores que morrem e nascem, sugerindo que a amada

vive. Eis os seis segmentos temáticos dessa versão:

Sg8 Assassinato/morte da amada

Sg19 Tristeza personificada na natureza

Sg17 Lamento e desejo do amado de morrer como a amada

Sg12 Aparição

Os quadros a seguir mostram a distribuição e freqüência por versão, a ordenação

decrescente dos segmentos e a identificação dos segmentos por versões.

Page 70: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

SEGMENTOS – QUADRO DE DISTRIBUIÇÃO E FREQÜÊNCIA

VERSÕES SEGMENTOS

Sg1 Sg2 Sg3 Sg4 Sg5 Sg6 Sg7 Sg8 Sg9 Sg10 Sg11 Sg12 Sg13 Sg14 Sg15 Sg16 Sg17 Sg18 Sg19 TOTAL

MOR x x x x x x x 07

MEN x x x x x x 06

CAR x x x x x x 06

VAS x x x x x x x x 08

BRA x x x x x x x x x x 10

PON x x x x x 05

LIM x x x x 04

NE1 x x x x 04

NE2 x x x x 04

AL1 x x x x x 05

AL2 x x x x x x x x 08

BA1 x x x x x 05

BA2 x x 02

BA3 x x x x 04

BA4 x x x x x x x 07

BA5 x x x 03

BA6 x x x x 04

Page 71: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

ORDENAÇÃO DECRESCENTE DOS SEGMENTOS

Versões Segmentos

BRA 10

VAS 08

AL2 08

MOR 07

BA4 07

MEN 06

CAR 06

PON 05

AL1 05

BA1 05

LIM 04

NE1 04

NE2 04

BA3 04

BA6 04

BA5 03

BA2 02

Page 72: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

IDENTIFICAÇÃO DOS SEGMENTOS POR VERSÕES (ordem decrescente)

Nº de versões em que aparecem

Identificação dos segmentos

17 Sg8

10 Sg12

8 Sg7

7 Sg9

6 Sg10/Sg14/ Sg15

4 Sg4/Sg11/ Sg13/ Sg19

3 Sg16/Sg17

2 Sg1/Sg2/ Sg5/ Sg6

1 Sg3/Sg18

Page 73: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

62

2.5. Escolha da amostragem:

O romance antigo Aparição apresenta um percurso variacional que vem desde o

século XV com Palmero, passando pelo século XVII com a canção de Afonso XII até a

atualidade em Iracema e Alfredo e Margarida. Talvez essas diversas épocas de recriação do

romance respondam pelo percurso temático.

Não foi fácil a escolha da amostragem para a análise semiótica, tendo em vista a

grande quantidade de versões levantadas e catalogadas em lugares e épocas diferentes,

apresentando muitas peculiaridades. Assim, escolhemos as versões CAR, BRA, BA4, BA2 e

BA5, centradas em um dos momentos do percurso narrativo do romance, constituído de

namoro proibido, existência de um amor ímpar, ida do amado para guerra,

sofrimento/doença da amada, pedido da presença do amado, atendimento por parte da mãe,

retorno/reencontro do amado, assassinato/morte da amada, velório, pranto, tristeza do

amado, aparição, queixas da amada, busca de solução pelo amado, aconselhamento dela a

ele, despedida, lamento e desejo do amado de morrer como a amada, relato cronológico da

vida e da morte da amada e tristeza personificada na natureza. Inclusive procuramos dar

um sentido amplo e ao mesmo tempo evolutivo que abarca o trajeto dessa literatura, desde

sua origem até os dias atuais, considerando, ainda, evidentemente, o espaço onde foram

colhidas as respectivas versões. Para tanto, escolhemos uma versão da Espanha, outra de

Portugal e três de origem portuguesa que foram colhidas no Brasil, especificamente na

Paraíba.

Page 74: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

63

3. ANÁLISE DAS VERSÕES

3.1. Afonso XII (CAR)

3.1.1. Nível narrativo

Essa versão apresenta, em sua estrutura narrativa, cinco Sujeitos Semióticos:

O Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado pelo enunciador, tem por Objeto de valor

divulgar os vultos e fatos heróicos de sua terra. O Destinador é a classe nobre a quem o

enunciador servia. Eis o programa narrativo de S1:

Dário Dor (classe nobre) Ov S1 (divulgar vultos e fatos) (Enunciador)

O S1 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S1 ∪ O) → (S1 ∩ O)

que se lê: S1 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S1 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 2 (S2), figurativizado pelo mensageiro, tem por Objeto de valor

avisar a Alfonso sobre a Morte de Mercedes. O Destinador dele é a solidariedade humana.

Page 75: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

64

O Anti-destinador é a descrença de Alfonso. Este é o próprio Anti-sujeito. Os Adjuvantes

são as provas que o S2 apresenta para convencer Alfonso:

Cuatro duques la llevaron por las calles de Madrid; su carica era de cera, y sus manos de marfil y el velo que la cubría era un rico carmesí; los zapatos que calzaba era de rico charol, relagados por Alfonso el día que se casó...(CAR)

O Oponente de S2 é o próprio Alfonso que não acredita nas informações que o mensageiro

apresenta. Eis o programa narrativo desse Sujeito Semiótico:

__ Dário Dor Dor Adj. (solidariedade do mensageiro) (descrença) (as provas) __ Ov S2 S2 Op. (aviso) (Alfonso) (mensageiro) (descrença) O S2 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S2 ∪ O) → (S2 ∩ O)

que se lê: S2 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S2 em conjunção com o

mesmo.

O Sujeito Semiótico 3 (S3), figurativizado por Alfonso XII, tem por Objeto de valor

encontrar sua amada. O Destinador de S3 é ele próprio. O Adjuvante é um mensageiro com

quem se depara no meio do caminho e o Oponente é a morte que lhe frustrou

Page 76: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

65

definitivamente o sonho de se encontrar com Mercedes viva. O programa narrativo do

Sujeito Semiótico S3 é configurado da seguinte forma:

Dário Dor Adj. (auto-destinação) (mensageiro) Ov

S3 Op. (encontrar a amada) (Alfonso XII) (morte) O S3 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S3 ∪ O) → (S3 ∩ O)

que se lê: S3 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S3 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 4 (S4), figurativizado pela Aparição, tem por Objeto de valor

despedir-se do amado, fazendo-o crer que realmente faleceu. Quem destina S4 é ela mesma.

Veja o programa narrativo de S4:

Dário Dor (auto-destinação) Ov

S4 (despedir-se do amado) (Aparição)

O S4 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S4 ∪ O) → (S4 ∩ O)

Page 77: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

66

que se lê: S4 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S4 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 5 (S5), figurativizado pela Aparição, tem por Objeto de valor

ser sempre lembrada pelo marido e os demais que estão vivos. O Destinador de S5 é ela

própria. Eis o programa narrativo desse Sujeito Semiótico:

Dário Dor (auto-destinação) Ov

S5 (ser lembrada) (Aparição) O S5 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S5 ∪ O) → (S5 ∩ O)

que se lê: S5 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S5 em conjunção com

seu Objeto.

Page 78: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL NARRATIVO DA VERSÃO CAR

Sujeito semiótico

Objeto de valor

Junção conjunto disjunto

Destinador Anti-destinador

Anti- sujeito

Adjuvante Oponente Modalização(instauração do sujeito)

S1 enunciador

divulgar vultos e

fatos

+ -

classe nobre

-

-

-

-

Querer-divulgar

S2 Mensageiro

avisar

+ -

solidariedade

-

-

as provas

descrença

Querer-avisar

S3 Alfonso XII

encontrar a

amada

+ -

auto-

destinação

-

-

mensageiro

morte

Querer-amar

S4 Aparição

despedir-se do amado

+ -

auto-

destinação

-

-

-

-

Fazer-crer

S5 Aparição

ser

lembrada

+ -

auto-

destinação

-

-

-

-

Querer-ser

Page 79: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

68

3.1.2. Nível discursivo

Essa versão apresenta uma introdução advinda das narrativas denominadas

romances contos. Nota-se que com, a variação de tempo e de espaço, a introdução foi-se

reduzindo, restando apenas os dois primeiros versos que se encontram desconectados do

restante da versão. Em seguida, tem vez o romance diálogo tão em moda no século XVI e

apreciado pelos seus feitores e colecionadores.

Na parte introdutora, predomina o foco em primeira pessoa, com o enunciador-

narrador embreado com o enunciado e com a enunciação, num tempo marcado pelo verbo

gostar no presente do indicativo e num espaço rural que é o da Espanha:

De los árboles frutales me gusta el melocotón, Y de los reyes de España Alfonsico de Borbón.(CAR)

Num segundo momento, tratando-se de um romance diálogo, o enunciador-narrador

dá a voz aos atores mensageiro, Alfonso XII e Aparição para que cada um cumpra sua

missão, responsabilizando-se pelas suas atitudes, o que, aliás, é função principal do

discurso direto.

Além do tempo já citado, temos mais os seguintes tempos: o do casamento de

Alfonso com Mercedes quando esta recebe daquele luxuosos presentes que inclusive são

postos nela quando está sendo velada; o da morte de Mercedes, com data imprecisa, mas

com duração de precisamente um dia, que é o suficiente para a realização da cerimônia.

Esta conta com a presença da elite dominante daquela sociedade, inclusive, do mensageiro

que não aparece nomeado como ator, mas como papel temático; o do diálogo entre o

mensageiro e Alfonso XII que ocorre, presumivelmente, alguns dias após a morte de

Mercedes; o do diálogo entre Alfonso e a aparição quando esta o aconselha a casar-se e ter

uma filha que seja agraciada com o nome de Mercedes. Eis aqui, implicitamente, um outro

tempo, quando Mercedes, fazendo uso do futuro do subjuntivo, ordena ao marido o

seguinte:

Page 80: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

69

– Vuélvete a casar, Alfonso, cásate y no estes así, y a una hija que tu tengas ponle Mercedes, por mí...

Por último, o tempo do sofrimento que, inclusive, retoma a antiga narrativa tradicional do

romance conto, utilizada no início dessa versão para efeito de persuasão. É o mais

abrangente, considerando que comporta a participação da própria natureza que personifica

esse sofrimento:

Los jardines ya no quieren, ya no quieren echar flores, Porque se ha muerto Mercedes, reina de los españoles. La farola de Palacio ya no quere relumbrar, Porque se ha muerto la reina luto le quieren llevar...

Quanto ao espaço, localizamos seis. Vale salientar que a parte essencial da ação do

tema esta apresentada em forma de diálogo, evidentemente em primeira pessoa, os

enunciadores-atores, Alfonso XII, o mensageiro, Mercedes e a aparição, estão embreados

com o espaço do enunciado e debreados do espaço da enunciação. Vejamos esses espaços:

caminho onde se encontram os atores mensageiro e Alfonso XII; ruas de Madrid, por onde

se dá o cortejo fúnebre de Mercedes, envolvendo luxo e pessoas ricas; entrada do palácio,

onde acontece o encontro e o diálogo entre Alfonso XII e a aparição. Ali, esta confirma a

própria morte e lhe sugere uma nova vida, desde que preserve o nome dela (Mercedes); o

cemitério que é o lugar das recomendações finais e do enterro da falecida;

Já o enunciador-narrador ora está em primeira pessoa, embreado com o espaço do

enunciado e da enunciação, ora está em terceira pessoa, debreado do espaço do enunciado e

da enunciação. Eis um exemplo do espaço desse último enunciador: a natureza onde é

personificada a tristeza através de seus elementos em relação a morte da rainha dos

espanhóis, ou seja, os jardins não querem florar e o farol do palácio não quer acender e o

povo quer se vestir de luto.

Page 81: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

70

Essa versão apresenta, predominantemente, os temas riqueza e morte. O primeiro é

revestido pelas figuras carica de cera, manos de marfil, velo, rico carmesí, zapatos de rico

charol, Palacio, reina de los españoles, farola de Palacio. O segundo por Merceditas ya se

ha muerto, Muerta está, que yo la ví, sombra negra, cementerio, la entierren, llorar, flores e

luto le quieren llevar.

Page 82: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL DISCURSIVO DA VERSÃO CAR

Actorialização Espacialização Temporalização Efeitos de sentido

Temas Figuras

enunciador mensageiro Alfonso XII Mercedes filha aparição rainha elite povo espanhóis

Espanha caminho ruas de Madrid entrada do Palácio cemitério natureza

Presente/passado/futuro (tempo do casamento, da morte, dos diálogos e do sofrimento)

Embreagem Debreagem

Riqueza Morte

carica de cera, manos de marfil, velo, rico carmesí, zapatos de rico charol, Palacio, reina de los españoles e farola de Palácio; muerta, sombra negra, cementerio, entierren, llorar, flores e luto

Page 83: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

72

3.1.3. Nível fundamental

O principal conflito que estrutura essa versão é incrédulo versus crédulo. Firma-se

no ator Alfonso quando esse é avisado pelo mensageiro sobre a morte de Mercedes que,

inclusive, com riqueza de detalhes narra a cerimônia fúnebre da falecida. Entretanto

Alfonso para comprovar tal afirmação parte em direção ao palácio na certeza de que irá

encontrar a esposa com vida.

A tensão dialética da narrativa acontece entre incrédulo e crédulo. As relações entre

incrédulo e não-crédulo representam a amada viva. Enquanto que crédulo e não-incrédulo

definem a amada morta. Não-incrédulo e não-crédulo correspondem a inexistência

semiótica que está representada pelo zero cortado.

Crédulo Incrédulo

Não-crédulo

Amada viva Amada morta

Tensão dialética Amado

Não-incrédulo

Ø

Page 84: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL FUNDAMENTAL DA VERSÃO CAR

Categoria semântica fundamental

Eufórica

Disfórica

Incrédulo

+

-

Crédulo

-

+

Page 85: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

74 3.2. Pomba sem fel (BRA)

3.2.1. Nível narrativo

Essa versão apresenta sete Sujeitos Semióticos em sua estrutura narrativa:

O Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado pelo enunciador-narrador, tem por Objeto

de valor desabafar sua magoa de amor, ou seja, a desgraça amorosa que se dá com a morte

da amada. O Destinador de S1 é ele próprio. Eis o programa narrativo desse Sujeito

Semiótico:

Dário Dor (auto-destinação) Ov

S1 (desabafar sua mágoa) (enunciador-narrador) O S1 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S1 ∪ O) → (S1 ∩ O)

que se lê: S1 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S1 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 2 (S2), representado pelo amado da Pomba sem fel, tem por

Objeto de valor casar-se com ela. O Destinador dele é o amor que sentia por ela. O Anti-

destinador é a ambição. O Anti-sujeito são os Condes e Marqueses que eram sujeitos

escolhidos pela mãe da Pomba sem fel que só valorizava o status social. O Oponente é a

mãe que pretendia que a filha se casasse com alguém de elevado nível social, a exemplo de

condes ou marqueses. O programa narrativo do Sujeito Semiótico S2 é configurado da

seguinte forma:

Page 86: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

75

(amor) (ambição)

__ S2 S2 Op. (casar-se com a amada) (Condes e Marqueses) (amado da Pomba sem fel) (mãe da amada) O S2 conclui a narrativa disjunto de seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S2 ∪ O) → (S2 ∪ O)

que se lê: S2 em disjunção com seu Objeto de valor permanece em disjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 3 (S3), figurativizado pela Pomba sem fel, tem por Objeto de

valor o amado, mesmo indo de encontro às pretensões da própria mãe. O Destinador dela é

o amor que sente por ele. O Oponente é a mãe que não quer o casamento com alguém de

baixa posição social. Veja o programa narrativo de S3:

Dário Dor (amor) Ov

S3 Op. (o amado) (Pomba sem fel) (mãe) O S3 conclui a narrativa disjunto de seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S3 ∪ O) → (S3 ∪ O)

que se lê: S3 em disjunção com seu Objeto de valor permanece em disjunção com

seu Objeto.

Dário Dor

Ov

Dor

Page 87: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

76

O Sujeito Semiótico 4 (S4), representado ainda pela Pomba sem fel, tem por Objeto

de valor se despedir do amado antes de morrer. O Destinador é o medo de morrer com o

pecado da desobediência. O Adjuvante é a mãe que, apesar de tudo, trás o amado à

presença dela para a despedida final e que compartilha o sofrimento com o amado depois

que ela morre: / N’este mundo cá ficamos Dois corações aflitos /. O Oponente é a morte

contra a qual luta: / A’ espera de cá vires Contra esta morte briguei /. Eis o programa

narrativo do Sujeito Semiótico S4:

Dário Dor Adj. (medo de morrer) (mãe) Ov

S4 Op. (despedir-se do amado) (Pomba sem fel) (morte) O S4 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S4 ∪ O) → (S4 ∩ O)

que se lê: S4 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S4 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 5 (S5), figurativizada pela mãe da Pomba sem fel, tem por

Objeto de valor casar a filha com outro rapaz que seria Conde ou Marquês. O Destinador é

a sociedade a que ela pertencia que valorizava o status social. O Oponente é o amado que

foi escolhido pela Pomba sem fel. O programa narrativo do Sujeito Semiótico S5 é

configurado da seguinte forma:

Page 88: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

77

Dário Dor (sociedade) Ov

S5 Op. (casar a filha com outro) (mãe da Pomba sem fel) (amado da filha)

O S5 conclui a narrativa disjunto de seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S5 ∪ O) → (S5 ∪ O)

que se lê: S5 em disjunção com seu Objeto de valor permanece em disjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 6 (S6), representado pelo pai da Pomba sem fel, tem por Objeto

de valor defender seu país na guerra. O Destinador é o chefe de Estado que o convoca. Os

Adjuvantes são os companheiros que guerreavam ao lado dele com o mesmo objetivo. Os

Oponentes são os inimigos que faziam com que Portugal ardesse na guerra e a morte que o

impediu de concluir a missão para a qual foi designado. Eis o programa narrativo do Sujeito

Semiótico S6:

Dário Dor Adj. (chefe de Estado) (companheiros de guerra) Ov

S6 Op. (defender seu país) (Pai da Pomba sem fel) (inimigos e a morte) O S6 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S6 ∪ O) → (S6 ∩ O)

Page 89: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

78

que se lê: S6 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S6 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 7 (S7), figurativizado pela morte, tem por Objeto de valor

matar quem Deus não quis, no caso a Pompa sem fel. O Destinador é ela própria: / Mataste

quem Deus não quis! /. O Anti-destinador é a vida. Os Anti-sujeitos são o amado e a mãe

da Pomba sem fel que queriam ela viva. Por Oponente teve a resistência e a luta da Pomba

sem fel. O programa narrativo do Sujeito Semiótico S7 é configurado da seguinte forma:

(auto-destinação) (vida) __

S7 S7 Op. (matar) (mãe e amado) (a morte) (a resistência da Pomba sem fel)

O S7 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S7 ∪ O) → (S7 ∩ O)

que se lê: S7 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S7 em conjunção com

seu Objeto.

Dário Dor

OV

Dor

Page 90: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL NARRATIVO DA VERSÃO BRA

Sujeito semiótico

Objeto de valor

Junção conjunto disjunto

Destinador Anti-destinador

Anti- sujeito

Adjuvante Oponente Modalização (instauração do sujeito)

S1

enunciador

desabafar sua mágoa

+ -

auto-

destinação

-

-

-

-

Querer-desabafar

S2

amado

casar-se

- -

amor

ambição

condes e

marqueses

-

mãe

Querer-casar-se

S3

Pomba sem fel

amado

- -

amor

-

-

-

mãe

Querer-amar

S4

Pomba sem fel

despedir-se

+ -

medo

-

-

mãe

morte

Dever-despedir-se

S5

mãe

casar a filha

- -

sociedade

-

-

-

amado

Querer-casar a filha

S6 pai

defender seu país

+ -

chefe de Estado

-

-

companheiros

inimigos e

morte

Dever-guerrear

S7

morte

mata

+ -

auto-

destinação

vida

mãe e amado

-

resistência e

luta

Querer-matar

Page 91: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

80

3.2.2. Nível discursivo

Essa versão apresenta uma discursivização em dois planos, considerando-se a

experiência humana com relação ao tempo e ao espaço. Num primeiro plano, um

enunciador narrador dialoga com um enunciatário-narratário, permitindo considerar o

tempo dos sujeitos como o presente de quem fala diferindo do tempo do seu enunciado que

é o passado. Esse passado é determinado por dois tempos, um acabado (perfeito), tempo do

enunciado quando ocorre a desgraça amorosa do casal e um inacabado (imperfeito), tempo

anterior a desgraça quando o conde, pai da donzela amada, foi morto na guerra em defesa

de Portugal.

Num segundo plano, o enunciador apresenta, em forma dialógica, os atores que são

todos mencionados pelo papel temático exercido: mãe, pai, conde, amante, filha. Somente a

jovem é referida pelo epíteto, Pomba sem fel que de um lado, retoma o discurso bíblico,

representando a paz no mundo e de outro, é enfatizada pelo qualitativo sem fel, atribuindo à

jovem a metáfora completa de um ser raro. Sabe-se que fel, víscera orgânica que existe nos

animais em geral, situada na parte inferior do fígado, contém um suco amaríssimo

destinado a auxiliar o processo de digestão. Nos seres humanos recebe o nome bílis. Desde

tempos remotos o fel tem sido motivo de preocupação do homem ao preparar as refeições

quando nestas são utilizados animais, uma vez que é preciso ter muita habilidade para

desentranhar essa víscera das demais, sem rompê-la. Sabe-se que apenas uma gota desse

suco derramado sobre a carne, todo aquele animal não servirá para o consumo devido ao

alto teor de substância amarga. No sertão nordestino, com freqüência, ocorre o fato de

alguém por descuido perder uma apetitosa galinha de capoeira por estourar o fel na hora de

retirá-lo. Com base nisso, até os dias de hoje, principalmente, nos meios rurais, é motivo de

alegria quando se descobre que o animal não tem fel, pois assim, o banquete estará seguro.

Assim, o termo pomba sem fel, representa paz, pureza e doçura (o contrário de amargo),

qualidades que são atribuídas pelo narrador à jovem assim cognominada no romance

popular.

Page 92: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

81

Nessa versão, o enunciador-narrador, amado da Pomba sem fel, evoca do passado

um episódio que aconteceu consigo, de modo que, mesmo se tratando de um tempo

longínquo, o mesmo padece ininterruptamente, até o dito momento em que está contando.

Quanto aos espaços de cada ator, temos: a Pomba sem fel, até o início do namoro,

está no espaço casa da mãe. A partir do namoro, participa também de um novo espaço:

lugar de namorar às escondidas. Já o amado ocupa os espaços seguintes: a casa dos pais; o

caminho que o levou à casa da amada ao ser avisado da doença dela e casa dela onde se

realizou a despedida final. Para a mãe, o espaço é o da própria casa, com exceção da

viagem até a casa do amado da filha, quando serviu de mensageira desta. O pai da amada

tem dois espaços: um é a sua casa, onde convive com a família e o outro é o espaço da

guerra, onde morreu em defesa do seu país.

No final, o enunciador retorna ao primeiro plano que é o tempo presente onde ele se

encontra disjunto do enunciado e conjunto com a enunciação. Ele substitui o leitor pelo

enunciatário Morte, que aparece personificada. Tal artifício é articulado para que ele

consiga desabafar sua mágoa e encontrar o ente culpado por lhe tirar a própria vida. Nesse

momento, o enunciador-narrador (amado) firma-se também como morto ao se

autocomparar a uma árvore, cujas raízes foram cortadas:

Oh morte, oh cruel morte, Olhae que roubo fizestes: Enterraes meu coração A’ sombra dos aciprestes! Oh morte, oh cruel morte, Mataste quem Deus não quis! Sou árvore que está de pé, Mas cortada na raiz.

Dessa versão foram extraídos seis temas: infelicidade, sociedade, família, religião,

amor e morte . O primeiro foi revestido pelas figuras triste, ardia, soberbia, porfia, segredo,

/ afogada nessa dor /, paixão, fel, chorei, corava, louco, morto, briguei, tristes noivos, /

chorar em altos gritos /, / dois corações aflitos /, cruel e / enterraes meu coração a sombra

dos aciprestes /; o segundo, por conde, marquês, la condessa, guerra, fidalgo, senhora e

viúva; o terceiro, por filha, mãe e genro; o quarto, por alma, Deus, abençoa e / giolhou la

Page 93: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

82

mãe commigo /; o quinto, por beijos, abraços e / chegou sua boca a minha /; o sexto, por

magreza, febre, / só na pelle e osso /, / a fôgo lento morria /, / vontade derradeira /, / sem te

ver não acabei /, / fechou olhos, morreu /, / mataste quem Deus não quis / e / Sou árvore

que está de pé mas cortada na raiz /.

Page 94: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL DISCURSIVO DA VERSÃO BRA

Actorialização

Espacialização Temporalização Efeitos de sentido Temas Figuras

enunciador Pomba sem fel amado mãe filha pai conde amante

casa da mãe lugar de namorar às escondidas casa do amado caminho guerra

Presente/passado

Debreagem Embreagem

Infelicidade Sociedade Família Religião Amor Morte

triste, ardia, soberbia, porfia, segredo,

afogada nessa dor, paixão, fel, chorei, corava

louco, morto, briguei, tristes noivos, chorar

em altos gritos, corações aflitos, cruel e

enterraes meu coração a sombra dos

acipreste;

conde, marquês, la condessa, guerra, fidalgo,

senhora e viúva;

filha, mãe e genro;

por alma, Deus, abençoa e giolhou la mãe

commigo;

beijos, abraços e chegou sua boca a minha;

magreza, febre, /só na pelle e osso/, /a fôgo

lento morria/, /vontade derradeira/, /sem te

ver não acabei/, /fechou olhos, morreu/,

/mataste quem Deus não quis/ e /Sou árvore

que está de pé, Mas cortada na raiz/

Page 95: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

84

3.2.3. Nível fundamental

São dois, os principais conflitos que estruturam essa versão: vida versus morte e

querer versus dever. O primeiro conflito, vida versus morte, encontra-se internalizado no

amado da Pomba sem fel. Este só tem vida plena até quando a Pomba sem fel está viva.

Mas quando esta morre, ele não consegue mais encontrar motivos para viver: / Sou árvore

que está de pé mas cortada na raiz /. Através do octógono seguinte, podemos visualizar

melhor esse conflito.

A tensão dialética da narrativa acontece entre vida e morte. As relações, entre vida e

não-morte representam o amado com a Pomba sem fel. Enquanto que morte e não-vida

definem o amado sem a Pomba sem fel. Não-morte e não-vida correspondem a inexistência

semiótica que está representada pelo zelo cortado.

O segundo, culpa versus inocência, ocorre no interior do ator Pomba sem fel. De

um lado, a Pomba sem fel prefere desobedecer às ordens da mãe para encontrar seu amado

Morte Vida

Não-morte

O amado com a Pomba sem fel O amado sem a

Pomba sem fel

Tensão dialética Amado

Não-vida

Ø

Page 96: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

85

de quem realmente gosta, de outro, preserva as ordens da mãe, despertando nesta a

esperança de um casamento rico.

A tensão dialética da narrativa se centra entre culpa e inocência. As relações, entre

culpa e não-inocência caracteriza a Pomba sem fel, namorando às escondidas. Enquanto

que inocência e não-culpa define o ator Pomba sem fel sem namorar o amado. Não-

inocência e não-culpa correspondem a inexistência semiótica que está representada pelo

zero cortado.

Inocência Culpa

Não-inocência

Desobediência à mãe Obediência à mãe

Tensão dialética Pomba sem fel

Não-culpa

Ø

Page 97: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL FUNDAMENTAL DA VERSÃO BRA

Categoria semântica fundamental

Eufórica

Disfórica

Vida

-

+

Morte

+

-

Culpa

+

-

Inocência

-

+

Page 98: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

87

3.3. Alfredo e Margarida (BA4)

3.3.1. Nível narrativo

Essa versão apresenta, em sua estrutura narrativa, seis Sujeitos Semióticos:

O Sujeito Semiótico 1 (S1), figurativizado por Alfredo, tem por Objeto de valor a

mulher amada que é discursivizada por Margarida, uma jovem que mora sozinha. O

Destinador de S1 é o amor que o faz agir em busca do seu Objeto de valor conforme se

pode ver na citação seguinte:

Alfredo não tinha pai, Margarida não tinha mãe. Era um amor entre os dois que não se via em ninguém

O programa narrativo do Sujeito Semiótico S1 é configurado da seguinte forma: __ Dário Dor Dor (amor) (Chefe de Estado)

__ Ov S1 S1 Op. (mulher amada) Alfredo (dever) Alfredo (querer) (dever imposto pelo Estado)

S1 se instaura como Sujeito de um querer amar e conquistar Margarida, mas é

interrompido por um dever que o distancia dela e que, com isso, passa a funcionar como

Oponente deste amor:

Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar

Page 99: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

88

O dever, portanto, funciona como um metasujeito transformador que opera uma

disjunção no programa narrativo. Em vista disso, o S1 que inicia a narrativa conjunto com

seu Objeto de valor, conclui disjunto do mesmo da forma seguinte.

(S1∩ O) → (S1 ∪ O)

que se lê: S1 em conjunção com seu Objeto de valor passa a S1 em disjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 2 (S2), representado também na estrutura discursiva por

Alfredo, tem por Objeto de valor ir para guerra. Nesse contexto, Alfredo teve de abandonar

a mulher amada, indo guerrear nos campos de batalha. O Destinador de S2 é o chefe de

Estado, força maior que o amor, obriga-o a viajar. Na realização do percurso narrativo, o S2

tem como Anti-destinador o amor e como Anti-sujeito o querer casar com Margarida. Eis o

programa narrativo do Sujeito Semiótico S2:

__ Dário Dor Dor (chefe de Estado) (amor) Ov __ (guerra) S2 S2 Alfredo (querer) Alfredo (dever) O S2 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S2 ∪ O) → (S2 ∩ O)

que se lê: S2 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S2 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 3 (S3), figurativizado ainda por Alfredo, tem por Objeto de

valor a proteção de Jesus, levando em conta que somente este poderia livrá-lo de remorsos,

Page 100: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

89

sentimentos de resignação e da solidão, causada pela morte da mulher amada. Acreditava

que Jesus com seus poderes, seria capaz de proteger a sua vida, até mesmo dos perigos da

guerra, onde estava atuando. O Destinador de S3 é sua fé religiosa que o leva a crê na

possibilidade de alcançar a proteção, não a pedindo diretamente a Deus, mas através de

Margarida porque esta, pelo seu sofrimento e fidelidade, teria prestígio junto a Jesus de

salvar a si e a ele. Este tem como Adjuvante Margarida que, em momento algum, o

abandona. Mais que isso, dá a sua própria vida pelo amor dele, em cumprimento aos

deveres e obrigações impostos à mulher da época. S3 tem como Anti-destinador e Anti-

sujeito o diabo e como Oponente os pecados cometidos que puseram fim à vida de

Margarida. O programa narrativo do Sujeito Semiótico (S3) é configurado da seguinte

forma: ___ Dário Dor Dor

(fé) (o próprio diabo) Adj. (Margarida) __ Ov S3 S3 Op. (proteção de Jesus) (diabo) (Alfredo) (seus pecados) O S3 conclui a narrativa disjunto do seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S3 ∩ O) → (S3 ∪ O)

que se lê: S3 em conjunção com seu Objeto de valor passa a S3 em disjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 4 (S4), figurativizado por Margarida, tem por Objeto de valor o

homem amado, que é discursivizado por Alfredo. Este, mediante o que lhe fora imposto

pelo Estado, abandona-a, indo para guerra. Era comum na época de Margarida que as

mulheres valorizassem, até a última instância, o compromisso de casamento. Nessa

perspectiva social, Margarida é destinada pelo amor que a fez esperar anos a fio pelo

amado. O Anti-destinador dela é o chefe de Estado que também funciona como seu Anti-

sujeito. Os Oponentes de S4 são o chefe de Estado que promove o recrutamento de Alfredo

Page 101: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

90

e a guerra que o ausenta definitivamente de Margarida. Eis o programa narrativo do Sujeito

Semiótico S4:

__ Dário Dor Dor (amor) (chefe de Estado) __ Ov S4 S4 Op. (homem amado) (chefe de Estado) (Margarida) (chefe de Estado e guerra)

O S4 conclui a narrativa disjunto do seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S4 ∩ O) → (S4 ∪ O)

que se lê: S4 em conjunção com seu Objeto de valor passa a S4 em disjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 5 (S5), figurativizado também por Margarida, tem por Objeto

de valor a morte:

Margarida morreu

Percebe-se de passagem uma retomada ao mito de Ofélia, identificado em

Margarida quando esta se deixa tomar, gradativamente, pelo sentimento amoroso que se

intensifica até a morte. Para tanto, teve como Destinador a desilusão amorosa em

conseqüência da constante ausência do amado. O programa narrativo do Sujeito Semiótico

S5 é configurado da seguinte forma:

Page 102: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

91 Dário Dor (desilusão amorosa) Ov S5 (morte) (Margarida) O S5 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S5 ∪ O) → (S5 ∩ O)

que se lê: S5 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S5 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 6 (S6), figurativizado ainda em Margarida, aparece depois de

morta a Alfredo. S6 tem como Objeto de valor causar remorsos ao amado. O Destinador de

Margarida é ela própria que morre inconformada com o desprezo, causado pelo amado. O

Adjuvante de S6 é Deus que lhe permite realizar a aparição diante de Alfredo. Eis o

programa narrativo do Sujeito Semiótico S6:

Dário Dor Adj. (auto-destinação) (Deus) Ov

S6 (causar remorsos ao amado) (Margarida) O S6 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S6 ∪ O) → (S6 ∩ O)

que se lê: S6 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S6 em conjunção com

seu Objeto.

Page 103: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL NARRATIVO DA VERSÃO BA4

Sujeito

semiótico Objeto de

valor Junção

conjunto disjunto Destinador Anti-

destinador Anti-

sujeito Adjuvante Oponente Modalização

(instauração do sujeito)

S1 Alfredo (querer)

amada

- +

amor

Chefe de Estado

Alfredo (dever)

-

Dever

imposto peloEstado

Querer-amar

S2 Alfredo (dever)

guerra

+ -

Chefe de Estado

amor

Alfredo (querer)

-

-

Dever-

guerrear S3

Alfredo

proteção de

Jesus

- +

diabo

diabo

Margarida

pecados

Querer-

proteger-se S4

Margarida

amado

- +

amor

Chefe de Estado

Chefe de Estado

-

Chefe de Estado

Querer-amar

S5 Margarida

morte

+ -

desilusão amorosa

-

-

-

-

Querer-morrer

S6 Margarida

causar

remorsos

+ -

auto-

destinação

-

-

Deus

-

Querer-causar

remosos

Page 104: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

93

3.3.2. Nível discursivo

Essa versão apresenta-se ricamente trabalhada nas relações intersubjetivas e de

espaço e tempo. Pode-se considerar a existência de duas camadas superpostas de relações:

aquelas da enunciação e as do enunciado. Em princípio, o enunciador confunde-se com um

narrador em terceira pessoa, debreado do fato enunciado e embreado com a enunciação.

Esta embreagem enunciativa permite conceber o tempo como agora e o espaço com o aqui

de quem fala. É como se um eu, não identificado por uma referência precisa, contasse para

um tu também não identificado, fatos ocorridos na vida de duas pessoas (a 3ª pessoa)

identificadas como Alfredo e Margarida. Portanto, o eu é, na verdade, o contador, cantor do

romance que diz, na atualidade, para o receptor fatos acontecidos no passado com os

referentes:

Margarida não tinha mãe Alfredo não tinha pai Era um amor entre os dois que não se via em ninguém

Nos versos finais, surge um enunciador que se confunde com o ator Alfredo e que,

em vista disso, muda-se para o (s) espaço (s) e o tempo (t) do enunciado que são muito

mais complexos que os da enunciação.

O enunciado apresenta uma variedade na temporalização. Quando o narrador se

confunde com o ator, o tempo é presente, mas a partir desse presente insere-se um futuro

próximo.

Margarida, por Deus te peço, pelo santo amor de Deus Quando chegar lá no céu roga por mim a Jesus

Essa passagem invoca os versos finais do romance, no diálogo entre Alfredo e a

aparição de Margarida. Contudo, nesse diálogo o enunciador não cede a voz a Margarida. A

fala dela está implícita no contexto da fala de Alfredo e só ocorrerá num futuro próximo

quando ela chegar ao céu e for rogar por ele a Jesus.

Page 105: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

94

O tempo do enunciado, no pretérito imperfeito, intensifica a idéia de continuidade

do processo: o amor teve início no passado, passou pelo presente e continuou até depois da

morte. É um amor resistente que sobreviveu às intempéries da vida. E por que resistiu?

Porque era sem igual no mundo: / não se via em ninguém /. Um amor livre de barreiras,

inclusive aquelas impostas pelo contexto familiar: Alfredo e Margarida eram parcialmente

órfãos. Ela não tinha mãe que a impedisse de amar Alfredo e Ele não tinha pai que o

impedisse de amar Margarida. Daí, o amor entre ambos ter podido crescer em força e

magnitude.

Num segundo momento, ocorre a disjunção espacial de que foi sujeito Alfredo, ao

partir para guerra, tendo início a desgraça amorosa de ambos.

Alfredo fez uma viagem e prometeu de voltar Margarida que tanto esperava nada de Alfredo voltar

O enunciador narrador utiliza o verbo fazer no pretérito perfeito, indicando que o

fato ocorreu no passado e não teve continuidade no presente. Ele prometeu e não retornou,

a não ser depois da morte da amada. A promessa de Alfredo foi também no passado e

acabou ali. Não se estendeu ao presente, o que permite considerar a figura infidelidade para

caracterizar discursivamente o amor de Alfredo. É precisamente a infidelidade amorosa de

Alfredo que vai ocasionar remorso nele.

Em Margarida, ao contrário, o tempo imperfeito e, portanto, contínuo, inacabado

reforça a fidelidade que vem desde o passado e persiste até o presente. Alfredo viajou

porém prometeu que voltaria para casar com Margarida, mas, não voltou. Essa promessa de

Alfredo se transforma em uma longa e penosa espera para ela que irá comprometer sua vida

e levá-la até a morte. A ação imperativa do Estado impediu seu retorno, sendo o sujeito

transformador, responsável pela disjunção amorosa. Enquanto isso, Margarida permanecia

no mesmo espaço inicial, submetida às regras da sociedade e restringindo sua vida à espera

do amado num profundo sofrimento que é realçado pelo uso do quantitativo / tanto / cuja

conseqüência é / nada /, de conteúdo oposto. Significa dizer que Margarida deu tudo de si e

como retorno nada recebeu.

Page 106: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

95 Num terceiro momento, é que emergem as razões que levaram Alfredo a fazer a

viagem e debrear-se de Margarida. O espaço dele, agora, são os campos de batalha. Só

nesse momento, é possível saber com mais clareza, que Alfredo não deveria responder pela

desgraça amorosa. Este, além de ser sujeito de um querer, é sujeito de um dever lutar em

defesa do Estado e, contra seu próprio gosto, deu-se ao ofício para o qual fora tangido. Fora

chamado para servir a seu país e não pôde abster-se de ir. Não lhe permitiram escolha. O

que minora a figura infidelidade com que se caracterizou, anteriormente, o amor de

Alfredo. Na verdade, ele não teve culpa e, portanto, não havia razão para sentir remorso. O

verso seguinte mostra a chave significativa do ambiente onde realmente estava Alfredo:

Alfredo em campos de batalha (...)

Em espaços diferentes, de um lado Alfredo guerreava, enfrentando as peripécias e

os desastres das batalhas, de outro Margarida, apesar de está em seu habitat natural,

definhava por conta da carência amorosa, da sensação de desprezo e das cobranças sociais

que punham sua honra em dúvida. Assim, Margarida, com seus costumes domésticos, a

identidade marcada pela ideologia patriarcal, sem gosto pela vida e sem escolha nessa

sociedade, foi ficando triste e distante da comunidade até que um dia não mais suportou e

morreu. Apesar de possuir um coração guerreiro, Alfredo abalou-se com a dor sentida pela

perda da amada:

Alfredo em campos de batalha seu corpo estremeceu Quando soube da notícia que Margarida morreu

No dístico acima, vê-se que os versos estão unidos pela rima eu (/ estremeceu / e /

morreu /), enfatizando a gravidade do fato, cuja ação é traduzida por verbos intransitivos,

empregados no pretérito perfeito, marcando um tempo concluído, acabado.

Mas a força significativa do verbo estremecer não lembra o de fracassar o guerreiro

que é Alfredo. Mesmo preso às ordens do seu superior, Alfredo queria vencer a guerra e

retornar para casar com Margarida. Por um lado, ao saber da morte desta, viu-se

impossibilitado de se realizar por completo. Por outro, sentiu remorso por ter operado como

Page 107: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

96

instrumento do Estado e causar-lhe tamanha desgraça. Não podia voltar o tempo. Margarida

estava morta. O sonho estava acabado.

Nesta versão, aparecem apenas dois atores, nomeados como Alfredo e Margarida,

respectivamente. Os demais participantes são nomeados pela função social que exercem, ou

papéis temáticos: o pai de Alfredo e a mãe de Margarida. Estes, referidos como mortos,

levam a supor que os parceiros estão vivos: Margarida não tinha mãe, mas tinha pai e

Alfredo não tendo pai, tinha mãe. Os familiares que permaneceram vivos são precisamente

aqueles necessários à realização do complexo de Édipo (o pai de Margarida e a mãe de

Alfredo) e mortos àqueles que poderiam prejudicar essa relação. Sem a presença do pai,

Alfredo aprendeu a amar livremente a mãe, passando a uma relação amorosa sadia com

Margarida. O mesmo aconteceu com Margarida cujo amor por Alfredo foi aprendido numa

relação livre e sozinha com o pai. Portanto, não havia empecilho, nem limites para o amor

de ambos que, certamente se consumou de forma sadia e com um vigor desconhecido no

mundo: / Era um amor entre os dois que não se via em ninguém /. Daí a perda do ente

amado ser insuportável, gerando a morte em Margarida e o desespero no amado.

Alfredo reúne em si diversos papéis temáticos que lhe são atribuídos ao longo do

romance filho, órfão de pai, noivo, apaixonado, soldado, cavalheiro, cavaleiro, guerreiro,

disciplinado, patriota e religioso. Esses papéis lhe dão uma identificação com o cavaleiro

medieval, o que se justifica na origem ibérica atribuída ao romance. Margarida assume

vários papéis temáticos: paciente, filha, noiva, dominada, sofrida, submissa, órfã de mãe,

apaixonada, vítima, religiosa, esperançosa e decepcionada. Essas figuras vinculam-se a

temas diversos. Por exemplo, as figuras pai, mãe, filho e filha tematizam família. A

frustração sentida, o desengano, a espera em vão, a ausência e, conseqüentemente, a perda

do ser amado estão incluídas no tema infelicidade. O tema religião abarca as figuras Deus,

Jesus, alma, salvação, Céu, Santo, redenção, e casamento. Margarida por não ter voz no

discurso, ser apenas enunciatária e submissa às convenções sociais, à Alfredo e ao Estado, é

a que melhor configura o tema submissão, em parte também em Alfredo porque está

subordinado ao Estado.

Page 108: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL DISCURSIVO DA VERSÃO BA4

Actorialização

Espacialização Temporalização Efeitos de sentido Temas Figuras

Enunciador, Alfredo, filho, órfão de pai, noivo, apaixonado, soldado, cavalheiro, cavaleiro, guerreiro, disciplinado, patriota religioso, Margarida paciente, filha, noiva, dominada, sofrida, submissa, órfã de mãe, apaixonada, vítima, religiosa, esperançosa e decepcionada

céu habitat natural campos de batalha comunidade

Presente verbal Pretérito verbal Futuro verbal

Debreagem

Embreagem

Família Infelicidade Religião Submissão

pai, mãe, filho e

filha

frustração sentida,

desengano, espera

em vão, ausência e

a perda do ser amado

Deus, Jesus, alma,

salvação, Céu, santo,

redenção e

casamento;

Margarida e Alfredo

Page 109: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

98

3.3.3. Nível fundamental

Da versão analisada, foram extraídos os conflitos querer versus dever, vida versus

morte e dominante versus dominado. O primeiro, querer versus dever, firma-se no interior

do ator Alfredo, uma vez que este queria o amor de Margarida que lhe completaria o seu

lado afetivo, mas foi contrariado por um dever guerrear que era um compromisso

obrigatório imposto pelo Estado. Veja esse conflito no octógono seguinte:

A tensão dialética da narrativa se estabelece entre querer e dever. As relações, entre

querer e não-dever definem Alfredo como sujeito de um querer, enquanto que dever sem

querer representam Alfredo realizando a atividade imposta pelo Estado. Não-dever é a

categoria modalizadora de Alfredo como Anti-sujeito de um querer e não-querer é a

modalização de Alfredo como Anti-sujeito de um dever.

O segundo conflito, vida versus morte, está relacionado com o ator Margarida. Esta

enquanto estava com Alfredo poderia viver de acordo com o que fora estabelecido pela

Dever Querer

Não-dever

Margarida Guerra

Tensão dialética Alfredo

Não-querer

Alfredo

Page 110: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

99

sociedade a que pertencia. Mas, ao alongar-se a espera, não havendo retorno, nem sabendo

notícia de Alfredo e em meio às pressões sociais que duvidavam de sua honra, opta pela

morte.

Através do octógono seguinte, podemos visualizar melhor esse conflito.

A tensão dialética da narrativa se centra entre vida e morte. As relações entre vida e

não-morte representam o sujeito Margarida, antes da guerra quando estava com Alfredo,

enquanto que morte e não-vida definem o sujeito Margarida sem o homem amado. Não-

morte e não-vida correspondem a inexistência semiótica que está representada pelo zero

cortado.

No terceiro conflito, a tensão dialética da narrativa se faz entre dominante versus

dominado. De um lado, o Estado manifesta a sua força máxima para obter o controle da

população, sem considerar as conseqüências surgidas entre o povo, nem a cultura e a

vontade das pessoas em particular. De outro, o povo é obrigado a suportar as imposições

Morte Vida

Não-morte

Margarida com Alfredo Margarida sem Alfredo

Tensão dialética Margarida

Não-vida

Ø

Page 111: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

100

convertidas em leis, ditas obrigatórias, onde os deveres superam os direitos e casos como o

de Alfredo e Margarida tornam-se uma constante. Esta oposição, vista através do octógono,

toma a seguinte forma:

A tensão dialética da narrativa se centra entre dominante e dominado. As relações

entre dominante e não-dominado representam o sujeito Estado, enquanto que dominado e

não-dominante definem o casal de namorados. Não-dominado e não-dominante

correspondem a inexistência semiótica que está representada pelo zero cortado.

Dominado Dominante

Não-dominado

Estado O casal de namorados

Tensão dialética da narrativa

Não-dominante

Ø

Page 112: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL FUNDAMENTAL DA VERSÃO BA4

Categoria semântica fundamental

Eufórica

Disfórica

Querer

-

+

Dever

+

-

Vida

-

+

Morte

+

-

Dominante

+

-

Dominado

-

+

Page 113: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

102

3.4. Iracema (BA2) e A sete de setembro (BA5)

3.4.1. Preliminares

Consideramos essas duas versões complementares, por isso as estamos analisando

simultaneamente, ressaltando as diferenças quando necessário. Parece que se tratam de

versões brasileiras do romance ibérico, o que pode responder pela grande semelhança

existente entre elas.

3.4.2. Nível narrativo

Essas versões apresentam uma narrativização curta com apenas quatro Sujeitos

Semióticos:

O Sujeito Semiótico 1 (S1), enunciador, tem por Objeto de valor proteger o

assassino, destorcendo a realidade dos fatos, impulsionado pelos amigos da classe policial.

O Anti-destinador é o amor que os parentes e amigos tinham por Iracema e não queriam

que ela fosse vítima de tamanha violência. O Anti-sujeito é a mãe de Iracema que não

apenas chorava, como padecia com uma forte dor no coração por causa do sentimento de

injustiça causado pelo assassino da filha. O Adjuvante é o poder de persuasão. Eis o

programa narrativo do Sujeito Semiótico S1 :

___ Dário Dor Dor Adj. (amigos) (amor) (poder de persuasão) __ Ov S1 S1 (proteger o assassino) (mãe) (enunciador) O S1 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S1 ∪ O) → (S1 ∩ O)

Page 114: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

103

que se lê: S1 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S1 em conjunção com seu

Objeto.

O Sujeito Semiótico 2 (S2), povo da Caixa d’ Água, tem por Objeto de valor

prantear Iracema. O Destinador é a amizade que sente por ela. O Anti-destinador é a

proteção realizada pelo enunciador. Este é o Anti-sujeito. Os Adjuvantes são os amigos e

parentes de Iracema que lhe fazem uma homenagem, organizam o velório e ornamentam o

caixão. Eis o programa narrativo do Sujeito Semiótico S2:

__ Dário Dor Dor Adj. (amizade) (proteção) (amigos e parentes) __ S2 S2 Ov (enunciador) (Povo da Caixa d’Água) (prantear Iracema)

O S2 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor da forma seguinte:

(S2 ∪ O) → (S2 ∩ O)

que se lê: S2 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S2 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 3 (S3), noivo de Iracema, tem por Objeto de valor matá-la. O

Destinador de S3 é o ciúme que o faz agir dessa forma. O Anti-destinador é o amor

materno. O Anti-sujeito é a mãe que tem grande amor pela filha. O Adjuvante é o veneno

com que mata a amada. O programa narrativo do Sujeito Semiótico S3 é configurado da

seguinte forma:

Page 115: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

104

Adj. (ciúme) (amor materno) (veneno)

__ S3 S3 (matar Iracema) (mãe) (noivo)

O S3 conclui a narrativa conjunto com seu Objeto de valor:

(S3 ∪ O) → (S3 ∩ O)

que se lê: S3 em disjunção com seu Objeto de valor passa a S3 em conjunção com

seu Objeto.

O Sujeito Semiótico 4 (S4), mãe de Iracema, tem por Objeto de valor a vida da filha.

O Destinador dela é o amor de mãe. O Anti-destinador é o ciúme gerado no noivo. Esse

rapaz é o Anti-sujeito e o Oponente que mata Iracema por envenenamento. Veja o

programa narrativo de S4:

___ Dário Dor Dor (amor) (ciúme) __ OV S4 S4 Op. (a vida da filha) (noivo) (mãe de Iracema) (noivo de Iracema) O S4 conclui a narrativa disjunto do seu Objeto de valor:

(S4 ∩ O) → (S4 ∪ O)

que se lê: S4 em conjunção com seu Objeto de valor passa a S4 em disjunção com

seu Objeto.

Dário Dor

Ov

Dor

Page 116: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL NARRATIVO DAS VERSÕES BA2 e BA5

Sujeito semiótico

Objeto de valor

Junção conjunto disjunto

Destinador Anti-destinador

Anti- sujeito

Adjuvante Oponente Modalização(instauração do sujeito)

S1 enunciador

proteger o assassino

+ -

amigos

amor

mãe

Poder de persuasão

-

Querer-proteger

Fazer-crer S2

Povo da Caixa

d’Água

prantear Iracema

+ -

amizade

proteção

enunciador

amigos e parentes

-

Querer-prantear

S3 noivo

matar

Iracema

+ -

ciúme

amor

mãe

veneno

-

Dever-matar

S4 mãe

vida da

filha

- +

amor

ciúme

noivo

-

noivo

Querer- a filha viva

Page 117: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

106

3.4.3. Nível discursivo

BA2 e BA5 são romances conto, considerando-se a classificação de Pidal, com foco

narrativo em terceira pessoa. Assim sendo, o enunciador é um narrador embreado com a

enunciação, no tempo e no espaço, confundindo-se com o cantor do texto e debreado do

enunciado. O tempo da enunciação aponta para um aqui-agora de quem fala, ou seja, o

momento em que o canto foi realizado.

Com o intuito de persuadir o enunciatário, o enunciador utiliza-se de diversos

recursos para realizar seu objetivo, a começar pela ordem de distribuição de papéis

temáticos no texto e, simultaneamente, a criação de efeitos de realidade. A exemplo da data

sete de setembro/dia de são Pedro, na qual o enunciador ancora-se, fazendo uso do recurso

de persuasão de caráter histórico.

O procedimento de actorialização aponta para um só nome próprio, Iracema, e

vários papéis temáticos: noivo, povo da Caixa d’Água, mãe, filha, morena, pobre, cabo de

polícia e cabo reservista.

O tempo do enunciado está marcado mais diretamente pela data da morte de

Iracema que, apesar de não ser determinado o ano, ocorre no dia sete de setembro em BA5,

coincidindo com a data da Independência do Brasil e na noite de São Pedro em BA2.

Podemos presumir que essa marca temporal tenha sido adotada a partir de 1822. Por se

tratar de um dia feriado, a morte de Iracema causou um grande impacto:

O povo da Caixa d’Água chorava pela morena Que morreu envenenada a pobre da Iracema

As pessoas puderam participar do velório e pranteá-la. Além disso, foi uma morte por

assassinato, cometida pelo próprio noivo, amante, namorado, isto é, por alguém

afetivamente ligado a ela.

Na versão BA2, o noivo de Iracema é um soldado, uma autoridade presente no

quotidiano do povo, que deveria defendê-lo:

Quem matou Iracema foi um cabo de polícia

Page 118: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

107

No entanto, utilizou-se do prestígio para matar Iracema e o fez num dia dedicado a São

Pedro, em BA2, e à Pátria, em BA5, dias sagrados para o povo, cometendo, assim, um

sacrilégio duplo:

Noite de São Pedro foi um dia determinado Mataram Iracema por causa de um namorado (BA2);

A sete de setembro foi um dia feriado O noivo de Iracema matou ela envenenada (BA5)

Outra marca temporal ocorre através dos verbos conjugados no passado, ora no

pretérito imperfeito, ora no pretérito perfeito:

O povo da Caixa d’Água chorava pela morena Que morreu envenenada a pobre da Iracema (BA5)

Tal alternância produz um efeito de aproximação e distanciamento do enunciado com

relação ao enunciador. Chorava pressupõe um processo temporal continuado, inacabado: o

povo não parou de chorar. Já com morreu pressupõe um fato acabado no passado.

O espaço do enunciado se dá em três instâncias: bairro Caixa d’Água, onde se

concentra grande população humilde; o cemitério para onde se deslocou o povo da Caixa

d’Água e onde foi aberta a cova para a realização do enterro. Há ainda o espaço caixão, que

abriga, na parte externa, uma faixa contendo letrinhas de amor e na parte interna o corpo de

Iracema e as flores que a enfeitavam. Como se pode ver, o texto centraliza a descrição do

velório.

O ator Iracema aparece figurativizado por filha, morena e pobre. Este último

semema permite uma dupla interpretação. Pobre pode ser coitada, pessoa por quem o povo

(parentes e amigos) sentiu piedade ou ainda pode ser pessoa sem recursos. Essa segunda

interpretação é reiterada, tendo em vista Iracema morar no Morro da Caixa d’Àgua e ser

morena.

Em BA2, a causa do assassinato de Iracema foi a infidelidade amorosa:

Page 119: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

108 Mataram Iracema por causa de um namorado (BA2)

Isso quer dizer que um cabo de polícia, ligado afetivamente a ela, a matou porque ela lhe

foi infiel, o que lhe minora a culpa pelo assassinato e imputa a culpa em Iracema. Na

verdade, será que ela não morreu por ser pobre, moradora do morro e ainda por cima,

morena, pessoa sem nenhuma credibilidade? O namorado pode ter levado a população a

crer na infidelidade, para livrar-se dela. Ele poderia ter abusado dela, sexualmente e, para

livrar-se, atribuiu-lhe a infidelidade para poder matá-la. A mulher infiel pode ser morta pelo

seu marido perante a lei dos homens e até de Deus. A mulher bíblica era apedrejada quando

descoberta a sua infidelidade. O fato é que as duas versões não mencionam que o assassino

foi castigado, nem por Deus, nem pelos homens. E as pessoas do velório, mesmo sabendo

quem a matou e embora a pranteassem, não se preocuparam em prender o assassino, nem

emitem julgamento de valor sobre ele, a não ser que ele matou porque ela tinha um

namorado. Aliás, a expressão: Mataram Iracema revela a omissão do sujeito assassino.

Este vai figurar já no final do texto quando os efeitos de impacto sentimental já têm

diminuído. Mesmo assim, aparece identificado pela função que exerce e não pelo nome

próprio. Vale salientar que essa atitude do povo da Caixa d’ Água de não prender o

assassino, nem tampouco revelar o seu nome, remete-nos a situação que hoje vigora na

sociedade brasileira, a exemplo de grandes centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro

e outros, onde a lei do silêncio prevalece.

O sentimento de piedade, advindo do choro dos parentes e amigos de Iracema,

inclui o adjetivo pobre atribuído a Iracema, as imagens de tristeza, avolumam-se postos em

contrastes com a violência e o ódio causados por aquele de quem só se esperava o bem.

Acrescentamos que a repetição do mote:

O povo da caixa d’Água chorava pela morena Que morreu envenenada a pobre da Iracema (BA5)

enfatiza o sentimento de desgraça e, conseqüentemente, um envolvimento do enunciatário

com o discurso. Outro efeito de realidade ocorre quando a mãe de Iracema sofre uma dor

no coração, sendo a razão dessa dor colocada nos versos seguintes:

Page 120: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

109

De vê sua filha morta naquele triste caixão (BA5)

Isso, inicialmente, leva o enunciatário a pensar que a desgraça irá se estender até a sua

mãe, quando na verdade não se trata de patologia cardíaca, mas apenas de um sentimento

de pesar pela morte da filha.

O lexema letrinhas no diminutivo enfatiza o sentimento de lamúria e pena que

envolve a solenidade do enterro e, principalmente, sobre a infeliz moça, vítima de tamanha

violência. Com tal habilidade, o enunciador consegue manipular o enunciatário, levando-o

a ter piedade de Iracema. Letrinhas é apresentado como o coletivo de letras. São muitas

letras escritas por várias pessoas, certamente outros amantes de Iracema, ali colocadas para

incriminá-la e inocentar o assassino. O enunciador, que é identificado em BA2 como cabo

reservista, provavelmente quis inocentar o colega em atitude de corporativismo. Pode ser

ainda indicador da grande quantidade de amigos/amigas que ela possuía e que ficaram

consternados/consternadas com sua morte.

Com base no que foi dito, percebemos que o enunciador está embreado com a

enunciação, fazendo-se representar pelo eu-aqui-agora.

Entre outras possibilidades, apreendemos alguns temas que ocorrem com muita

freqüência nessas versões: sofrimento que é figurativizado em dor no coração, chorava e

triste; morte que é representado pelas figuras matou, envenenamento, pobre, caixão e

traição de Iracema que motivou o acontecimento, em ciúme que é o sentimento que

predomina no noivo e, por fim, o tema vingança que está figurativizado na atitude do

noivo/namorado, causador da morte.

Page 121: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL DISCURSIVO DAS VERSÕES BA2 e BA5

Actorialização

Espacialização Temporalização Efeitos de sentido Temas Figuras

Iracema, morena, pobre, filha, mãe, noivo, Namorado, Povo da Caixa d’Água, soldado, cabo de polícia, assassino e vítima

Bairro Caixa d’Águacemitério caixão

Presente/passado sete de setembro dia de São Pedro

Debreagem Embreagem

Sofrimento Morte Vingança

dor no coração,

chorava, triste

matou, caixão traição, ciúme, veneno, envenenamento

Page 122: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

111

3.4.4. Nível fundamental

Dessas versões, foram extraídos dois conflitos: alegria versus tristeza e querer

versus dever. O primeiro se estabelece no ator povo da Caixa d’água que inclusive aparece

ao velório, em grande quantidade, para homenagear a falecida. Toda essa comunidade

vivia feliz quando desfrutava da companhia solidária da bela Iracema, caracterizando assim

um estado de alegria. Entretanto, com a morte de Iracema, a tristeza tomou conta do lugar e

das pessoas, ainda porque Iracema teve uma dolorosa morte por envenenamento, causada

pelo próprio noivo. Esta oposição, vista através do octógono, apresenta-se da forma a

seguir:

As relações, entre alegria e não-tristeza caracterizam Iracema viva, desfrutando da

companhia do povo da comunidade em que morava. Enquanto que tristeza e não-alegria

representam Iracema morta sem poder conviver com as pessoas que tanto amava. Não-

tristeza e não-alegria correspondem a inexistência semiótica que está representada pelo

zero cortado.

Tristeza Alegria

Não-tristeza

Iracema viva Iracema morta

Tensão dialética Povo da Caixa d’água

Não-alegria

Ø

Page 123: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

112

O segundo conflito, querer versus dever, instaura-se no interior do noivo de Iracema

que no início do namoro quer viver um amor durador com ela, objetivando um casamento.

Para tanto, queria Iracema viva. Todavia, por força das circunstâncias, troca o amor pelo

ódio, deixando de ser um ator do querer para ser um ator do dever matá-la para resgatar sua

própria honra, evitando assim, que sua imagem fosse denegrida pela sociedade. A partir do

octógono a seguir, podemos visualizar melhor esse conflito:

A tensão dialética da narrativa se centra entre querer e dever. As relações, entre

querer e não-dever representam o noivo de Iracema querendo viver um grande amor.

Enquanto que dever e não-querer definem o noivo com o dever, exclusivo, de tirar a vida

de Iracema. Não-dever e não-querer correspondem a inexistência semiótica que está

representada pelo zero cortado.

Dever Querer

Não-dever

Viver com Iracema Matar Iracema

Tensão dialética Noivo de Iracema

Não-querer

Ø

Page 124: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

QUADRO-RESUMO DO NÍVEL FUNDAMENTAL DAS VERSÕES BA2 e BA5

Categoria semântica fundamental

Eufórica

Disfórica

Alegria

-

+

Tristeza

+

-

Querer

-

+

Dever

+

-

Page 125: O romanceiro ibérico de amor desgraçado: uma abordagem semiótica

114

CONCLUSÕES

A semiótica permitiu a realização de uma análise do romance de amor desgraçado,

acompanhando o seu trajeto desde a Idade Média até os dias atuais, considerando suas

variações espaço-temporais. A ação desenvolvida pelo enunciador faz preservar elementos

originais do romance antigo, enriquecido com vocábulos, termos e expressões colhidas da

oralidade, compondo-se novas versões que comportam característica de uma dada época.

Apesar da evolução social, na longa e sucessiva passagem do tempo, as versões

examinadas, na estrutura profunda, camuflam valores que se conservam desde a Idade

Média que se configuram como tabus e dogmas, advindos daquela época. Entre outros

exemplos, aparecem em todas as versões o caráter patriarcalista que impera entre a família

e a sociedade em geral, evidenciando a inferioridade da mulher. Por outro lado, o

providencialismo divino que, além de acomodar e conformar a sociedade dita dominada,

incentiva que esta seja manipulada pela elite dominante.

A análise comparativa das dezessete versões levantadas como corpus permitiu

considerar a existência de dezenove segmentos componentes da textualização do romance

antigo Aparição. A descoberta desses segmentos é notada pela freqüência com que ocorrem

nas versões, embora nenhuma se apresente com o número completo de segmentos.

O segmento Assassinato/morte da amada é o único presente em todas as versões,

justamente por designar o fato que caracteriza a temática da desgraça amorosa. Em

contrapartida, nenhuma das versões apresenta a morte do amado, apesar de mencionarem

em três sua tristeza em decorrência da morte dela. O segmento Aparição é o segundo que

acontece com maior freqüência, aparecendo dez vezes. Provavelmente a inclusão desse

segmento nesta quantidade de versões aconteça para compensar a voz e o espaço que foram

negados a mulher em vida. O segmento Retorno do amado que inclusive se completa com o

reencontro com a aparição, aparece oito vezes, tendo o enunciador o propósito de mostrar

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115

que o querer voltar reforça a existência de um amor ímpar que caracteriza o relacionamento

do casal, ainda que prejudicado pelas leis sociais. Já o segmento Ida do amado, que produz

um efeito contrário ao segmento Retorno/reencontro do amado, ocorre apenas uma vez. Em

algumas versões é o propósito do enunciador concentrar atenção do enunciatário no velório

da amada. Este constitui um segmento que aparece sete vezes, descrito minuciosamente,

tornando a cerimônia passiva de uma leitura da posição sócio-econômica da falecida. Nesse

contexto, insere-se o segmento Pranto que ocorre seis vezes e que reforça a desgraça

ocorrida. O segmento Despedida aparece cinco vezes, sendo que, destas, duas em vida e

três quando a amada já está morta em estado de aparição, o que configura a desgraça. Há

uma insistente busca de solução pelo amado com a intenção de desfazer a desgraça,

chegando a oferecer seus bens, mesmo que esta já esteja materializada. Este segmento

ocorre seis vezes e tem como resposta um aconselhamento da Aparição que se dá também

em seis vezes e que funciona ora para desiludi-lo da oferta, ora para fazê-lo ciente do mal

que a ela cometera.

Existem versões que ultrapassam o limite humano e compartilham a desgraça

amorosa com a própria natureza. Tal tristeza personificada constitui um segmento que

ocorre em quatro versões. Outro destaque apresentado nas versões é o Sofrimento/doença

da amada, que ocorre quatro vezes e é revelado na maioria das versões pela voz do

enunciador, causando ao enunciatário sentimento de desilusão, uma vez que a mesma sofre

sozinha e é levada, irreversivelmente, à morte. Suas queixas aparecem quatro vezes e

decorrem da injustiça sofrida. Em três versões, o amado manifesta lamentos da amada e

também manifesta seus lamentos e desejos de morrer da mesma forma que ela, Há registro

(duas vezes) em que a mãe proíbe o namoro da filha, mas esta, mesmo submissa não resiste

à fascinação dele. Em duas passagens, a amada pede à mãe a presença do amado e esta,

movida pelo sentimento de amor materno, atende ao pedido da filha. O segmento Relato

cronológico da vida e da morte da amada ocorreu em freqüência muito baixa (apenas uma

vez), tendo o narrador utilizado da onipresença para relatar a vida, a morte e a salvação da

amada. Esta pelo menos dessa vez encontrou no céu a justiça que não encontrou na terra.

Com isso, o narrador, sutilmente está reforçando o tema do discurso religioso da

recompensa divina após a morte.

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116

A análise semiótica das cinco versões escolhidas como amostragem foi realizada

nos níveis narrativo, discursivo e fundamental. Em todas as versões, a mulher tem como

causa de sua morte o abandono ou a traição do marido/noivo/namorado, com exceção da

versão Pomba sem fel, que morre vítima de febre, fragilizada pelas conseqüências da

submissão à vontade materna que a proibiu de conviver com o homem amado por ser este

socialmente inferior. Nas demais, é vítima de envenenamento (Iracema) e desprezo

amoroso (Margarida). Em todos os casos, a mulher é submissa ao amado ou à sociedade.

Sua voz só lhe é permitida para fazer lamentações após a morte (aparição) ou na

proximidade desta. Até mesmo em estado de aparição quando tem a chance de resolver

algo que ficou pendente em vida, afirma estar no inferno, ainda que nas versões não

apareçam justificativas suficientes para condená-la ao fogo eterno. Na versão CAR, tal

desabafo encerra com um pedido para que o marido se case e proteja as futuras filhas contra

o pecado da carne.

Constatamos que, apesar das modificações na forma, a estrutura profunda dessas

versões sofreu poucas alterações da Idade Média até os dias atuais. Embora apresentando

numerosas variações, o romance provém de uma única invariante de origem ibérica. Sua

difusão em lugares e épocas distintas permite considerar a existência de dois grupos

variacionais. Nas versões brasileiras, a jovem é figurativizada como pobre, moradora do

morro e algumas vezes, morena (Iracema). Nas Ibéricas, ela pertence à classe dos nobres; é

filha de conde (Pomba sem fel) e rainha dos espanhóis (Mercedes, esposa de Alfonso XII).

Além disso, em algumas versões, alastra-se a concepção ideológica da mulher boazinha,

submissa, passiva, calada e culpada pelos problemas ocasionados pelo amado. Já em outras,

o homem lhe imputa culpa de infidelidade, o que lhe dá o direito de puni-la e até mesmo de

matá-la.

Verificamos ainda que na maioria das versões, com exceção de três, menciona-se a

figura de um soldado que, se não matou a amada foi a causa de sua morte ao distanciar-se

dela e partir para a guerra. A freqüente utilização deste papel temático, exercendo a função

de assassino da mulher/esposa/namorada, ou como seu interlocutor no momento da

aparição, a quem ela pergunta pelo marido, permitiu ao romance Aparição ser também

intitulado O soldado.

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117

Numa visão mais ampla, constatamos que, em todas as versões aqui examinadas, o

enunciador é sempre do gênero masculino e, apesar dos recursos discursivos utilizados para

mostrar imparcialidade, não consegue esconder a ideologia machista e conservadora que se

oculta e que só uma análise mais acurada é capaz de identificar. A existência de dogmas e

tabus conservados desde épocas remotas mantêm viva a ideologia do preconceito e da

exclusão social, onde as mulheres, assim como os negros e os pobres, são as principais

vítimas. A superação desses operadores ideológicos, que são os responsáveis pela violência

e desigualdade social, certamente fará surgir uma sociedade mais igualitária e justa, onde o

sentimento de humanidade prevaleça sobre as nossas decisões individuais e coletivas.

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