o recurso do mito na literatura latino-americana

Upload: liliasilvamacedo

Post on 17-Feb-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    1/19

    Tempos Volume 171 Semestre 2013p. 185-203

    Histricos ISSN 1517-4689 (verso impressa) 1983-1463 (verso eletrnica)

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Srgio Cmara1

    Quiz la historia universal es la diversa entonacin de algunas metforas."Jorge Luis Borges.

    Dom Quixote l o mundo para demonstrar os livros.Michel Foucault.

    Resumo: Este artigo trata da questo do mito na literatura da Amrica Latina. O objetivo uma anlise de escritores proeminentes cujas obras se utilizam da estrutura mtica comoforma de construir uma memria mais autntica para o continente, no raro na qualidade deum compromisso tico.

    Palavras-chave: mito; literatura; histria; Amrica Latina.

    Abstract: This article deals with the issue of myth in the latin american literature. The aimis to analyse proeminent writers whose works use a mythical structure to create an authenticmemory to his continent, not rarely assuming an ethical commitmement.

    Keywords: myth; literature; history; Latin America.

    um trusmo afirmar que toda a literatura nasce do mito ou mesmo que a estrutura

    mtica se encontra na base do modo de narrar perguntas e respostas na dimenso social.

    vocao dos discursos identitrios revestirem-se da mxima naturalidade como forma depreservao, urdindo, por exemplo, o conceito de nao a partir de um fundo biolgico ou

    metafsico. Por outro lado, cabe ao historiador desfazer essa costura da memria com o

    exame da sua especificidade no tempo, enfim, da sua historicidade.

    Relacionamos aqui alguns autores da moderna fico latino-americana que

    buscaram na unidade de sentido, prpria do mito, um meio eficiente para objetivar

    criticamente a realidade. Tal objetivao se d pela ruptura com as convenes realistas,

    isto , pela via totalizadora do maravilhoso. A Macondo de Gabriel Garca Mrquez, em

    Cem anos de solido, no mera metfora de uma cidade real, mas uma insidiosa tentativa

    de apagamento das fronteiras entre realidade e imaginao pela dilatao da dimenso

    1Doutor em Histria Social da Cultura (PUC-RJ), Professor Adjunto de Teoria da Histria e Historiografia(Centro Universitrio La Salle-RJ). O presente artigo foi elaborado no mbito das pesquisas do Laboratrio deHistoriografia do Centro Universitrio La Salle-RJ. Email: [email protected]; endereo: Rua GastoGonalves, n 79, Santa Rosa, Niteri, RJ.

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    2/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    onrica, mesclando a tal ponto fato e fico que o histrico alcana a liberdade do

    verossmil.

    A pesquisa historiogrfica tem se dedicado ao tema da construo da identidade por

    parte de intelectuais latino-americanos, revisitando as noes de brasilidade e de

    hispanidade. Gilberto Freyre e Octavio Paz so exemplos significativos de expoentes desse

    debate que configura o horizonte do pensamento social. No mesmo registro, romancistas

    to diversos como Jos de Alencar e Mrio de Andrade passaram por uma rica reviso

    crtica. Nossa estratgia de anlise, entretanto, opta por um deslocamento da ateno na

    direo da fico moderna mais afeita ao recurso do fantstico. Trata-se, ainda, de uma via

    de acesso ao pensamento social: compreender como a imagem da excentricidade da

    identidade latino-americana replica o discurso de resistncia dominao.

    possvel cogitar que a imaginao utpica da Amrica j fazia parte damentalidade europeia antes mesmo dos primeiros contatos, na qualidade de um sonho

    regenerador do esprito humanista. E que sem dvida o recurso ao mito foi tambm

    utilizado pela ideologia dos grupos polticos dominantes. Mas, no caso dos modernos

    autores da literatura fantstica, o vis arcaizante ou meramente evocativo de um passado

    mais original (leia-se autntico) comporta uma viso corretiva do destino ditado pelo

    europeu desde a colonizao.

    Desse modo, o fantstico opera pela intensificao do realismo, pela hipertrofia do

    real. Entrevistado pela Paris Review, em 1981, afirmou Gabriel Garca Mrquez:

    Sempre me pareceu engraado que os maiores elogios para meu trabalhofossem dirigidos imaginao, enquanto a verdade que no h umanica linha em todo o meu trabalho que no tenha a sua base na realidade.O problema que a realidade do Caribe parece ser a imaginao maisdesvairada. (MAFFEI, 1989, p.330).

    E, numa outra passagem da mesma entrevista, arremata: O mundo real do Caribe to

    fantstico quanto as histrias de Cem anos de solido (MAFFEI, 1989, p.342).

    A tcnica literria, portanto, no se ocupa propriamente da construo de uma

    mitologia alusiva aos elementos da realidade. O seu projeto mais ambicioso, pois

    pretende indicar o quanto o mito fundador da realidade e nessa remisso ao simblico

    apaga as fronteiras entre literatura e histria com o mesmo movimento que afasta as

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    3/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    convenes literrias. O fantstico informa sobre uma condio ntica, sobre o modo de ser

    na sua irrevogvel excentricidade.

    As cidades inventadas pelos autores da literataura fantstica (como Juan Rulfo,

    Garca Mrquez e, por que no incluirmos aqui rico Verssimo, com sua Antares),

    afirmam, cada um ao seu modo, o poder quixotesco da narrativa como instauradora do real.

    Uma narrativa sucede a outra e na continuidade, na repetio, que reside a esperana

    existencial do mito.

    Trocamos as ideias de formao e descoberta pela de inveno, mas talvez

    devssemos reservar mais espao para a de correo, pois o ato de narrar parte sempre de

    um desejo de adequao. O mito uma viso corretiva. E o seu objetivo no outro seno

    a totalidade. Em Cem anos de solido, aps a epidemia de insnia que varre a memria de

    todos, Aureliano Buenda espalha placas pela aldeia indicando o nome dos seres e dascoisas em geral. Impede, assim, o esquecimento de Macondo. Carlos Fuentes comenta a

    propsito desse gesto fundador:

    No nvel mtico, Cem anos de solido uma interrogao incessante: oque Macondo sabe de si mesma? Isto , o que Macondo sabe de suaprpria criao?

    O romance uma resposta a essa pergunta. Para saber, Macondoprecisa contar-se toda a verdadeira histria e toda a histria fictcia, jque o tribunal aceita todas as provas, todas as provas reconhecidas pelos

    contadores pblicos, mas tambm todos os rumores, todas as lendas, todosos mexericos, todas as mentiras piedosas, todos os exageros e todas asfbulas que ningum escreveu, que os velhos contaram aos jovens e assolteironas sussuraram para o padre: que os feiticeiros invocaram no meioda noite e os palhaos representaram no meio da praa. A saga deMacondo e dos Buenda inclui assim a totalidade do passado oral,lendrio, e juntamente com ele ficamos sabendo que no poderamos noscontentar com a histria oficial, documentada, dos tempos: que a histriatambm todas as coisas que os homens e as mulheres sonharam,imaginaram e desejaram, todas as coisas a que deram nomes. (FUENTES,1989, p.233).

    plausvel, portanto, relacionar a produo romanesca de alguns escritores daAmrica Latina, inclusive do Brasil, com a presena do mito como recurso essencial da

    fico moderna.

    No plano geral, o recurso do mito no cenrio da literatura latino-americana se deve a

    uma emergncia face ao racionalismo secularizado da nossa poca, da necessidade de

    mitificar as narrativas como meio de suportar a vida cotidiana, para atenuar o peso histrico

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    4/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    da realidade ou simplesmente para mitigar iluses e conflitos da existncia comum dos

    homens. Um simples olhar sobre a literatura ocidental moderna revela que os seus mais

    destacados expoentes, como Thomas Mann, James Joyce e Franz Kafka, recorreram,

    tambm cada um ao seu modo e com intenes diversas, ao mito como ordenamento geral

    da sua fico e no como um mero recurso decorativo ou maneirista das suas obras.

    Ao se considerar a obra de fico como um universo fechado em si mesmo, a

    presena do mito no seu centro significa energia e coeso, organizao csmica dos

    elementos que compem a sua estrutura. Alis, quanto mais mtica for a fico, mais

    realidade agregada ao texto. Tal paradoxo se explica porque o mito se torna a fonte da

    prpria realidade original (historicamente ocultada). Logo, o mundo da fico verdadeiro

    no no sentido restrito do real, porm pelo modo como consegue recompor as imagens

    recuadas da existncia na consecuo do arqutipo. verdade, tambm, que a presena moderna do mito no implica numa relao de

    dependncia com a religio ou com ideologias, mas quando tal sucede os seus valores

    essenciais e humanos so invertidos ou mistificados. O mito deve permanecer, guardadas as

    propores com a Antiguidade, como um fator de organizao do pensamento na busca de

    uma determinada ordem, na tentativa, ora simblica, ora alegrica, de compreender o

    mundo ou submet-lo a um exemplar sistema de pensamento que tenha a possibilidade,

    maneira de Nietzsche, de restaurar a vida, revificando-a. No sem motivo, como muitos

    estudiosos j observaram, que a filosofia da vida tenha recorrido ao mito no centro das

    suas reflexes.

    instigante refletir sobre o uso do mito na literatura moderna, em especial no caso

    da Amrica Latina. Um indcio que pode ser vantajoso no exame da presena do arcaico no

    moderno pode nos ser dado por aquilo que comumente atribuimos ao mundo primitivo: a

    fantasia.

    No h relato mtico, por maior que venha a ser a sua capacidade de ir alm das

    propores do mundo natural, que no apresente condies de assimilao pelo homem

    circunscrito num universo mgico. Afastados os constrangimentos da razo, praticamente

    tudo possvel na imaginao primitiva, conforme assinala Johan Huizinga em Homo

    ludens. E, ao analisar o jogo como fenmeno cultural, acrescenta ainda o mito e a poesia

    como partes de uma tripla relao:

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    5/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    Seja qual for a forma sob a qual chegue at ns, o mito sempre poesia.Trabalhando com imagens e a ajuda da imaginao, o mito narra umasrie de coisas que se supe terem sucedido em pocas muito recuadas.Pode revestir-se do mais sagrado e profundo significado. Pode ser queconsiga exprimir relaes que jamais poderiam ser descritas mediante um

    processo racional. Mas, apesar das caractersticas sagradas e msticas quelhe so prprias na fase mitopotica da civilizao, isto , apesar daabsoluta sinceridade com que era aceite, continua de p o problema desaber se alguma vez o mito chegou a ser inteiramente srio. Creio quepodemos pelo menos afirmar que o mito srio na mesma medida em quea poesia tambm o . Tal como tudo aquilo que transcende os limites dojuzo lgico e deliberativo, tanto o mito como a poesia se situam dentro daesfera ldica. No quer isto dizer que seja uma esfera inferior, pois podemuito bem suceder que o mito, sob essa forma ldica, consiga atingir umapenetrao muito alm do alcance da razo. (HUZINGA, 1971, p.144).

    este ir muito alm do alcance da razo que faz do mito no somente uma

    reafirmao da razes culturais dos povos da Amrica Latina, mas tambm uma espcie de

    via alternativa face ao imbrogliodo racionalismo no mundo moderno. Portanto, uma dupla

    reinvidicao que orienta a pesquisa a manter como eixo temtico tanto a dimenso

    poltica, sob a forma de reao aos valores do colonizador, quanto a dimenso de uma crise

    epistemolgica que transcende a prpria Amrica Latina, pois trata-se do esgotamento do

    modelo racional de representao da realidade. Este ltimo aspecto da questo guardadas

    as peculiaridades o que em parte explica a ressurgncia do mito simultaneamente na

    literatura europeia e nos pases perifricos.Mito e literatura convergem para o encantamento do mundo, para lembrarmos uma

    conhecida expresso de Max Weber, e ambos constituem narrativas fantsticas que

    prescindem da objetividade da razo cartesiana. No fundo, o mito, como comentamos

    anteriormente, elemento constitutivo da imaginao artstica, jamais esteve ausente da

    literatura. No entanto, a indagao recai sobre o momento em que ele posto em enredo de

    modo flagrante na modernidade avanada.

    No mito da fico latino-americana se acha o desejo de redescoberta, de

    anticolonizao, de inveno da prpria realidade nativa. Nesse processo intervm a utopia

    (s avessas) ou a criao de um devir apenas pressentido pelas formulaes mticas. O que

    seramos, afinal?

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    6/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    Observa-se um to singular recurso imaginao mtica que se forjou o termo,

    objeto de controvrsias, realismo mgico, para definir o boomda literatura do continente na

    segunda metade do sculo passado, com repercusso mundial.

    Na verdade, a nova literatura de imaginao em nosso continente nasce de uma

    ambivalncia, de uma tenso entre dois mundos, do inconformismo colonialista e da

    nostalgia de um passado, de uma histria, enfim, que deveria ter transcorrido como uma

    utopia ao contrrio no resgate do verdadeiro solo. No centro de revolues e ditaduras, o

    escritor latino-americano moderno tende ao solipsismo, isto , inclina-se a incluir no seu

    esprito a realidade dita objetiva, para, enfim, absorv-la como algo pessoal, como uma

    substncia que perdeu as suas qualidades externas, ou o seu verdadeiro peso histrico,

    transformando-se numa matria subjetiva e malevel como toda fantasia o deve ser. Gabriel

    Garca Mrquez autor e personagem de Macondo. Ento, preciso considerar a presenaconstante do mito na fico do nosso continente de uma forma diferenciada, por exemplo,

    da europeia, e nisso reside a qualidade mais evidente, ou extica, de escritores como

    Guimares Rosa ou Garca Mrquez diante dos padres mticos europeus.

    justamente o subjetivismo que transforma a realidade objetiva, com o peso da

    historia, ou opesadelo da histria, numa matria intimista, numa redescoberta de fontes ou

    na inveno do nosso destino, que torna a nossa fico moderna to singular no recurso

    imaginao mtica. Tambm a fuso, de certo modo anrquica, do estamental com o

    familiar deve ser notada como trao diferencial. Um desses motivos pode ser encontrado

    nos romances de estrutura cclica, como na trilogia de Erico Verissimo, O tempo e o ventoe

    Cem anos de solido, de Gabriel Garca Mrquez.

    Ento se d que o romance latino-americano do nosso tempo adquire mais o sentido

    da fbula que o seu equivalente europeu, sem se exonerar do aparato tcnico da fico da

    modernidade, ou seja, um intenso recurso ao monlogo interior, ao fluxo da conscincia, ao

    solilquio e especialmente ao emprego subjetivo ou qualificado do tempo, bem como das

    tcnicas cinematogrficas do flash-back, dos sofisticados cortes de ao, tempo e espao.

    Talvez por isso os nossos escritores modernos sejam, na sua grande maioria,

    simultaneamente contistas e romancistas, o conto contendo em sua estrutura uma mais

    exata ou adequada incluso do mito ou da fbula, para recorrer a uma consagrada expresso

    aristotlica.

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    7/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    De certo modo, cabe indagar: para o escritor deste lado do mundo, a via mais

    acessvel para apreender a realidade o fantstico? Veja-se como Jorge Luis Borges apega-

    se ao mito, a partir do conto, para situar a realidade, ou antes, como ele aprecia a

    hiperestesia do real ao ponto de confundir o leitor no curso da histria.2Talvez por isso

    entre ns a mitologizao romanesca no siga, como comum na Europa, um determinado

    padro. Mesmo um escritor do porte de Asturias, to apegado s fontes pr-colombianas, s

    lendas cosmognicas doPopol-Vuh,com seus maravilhosos cantos de morte e ressurreio,

    costuma conferir a essa matria mgica no plano ficcional um carter histrico de

    revificao do real, um toque pessoal de criatividade voluntarista que se caracteriza pela

    liberdade na renovao do mito e da saga maia quich.

    Na verdade, o que Asturias persegue na sua tentativa de restaurao mtica do

    passado a conscincia perdida no tempo, obscurecida pela histria colonial de massacres ecoaes. Por isso, um romancista como Alejo Carpentier pde confessar que o realismo

    mgico surgiu de um estado limite do nosso esprito propenso a alterar as escalas comuns

    da realidade, mas sempre na procura de algo que se ocultou, que ficou envolto no mistrio.

    A revelao dessa zona obscura da vida comum dos homens no , entre ns latino-

    americanos, um artifcio artstico, um fenmeno meramente esttico, mas uma forma de

    conhecimento da nossa existncia vedada, um resgate de culpa e de crime. Quase todo

    escritor moderno latino-americano recusa o convencional e procura a ordem na desordem.

    Por necessidade de ordem no caos, entenda-se a interveno do mito.

    Um estudo comparativo de escritores latino-americanos, sob o impacto do mito,

    pode ir alm da crtica valorativa, esttica, para evidenciar no nosso continente as linhas de

    fora da histria, da psicologia como sondagem profunda da realidade; compreender

    aproximaes e distanciamentos com referncia ao tema proposto numa esfera de alteridade

    cultural. A viso comparatista pode ser mais vantajosa como organizao de uma rede de

    reflexes crticas a partir de literaturas que, embora mantendo suas peculiaridades,

    apresentam um verdadeiro dilogo de culturas. precisamente essa via dialgica que nos

    2Borges cria uma nova linguagem para a literatura da Amrica Latina a partir da fuso de poesia, jogo e mito.Ironia e humor esto presentes nessa fuso. A sua prosa ainda particularmente interessante para odesenvolvimento da pesquisa proposta pelo fato de que d abertura de significao s noes de aventura esonho, pois embora no se constitua como uma clara reflexo crtica acerca da questo social e poltica docontinente, no h como observar a sua peculiar construo mtica de Buenos Aires sem recorrer a taisnoes.

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    8/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    interessa evidenciar com a comparao de autores que podem ser reunidos em torno da

    questo do mito.

    H algo na nossa vivncia que se oculta ou que se mascara, algo que fico

    dado o poder de restaurar, justamente porque ela reinventa e cria segundo os impulsos

    imemoriais do mito. E a criao romanesca latino-americana da atualidade uma insero

    mtica no tempo e no espao, conservando uma grande pureza de princpios e ainda uma

    grande fidelidade natureza original da epopeia, ou seja, a ao do homem lanado na

    grande travessiada existncia, enfim, uma magia, uma fbula que deve servir de emblema

    para a humanidade. Em Grande serto: veredas, Guimares Rosa cumpriu risca a

    peripcia pica, o ser lanado no mundo, que se narra, que conhece a realidade e aquilo que

    a transcende por meio da imaginao mtica, do tempo, da morte e da ressurreio.

    No o mito tout court que retorna, tampouco a narrativa tradicional que sepretende preservar. H em jogo uma combinao estratgica entre vigor pico e

    experimentao onrica da narrativa, combinao esta que nos remete todo o tempo s

    razes culturais latino-americanas: aventura e sonho. Exemplo disso tambm a literatura

    de Juan Rulfo, Carlos Fuentes e Reinaldo Arenas apenas para lembrar outros autores

    representativos.

    Vejamos, portanto, mais detidamente o caso do escritor Jorge Luis Borges. A sua

    inclinao monista uma postura que pode ajudar na compreenso de uma nostagia do

    mundo coeso da narrativa mtica. No por acaso a noo de tempo na sua obra se vale da

    fuso cintica das imagens e tambm faz parte do seu monismo. Nos contos no rara a

    juno de situaes dadas em tempos e espaos diversos, condensadas, resultando numa

    espcie de simplificao do universo, das coisas, dos acontecimentos, das pessoas na

    famosa frmula de que todos ns somos Shakespeare... Lemos em Fundao mtica de

    Buenos Aires, poema publicado no Cuaderno San Martin, em 1929:

    E foi este rio de modorra e de barroque as proas vieram fundar minha ptria?Deviam ir aos trancos os barquinhos pintadospor entre os aguaps de sua corrente zaina.Pensando bem a coisa, vamos supor que o riofosse ento azulado, como oriundo do cucom sua estrelinha rubra para marcar o stioem que Juan Daz jejuou e os ndios comeram.O certo que mil homens e outros mil chegaram

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    9/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    por um mar com a largura de cinco luase ainda povoado de sereias e endragose dessas pedras-ims que elouquecem a bssola.Fincaram alguns ranchos trmulos pela costa,dormiram assombrados. Issodizemfoi no Riachuelo,mas so desses embustes que se formam na Boca.

    Foi numa quadra inteira e em meu bairro: Palermo.(...)Uma tabacaria incensou como uma rosao deserto. A tarde mergulhava em ontens,os homens partilharam um passado ilusrio.S faltou uma coisa: a calada defronte.Parece-me histria este incio de Buenos Aires:julgo-a to eterna como a gua e o ar.(BORGES,1999, p.81).

    Na verdade, um poema comoFundao mtica de Buenos Airestem como princpio

    esttico a quebra da positividade e a criao de um mundo que somente pode ser realenquanto potico, isto , quando consegue instaurar a sua prpria ordenao de tempo e

    espao. Como o rio Sena, de Julio Cortzar, que podia simultaneamente ser o rio Prata

    porque ambos so rios metafsicos (Jogo da amarelinha), Borges no distingue entre

    fragmentos prosaicos e fragmentos da fantasia, tudo pode ser reunido no corpo total do

    poema. O que dizer, ento, de uma literatura cujas metforas no sugerem espanto, mas so

    apresentadas como dados naturais da realidade? Sob a perspectiva desse mundo, todas as

    coisas oferecem possibilidade de transparncia e representao; a linguagem no bloqueia o

    acesso realidade.

    Em Borges tudo se assemelha a um uso transcendental do tempo. Ao escrever

    Fundao mtica de Buenos Airesestava ainda escrevendo sobre a Buenos Aires presente.

    Passado e presente no se opem, antes mesclam-se e convivem por meio dos signos do

    cotidiano e da memria ou da imaginao. Tambm nesse sentido os obstculos que

    bloqueiam o acesso realidade se dissolvem; a mudana no tempo no contraria a

    representao. O presente ampliado, de modo a conter as outras dimenses do tempo,

    numa experincia de simultaneidade. Sem dvida, todas essas caractersticas da literaturade Borges so especialmente interessantes diante do atual debate de ideias em torno da

    nossa capacidade de lidar com a vertiginosa transformao da realidade em que vivemos,

    enfim, sobre a necessidade de encontrar novas formas de experimentao dos fenmenos

    no tempo e no espao. Trata-se da busca por alternativas que, diante do impacto sobre

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    10/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    nossos sentidos (provocado pela dissoluo acelerada dos limites habituais dessas

    categorias), ocupem o vazio deixado pelo clssico modelo histrico-filosfico. Desse

    modo, insinua-se, a partir das tantas suspeitas lanadas contra as filosofias da histria, uma

    compreenso no-sistemtica dos acontecimentos no tempo, algo capaz de romper com as

    vrias camadas de interpretaes teleolgicas sedimentadas ao longo da trajetria do

    pensamento ocidental.

    Neste passo, a obra de arte literria tem o poder de atenuar a vigilncia da razo

    reflexiva, franqueando assim a imerso nos efeitos maravilhososdo mito (ainda que tudo se

    passe como um recorte temporrio na realidade cotidiana, tal como Huizinga nos ensina

    sobre a arte do jogo).3

    A literatura fragmentada de Borges revela uma aplicao amplamente subjetiva do

    tempo, uma fuga das estruturas temporais rgidas e o consequente recurso de umaciclicidade mtica. Flexibilidade que no exclui a possibilidade de representao e que, por

    outro lado, recusa-se a lidar com um conceito rgido de ser. No reivindica um fundamento

    nos moldes da filosofia racionalista, uma ontologia violenta. Sabemos do grande interesse

    de Borges pelos filsofos pr-socrticos, sobretudo Herclito. Mas como pensar numa

    ontologia que no seja dogmtica? Ou ainda: como continuar a operar com o conceito de

    ser na recusa de estruturas estveis?

    muito comum aos escritores do realismo mgico, na Amrica Latina, a tendncia

    inveno sobre a descoberta. O problema da representao vai se identificar com a

    procura de um passado que possa respaldar o presente como a continuidade onrica de uma

    longa aventura. Assim, por exemplo, no relato de Pedro Pramo, de Juan Rulfo, na busca

    da sua origem, dos seus antepassados, da sua afirmao humana ou com o personagem

    Riobaldo, em Grande Serto: Veredas, de Guimares Rosa, que tambm empreende a

    descoberta da sua origem pela inveno. Para a mentalidade europeia culta, formada no

    cartesianismo, nas Luzes, a intromisso do sobrenatural na realidade cotidiana sempre

    3Isso no significa que mito e filosofia no apresentem laos estreitos. Ernst Cassirer recua com a hiptese deum vnculo entre ambas at o momento da ilustraogrega, sculo V a.C, e comenta que tambm para Platoo mito contm um determinado contedo conceitual: pois a nica linguagem conceitual na qual podeexpressar-se o mundo do devir. E na filosofia moderna ainda segundo Cassirerimpe-se cada vez maisdefinidamente a volta ao subjetivo. O mito se converte em problema para a filosofia, na medida em que elemanifesta uma direo originria do esprito, um modo independente de configurao da conscincia. Se oque se quer obter um sistema compreensivo do esprito, a reflexo tem que retroceder necessariamente at omito. (CASSIRER, 1972, p.19).

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    11/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    algo que deve permanecer na sua esfera da excentricidade. O nome para isso o absurdo,

    como os relatos de Kafka. Na Amrica Latina, na sua lendria formao colonial, indgena,

    os elementos fantsticos formam parte da realidade pedestre como no caso daquela histria

    do general que fez o pomposo funeral do seu brao, perdido em batalha, diante da tropa

    perfilada; ou a anedota que Borges narra do artista ambulante que cobrava ingresso, no

    interior da Argentina, para que as pessoas pudessem ver e reverenciar sua bonequinha loira

    (Evita Pern) no seu pequeno atade.

    Borges, como a maioria dos escritores inscritos sob a rubrica do realismo mgico,

    convive com o inslito inserido num plano de habitualidade, de naturalidade. Em termos de

    representao, no h limites que demarquem uma clara zona de separao entre a realidade

    objetiva e as fabulaes do imaginrio, sobretudo do imaginrio coletivo. A realidade pode

    ser to mitolgica (outros a pretendiam mtica, e assim ficou no famoso poema de Borgessobre a fundao de Buenos Aires), quanto o mito pode ser naturalmente real. Como

    escreveu Foucault no prefcio de As palavras e as coisas, isto importa numa certa

    inquietao do nosso esprito, da a sua confisso de que o seu livro "nasceu de um texto de

    Jorge Luis Borges", que "abala toda as superfcies ordenadas (FOUCAULT, 1999, p.3).

    A sequncia de imagens ou cones da sua fico nada mais que a reduo

    sistemtica ideia dominante da metfora do mundo visto a partir da sua incrvel unidade,

    quando todas as diferenas se anulam e as identidades se dissolvem. Mas uma unidade

    conquistada pela unio de contrrios como na formulao de Herclito sobre o ser, ou seja,

    numa via ontolgica mais remota, anterior ao modelo socrtico-platnico, capaz de afirm-

    la sem negao do devir e da diversidade, enfim, sem negao da plasticidade da poesia

    como fundo criador originrio. Assim podemos compreender Borges na sua suspeita

    irnica de que talvez a histria universal seja a histria de algumas metforas (BORGES,

    1974, p.14). Grande parte do fascnio provocado pela literatura de Borges advm do modo

    como nos transporta para dentro do universo mtico, ou ainda, do modo como nos conduz a

    considerar a prpria existncia sob a hiptese da nossa infinita capacidade fabuladora.

    Nesse ponto, o mito assumido pelos escritores da moderna fico latino-americana em

    termos de liberdade de conscincia, de interpretao criativa e liberadora de seu prprio

    passado. a oportunidade para o necessrio ajuste de contas com um passado que lhe foi

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    12/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    imposto como um fardo. Nietzsche foi quem at hoje melhor exps a importncia da

    cultura vivenciadaem suas formas mticas:

    Sem o mito, porm, toda cultura perde sua fora natural sadia e criadora:s um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo ummovimento cultural. Todas as foras da fantasia e do sonho apolneo sosalvas de seu vaguear ao lu somente pelo mito. As imagens do mito tmque ser os onipresentes e desapercebidos guardies demonacos, sob cujacustdia cresce a alma jovem e com cujos signos o homem d a si mesmouma interpretao de sua vida e de suas lutas: e nem sequer o Estadoconhece uma lei no escrita mais poderosa do que o fundamento mtico,que lhe garante a conexo com a religio, o seu crescer a partir derepresentaes mticas. (NIETZSCHE, 1992, p.135).

    A partir da considerao do sonho e da aventura na formao do imaginrio latino-

    americano, logo de sua vocao para o mito, podemos ampliar a epicidade contida na

    frmula de Lukcs sobre o heri romanesco, como aquele que busca o seu destino, para a

    viso do prprio povo como heri do romance-mito do continente.

    bem verdade que no raras vezes a imagem mais presente no uso que os escritores

    aqui fazem do recurso do mito o labirinto, pois tal busca do destino circular; a linha reta

    cartesiana um impossvel fio de Ariadne. Assim, passamos de Rulfo para Borges e deste

    para Julio Cortzar com a sensao de que habitamos espaos distintos de um mesmo

    labirinto.

    Temos a princpio um provvel oxmoro: a compreenso do labirinto como imagemda liberdade na literatura latino-americana. necessrio, portanto, chamar a ateno para

    duas linhas de raciocnio anteriormente apresentadas. A primeira diz respeito noo de

    jogo como constitutiva da literatura. E o labirinto de que tratamos um labirinto de

    palavras, cuja construo de maior ludicidade nos fornecida pelo romance Jogo da

    amarelinha, de Cortzar. O segundo ponto a desconfiana diante dos excessos da razo

    ocidental, tema que apresentamos com os labirintos de Borges.

    O fato de podermos elencar vrios outros ficcionistas latino-americanos entre os

    construtores de labirintos indicao clara da existncia de um contexto coerente de ideias,

    ou seja, todos recorrem ao residual enigmtico do mito como uma realidade que precisa ser

    decifrada, desocultada, embora talvez no necessariamente pela orgulhosa objetividade do

    sujeito solar cartesiano. Da a constante aluso ao universo mgico das tradies que se

    encontram na formao dos povos da Amrica Latina. Vale lembrar a irreverncia de Mrio

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    13/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    de Andrade, em Macunama, com a irrupo de traos de nossa herana cultural mais

    genuna, em carter revisionista do nacionalismo praticado at ento.

    O tratamento dado ao mito pela literatura moderna procurar assegurar a sua

    qualidade, latncia mesmo, de linguagem criadorade mundos.

    O escritor cubano Alejo Carpentier tem uma obra literria marcada pelo seu aspecto

    combativo, desde jovem expulso de Cuba pelo ditador Gerardo Machado. Conhecedor tanto

    da cultura americana quanto da europeia, filho de pai francs e me russa. Sem dvida esse

    impacto de duas culturas distintas configurou uma viso crtica muito particular, flagrante

    em alguns momentos de sua obra. O crescimento da mentalidade latino-americana a partir

    da insistente importao de ideias da Europa um tema recorrente para Carpentier. Basta

    pensarmos no seu romance histrico O sculo das luzes. At que ponto a Amrica depende

    da cultura europeia como uma eterna referncia? No seria essa prpria dependncia umaconstruo datada e artificial? Essas so algumas das questes suscitadas por Carpentier em

    dois textos com forte teor poltico: Literatura e conscincia poltica na Amrica Latina e

    Conscincia e Identidade da Amrica(CARPENTIER, 1987). Juntos, formam uma unidade

    dialtica e definem algo que mais se parece com um esboo de programa revolucionrio,

    pois, ao julgar pelas ideias de Carpentier, seria justamente por meio da conscincia e

    afirmao do Ser que se pode alcanar a emancipao poltica, a soberania de um povo.

    interessante notar como, na viso do combativo autor cubano, a revoluo um

    operador conceitual para a prtica, logo para a ruptura com as excessivas mitificaes em

    torno da hispanidade. Assim, na recusa dessa tendncia a mitificar por sua vez

    extremamente fecunda e recomendvel no potico surge a unidade da Amrica na

    figura de um destino revolucionrio (CARPENTIER, 1987, p.33). Quer seja na fico, quer

    seja na histria, a narrativa simblica se faz valer na qualidade das existncias desde

    sempre imantadas.

    Trata-se de um projeto de Ser, cuja identidade contrastiva mergulha na

    profundidade do tempo para recuperar a sua originalidade; guarda distncia do outro

    (colonizador / imperialista) a fim de conquistar a sua autonomia. Imagina Carpentier uma

    comunidade que une os latino-americanos pelas duas extremidades do arco de tempo,

    fazendo tocar-se o mais arcaico com o mais moderno. Da o seu apego ao barroco e ao

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    14/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    fantstico como linguagens capazes de restaurar ou atualizar o disperso sentido de

    comunidade.

    curioso como no mesmo texto em que tece elogios Revoluo Cubana,

    Carpentier assinala que o Barroco encontrou na Amrica a sua melhor definio

    (CARPENTIER, 1987, p.37). Com isso reconhece a fora de uma linguagem que expe as

    contradies e fraturas da identidade, arriscando a tradio clssica de um mundo ordenado

    pelo predomnio da razo. Compreendemos, assim, a afinidade entre barroco e fantstico na

    sua obra na chave de uma deliberada figurao da histria. Na verdade, o realismo mgico

    uma nova verso de barroco, quer pela mstica, quer pelo reconhecimento dos conflitos,

    da permanente tenso. Tudo ambivalente. A herana espanhola de Caldern, Garcilaso de

    la Vega e Quevedo fortssima fora do Brasil, no restante do continente.

    Jorge Lus Borges, numa conferncia, diz que ningum capaz de sentir-se umlatino-americano, mas sim um mexicano, um argentino etc. (BORGES, 1994, p.238).

    Carpentier, por seu lado, argumenta que a conscincia nacional parte ativa e necessria da

    conscincia latino-americana e revela com clareza os equvocos de uma legitimao da

    hispanidade.4

    Para o autor de O sculo das luzes, os intelectuais do incio do sculo XIX

    comungavam uma unidade de princpios essenciais. Contudo, um sculo depois, ocorria

    uma dissoluo desse esprito e da homogeneidade de nossa conscincia poltica que cedeu,

    afinal, apatia; quadro que no decorrer do nosso sculo teria por fora que reverter e

    restaurar aquela comunho de princpios que dava ao intelectual latino-americano uma

    espcie de conscincia coletiva.

    Ao propsito que discutimos aqui em torno de uma unidade simblica ou mesmo

    originria, mtica, importa ressaltar que muitas vezes foi vista a Amrica Latinado modo

    que queria Jos Ortega y Gasset como um projeto de Ser. A precariedade ontolgica da

    nossa existncia no se deveria, apenas, indefinio de propsitos ou mestiagem (como

    acusavam os racialistas), mas a uma inapetncia poltica e portanto pela afetao de uma

    4Lemos emLiteratura e Conscincia Poltica na Amrica Latina: Arduamente trabalham os defensores dahispanidade - e talvez onde menos trabalhem numa Madri que deixou, j faz tempo, de confiar em simesma. na Amrica Latina onde mais se apressam alguns em demolir a lenda negra da conquista (...) einvocando-se, s vezes, a generosidade de Mart com relao Espanha - procede-se a um revisionismohistrico com ares de malinchismo. (CARPENTIER; p.24; 1987).

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    15/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    espcie m conscincia, para usarmos aqui uma expresso cara aos prprios existencialistas

    contemporneos do filsofo espanhol Ortega y Gasset.

    Nesse sentido, cabe assimilar a imagem de Carpentier na qualidade de um escritor

    de altos compromissos histricos, quer pela mensagem de sua obra de romancista, quer

    pelo exemplo de sua vida de revolucionrio. O escritor no se atm apenas ao destino de

    Cuba, sua terra natal, mas procura integrar toda a Amrica Latina dentro da mesma luta

    poltica e existencial. Descreve o fenmeno da ascenso urbana e argumenta sobre a

    possibilidade de destruir a comunidade solidria dos homens no avano capitalista; mostra

    como certos valores histricos e at mesmo ingnuos ou rudimentares devem ser

    preservados para manter viva a identidade nacional. Revela que o destino das nossas naes

    deve se fundamentar no esprito do humanismo.5

    Alejo Carpentier defende um mergulho no cotidiano e na vivncia da AmricaLatina no seu imaginrio, nos seus temperamentos e nos seus vcios. Faz-se necessria uma

    profunda compreenso cultural, algo que o tcnico ou burocrata de gabinete jamais poder

    atingir. Tampouco o far aquele lder populista, camalenico, de gestos paternalistas, com

    um olhar compreensivo que passeia por todas as classes. Ele nos fala de outro gnero de

    compreenso.

    O elemento decisivo nos dois textos de Carpentier a sua crena no utpica na

    Amrica Latina como unidade revolucionria, isto , como conscincia poltica unitria.

    Para muitos, a viso de uma Amrica Latina unida pela conscincia comum mera utopia

    ou um investimento de carter mtico. Porm Carpentier alinha a favor dos seus princpios

    no s a saga da colonizao e do destino histrico comum, mas tambm o

    desenvolvimento social e econmico do continente. Ao relembrar Jos Mart, indica que

    no a burguesia e os pequenos nacionalismos que levaro os povos emancipao, mas

    sim os revolucionrios como se fez em Cuba.

    Para um escritor cuja obra tem uma viso histrica humanista, Carpentier no perde

    de vista, tambm, os dados de uma realidade que a todo custo necessrio modificar;

    5Tanto isso relevante que, emLiteratura e conscincia poltica, Carpentier define com nfase uma unio daintelectualidade com a poltica: Todos eram homens polticos. E bastaria que um deles tivesse tido umafraqueza no plano poltico, tivesse tido uma dvida, uma hesitao quanto ao discernimento maniquesta do

    bem e do mal - da barbrie e da civilizao, do progresso e da reao - para que seus semelhantes lhevoltassem as costas, depois de o terem condenado. E mais adiante afirma que no em vagas teorias degabinete, de reunies de caf, de colquios eruditos que se encontram as solues dos problemas(CARPENTIER, 1987, p.25-26).

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    16/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    quando combate a apatia do intelectual e clama por uma conscincia poltica ativa, ele d o

    exemplo de sua prpria vida e de muitos dos seus contemporneos. Indica os homens que

    no passado mantinham uma conscincia poltica avanada, revolucionria. Na sua prpria

    obra de ficcionista, Carpentier trata de desmistificar o mito da empresa crist e civilizatria,

    o mito da conquista e da hispanidade. No poderia surgir dessa narrativa de origem a fora

    de autenticidade necessria para a conscincia libertria do continente. Escritor de estilo

    barroco, por meio do espanto e do fantstico que ele descreve a realidade histrica.6

    Carpentier aponta para a necessidade do homem latino-americano olhar para a sua

    prpria histria, no com ideias importadas, mas com desejo de reconhecimento de uma

    identidade prpria, cuja histria precisa ser narrada. Eis aqui o eco de um Jos Mart. Desde

    sempre olhos estrangeiros marcaram as fronteiras da diferena, do exotismo. Mas a

    iniciativa para uma autenticidade de nossa cultura precisaria partir sobretudo da prpriaAmrica Latina, no que isso implique num entusiasmo afetado acerca de nossas

    potencialidades, numa supervalorizao de nossa cultura frente ao outro. A inveno de

    nossa identidade (na gerao de Carpentier ainda se diria com facilidade a descoberta) deve

    preservar a legtima tendncia que acompanha subterraneamente todo esse processo, isto ,

    o desejo de comunicar-se, de vivenciar, de conhecer a histria.

    O que est em jogo hoje a prpria identidade como lugar de convergncia de

    valores polticos, ou seja, o sujeito moderno fragmenta-se e no alcana um centro

    necessrio para suporte de suas ideias. Segundo Stuart Hall:

    O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada eestvel, est se tornando fragmentado; composto no de uma nica, masde vrias identidades, algumas vezes contraditrias ou no-resolvidas.Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagenssociais l fora e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com asnecessidades objetivas da cultura, esto entrando em colapso, comoresultado de mudanas estruturais e institucionais. O prprio projeto deidentificao, atravs do qual nos projetamos em nossas identidades

    6Nos dois textos - que so conferncias pblicas - Carpentier revela um esprito agudo e prtico, que no sedeixa iludir pelos sofismas da modernidade. Prefigurando a nossa realidade como um grande teatro, o autorcubano indaga qual ser o nosso papel como ator e a nossa atitude como espectador. E mais: o que ser alirepresentado? interessante notar a recorrncia dessa viso da literatura como um gesto libertrio nosescritores do realismo mgico na Amrica Latina, salvo excees marcantes como Borges, claro. O apelo identidade e a uma clara conscincia aparece como decisivo, pois sem o conhecimento de si mesmo nohaveria libertao. A obra de Carpentier representa a compreenso de que esse princpio filosfico o

    primeiro passo da revoluo e de toda ao tica do homem.

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    17/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    culturais, tornou-se mais provisrio, varivel e problemtico. (HALL,2001, p.12).

    Talvez o grande desafio da literatura latino-americana hoje seja justamente construir

    um novo tipo de subjetivao a partir desse espao simblico partido. Afinal, uma vez

    amortecido o nacionalismo como fora de comunho e apagamento das diferenas, que

    narrativa poderia assegurar o sentido de continuidade, de mito fundacional e destino

    comum? Se o discurso da cultura nacional caracteristicamente moderno, girando em torno

    de um elemento de pureza primordial, de marca nica, percebemos a atual produo

    literria liberando-se dessas teias identitrias.

    Nestr Garca Canclini props recentemente o exame do fenmeno de hibridao

    na Amrica Latina.7O crtico de cultura argentino analisa, a partir do debate ps-moderno,

    as utopias e os impasses da modernidade. Nesse enfoque, a to perseguida fuso entrecultura popular e cultura erudita, entre tradio e modernidade que revisitamos aqui no

    tratamento dispensado ao mito pelos ficcionistas latino-americanos j no corresponde

    mais ao mesmo desejo de emancipao. Para alm das questes estticas, a dramatizao

    dos mitos de origem respondia desterritorializao cultural da modernidade. Ocorre,

    portanto, um questionamento da prpria topografia que examinamos: centro e periferia,

    heterogeneidade e homogeneidade. Entra em crise a ideia de totalidade.8

    Referencias Bibliogrficas

    BARONE, Olrlando.(org) Borges / Sabato: dilogos. So Paulo: Globo, 2005.

    BORGES, Jorge Luis.Obras completas. Buenos Aires: Emec, 1994.

    ________. Obras completas, vol. 1, So Paulo, Globo, 1999.

    ________. La Esfera de Pascal. In: Obras completas. Buenos Aires: Emec, 1974.

    7Entendo por hibridao processos socioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existiam deforma separada, se combinaram para gerar novas estruturas, objetos e prticas. Cabe esclarecer que asestruturas chamadas discretas foram resultado de hibridaes, razo pela qual no podem ser consideradasfontes puras. (CANCLINI, 2008, p.19).8A sociabilidade hbrida que as cidades contemporneas induzem nos leva a participar de forma intermitentede grupos cultos e populares, tradicionais e modernos. A afirmao do regional ou do nacional no temsentido nem eficcia como condenao geral do exgeno: deve ser concebida agora como a capacidade deinteragir com as mltiplas ofertas simblicas internacionais a partir de posies prprias. (CANCLINI, 2008,

    p.354).

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    18/19

    SRGIO CMARA

    Tempos Histricos Volume 17 1 Semestre de 2013 p. 185 - 203

    CANCLINI, Nstor Garca. Culturas hbridas. Estratgias para entrar e sair damodernidade. So Paulo: EDUSP, 2008.

    CARPENTIER, Alejo. Cuentos completos. Barcelona: Bruguera, 1979.

    ____________. Os passos perdidos. So Paulo: Brasiliense, 1985.

    ____________. O reino deste mundo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1985.

    ____________. O sculo das luzes. Rio de Janeiro: Labor, 1976.

    ____________. Concerto barroco. So Paulo: Brasiliense, 1985.

    ____________. Literatura e Conscincia Poltica na Amrica Latina e Conscincia eIdentidade da Amrica. In: Literatura do Maravilhoso. So Paulo: Editora Revista dostribunais, 1987.

    CASSIRER, Ernst. El pensamiento mtico. In: Filosofia de las formas simblicas, vol.II, Mxico: F.C.E., 1972.

    CORTZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1972.

    ___________. Valise de Cronpio. So Paulo: Perspectiva, 1974.

    FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das cincias humanas.So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    FRYE, Northrop. Anatomia da crtica. So Paulo: Cultrix, 1973.

    FUENTES, Carlos. La nueva novela hispanoamericana. Mxico: Editorial JoaqunMortiz, 1969.

    _________. Eu e os outros. In: Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&AEditora, 2001.

    HUIZINGA, Johan. Homo ludens. So Paulo: Perspectiva, 1971.

    JOSEF, Bella. O espao reconquistado. Petrpolis: Vozes, 1974.

    MAFFEI, Marcos. (org.). As histricas entrevistas da Paris Review. So Paulo:Companhia das Letras, 1989.

    MRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solido. Rio de Janeiro: Record, s/d.

  • 7/23/2019 O Recurso Do Mito Na Literatura Latino-Americana

    19/19

    O RECURSO DO MITO NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

    T Hi t i V l 17 1 S t d 2013 185 203

    __________. O outono do patriarca. Rio de Janeiro: Record, s/d.

    __________. Do amor e outros demnios. Rio de Janeiro: Record, 1994.

    MIELIETINSKI, E.M. A potica do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987.

    MORENO, Csar Fernndez (org). Amrica Latina em sua literatura. So Paulo:Perspectiva, 1979.

    NIETZSCHE, F. O nascimento da tragdia. So Paulo: Companhia das Letras, trad. J.Guinsburg, 1992.

    PAZ, Octavio. El babirinto de la soledad. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1964.

    PROPP, Vladimir. Las raices historicas del cuento. Madrid: Fundamentos, 1979.

    ______. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1984.

    ROSA, J. Guimares. Grande Serto: veredas. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1968.

    RULFO, Juan. El llano em llamas. Madrid: Catedra, 2006.

    _______. Pedro Pramo. So Paulo: Brasiliense, 1969.

    TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas.So Paulo: Perspectiva, 1970.

    _________. Introduo literatura fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975.