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O que vale uma esttua? Memria e descolonizac ̧o mental em Moc ̧ambique. Estive recentemente em Maputo (Moambique), no quadro de dois congressos, onde apresentei comunicaes: Congresso Internacional Cultura e Turismo: desenvolvimento nacional, promoo da paz e aproximao entre naes”, realizado na Universidade A Politcnica, nos dias 26 e 27 de novembro de 2018; e no XIII Congresso da Lusocom - Federao Lusfona de Cincias da Comunicao, na Universidade Eduardo Mondlane, nos dias 28 e 29 de novembro de 2018. Aproveitei para conhecer Maputo, deslocando-me na maior parte das vezes a p na tentativa de olhar para a forma como o Estado moambicano se relaciona com a memria, tendo por base o facto de eu integrar o projeto de investigao que decorre no quadro do CECS-Centro de Estudos de Comunicao e Sociedade da Universidade do Minho (em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane), intitulado Memories, cultures and identities: how the past weights on the present-day intercultural relations in Mozambique and Portugal?”, financiado pela FCT-Fundao para a Cincia e Tecnologia/Fundao Aga Khan. Ser que a mente est descolonizada em Moambique (Mbembe, 2017)? a pergunta que, com este ensaio, me proponho dar resposta. De Mouzinho de Albuquerque a Samora Machel Logo que cheguei a Maputo, decidi ir conhecer a capital de Moambique a p, percorrendo lugares que considerei chave para a minha anlise em torno da problemtica das memrias, culturas e identidades. Ou seja: de como o passado pesa, hoje, nas relaes interculturais em Moambique e em Portugal. Comecei, ento, pela fortaleza da cidade, onde me deparei com a esttua de Mouzinho de Albuquerque (Simes de Almeida, 1940), contextualizada por uma pequena nota.

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Page 1: O que vale uma estátua? Memória e descolonização mental em Moçambique.€¦ · tiveram lugar em Moçambique (Mecula, Quivambo, Nevala e Quionga), em que os guerreiros têm armas

O que vale uma estatua? Memoria e descolonizacao mental em Mocambique.

Estive recentemente em Maputo (Mocambique), no quadro de dois congressos, onde

apresentei comunicacoes: Congresso Internacional “Cultura e Turismo: desenvolvimento

nacional, promocao da paz e aproximacao entre nacoes”, realizado na Universidade A

Politecnica, nos dias 26 e 27 de novembro de 2018; e no XIII Congresso da Lusocom -

Federacao Lusofona de Ciencias da Comunicacao, na Universidade Eduardo Mondlane, nos

dias 28 e 29 de novembro de 2018. Aproveitei para conhecer Maputo, deslocando-me na maior

parte das vezes a pe na tentativa de olhar para a forma como o Estado mocambicano se

relaciona com a memoria, tendo por base o facto de eu integrar o projeto de investigacao que

decorre no quadro do CECS-Centro de Estudos de Comunicacao e Sociedade da Universidade

do Minho (em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane), intitulado “Memories, cultures

and identities: how the past weights on the present-day intercultural relations in Mozambique

and Portugal?”, financiado pela FCT-Fundacao para a Ciencia e Tecnologia/Fundacao

Aga Khan.

Sera que a mente esta descolonizada em Mocambique (Mbembe, 2017)? E a pergunta que,

com este ensaio, me proponho dar resposta.

De Mouzinho de Albuquerque a Samora Machel

Logo que cheguei a Maputo, decidi ir conhecer a capital de Mocambique a pe, percorrendo

lugares que considerei chave para a minha analise em torno da problematica das memorias,

culturas e identidades. Ou seja: de como o passado pesa, hoje, nas relacoes interculturais em

Mocambique e em Portugal. Comecei, entao, pela fortaleza da cidade, onde me deparei com a

estatua de Mouzinho de Albuquerque (Simoes de Almeida, 1940), contextualizada por uma

pequena nota.

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estátua de Mouzinho de Albuquerque

Montado num cavalo, numa escala para alem da realidade (4,90 metros de altura), Mouzinho

nao passa indiferente logo que se entra no espaco, que constitui um dos principais

monumentos historicos da cidade. Foi para la trasladado, depois de ter estado durante o

periodo colonial no mesmo local onde, agora, toca o ceu Samora Machel, num bronze

acastanhado ao estilo ‘querido lider’ sovietico.

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a praça Mouzinho de Albuquerque em Lourenço Marques, 1961 (sem autor)

A estrutura foi construida na Coreia do Norte e colocada no largo da Praca da Independencia,

onde Samora tomou posse como primeiro Presidente mocambicano e da inicio a avenida com

o seu nome, na capital mocambicana. Ja havia uma estatua em sua homenagem mas, em

2011, 25 anos apos a sua morte, o Governo de Mocambique decidiu sublinhar a importancia

que o ex-presidente tem para o pais enquanto referencia da nacao. A estatua tem 9 metros de

altura e 4,8 toneladas, e esta colocada numa base de betao de 2,7 metros, sendo uma das

maiores da Africa Austral.

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estátua de Samora Machel A praça é ainda

pontuada pela catedral, pelo edifício do município e pelo Jardim dos Casamentos, conhecido

oficialmente por Jardim Botanico Tunduro, que já sofreu várias evoluções desde que foi

inaugurado, em 1855. Na entrada do recinto, ergue-se um arco de alvenaria em estilo

manuelino construído para comemorar o quarto centenário da morte de Vasco da Gama

assinalado em 1924, data a partir da qual o jardim passou a ter o nome do navegador

português, como reza a contextualização num mupi adjacente ao espaço.

Num sabado de manha, ja a entrar pela tarde,

com um calor de 36 graus mas muito agradavel e respiravel (caracteristica de Maputo, ja que a

humidade, pelo que me disseram, nao interfere na normal oxigenacao, sendo quase todo o ano

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a temperatura amena), deparei-me com mais de uma dezena de casamentos no Jardim

Botanico Tunduro, em cortejos independentes, com as dancas dos corteses que os

acompanhavam e, ao som de batuque, que dava vontade/convidava a abanar o corpo ao ritmo

cadenciado que se podia ouvir. Seguiam todos em comitiva, vestidos a rigor, eles e elas,

evidenciando uma imensa alegria. E com o fotografo a acompanhar, armado com objetivas que

impressionavam, verdadeiras canhoeiras, a mostrar que a coisa era seria e muito profissional.

De facto, os casamentos populares em Mocambique constituem um ritual surpreendente, com

momentos insolitos e divertidos. Para se casarem, muitos casais esperam mesmo muitos anos

ate conseguirem juntar os meios necessarios para tal. Por vezes, o casamento ocorre ja numa

altura em que os noivos se fazem acompanhar dos filhos ou mesmo dos netos.

Independentemente das circunstancias em que ocorre, a cerimonia realiza-se sempre com uma

grande solenidade, sendo um acontecimento de grande importancia para a familia e para os

convidados. A fotografia continua a ser o grande testemunho do evento e um momento ao qual

e dada grande relevancia. Todas as poses tradicionais sao preparadas com cuidado e ninguem

deve ficar fora do retrato1. Fotos e mais fotos foram tiradas no Jardim Botanico, espaco que

deixei, a pe, dirigindo-me para a baixa, em direcao a Fortaleza de Maputo. Nas imediacoes do

Jardim, podiam-se vislumbrar varios chapas (transporte semicolectivo mais em conta do que o

transporte publico oficial) e veiculos 4X4 de caixa aberta repletos de gente, vestida a rigor, ou

chegando para o desfile, ou partindo para a boda, ou para sessoes fotograficas, num colorido

imponente e com recortes totalmente informais, apesar das indumentarias indiciarem o

contrario. Os txopelas (denominados em Portugal de Tuk-Tuk), apesar de por la pairarem, nao

eram muito utilizados, ja que so levam duas pessoas de cada vez, o que nao dava nem para

as encomendas.

Preservar os vestigios coloniais

Chegado a fortaleza, deparei-me com a estatua de Mouzinho de Albuquerque, colocada no

interior do recinto, ao fundo, em frente a unica entrada, e que pontua todo o espaco. Ela estava

edificada inicialmente na Praca com o nome do militar portugues, que foi Comissario Regio de

Mocambique entre 1896 e 18982.

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fotografia de Ricardo Rangel

O monumento foi retirado do local no primeiro semestre de 19753, na sequencia da

independencia de Mocambique. Nao sei desde quando se encontra no forte de Maputo, para

onde foi trasladado mas, pelo que vi ainda hoje e muito popular, ja que serve de cenario para

as fotografias de casamentos.

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O mesmo aconteceu com duas madrinhas de guerra com quem me cruzara minutos antes na

exposicao fotografica dedicada exatamente a elas e intitulada Madrinhas e guerra, da autoria

de Amilton Neves, numa mostra que constitui um projeto que conta a historia das

mulheres mocambicanas que participaram no Movimento Nacional Feminino (MNF) entre 1961

e 1974. Estas mulheres foram financiadas pelo Governo portugues para fornecer apoio moral

aos soldados que lutavam nas linhas da frente durante a guerra colonial/Independencia de

Mocambique. Muitas delas foram recompensadas com posicoes influentes na sociedade e nas

classes mais altas e algumas receberam mesmo casas do Governo portugues. Em 1974,

quando a guerra da terminou, o MNF tambem deixou de existir. Assim, estas mulheres foram

condenadas ao ostracismo da sociedade pelo seu papel no apoio as forcas

coloniais portuguesas.

O projeto Madrinhas de Guerra reflete esse periodo da historia de Mocambique, visitando as

casas das Madrinhas de Guerra que ainda hoje vivem em Maputo e personificam o passado

durante o apoio do governo portugues e a subsequente marginalizacao sentida apos a

independencia. As duas madrinhas de guerra com quem me cruzei pediram-me que lhes

tirasse uma foto com a estatua do Mouzinho de Albuquerque a servir de fundo, representando

o homem que levou Ngungunhane como trofeu para Portugal, ele que esta, de resto, sepultado

na fortaleza, depois de os seus restos mortais terem sido transladados da Ilha Terceira

(Acores), em 1985.

No intervalo de um congresso em que participei, durante uma pausa para almoco, mostrei a

fotografia de Mouzinho a servir de cenario aos noivos recem-casados a quem me

acompanhava na mesa: a cantora Elvira Viegas, um elemento ligado ao teatro e um

responsavel governamental pelo patrimonio/estatuaria. A cantora foi pronta na reacao: Isso so

mostra que temos a mente descolonizada! Os outros dois elementos anuiram. O responsavel

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governamental aproveitou para discorrer sobre a politica do executivo em relacao a estatuaria,

contando-me que, depois da independencia, a ordem era para destruir todos os vestigios da

colonizacao. Depois, houve uma fase em que foi determinada a sua conservacao, para

preservar a memoria e lembrar como tinha sido a vida de Mocambique durante o periodo

colonial. Disse-me mesmo que foram recuperadas algumas estatuas que tinham entretanto

sido danificadas, muito embora nao tivesse referido quais, nem eu as tivesse vislumbrado.

A Fortaleza de Maputo esta, assim,

descolonizada, seguindo as determinacoes superiores. De resto, os monumentos sao tutelados

pela Universidade Eduardo Mondlane (o mesmo acontece com o Museu de Historia Natural e

com o Museu Nacional de Arte), podendo vislumbrar-se varios vestigios da luta contra o

colonizador portugues.

Algo parecido com o que acontece em Lisboa em relacao ao edificio do Padrao dos

Descobrimentos, que foi construido para a Exposicao do Mundo Portugues de 1940, ao servico

da propaganda do Estado Novo e, hoje, acolhe, por exemplo, exposicoes sobre racismo.

Mas tudo isto constitui um processo, nao se pense que a descolonizacao mental tem facilidade

em ver-se livre do lusotropicalismo. Sobre Mouzinho de Albuquerque, por exemplo, o atual

Presidente da Republica portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, no seu discurso de tomada de

posse4, sem nunca falar nele, elevou-o a heroi nacional, revelando o seu framework ideologico,

mesmo diante do representante mocambicano… – Escreveu um Heroi Portugues do Sec. XIX

que ‘este Reino e obra de soldados’. Assim foi, na verdade, desde a fundacao de Portugal,

atestada em Zamora e reconhecida urbi et orbi pela Bula ‘Manifestis Probatum est’.

Mas nao se pense que as fotografias dos casamentos se ficam por aqui. A estacao de

caminhos- de-ferro de Maputo, localizada na Praca dos Trabalhadores, tambem serve de

cenario aos enlaces, nomeadamente as locomotivas que la estao, que foram recuperadas e

integradas na musealizacao operada no espaco, que foi inaugurado em junho de 2015.

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.

A estacao de caminho-de-ferro e considerada como uma das mais belas do mundo, erguendo-

se num edificio de 19105. Na mesma praca, ha um monumento de pedra que homenageia os

combatentes africanos e europeus da primeira guerra mundial (1914/1918).

E da autoria do escultor Ruy Roque Gameiro

em colaboracao com o arquiteto Veloso Reis e foi inaugurado em 1935 e representa uma

mulher de cabeca com uma cobra aos seus pes, tendo na base referencias a batalhas que

tiveram lugar em Mocambique (Mecula, Quivambo, Nevala e Quionga), em que os guerreiros

tem armas nas maos e os simbolos da bandeira portuguesa. No entanto, a lenda local conta

outra historia, a da senhora da cobra, como me confidenciou o taxista Neves (que me

transportou algumas vezes e que e um homem com uma consciencia politica acima da media),

que sublinhou tratar-se da unica estatua do regime colonial que esta de pe.

A historia e esta: Havia na regiao uma cobra em cima de uma arvore que atacava quem por ali

passasse. No caminho entre a casa e o rio mulheres e criancas eram atacadas pela cobra e

morriam. Ate que uma mulher decidiu por um fim a situacao, cozinhando uma papa e

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colocando o seu caldeirao na cabeca, equilibrando-o numa capulana. Com a papa ainda

quente, pos-se a andar em direcao a arvore onde se escondia a cobra. A cobra ao atacar a

mulher entrou no caldeirao da papa, morrendo. A mulher regressou a sua comunidade certa da

sua vitoria e todos celebraram a sua coragem. A estatua, cuja envolvente esta em pessimo

estado de conservacao faz, por isso, parte do imaginario dos mocambicanos, que valorizam

mais a homenagem a mulher salvadora do que os que morreram na Primeira Guerra Mundial.

fotografia de Paulo Pires TeixeiraDe referir, por

ultimo, a escultura de Salazar que esta virada para uma parede da Biblioteca Nacional de

Mocambique, que antes era a antiga Biblioteca Municipal, em frente ao Hotel Tivoli, na baixa de

Maputo e, antes da independencia de Mocambique, ocupava um lugar de destaque na cidade

de Maputo. E como se os mocambicanos pusessem o ex-ditador portugues de castigo, numa

atitude que configura um humor refinado e que tem sido divulgada nos media e nas redes

sociais. Ao contrario da estatua de Mouzinho de Albuquerque, nao foi trasladada para a

Fortaleza de Maputo. A escultura de bronze, de grandes dimensoes, da autoria de Leopoldo de

Almeida, mostra Salazar de toga e de olhar frontal mas enfrenta, ha varios anos, a parede do

edificio da Biblioteca Nacional, na Avenida 25 de Setembro.

Joaquim Chissano, ex-chefe de Estado de Mocambique, explica que o facto de a estatua do

ex- ditador portugues estar de castigo nao foi por acaso que aconteceu. Pretende-se, segundo

o mesmo responsavel, salientar que a historia nao deve ser esquecida: “Existiu Salazar, sim

senhor. Ele ate fez algumas coisas boas e preciso lembrar - mas ele estando de cara para a

frente ou virada para parede para nos e igual porque nos lembramo-nos de tudo o que ele fez

de mal, sobretudo ao nosso pais, mas tambem em relacao ao povo portugues”. Joaquim

Chissano acrescentou que o passado recente de Portugal e das antigas colonias, os

movimentos de libertacao e a luta armada devem continuar a ser estudados e investigados

pelos historiadores, assim como devem ser registados os relatos dos simples soldados

portugueses que participaram no conflito que se prolongou entre 1961 e 19746.

A memoria, a historia e a descolonizacao mental

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A memoria transformou-se do ponto de vista cultural e politico num terreno fertil onde se trava

um combate duro pela construcao de uma narrativa hegemonica, com cada uma das facoes

intervenientes a reivindicar a sua propria verdade. Ainda se olha para a historia como se ela

fosse construida entre bons e maus e ela e muito mais complexa do que isso. Para Diogo

Ramada Curto (2018), trata-se de um desvio de uma questao que e urgente colocar e que se

prende com a situacao da pesquisa historica, nos dias de hoje, permitindo a libertacao do

passado atraves do cruzamento com as ciencias sociais e estribada em fontes, desenvolvendo

uma pratica analitica que impeca uma pratica moralista; que impeca tambem o presentismo e

possibilite compreender melhor quais as grandes estruturas que, com a forca da inercia, se

continuam a impor no presente, dificultando a modernizacao de sociedades como a

portuguesa. Antonio Hespanha (2018) diz existir um recorte totalitario nessa discussao que

desqualifica quem a segue, mais nao sendo do que uma historia de Portugal da ‘portugalidade’,

assente numa interculturalidade invertida (Stoer & Cortesao, 1999).

Moises de Lemos Martins (2018) considera que a expansao maritima europeia dos seculos XV

e XVI foi um processo que se abriu a alteridade, a diversidade e ao conhecimento do outro,

mas que fracassou ao assimilar e destruir toda a diferenca, produzindo o colonialismo. E nesse

sentido que deixar de considerar as diferencas entre historias coloniais e processos de

colonizacao pode levar a impor sobre um povo a narrativa pos-colonial de um outro tornando

assim esse povo ainda mais invisivel, como assinala Ana Paula Ferreira (2007). O que significa

que o colonialismo, quando menos se espera, pode estar a falar em nome de um pos-

colonialismo critico, descentrado e nao-hegemonico, numa apropriacao de uma metalinguagem

critica e historicamente descontextualizada, mesmo quando feita com a melhor das intencoes,

que acarreta riscos teoricos consideraveis, nomeadamente o de voluntariamente perpetuar a

um outro nivel a relacao colonial que se pretende abolir (Pereira, 2017). Como refere Jose

Neves (2016), o conhecimento historico depende tanto de elementos empiricos de um dado

passado como da utilizacao de novas ferramentas teorico-conceptuais que se apurem no

presente, sendo que, em historia, nenhum assunto pode ser dado por encerrado. Sao bem

observaveis, por exemplo, as consequencias das praticas desenvolvidas no seculo XX relativas

a todos os tipos de particularismo, em que a exclusao do outro tem moldado uma historia

catastrofica que hoje se enfrenta (Lorenz, 2010). E, tendo por base a ideia de que a segunda

metade do seculo XX viu algum movimento no sentido pos-nacionalista, a globalizacao

questiona o sentido das narrativas puramente nacionais, muito embora os mesmos processos

tambem causem uma reacao defensiva para muitas pessoas que se apegam as ‘suas’

narrativas nacionais, na esperanca de combaterem os efeitos de tais tendencias (Berger,

2006). A historiografia e global, sendo necessario algum tipo de arcaboico teorico que

identifique os principais conceitos, temas e termos que podem ser encontrados em varias

historiografias (Woolf, 2006). O caminho para uma historica critica e inclusiva nao passara pelo

apagamento ou negacao de partes da historia, menos ainda pela substituicao de uns rotulos

por outros (Cunha, 2018). Marc Ferro (2009), refere-se a existencia de uma reciprocidade dos

ressentimentos, observando que o ressentimento nao e apanagio, apenas, daqueles que no

inicio eram identificados como vitimas (escravos, classes oprimidas, povos vencidos, etc.). A

investigacao descobre que, simultanea ou alternadamente, o ressentimento pode afetar, inibir

nao apenas uma das partes em causa, mas as duas. O caso da reacao que se segue a uma

revolucao e obvio, mas os percursos deste tipo sao multiplos e variados.

Nesta crise de paradigmas, o plano identitario integra um processo mais amplo de mudanca

que, segundo Stuart Hall (1992), abala os quadros de referencia que antes pareciam dar aos

individuos uma certa estabilidade. Hommi Bhabha (1998) fala mesmo de espacos interculturais

hibridos. Identidade e diferenca sao, assim, faces da mesma moeda, como assinala Guilherme

d’Oliveira Martins (2007), para quem a memoria deve ser preservada de forma equilibrada, a

fim de evitar que a amnesia e a indiferenca nao se tornem perigosos ingredientes de uma

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qualquer barbarie e para que o ressentimento nao ocupe o lugar da humanidade. Ja Paul

Ricoeur (2000) confirmara a inseparabilidade entre memoria e esquecimento, sendo que, como

assinala Sanjay Subrahmanyam (Meireles, 2016), a principal funcao do historiador nao e

lembrar, ja que o trabalho se desenvolve em sentido contrario a dinamica de acreditar na

memoria, indo mesmo contra ela, uma vez que esta se revela falsa. No entender de Tzvetan

Todorov (2002), a memoria, e uma especie de consciencia seletiva do tempo, nao se opondo

ao esquecimento. A memoria e uma interacao entre a supressao e a conservacao, sendo que

restituicao integral do passado e impossivel uma vez que memoria implica sempre uma

selecao. O historiador Fernando Bouza cita mesmo um ditado africano que sintetiza o que foi

referido sobre o modus operandi da memoria: “A memoria vai ao bosque e tras de la a lenha

que quer” (Canelas, 2014).

Estara a mente descolonizada (Mbembe, 2017)? Fotografias de casamentos com Mouzinho de

Albuquerque a fazer de cenario, configurara ignorancia? Ou sera que se trata apenas do facto

de, numa cidade como Maputo, cavalos e comboios serem atrativos para tirar fotografias? Por

outro lado, fazer retratos com o edificio do Banco Nacional de Mocambique (Tomas Taveira)

como pano de fundo, nao sera muito consentaneo com o plano do fotografo, devido a

envergadura do predio e a dificuldade de enquadramento, apesar da modernidade do imovel e

do seu revestimento espelhado. O mesmo se passara com a estatua de Samora Machel

(2011), que nao faz parte das rotas fotograficas dos casamentos. Pelo que vislumbramos,

apesar da proximidade do Jardim Botanico e da catedral de Maputo (onde a maioria dos

casamentos teve a sua cerimonia), ninguem tirou la fotos. E certo que tudo isto vale o que vale,

mas dara certamente que pensar. O que vale, entao, uma estatua, pode perguntar-se. Se a

aposta na memoria faz parte da politica mocambicana, tera que ser acompanhada por uma

componente educativa, para que se interpretem os simbolos e se perceba a porcao visivel da

historia do pais evidenciada, nomeadamente atraves da estatuaria. Caso contrario, tirar fotos

com Mouzinho de Albuquerque em fundo, mesmo que este esteja contextualizado, nao tera

que ver com nenhuma descolonizacao mental, mas com outra coisa, nao obstante a liberdade

que cada um tem. Acresce a tudo isto o facto de o Presidente da Republica de Mocambique

apelar, como aconteceu numa cerimonia que presenciei, ligada a um dos congressos em que

participei, a mocambicanidade, fazendo-o perante uma plateia em que estavam pessoas de

varias nacionalidades, o que nao deixa de ser sintomatico, embora se perceba, ja que o pais e

recente e precisa de cola identitaria.

O que não é exclusivo de Moçambique, acontecendo também em Portugal, com a

‘portugalidade’ a ser convocada a par e passo nomeadamente pelo Presidente da Republica,

Marcelo Rebelo de Sousa, não obstante o país ter fronteiras estáveis há muitos anos e não

tenha conflitos com ninguém. O que pode ser explicado à luz de uma lógica psicologizante por

Eduardo Lourenço, para quem os portugueses padecem de hiperidentidade, que decorre de

um déficit de identidade real que tentam compensar no plano imaginário (Silva & Jorge, 1993,

p. 39).

Faz, assim, todo o sentido o projeto que decorre no quadro do CECS-Centro de Estudos de

Comunicacao e Sociedade da Universidade do Minho (em parceria com a Universidade

Eduardo Mondlane, em Mocambique), intitulado “Memories, cultures and identities: how the

past weights on the present-day intercultural relations in Mozambique and Portugal?”,

financiado pela FCT- Fundacao para a Ciencia e Tecnologia/Fundacao Aga Khan. Este projeto

visa enriquecer a compreensao da historia cultural e economica e das representacoes sociais

em Mocambique e em Portugal, recolhendo e analisando as narrativas transmitidas pelas

colecoes de museus, livros de historia e cinema. Tambem pretende dar voz aos jovens do

ensino medio, envolvendo- os em atividades de reflexao, reinterpretacao e recriacao de

narrativas sobre as relacoes interculturais passadas e atuais. Este projeto centrou-se em duas

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esferas principais da sociedade mocambicana e portuguesa: sistema educativo, cultura e artes

(colecoes de museus, cinema), explorando representacoes plurais e dando origem a difusao de

narrativas que expressam diversidade cultural e novas visoes do passado, presentes e futuro.

Visoes criticas e reflexoes em torno dessas narrativas melhorariam o dialogo intercultural, a

reducao de conflitos, uma melhor compreensao do cotidiano das populacoes migrantes e sua

integracao na sociedade. Ao recolher, preservar e analisar narrativas culturais, historicas e

educacionais, pretende-se fomentar o conhecimento mutuo, (des)construir representacoes

hegemonicas e disseminar visoes plurais sobre o passado que estimulem o dialogo intercultural

e a paz.

Como defende Maria Paula Meneses, urge abrir as narrativas historicas, “apostando em

histórias interligadas, local e regionalmente, desafiando as heranças das representações

coloniais”. Dessa forma, a descolonizacao deve assumir-se “como um ato de controlo da

consciência, um ato de libertacao da opressao do conhecimento enquanto monocultura”. E

nesse contexto que a entrada no seculo XXI requer “uma cartografia em rede, dialogica, mais

complexa e cuidada da diversidade, que torne visíveis alternativas epistémicas e ontológicas,

para alem das fraturas abissais” (Meneses, 2018, 133).

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Outras referencias

Cunha, L. (2018, 25 de junho). Fechem-se os museus, porra! Post no Facebook. Retirado

daqui.

1. http://www.e-cultura.sapo.pt/evento/9361

2.https://delagoabayworld.wordpress.com/2018/09/21/a-praca-mouzinho-de-alb...

3.https://delagoabayworld.wordpress.com/2012/02/27/o-monumento-a-mouzinho-...

4. http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=103410

5.https://www.viajecomigo.com/2017/02/06/estacao-do-caminho-de-ferro-de-ma...

6. https://tvi24.iol.pt/internacional/estatua/salazar-virado-para-a-parede-...

por Vítor de Sousa

Cidade | 10 Dezembro 2018 | descolonizar, Maputo, monumento, políticas de memória