o que significa pensar - academia.org.br brasileira 71 - ciclos.pdf · e o futuro, se de certa...

72
7 Ciclo “Pensar hoje” * * Conferência proferida em 6 de março de 2012. Nascido em Olinda, PE. Cursou o primeiro grau no Recife, o segundo grau em Campina Grande, PB. A formação superior foi efetuada em Roma e depois na Alemanha, Friburgo na Brisgóvia. Professor titular emérito da UFRJ, tanto na Escola de Comunicação quanto no Instituto de Filosofia. Publicações: Aprendendo a pensar I e II e A filosofia grega; uma introdução. O que significa pensar Emmanuel Carneiro Leão A questão, o que significa pensar, articula numa unidade dia- lética duas perguntas: o que é pensar e o que nos faz pensar. Trata-se de uma questão tão essencial que opera no fundo de toda pergunta, que se faça, de toda resposta que se dê. Ora, só é possível saber, sentir o sabor do que significa pensar, pensando. Não há outra possibilidade. Por isso, numa anotação para o Zaratustra do outono de 1833, Nietzsche nos diz que toda experiência de pensa- mento se embrenha pelas raízes da própria possibilidade de pensar. Que possibilidade é essa? É mistério desconhecido e não sabido, mas inesgotável da reali- dade, acontecendo na realização de todo real, de tudo que é e está sendo. Escreve Nietzsche com grande apuro de estilo e de pensa- mento:

Upload: lehuong

Post on 23-Jun-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

7

C i c l o “ P e n s a r h o j e ”

*

* conferência proferida em 6 de março de 2012.

Nascido em Olinda, Pe. cursou o primeiro grau no recife, o segundo grau em campina Grande, PB. A formação superior foi efetuada em roma e depois na Alemanha, Friburgo na Brisgóvia. Professor titular emérito da UFrJ, tanto na escola de comunicação quanto no instituto de Filosofia. Publicações: Aprendendo a pensar I e II e A filosofia grega; uma introdução.

O que significa pensar

Emmanuel Car neiro Leão

A questão, o que significa pensar, articula numa unidade dia-lética duas perguntas: o que é pensar e o que nos faz pensar.

trata-se de uma questão tão essencial que opera no fundo de toda pergunta, que se faça, de toda resposta que se dê. Ora, só é possível saber, sentir o sabor do que significa pensar, pensando. Não há outra possibilidade. Por isso, numa anotação para o Zaratustra do outono de 1833, Nietzsche nos diz que toda experiência de pensa-mento se embrenha pelas raízes da própria possibilidade de pensar.

Que possibilidade é essa?É mistério desconhecido e não sabido, mas inesgotável da reali-

dade, acontecendo na realização de todo real, de tudo que é e está sendo. escreve Nietzsche com grande apuro de estilo e de pensa-mento:

Emmanuel Car neiro Leão

8

“Ich ging den Urspruengen nach...” “ Fui atrás das origens, o que me afastou de todas as venerações. tudo ao redor se tornou solitário e estranho para mim. mas, por fim do seio do próprio real rebentou de novo o mistério da realidade e eis que me nasceu a árvore do futuro. Agora vivo sentado em sua sombra.”

As presentes reflexões sobre o que significa pensar se põem sob a égide e na direção desta experiência originária de recíproca proveniência entre futuro e passado no presente de todo pensamento.

Vivemos os primeiro decênios de um novo milênio. Nossa presença neste iní-cio é de princípio. exige rasgar horizontes de questionamento e abrir dimensões de interrogação. A tarefa de pensar está toda aqui. Pois o pensamento é a pre-sença incômoda e desconcertante do desconhecido no desempenho de qualquer realização. e como se trata de realidade, requer muita concentração e pouca impaciência. É a lição que nos deixou o maior discípulo de Platão na conhecida distinção, o que é primeiro em si nos aparece por último. Hegel, o pensador que pensou a dinâmica da história durante toda sua vida, nos lembra: “A ave de minerva só levanta voo ao entardecer, quando os fatos já foram feitos.”

todo milênio e todo século, todo ano e todo dia, qualquer instante da vida histórica dos homens é sempre a cada passo da sua passagem, matutino e vespertino, ao mesmo tempo. Hoje em dia, nesse momento de transformações radicais, vivemos mais do que as façanhas matutinas, as sanhas vespertinas do segundo milênio. A história da humanidade se tem movido em ciclos de 25 séculos. A cada dois milênios e meio, fecha-se um ciclo, atinge-se um clí-max e instala-se um fim, mas fim no tríplice sentido de término, plenitude e transformação. É o instante propício para outra realização do real na história, quando poderemos vir a ser mais livremente tanto o que já fomos como o que ainda somos, na abertura de outro horizonte, no horizonte do que seremos. tudo, então, se torna fluido e nada se fixa. Os velhos padrões se esboroaram e os novos ideais ainda não se instalaram. Aparecem os limites das pretensões e se fazem mais sensíveis as perdas das conquistas. O mundo todo entra em transe, sente o convite e vive o apelo para passar. Não foi por acaso que há

O que s ignif ica pensar

9

2.500 anos atrás surgiram Buda na Índia, lao tsu na china, Zaratustra na Pérsia e os pensadores originários na Grécia, chamados de pressocráticos.

Hoje, nos primórdios desse terceiro milênio, estamos de novo, apesar de todas as diferenças nos interstícios da história, de passagem para outro dia histórico. Novamente, todos os parâmetros desvaneceram, todos os valores se gastaram, os princípios de ordem perderam força. Vivemos em estado fluido e maleável. O antigo já não tem a importância que tinha, o passado enfraqueceu seu poder e o futuro, se de certa forma já veio, ainda não se instalou de todo. estamos num hiato de história. É tempo de desinstalação. É dia de criação. É instante de transformação. Pois, para se reformar, é preciso transformar para não deformar. Na crise, não apenas de todos os fundamentos, mas do fundamento como fun-damento, medram as primeiras experiências de desprendimento da prepotência humana. Na convocação de Nietzsche começa a descida de Zaratustra para anunciar ao “último homem” o super-homem. O que nos traz de escatológico, isto é, de radicalmente novo este super de super-homem? Não será o despren-dimento de toda pretensão, desta hybris da história moderna, de o homem ser mestre e senhor da natureza? Para se poder decolar na direção de realizações mais humanas e menos onipotentes? É o que nos convida a pensar, contudo que não sabemos, mas somos, que não temos, mas sentimos, o Prólogo do primeiro livro de Zaratustra, “um livro para todos e para ninguém”! e o faz com palavras de morte e ressurreição dirigidas a todos nós pelo mistério de ser e não ser do sol, que desde Platão, vem iluminando nossas vidas!

Fala Zaratustra:

“Queria presentear e distribuir até que os sábios entre os homens se te-nham alegrado do mistério de seu não saber e os pobres entre os homens se tenham contentado com a riqueza de sua pobreza. Para tanto, tenho de des-cer ao fundo, como tu fazes ao fim do dia quando afundas no mar e levas luz para o mundo debaixo, tu astro acima de qualquer riqueza e/ou pobreza.”

É neste sentido que estamos hoje em transição, sentindo a passagem para outro dia histórico, após o longo ocaso sole occidente, do Ocidente. O movente

Emmanuel Car neiro Leão

10

essencial desta passagem é a pergunta se é possível uma passagem histórica realmente transitiva sem se saber qual é o verbo da história, será ser e pensar, ou será calcular e produzir? Qual será mesmo o verbo que a história conjuga? A história conjuga todos os verbos numa unidade de pensamento que assegu-ra uma dinâmica de expansão.

Assim, desde o nascimento da humanidade no Ocidente, “na Aurora dos dedos de rosa” de que fala Homero, a história vem conjugando os verbos ser e pensar. No primeiro canto da ilíada, nos versos 67/70, Homero nos fala do jogo desta unidade primordial. É crítica a situação dos Aqueus diante de troia. Há nove dias grassa no acampamento grego a peste enviada por Apolo. Na assembleia dos chefes, Aquiles exorta calcas, o pensador da expedição, a pensar a cólera do deus que impossibilita levar a bom termo toda empresa. Antes de dar a palavra a calcas, Homero diz o que significa pensar para a experiência histórica dos gregos: “levantou-se-lhes, porém calcas, filho de testor, o mais vigoroso dos intérpretes, que sempre já viu o que é, o que será e o que foi antes...”

Pensar é, pois, interpretar, ser e não ser nas peripécias do viver ao longo da história de presente, passado e futuro da vida humana. intérprete é aquele que sempre já viu. Ede é o mais que perfeito de oiden, perfeito de horaw, ver. interpre-tação do pensamento é sempre uma visão que vê por já ter visto. somente na medida que já viu é que o homem pensa e assim se faz vidente. Pensador só é vidente por ver no presente o futuro a partir do perfeito. É por já ter visto, que o intérprete prevê. Para ser vidente, o intérprete se torna previdente do vigor histórico, que, dando vigências ao vigente, confere visibilidade à visão. Por isso, o ser visto é o que vige na liberdade de um vigor. mas, vigente é tanto o presente, o que é e está sendo, como o ausente, o que será e o que já foi. No pensamento, passado e futuro são também modos de ser, pois agem na ausência. Presente e ausente diferem a partir da identidade com a força de uma vigência histórica. O pré- de presente é o espaço aberto pelo jogo de ser a que chegou e em que perdura tudo que é e está sendo. O presente é o caráter de patência do vigente. Haver e conservar patenteada a vigência constitui a propriedade de seu aconte-cimento, a força de seu modo de dar-se nas realizações.

O que s ignif ica pensar

11

Ora, passado e futuro também têm força histórica, também são vigentes. só que o modo de sua vigência não é a patência do presente é a latência do ausente. O au- de ausente, do latim ab, não diz dentro, mas fora do espaço aberto pela patência. Pois sua vigência é latente, mas referida sempre à patência do presente. É tão profunda esta referência que constitui até o sentido da identidade e a fonte da diferença entre presente e ausente, no tempo, presente, passado e futuro.

esta experiência inaugural da história no Ocidente encontrou uma nova formulação no final do século XiX em 1886, quando Nietzsche acrescentou um quinto livro à Gaia ciência, de 1882, com o título: “Nós os destemidos, os sem medo”. O primeiro aforismo do novo livro começa com a pergunta: “O que está havendo com nossa jovialidade?” O texto responde, dizendo: “O maior dos acontecimentos mais recente, que deus está morto, que a Fé no deus cristão se tornou indigna de fé, já começa a lançar sobre a europa as primeiras sombras.”

Hoje em dia, as sombras da morte violenta de deus no coração dos ho-mens vêm cobrindo com estado de violência a história humana. A violência deixou de ser, apenas, atos violentos de indivíduos. tudo se tornou estado de violência. Que é estado de violência? É o estado em que todos nós somos ao mesmo tempo autores e vítimas. Não há inocentes. só há culpados. todos somos simultaneamente autores e vítimas da violência.

Não apenas a religião foi junto com a morte de deus no coração do ho-mem. A ética também, a moral também, a filosofia também, a política tam-bém, a economia também, em uma palavra: a dignidade e a liberdade do ho-mem também. Nenhuma grandeza histórica escapa ao arrastão deste tsunami. esgotaram-se as fontes da criação e todos os espaços vão sendo progressiva-mente ocupados pela repetição automática de autômatos finitos: próteses, substitutivos, sucedâneos. multiplicam-se os robôs. se na convivência política o crime nem sempre não compensa, nos laboratórios o creme sempre com-pensa, acenando com a possibilidade de um futuro totalmente controlado. está dominado, está tudo dominado.

A história nos leva hoje cada vez mais a conjugar os muitos verbos de cal-cular, compor poderes de combinação, fabricar artefatos e peças de reposição.

Emmanuel Car neiro Leão

12

O progresso da técnica e o desenvolvimento da ciência escondem do homem o mistério da vida e o verbo criador da história. e o resultado são as crises com que hoje nos debatemos. disso tivemos há pouco uma demonstração sub-reptícia na notícia estrepitosa de se ter criado vida em laboratório. com toda empáfia da prepotência humana, o cientista J. craig Vender proclamou para o mundo estupidificado que “uma célula com núcleo sintetizado por computador era a primeira espécie autorreplicante, cujo pai fora um processa-dor”. A decadência de pensamento, provocada pela morte de deus no coração humano, se tornou tão decadente, mas tão decadente mesmo, que se perde cada vez mais até a condição de se identificar a decadência e avaliá-la como decadência. Ao contrário, considera-se até a decadência progresso e cresci-mento. Um exemplo: quando se questiona a possibilidade de um progresso biotecnológico poder criar vida, logo surge uma reação indignada: por que a manipulação biotecnológica não pode criar vida, se a fecundação de um óvulo por um espermatozóide pode? A resposta é simples e radical e como toda res-posta radical não elimina o vigor interrogativo da pergunta, mas o aprofunda. A vida é mistério conhecido e desconhecido. A fecundação é natural, criada espontaneamente pela evolução. e a manipulação biotecnológica é sucedânea, criada, não pela condição do homem natural, mas pela técnica do homem ar-tificial. No viver natural e espontâneo da vida, aparece com toda clareza que, no ser, no vir a ser e no não ser de todo real mora um mistério não sabido, apenas mal pressentido.

e mistério, que é isto? mistério não é nem isso nem aquilo, e assim não se pode realmente perguntar que é isto mistério, embora em todo isso e em todo aquilo viva mistério de realidade. mistério está, pois, em tudo. É tudo que se diz e ou não se diz, que se conhece e/ou não se conhece, que se é e ou não se é, fora das possibilidades de ser e de conhecer, de pensar e de dizer, embora o que quer que se diga e ou seja, que se pense e ou faça, já esteja no mistério da realidade que nós seres finitos por acaso somos e não somos. Pensar não é levar uma realização obscura do real para o âmbito claro e definido da razão e do conhecimento, da técnica e da ação. este é o papel da ciência. Pensar, ao contrário, é reconduzir o que se pretende já saber e conhecer para a sua

O que s ignif ica pensar

13

proveniência do e no desconhecido e não sabido. Porque não se pode saber tudo de nada, não significa que se possa saber nada de tudo, tal é a experiência que nos proporciona a cada instante o mistério da realidade, realizando-se em todo real.

Ao homem, não foi dado criar vida com os poderes naturais de seu engenho e arte. Ao homem, só foi dado reproduzir vida em obediência à lei da morte e com subordinação aos limites e dons de sua finitude. Para o homem poder criar artificialmente vida, seria necessário não haver mistério, nem para ele, nem nele, nem fora dele. Para poder criar, o homem deveria poder ser tudo, saber tudo, fazer tudo, sem limite de espécie alguma. Pois, criar, em sentido próprio, supõe nada absoluto ou, como diziam os aristotélicos latinos, o nihil sui et subject, isto é, nada em todo sentido, nada de matéria, nada de forma, nada de fim, nada de meio ou processo. Assim, o princípio, ex nihilo nihil fit, de nada não se cria nada, só vale para as transações do já criado. Para o elã criador no sentido estrito, vale o inverso, aqui o princípio é ex nihilo omnia fiunt, é de nada que tudo se cria. Por isso é que mestre eckhart, o pai da mística renana, podia dizer para os criacionistas de todos os tempos: esse est Deus et Deus est nihil, ser é deus e deus é nada. É essa também a lição de criar em sentido relativo que nos deixou com sócrates uma mulher profética diotima, a sacerdotisa de mantineia, segundo testemunho de Platão, no diálogo simpósio (205b):

“sabes, sócrates, que criação é algo múltiplo e diverso: tudo que res-ponder pela passagem de não ser para ser, qualquer que seja, é criação, de sorte que as obras de todas as artes são criações e seus obreiros todos criadores.”

O homem não vive para trabalhar coisas. trabalha para viver. e vive para vir a ser homem. Na prática da vida o trabalho de coisas não é uma atividade imanente, uma atividade em que o homem se dirigisse para dentro de si e cuidasse de si mesmo. diretamente, o trabalho em coisas se dirige para fora. É uma atividade transiente que só por repercussão atinge o próprio trabalhador. A palavra trabalho vem de tripalium que em roma designava um instrumento

Emmanuel Car neiro Leão

14

de tortura das legiões. Outra é a vigência do pensamento como sabemos des-de Homero. Na condição de homem, todo homem vive operativamente por e para pensar em tudo que faz ou deixa de fazer o mistério de ser que sempre ele nunca é totalmente, nem deixa de ser de todo. Neste sentido, pensamento não é nem só imanente, nem só transiente. trata-se de um vigor tão abran-gente que o homem é e opera enquanto e na medida em que é e vive. Assim, o homem não é midas do pensamento. Não transforma em pensamento tudo que toca. em sua existência, o homem é midas de ser, em cujo pensamento aparece, enquanto se retrai, o mistério de tudo que ele toca. deste retrair-se misterioso brota a história humana. retraimento é acontecimento, na medida em que faz aparecer tudo que de alguma maneira é e não é. com retraimento dá-se apropriação das propriedades de ser e não ser homem dos homens.

com o surto da técnica e o progresso da ciência, o conhecimento operati-vo, sempre instrumental, foi deixando cada vez mais de pensar radicalmente o real em sua realização de mistério para querer tornar-se assintoticamente dominação e controle de tudo. Na racionalidade absorvente da razão, o real se reduz a objeto e o homem vira somente sujeito de feitos e representações. sujeito e objeto são processos de recíproca constituição. Por isso, diz Hegel que toda objetividade constitui de per si subjetividade. É nesta gangorra de ida e volta que a razão conhece objetos e institui sujeitos, criando dispositi-vos, construindo próteses, fazendo ciência, dispensando novas tecnologias e produzindo novas ideologias. É que ideologia não é senão a tecnologia dos fenômenos sociais e políticos. em ambas, fenômenos naturais e humanos são respectivamente processados e controlados. O desconhecido vai sendo pre-tensamente conquistado e o artificial parece substituir sempre mais o natural, seja animado ou inanimado. Na primeira metade do século XX, lá pelos anos 50, John Von Neumann inventou uma máquina capaz de se reproduzir a si mesma como qualquer ser vivo. Ficou conhecida como a máquina Von Neu-mann, muitas vezes alegada como demonstração cabal da inexistência de uma diferença irredutível entre o animado e o inanimado. temos aqui um exemplo da mágica de toda aparência, que não somente faz aparecer como faz, tam-bém, desaparecer. do contrário, diz sócrates, no Górgias, nenhuma aparência

O que s ignif ica pensar

15

poderia enganar. As aparências só podem enganar por fazerem aparecer e de-saparecer ao mesmo tempo. e o que a máquina von Neumann faz desaparecer com a aparência de reproduzir a si mesma? É que von Neumann, grande mate-mático do século XX, inventou a máquina von Neumann sem a máquina von Neumann. mas, a máquina von Neumann não pode ser, nem funcionar sem von Neumann nela incorporado. Nesta impossibilidade, tanto aparece como desaparece a diferença essencial entre o animado no homem e o inanimado na máquina e, de certo modo, também entre o natural e o artificial. No início de um pequeno ensaio de 1873, “sobre Verdade e mentira no sentido extra moral”, escreve Nietzsche na limpidez de sua linguagem característica:

“Num recanto perdido do Universo, derramando-se num sem-número de sistemas solares, houve, certa vez, uma estrela onde animais astutos in-ventaram o conhecimento. Foi o instante mais orgulhoso e mais mentiroso da história do mundo. Após uns poucos suspiros da natureza, a estrela se apagou e os animais astutos tiveram de morrer.”

Nesta questão que significa pensar, é preciso saber, com um sabor só de ex-periência feito, qual é a sinusia do pensamento? A sinusia do pensamento é o viver da vida. Numa carta escrita a lou salomé, Nietzsche diz que pensamen-to é criação da vida, na biografia dos homens e na história da humanidade. escutando essas palavras, poder-se-ia perguntar: onde é que existe a sociedade ideal, de que fala Platão na república? A resposta de Nietzsche é simples: a sociedade ideal existe sempre que se critica e se pretende revolucionar a sociedade real. Pois que é um crítico e que significa ser um revolucionário? É um homem que diz não e recusa. mas, para negar e rejeitar, tem de ser um homem que já disse sim e afirma uma nova ideia de sociedade. Na dinâmica de sua negação, articula-se a força de uma afirmação originária, e originária porque dá origem a todo seu vigor revolucionário. O sim que constrói dá-se e vive no valor de um não que desconstrói. Ora, dar-se na medida e na propor-ção em que se retrai, é a parusia de toda e qualquer vida criativa, sobretudo da vida e da criação do pensamento. Pensar é a explosão do desconhecido,

Emmanuel Car neiro Leão

16

precipitando-se história abaixo numa avalancha de transformações. tal a lição que nos deixou Platão com as três palavras mais importantes de toda repú-blica: ta megala panta episphale, tudo que é grande precipita-se na história em uma avalancha de transformações.

lá pelos anos 30 do século passado, um antropólogo americano caiu prisio-neiro de uns canibais da Polinésia. O chefe lhes fez saber que seria comido num banquete totêmico. A ordem da tradição prescrevia duas formas de sacrifício: ou uma flechada repentina no coração provocaria morte instantânea ou cozido num caldeirão de água fervendo levaria horas para morrer. A primeira frase que dissesse após o som de um chifre decidiria a forma da execução: se a frase fosse verdadeira, morreria na flecha, mas se fosse falsa, morreria no caldeirão.

Ao escutar o som do chifre, o antropólogo correu para o centro da aldeia e gritou para todos: vou morrer no caldeirão. estava instalado um impasse. se a execução fosse na flecha, a frase tornar-se-ia falsa e pela ordem da tradição deveria ser feita no caldeirão. se a execução fosse cumprida no caldeirão, a frase tornar-se-ia verdadeira e a execução deveria ser feita na flecha. era a inde-cidibilidade. No impasse, um dos caçadores de cabeça veio por trás e rachou com um bordão o crânio do antropólogo, violando a ordem do banquete totê-mico da tradição. Agonizante, as últimas palavras do antropólogo foram: Kurt Goedel, seu desgraçado, você disse que tinha demonstrado a indecidibilidade. claro que esta estória nunca aconteceu. “Se non è vero, però è bene trovato.” Pois nos dá duas lições sobre as perguntas que instruem a questão que significa pensar. A primeira lição é que indecidibilidade tem como condição necessária de sua possibilidade uma ordem bem precisa e determinada que não deve, mas pode ser violada. A segunda lição é que o pensamento vive sempre numa pluralidade de ordens, social, cultural, científica, lógica, mas não é prisioneiro de nenhuma delas, podendo sempre violar qualquer ordem. em seus Diários, Wittgenstein escreveu que não ser prisioneiro de nenhuma ordem torna o pensamento do homem criador numa multiplicidade de formas e modos, na filosofia, na poesia, na música, no teatro, na escultura, na pintura, em todas as formas de criação que povoam a história humana de todas as épocas e em todas as latitudes. É esta liberdade radical que nos faz pensar!

O que s ignif ica pensar

17

Jorge Brandes era professor na Universidade da dinamarca. tinha anun-ciado para o semestre de inverno de 89/90 um curso sobre o Zaratustra de Nietzsche. No mesmo dia do colapso mental nas ruas de turim, dia 4 de janeiro de 1889, Nietzsche indica, num cartão-postal enviado a seu amigo Jorge Brandes, as relações de pensamento em todo esforço de pensar com três verbos, entdecken, descobrir, finden, encontrar, verlieren, perder. É o seguin-te o teor do cartão-postal:

“turim, 4.1.1889. caro Jorge, depois de me teres descoberto, Não foi difícil me encontrar. A dificuldade agora é me perder! O crucificado.”

este cartão-postal é um dos chamados Wahnzetteln, “bilhetes da loucura”. mas que loucura é esta? – É a loucura de pensar radicalmente. Nietzsche não está falando de suas obras, mas do pensamento radical e do modo de o pensa-mento radical operar, um modo extraordinário de se pôr em obra e trabalhar. Os verbos se referem a todos os homens e seus pensamentos, qualquer que seja a situação individual, ideológica ou política de cada um.

depois de despachar os cartões-postais, Nietzsche retorna para o hotel e en-contra na calçada um cocheiro chicoteando um cavalo. Abraçando-se ao pesco-ço do cavalo, Nietzsche falou: “meu irmão, perdoe, ele é um animal racional!”

Hélio Jesuíno

19

C i c l o “ P e n s a r h o j e ”

Formou-se em filosofia pela UsP e preparou seu doutoramento com os professores João cruz costa e Gilles Gaston Granger, na Universidade de rennes e em Paris. interessou-se pela lógica formal e se pôs a estudar a fenomenologia husserliana a partir de problemas lógicos. refletindo sobre as dificuldades da dialética materialista retomou seus estudos sobre Wittgenstein – sua tradução do Tractatus é de 1968 – e atualmente está preparando um contraponto entre Wittgenstein e Heidegger.

Pensar a humanidade

José Arthur Giannott i

embora as ciências cuidadosamente examinem os homens de vários pontos de vista, elas o fazem a partir de hipóteses cujas

consequências vão sendo testadas segundo técnicas diversificadas. mas nenhuma delas se pergunta por nossa humanidade ou por aquilo que somos em vista de podermos ser todos nós incluídos numa mesma totalidade. Pelo contrário, a Antropologia insiste na diversi-dade dos comportamentos humanos, nas diferentes perspectivas a partir das quais agimos. em contrapartida, a Biologia mostra que nossa carga genética é muito parecida com aquela dos chimpanzés, tendendo assim a nos considerar um animal como os outros. sem-pre foi tarefa da Filosofia se perguntar pelo homem, pelo que somos e pelo que devemos ser. estaria ela, hoje em dia, em condições de reformular essa questão? mesmo sofrendo um processo de desinte-

*

* A conferência, proferida em 20 de março de 2012, seguiu apenas o esquema deste texto, muito mais desenvolvido. Agradeço a luciano codato a cuidadosa revisão do texto.

José Arthur Giannott i

20

gração que a lança em todas as direções e que muitas vezes a reduz ao monó-tono comentário dos textos do passado?

Pensamos através de ruínas de pensamentos – para teimosamente retomar uma observação de eugen Fink, discípulo de edmund Husserl. Um conceito filosófico sempre cruza diversos ventos da história, conforma uma caixa acústi-ca onde ainda soam reflexões do passado. O homem é um animal racional. Quem não conhece essa definição? mas para que ela possa adquirir algum sentido é preciso decorticá-la passo a passo. Não estaríamos, porém, imitan-do Peer Gynt, que, procurando o núcleo da cebola, deparou, no fim, com um punhado de cascas soltas? Não há como evitar esse perigo.

1 todo o pensamento clássico gira em torno da definição aristotélica de homem: o ser vivo que possui logos – o discurso, a linguagem. e os romanos, ao traduzirem logos por ratio, cunharam a expressão que todos nós conhecemos: “o homem é um animal racional”. mas como sempre acontece nas traduções, o sentido se modifica ao passar de uma língua para outra. se logos indica so-bretudo o processo de colher, recolher, acolher, ratio, proveniente de outra raiz indo-europeia, significa originariamente mensurar, calcular, sopesar. A racio-nalidade grega, antes de tudo ato de apreender, abranger, passa a ser pensada pelos romanos a partir da medida. A definição aristotélica, ao falar latim, sobre uma primeira torção.

segundo as normas da lógica aristotélica, o ser humano primeiramente é confinado no gênero animal. sendo ele um animal (zôon), possui a vida (zôe). Nela os gregos não incluíam as plantas, mas, em contrapartida, os deuses, dos quais os homens se distinguem por serem mortais. A definição deve, pois, responder à questão: O que é ser homem para um vivente? O que é o ser para esse ente? O que o diferencia especificamente é a capacidade de falar de modo articulado uns com os outros e para si próprio; sua vida é conduzida pelo logos. No entanto, o logos não é a única diferença, pois os homens também são capazes de rir e de viver politicamente, isto é, de se constituírem membros de uma pólis. O riso é próprio do homem, mas não faz parte de sua essência, pois este continua sendo humano mesmo quando está sério. Não é o que acontece

Pensar a humanidade

21

especificamente com o fato de ser político. O ser humano isolado é um des-garrado, não tem condições de vir a ser, o que determina sua essência, não pode ser o que deve ser. A vida política visa ao bem comum, por conseguinte, integra a atividade de cada humano no círculo de um saber prático, a prudên-cia (phronesis), que, como saber, tem sua plenitude na contemplação do sábio. A vida humana articula várias atividades, conforme o que elas devem ser, to-das elas, porém, amoldadas pela aspiração de ser feliz, cuja identidade implica, no limite, imitar a vida dos deuses. A vida humana, segundo o logos é a melhor vida possível, porque traz a semente da imortalidade. A definição por gênero (animal) e diferença específica (que possui logos) indica essa transcendência.

2 Uma nova forma de pensar a humanidade se configura quando o Apóstolo João identifica Logos ao deus judaico-cristão. lembremos que o grego era, na-quele momento, a língua universal das classes mais cultas do império romano. O “amor”, considerado por Jesus o liame entre o céu e a terra, é registrado numa dimensão lógico-semântica, uma das linhas nevrálgicas do pensamento grego. Assume, para o cristão, o valor do ser para o filósofo. três séculos mais tarde Agostinho continuará dizendo amor pondus meus. todavia, com restrições. muito mais tarde, carl schmitt observará, na terceira parte de seu ensaio sobre A noção do político, que esse amor não é indiscriminado, pois não inclui o inimigo político. A fórmula da Vulgata: Diligite inimicos vestros1 não traduz Echthra por hostes. Na luta milenar contra o mouro, nenhum cristão cederia a europa ao islã, por maior que fosse seu amor pelos sarracenos e pelos turcos. mas o cristão primi-tivo, antes de sua religião se tornar aquela oficial do império romano, em 312 com a vitória de constantino, não se desinteressava por qualquer trama política? O próprio cristo não ensinara: “dai a cesar o que é de cesar”?

Nos primeiros séculos de nossa época, pelo império romano se desenvolveu uma nova forma de subjetividade, associando a ideia grega do cuidado de si, por conseguinte o cuidado de todos, a uma nova comunidade, fundada numa nova aliança. esta última é formulada exemplarmente pelo Apóstolo Paulo: Jesus

1 mat 5, 44; luc 6, 27

José Arthur Giannott i

22

morre para livrar os homens do pecado original, tanto aqueles que dele têm consciência – os hebreus –, como os outros – os gentios –, que o poderiam reconhecer se atentassem para as marcas divinas encontráveis no fato de serem criaturas. chamados pelo evangelho, ao terem a oportunidade de conhecer o deus verdadeiro e não se converterem, passarão a ser inimigos de Jesus. Na Carta aos Romanos, 8, Paulo livra de qualquer condenação aqueles que estão em cristo: “deus, enviando seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado da carne, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que vivemos não segundo a carne, mas segundo o espírito.” e continua: o desejo da carne é morte; o desejo do espírito é vida e paz. e quem deseja a carne é inimigo de deus. daí o padrão da amizade e da inimizade ser posto em deus, mas conforme ele vem a ser trindade – Pai, Filho, espírito santo – e desde que a mediação absoluta, o Filho, seja logos.

O evangelho segundo João explicita essa referência ao logos desde o Pró-logo: “No princípio, era o Verbo e o Verbo estava com deus e o Verbo era deus. No princípio, ele estava com deus. tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito.”2 como é sabido, “Verbo” traduz Logos. lembremos que desde Platão a multiplicidade do que é e do que vem a ser expresso se unifica no logos na medida em que este é sempre logos de algo (logos tinos). A mediação entre a palavra e a coisa, entre a regra do dizer ou do pensar e o caso real, é configurada pelo Filho, que, no princípio, estava com deus, sendo o próprio deus. mas obedecendo a seu desígnio, dando curso a seu amor, separa-se dele pelo milagre da encarnação, é feito carne que morre para salvação dos homens. O espírito santo, ao reunir o Pai e o Filho, o logos em princípio e o logos efetivando-se, configura ambos numa unidade mística.

Não é por isso que o espírito deixa de ter sua própria identidade. É uma espécie de fluxo que atravessa a matéria, sopro instaurador da linguagem. O epi-sódio de Pentecostes o comprova. Nessa festa judaica, que renovava a aliança de Abraão e Jeová, estavam reunidos apóstolos e judeus piedosos: “de repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda

2 João, 1

Pensar a humanidade

23

a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e se repousavam sobre cada um deles. e todos ficaram repletos do espírito santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o espírito lhes concedia se exprimissem.”3 Nos primórdios do cristianismo, esse fenômeno se repetia. era chamado glossolalia, mas então os fiéis inventavam línguas incom-preensíveis. somente o sopro do espírito santo traz inteligibilidade e a todos prepara para que possam divulgar a palavra de deus.

À tarefa de pensar a humanidade importa, em primeiro lugar, essa trans-formação do logos de algo, pensado pelos gregos, no logos mediador interno da divindade, operada pelo cristianismo. legalidade suprema, deus se faz o caso que estava com ele, e assim vem aos casos criados à sua semelhança. O Filho não criado e as criaturas, todos passam a ser marcados pela finitude da morte. O milagre da encarnação prepara o milagre da ressurreição. O sa-crifício do Filho cria uma nova aliança, apaga no crente o pecado original, a ofensa a deus. todos os homens, judeus ou gentios, passam então a participar da cidade de deus, devendo viver à espera do retorno de Jesus. e tudo passa a ser posto em função desse Absoluto do logos reconciliado com suas criatu-ras. inclusive o próprio tempo, que, deixando de estar ligado ao movimento das coisas, se transforma na espera da Parusia, do novo advento de cristo. Advento que, em última instância, julga. Note-se que a história termina num julgamento, na separação dos bons e dos maus: de um lado, encaminham-se aqueles que conquistaram sua humanidade na medida em que, ajudados pela graça divina, souberam obrar para que ela fosse salva; de outro, aqueles que se tornaram inimigos de deus porque não ouviram sua palavra.

Bem sabemos que essa matriz da lei que se junta a seus casos se desen-volveu, na história do cristianismo, em figuras muito diversas. Às vezes de modo muito claro, outras nem tanto. mas não parece possível pensar a huma-nidade sem levar em conta essa figura do saber como logos divino. isso se nota até mesmo numa de suas formas decadentes, tal como aparece nas religiões pentecostais de hoje. Por todos os lados encontramos a frase “deus é fiel”.

3 Atos dos Apóstolos, 1, 1.

José Arthur Giannott i

24

mas se obervarmos o comércio vigente entre os fiéis e seus sacerdotes, logo percebemos que toma como padrão as práticas capitalistas de investimento. É o logos do capitalismo, a transformação do valor em excedente, que aí norteia a relação com o divino. O crente, estimulado pelos pastores, oferece dinhei-ro a sua igreja como se investisse num banco. O que recebe de volta em sua vida cotidiana, dom da graça divina, precisa ser retribuído para que possa continuar a receber ainda mais. deus é fiel como um banco de investimentos. enquanto durar essa relação, o fiel está salvo e o pastor, enriquecido. Basta um simples sintoma de que seu investimento falhou, basta não receber a re-tribuição devida, para que o “fiel” mude de igreja e refaça seu contrato. Ao continuar a investir, está assegurando sua salvação eterna. deus é fiel, mas nem sempre o são seus intermediários.

3 O mistério da trindade sempre preocupou os filósofos cristãos. tem sido um dos pontos nevrálgicos onde se cruzam fé e saber. embora reconhecendo o valor da fé e da religião como forma natural de saber, o idealismo alemão ousou que-rer traduzir esse mistério para o plano da ciência. Não a ciência positiva, como discurso hipotético sobre o real, la science dos franceses; mas discurso racional, isto é, fundamentado e mensurado, que se fecha sobre si mesmo. Nessa aventu-ra, Georg Wilhelm Friedrich Hegel configura para muitos o ponto culminante. de modo algum pretendeu subordinar a Filosofia à verdade revelada pela fé; ao contrário, tão só mostrar que a religião configura, no nível da representação, por conseguinte da relação entre sujeito e objeto, uma verdade que a ciência, ou melhor, a Filosofia, pensa no nível do conceito e da ideia.

A ciência busca a verdade, ela é o próprio movimento da verdade. isso já se mostra no nível mais elementar do saber religioso, quando cristo, diante de Pilatos, afirma ser ele mesmo a verdade. Já nesse plano ela não é o caminho? Não é a ponte que liga o Pai e o Filho na unidade do espírito santo? do ponto de vista científico, porém, esse caminho é aquele do conceito (Begriff). este não se confunde com o universal inerte, aquele comum que pode ser identificado em determinadas coisas: o comum entre as árvores, o comum entre os homens e assim por diante. esta concepção psicologista do conceito

Pensar a humanidade

25

deixa de pensar de que forma o comum se determina como sendo. O que determina a multiplicidade das árvores como árvore, a multiplicidade dos entes humanos como humanidade?

desde os primeiros filósofos gregos, sabe-se que a ciência não trata do in-divíduo, mas do universal; não desta ou daquela coisa, mas do que várias coisas têm em comum. A dificuldade é entender esse comum. mesmo quando se escre-ve uma biografia, quando se tenta captar as peculiaridades de um personagem, o que dele se diz sempre pode ser dito para outrem. É nessa textura de ditos gerais que a individualidade emerge para o conhecimento. isso porque a linguagem é invocativa, além de ser declarativa. O universal, conceitual, hegeliano não é simplesmente o que vem a ser comum a muitas coisas, mas aquilo que se está es-tanciando como força individualizante, capaz de manter seus traços na medida em que os reconhece na sua total alteridade e a traz para si mesmo. Não se trata, pois, de um universal ligado apenas a indivíduos, regra intimamente ligada a seus casos, mas substância abrangendo seu outro. esta deve ser entendida como sujeito que constrói sua identidade incorporando tudo aquilo que lhe assegura subsistência. O conceito homem consiste, pois, no processo que desenha o que o ser humano é vindo a ser em si e para si, trabalhando sua animalidade, recor-tando na natureza o que lhe é próprio, pensando-a para que possa pôr-se para si mesmo, pensamento capaz de reconhecer sua finitude, colocando-se, por con-seguinte, como parte do infinito. O homem é ele próprio um conceito quando logra ser em si e para si, vindo a ser um si-mesmo que se pode configurar então na dialética do senhor e do escravo, na família, no espírito de um povo, num momento da história racional.

Por isso, o conceito hegeliano é livre, poder, potência, prenhe de negativida-de, identidade consumindo-se a si mesma para se tornar mais rica de determi-nações. seu desenvolvimento não é aquele da consciência que pula de um indi-víduo para outro, mas consciência de si que se faz mundo dotado de espírito, que se faz história para que a humanidade encontre em cada uma de suas épocas, de suas identificações, o trampolim que a empurra para frente, até atingir o momento em que ela desenha e realiza sua própria liberdade. se a razão, o logos, continua a ser unificado pelo algo referido, esse algo é agora o próprio logos no

José Arthur Giannott i

26

seu desenvolvimento historial – isto é, o desenvolvimento histórico do ponto de vista racional, não a história que o considera exclusivamente de um ponto de vista empírico. O logos não é sem a natureza que se integra no mundo. O cris-tianismo pensa o mundo criado por deus, mas esse pensar é apenas a imagem, a representação, do logos especulativo que resolve a criação no movimento do conceito.

A negatividade é, pois, o grande tema da filosofia hegeliana. Não se tra-ta de uma negação que inverte o sentido de uma proposição, quando, por exemplo, passamos de “Pedro é mortal” para “Pedro não é mortal”. Nem mesmo quando simplesmente o símbolo de negação é adicionado a outra palavra, como “não-mortal”, “não-homem”. Nesse caso, o que é referido pela palavra é tudo que não é mortal, assim como tudo que não é homem. essa indefinição, porém, não convém à ciência. É preciso encontrar no cami-nho da verdade o exato momento de sua negação. Não simplesmente o falso, mas a falsificação, a desintegração do momento anterior. O cristianismo se mostra uma religião mais completa porque conforma representativamente a identidade dialética do em si, do para si e do em si para si; ou seja, da tese, da antítese e da síntese. A unidade do Pai com o Filho não se faz sem profunda ruptura, sem o questionamento dessa própria identidade. embora o Filho seja tanto deus como o Pai, pois como Logos está nele, não é por isso que essa identidade não é atravessada por um profundo movimento de negação. Jesus é o outro do Pai, sente-se abandonado, padece na cruz e aceita sua morte para redimir o pecado, precisamente aquela falta que os homens cometeram contra a vontade divina. A infinidade de deus necessita da finitude do homem. Na Enciclopédia das ciências filosóficas, texto que servia de compêndio para seus alunos em Nuremberg, Hegel escreve: “deus só é deus enquanto se conhece a si mesmo; ora, seu conhecimento de si é ademais o conhecimento de si que ele tem no homem, e o conhecimento que o homem tem de deus prossegue do conhecimento que tem de si mesmo em deus.”4 O infinito se conhece a si mesmo no finito, na medida em que este se reconhece no infinito. A tarefa

4 Encyklopädie, ed. lasson, V, p. 481; Paulo meneses, Pe. José machado, ed. loyola

Pensar a humanidade

27

da Filosofia é traduzir para o nível estritamente conceitual essa representação que se instala na consciência dos povos.

“Humanidade” não é, para Hegel, um conceito, tão só mera representação. do ponto da vista da ciência, então, como o homem é pensado e como se pensa a si mesmo? conforme ele se enquadra em cada momento no desenvolvimento geral das ciências, nas figuras que a verdade assume ao se tornar todo o real. A Enciclopédia reescreve o trio helenístico: lógica, física e moral, mas de tal modo que cada figura se supera na outra. A Ciência da lógica começa pela doutrina do ser, passa por aquela da essência e é concluída com a doutrina do conceito. O outro da lógica é configurado pela filosofia da natureza, cuja terceira parte trata do organismo, que termina examinando o processo do gênero, onde, pela primeira vez, o homem pode ser pensado como ser genérico. A superação desses dois contraditórios, ser e natureza, configura-se no espírito. este já é o conceito se efetivando, a ideia, mas que ainda se configura primeiramente como conceito, é o conceito da ideia, ainda na sua indeterminação. daí sua primeira definição: “O espírito tem para nós a natureza por sua pressuposição, da qual é a verdade e, por isso, seu [princípio] absolutamente primeiro. Nessa verdade, a natureza desva-neceu, e o espírito se produziu como ideia que chegou ao seu ser para si, cujo objeto, assim como o sujeito, é o conceito. essa identidade é a negatividade absoluta.”5 como tal, o espírito se determina, de um lado, como espírito subjetivo, exami-nado em particular pela Antropologia, pela Fenomenologia e pela Psicologia; de outro, como espírito objetivo, examinado em particular pelo direito, pela moralidade e pela eticidade (família, sociedade civil, estado). Por fim, essa contradição se resolve no espírito absoluto, que se determina na arte, na religião revelada, isto é, o cristianismo, e na Filosofia.

Fomos obrigados a mencionar todas essas figuras do espírito para indicar em que sentido, segundo Hegel, a humanidade se dissolve e se articula em seus diversos momentos conceituais. mas também nos interessa um ponto muito peculiar desse desenvolvimento: aquele da Fenomenologia do espírito. em 1807, Hegel publica um livro com esse título, que teve sucesso e influência

5 Enciclopédia § 381; trad. Paulo meneses, Pe. José machado, ed. loyola, iii, p. 15

José Arthur Giannott i

28

extraordinários. O livro descreve o itinerário da alma, elevando-se ao espíri-to pela mediação da consciência. termina examinando o saber absoluto, o saber do ser. Nem sempre, todavia, suas conclusões se encaixam facilmente no esquema geral traçado pela lógica no plano geral da Enciclopédia. mas nos importa salientar que a perspectiva da Fenomenologia, particularizando a consci-ência como tal, a consciência de si e a razão, é sempre aquela pela qual, como seres humanos, nos lançamos em um caminho que se resolve na prática da Filosofia. Não há dúvida de que nos alienamos de nós mesmos neste proces-so, porquanto o desenvolvimento do espírito, que vai da lógica até o espírito absoluto, termina considerando nossa humanidade tão só como um processo particular. A cada um de nós, porém, se apresenta um plano de vida que vai desde o consumo de nosso mundo sensível até a evolução da Filosofia.

muitas vezes a Fenomenologia do espírito foi comparada a um romance de for-mação, em particular ao Wilhelm Meister, de Goethe, e a sua réplica de certo modo, Heinrich von Ofterdingen, de Novalis. Nesse trajeto, momentos do de-senvolvimento pessoal se tornam paralelos ao desenvolvimento da história humana. Por exemplo: a consciência de si é primeiramente em si mesma, me-lhor dizendo, as várias consciências de si se encontram alheias umas as outras. Para preencher essa alienação, elas se opõem entre si. essa luta se configura historialmente na conhecida dialética do senhor e do escravo – ou do mestre e do servo. No confronto, uma das consciências, temendo a morte, entrega-se a outra para servi-la, para se conservar (servare). Graças, entretanto, ao aprendi-zado que lhe traz esse servir, graças aos serviços do trabalho, o servo se torna mais forte que seu mestre e pode, finalmente, vencê-lo.

4 O espírito absoluto ocupa o lugar de deus, aparece como o saber de si da humanidade. Um estudo cuidadoso da dialética hegeliana nos mostra que o transpassar do deus representativo prefigura a problemática da morte de deus. Não é por isso que ele morre no absoluto, porquanto permanece como representação coletiva. Hegel ainda poderia identificar-se como bom protes-tante, mas seu pensamento localiza a fé na conformação maior do espírito absoluto, de sorte que ela perde aquela autonomia que lhe atribui o crente.

Pensar a humanidade

29

A figura de deus se converte num momento da fenomenologia do espírito. este é, por sua vez, espírito do homem, assim como vem ao homem.

desse ponto de vista, a investida de ludwig Feuerbach contra a dialética he-geliana ganha um sentido muito específico. sua tese principal, desenvolvida n’A essência do cristianismo, é a seguinte: o centro da religião é o homem, e não o espírito absoluto; não sou eu, mas a religião que adora o homem, na medida em que ela mesma afirma que deus é o homem e o homem é deus. É, portanto, a própria religião que indica ser o homem a matriz do pensamento de deus, e a trindade da família, matriz da trindade divina. embora Feuerbach tome como ponto de partida de sua reflexão a sensibilidade, não evita a tríade hegeliana: o homem se projeta em deus, que, ao ser negado, coloca o homem num estado superior. desse modo, não mantém ele a união da tese, antítese e síntese, a despeito do ponto de partida sensível? No que ela se justifica? Não é à toa que Feuerbach, seus colegas e admiradores se identificarão como neo-hegelianos, em oposição aos hegelianos de estrita observância. mas não escapam das armadilhas do conceito.

esse é igualmente o caso de Karl marx, a despeito de todos os seus cuidados para se afastar do hegelianismo. como sua concepção de homem e sua dialética estão marcadas pela teoria do conceito? Não podemos ignorar que o diálogo de marx com Hegel segue um percurso muito peculiar, passando por fases de distanciamento e de aproximação. Para os neo-hegelianos, Feuerbach consuma a crítica da religião, cabendo, então proceder à crítica da Filosofia para chegar finalmente à crítica do mundo burguês. em 1844, o jovem marx escreve três ensaios sobre o trabalho e a alienação humana. somente foram publicados no início dos anos 30 do século posterior, e, a partir de então tiveram enorme influência no debate dos críticos marxistas contra o marxismo enrijecido da terceira internacional. convém lembrar, entretanto, que nesses anos de juventu-de marx apenas se iniciara, graças à influência de Friedrich engels, nos estudos da economia Política; teve formação de jurista e somente ao poucos se torna um dos grandes economistas de seu século. Por muito tempo, os dois autores acreditavam que o excedente econômico, que explica o funcionamento do modo capitalista de produção, derivaria da desigualdade das trocas comerciais. Falta-va-lhes compreender toda a estrutura dialética do capital.

José Arthur Giannott i

30

desde cedo, marx procura entender o homem como ser genérico (Gattungswe-sen), animal eminentemente social, alienando-se na divisão do trabalho em conse-quência da propriedade privada, mas capaz de se emancipar e se organizar numa sociedade livre. No Terceiro manuscrito, escreve: “O homem é um ser genérico, não apenas porque decerto transforma prática e teoricamente seu próprio gênero, assim como aquele das outras coisas, mas também porque se relaciona consigo mesmo como essência universal, por conseguinte livre.” O trabalho social, mesmo quando alienado, é fator de transformação, mas isso se dá no quadro de uma generalidade que, embora alienada pela divisão do trabalho, orienta as ações individuais no sen-tido de se voltarem para si próprias em busca de uma sociedade livre. A liberdade e a emancipação residem numa autorreferência prática. Até que ponto marx está tomando distância da consciência de si hegeliana?

Já na primeira das Teses sobre Feuerbach, escritas na primavera de 1845, marx reconhece que é o idealismo, embora abstrato, e não o materialismo (de Feuer-bach), o grande responsável pela valorização do lado ativo de qualquer objeto. O idealismo somente poderá ser superado quando a prática humana se livrar de seus fantasmas, dos objetos tomados como pontos fixos, e passar a concebê-los no fluxo das relações sociais. levado pelo jogo das intuições, Feuerbach não compreende que o “gênero” não é generalidade interna, muda, que ligaria os múltiplos indivíduos de modo natural, mas se resolve num tecido de interações práticas. Assim sendo, todas as generalidades meramente teóricas estariam con-denadas, inclusive as ideias filosóficas. todos conhecemos a última tese: “Os fi-lósofos limitaram-se a interpretar o mundo de maneira diferente, mas cabe chegar a transformá-lo.” O que significa, porém, esse interpretar?

Já por volta de 1844, marx nota a importância da Fenomenologia do espírito: sua dialética da negatividade tem o mérito de compreender a autoprodução do ho-mem como exteriorização e superação dessa exterioridade, graças à mediação do trabalho. e conclui: “A relação efetiva, atuante, do homem consigo como essência genérica (Gattungswesen), ou sua efetivação como essência genérica efetiva, isto é, como essência humana, somente é possível porque ele efetivamente conforma todas as suas forças genéricas – estas de novo somente sendo possíveis como inteira atuação do homem, apenas como resultado da história – relacionando-se com

Pensar a humanidade

31

elas como objetos, o que de novo somente é possível na forma da alienação.”6 estamos traduzindo “Wesen” por “essência”, mas a palavra alemã tanto signifi-ca regra de individualização como individualização pela regra; é nesse último sentido que marx a toma. mas, seja como for, ao reconhecer o lado positivo da Fenomenologia, ao sublinhar nela o movimento de posição, alienação e superação, não está sendo seduzido pela universalidade conceitual da lógica hegeliana? Por certo não está pensando o universal como o comum entre várias coisas, mas dotado de um movimento prático de se enriquecer, a partir de uma base iden-titária. durante toda a vida, ele tentou libertar-se desse tipo de universalidade que, projetando-se no seu outro, se efetiva numa síntese do em si e do para si. Até mesmo no auge de sua carreira, ao tratar do modo de produção capitalista, define a mercadoria, por conseguinte o capital, nos quadros dessa dialética. Até que ponto, contudo, esta pode ser “materializada”?

É preciso, pois, ter muito cuidado para não interpretar, mesmo as famosas primeiras páginas da A ideologia alemã, de uma ótica materialista no sentido restrito. esse livro, um grande rascunho escrito por marx e engels em 1845 para tomarem consciência de suas posições e se contraporem aos ideólogos da esquerda alemã, intenta projetar todas as formações teóricas e considerações morais para o contexto das relações práticas de transformação da realidade. “A moral, a religião, a metafísica e outras ideologias [estas entendidas como falsas consciências] e suas correspondentes formas de consciência deixam de manter sua aparente autonomia. elas não têm história, não possuem desenvol-vimento, mas os homens em desenvolvimento, segundo sua produção material e seu comércio material, alteram, mediante esta sua efetivação, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.”7 como fica evidente na comparação com He-gel, a nova dialética, esta materialista, depende da transformação de um gêne-ro social num gênero da liberdade, graças à mediação de seu outro alienado.

Na mesma página, marx e engels ainda escrevem: “este modo de considera-ção não é sem pressupostos. ele parte de pressuposições efetivas, sem abandoná-

6 Die heilige Familie und andere philosophische Frühschriften, p. 80; dietz Verlag, 1953.7 Die deutsche Ideologie, p. 23, dietz Verlag, 1957.

José Arthur Giannott i

32

las a qualquer momento. suas pressuposições são os homens, de modo algum fi-xados e isolados fantasticamente, mas [situados] no seu processo de desenvolvi-mento efetivo, empiricamente apreendido (empirisch anschaulichen Entwiklungsprocess), segundo condições determinadas.” Quais são, porém, os autores dessa visão? Os próprios agentes empenhados nessa transformação. Não há visão teórica que observe os procedimentos reais, procurando traçar deles um mapa adequado. somente na práxis revolucionária a verdade transparece.

A dificuldade dessa tese é que ela pressupõe no real um ponto de união em relação ao qual as diversas opiniões se concentram. A resposta clássica apresentou o movimento proletário como o fator da síntese. Bem mais tarde, o partido foi considerado o representante da classe revolucionária, e todos nós conhecemos as consequências nefastas dessa opinião praticante. seja como for, a própria unidade do proletariado se conforma e se representa no contexto da luta de classes. tendo a essência social do homem como pano de fundo, a divisão do trabalho e o controle da propriedade privada separam a humanidade em duas classes antagônicas, até o ponto que em se instalam numa contradição. Num de seus contrapontos, o prole-tário se identifica como aquele que perde todos os bens e direitos, a tal ponto que não lhe resta outra escolha a não ser se engajar na revolução. Nessa luta de classes radical, o proletariado se coloca como parte representante do todo, possuindo, assim, o empuxo capaz de regenerar a sociedade cindida e alienada, inaugurando o reino da liberdade, onde se reconhecem todas as lutas de classes do passado como momentos de um desenvolvimento histórico.

marx, na maturidade, diversifica sobremaneira esse esquema. O ponto de partida empírico passa a ser a realidade do capital: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual, como sua forma elemen-tar. Nossa investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria.” esta é a primeira frase de seu grande livro, O capital.8 temos diante de nós diversas sociedades unidas por seu modo de produção, cuja forma elementar, a merca-doria, impõe-se como ponto de partida da análise.

8 i, p. 41, dietz Verlag, 1957; trad. ed. Victor civita, 1983.

Pensar a humanidade

33

seria contrário a todo o pensamento marxista comparar a análise de O capital a um momento da dialética hegeliana. A obra-prima de marx se dá como unida-de autônoma, cujo ponto de partida, a produção da mercadoria, tem como uni-dade analítica uma “forma elementar”. de um lado, as sociedades são englobadas num modo de produção, o que descarta desde logo a perspectiva sociológica que cuida das peculiaridades de cada uma delas. de outro, cada mercadoria, transpassada pela contradição entre valor de uso e valor de troca, projeta-se em todas as outras, configurando um equivalente geral expresso pelo dinheiro. trata-se, pois, de formas de pensamento, Gedankenformen, como indica o próprio marx, nas quais se refletem o pensamento individual dos agentes e, em conse-quência, dos analistas. A experiência é, antes de tudo, simbólica, mercadorias se reportando a mercadorias, configurando uma teia de juízos práticos. Não formam, como temos insistido, justamente uma linguagem pré-verbal? essa lin-guagem, por sua vez, se apresenta como se desdobrando, a partir de si mesma: as mercadorias se configuram em dinheiro, este em capital, que, por sua vez, se divide em capital produtivo de mais-valor e capital improdutivo. As categorias são levadas por uma história que não se confunde com a maneira pela qual o sistema capitalista de produção se instala nesta ou naquela região, na europa ou no Brasil. configura-se uma história categorial que não se confunde com a história da instalação de um modo de produção.

A obra inacabada de Marx termina num desafio: como entender essa lógica do capital? sem enfrentar essa pergunta, sua monumental contribuição para o entendimento de nossas sociedades seria um gigante de pés de barro. deixá-lo cair por terra pode resultar que se abale sobre nós mesmos. Na crise em que vivemos, quan-do a fantástica alienação do capital financeiro se confirma a cada dia, repensar esse desafio ganha urgência inevitável. Pensar a humanidade a partir dessa herança não é uma das tarefas de nossos tempos?

5 Parece impossível nos dedicarmos a ela sem compreender os impasses do pensamento contemporâneo. Vale a pena, ainda que rapidamente, aludir a dois momentos importantes desta crise do século XX, a Fenomenologia, de um lado, consuma-se na reviravolta provocada pelas investigações de martin Heidegger;

José Arthur Giannott i

34

de outro, a Filosofia analítica resulta numa crítica interna promovida por lu-dwig Wittgenstein, principalmente em seus últimos escritos. de ambos os lados, a reflexão filosófica deixa de tomar como modelo a prática e o discurso cientí-ficos. O primeiro, aproximando filosofia e expressão poética; o segundo, apon-tando erros de gramática nos enunciados filosóficos. tanto Heidegger como Wittgenstein colocarão em xeque o pressuposto de que o logos é sempre logos de algo (logos tinos), pressuposto primeiramente formulado por Platão e conservado por toda a metafísica posterior. Nem mesmo o círculo dos círculos da ideia absoluta pensada por Hegel chega a esses limites, pois não é porque o conceito abrange seu outro para se voltar a si mesmo, não é porque o algo se repõe no circuito do movimento do Absoluto, que ele deixa de ser referência.

depois de Heidegger e Wittgenstein, a linguagem perde na filosofia con-temporânea seu antigo ponto de fuga. muitas vezes se tem interpretado a recusa de que o logos seja sempre logos de algo (logos tinos) como um convite para o irracionalismo ou para o ceticismo. Não nos parece o caso, pois, diante do desafio de pensar novas formas de racionalidade, devemos considerar que a Filosofia abandona especialmente sua pretensão de ser ciência. Heidegger sempre cuidou de pensar, antes de tudo, o ser ou, no plano mais simples, como o ser se diferencia do ente e este daquele. Pensar o ser é pensá-lo vindo a ser ente, o ser se dá junto ao ente sem que se confunda com ele. essa diferença e identidade entre ser e ente, chamada “diferença ontológica”, desempenha, principalmente depois da virada dos anos 30, papel crucial no itinerário de Heidegger. se a ciência calcula, experimenta, faz hipóteses, inferências e as-sim por diante, está sempre se debruçando sobre certos domínios do real, mostrando-se incapaz de pensar o ente na totalidade. se à Filosofia cabe re-fletir sobre o ser desligado de qualquer região do real, se somente desse modo atinge o pensamento mais puro, então a ciência não pensa pela raiz.

Pensar o ente na totalidade é, segundo Heidegger, pensar aquilo que o mostra como ente sendo como todos os outros, portanto como ser. O ato de pensar, por sua vez, designa também um ente. No caso, um ente só pode pen-sar o ser a partir do ser que ele mesmo é. esse é o privilégio do ser humano, que consiste num ente que se ocupa de seu próprio ser. Por isso Heidegger

Pensar a humanidade

35

o denomina “ser-aí” (Dasein), transfigurando uma palavra alemã cujo sentido corrente é “existência”. O ser humano é tanto ser como ente, é jogado no mundo visando se conformar a si próprio. suas determinações são meras possibilidades de ser isto ou aquilo, de se efetivar de acordo com seu ser ou em desacordo com ele – porque assim mesmo continua sendo. esse “aí” não designa um espaço, mas um “aí” como depois, antes ou agora. A existência do ser humano como ser-aí consiste, então, numa projeção de possibilidades com os pés firmando-se na terra. Para ressaltar essa transcendência, Heidegger afirma que o ser-aí ek-siste. A existência agora é ek-sistência, êxtase projetante, à medida que o ser humano deve lidar com sua própria humanidade.

Heidegger sempre considera o ser de um ponto de vista fenomenológi-co, como o ser se mostra. O ser-aí é o próprio tempo originário se abrindo para tudo que pode ser, vale dizer, para o mundo. este não é a totalidade dos fatos, mas os fatos sendo totalizados pelo ser-aí. É nessa abertura que a verdade originária se localiza. desde Aristóteles se considera o juízo declara-tivo (“O sujeito é o predicado”) como lugar da verdade. mas, para que isso ocorra, argumenta Heidegger, é preciso que o ente dito pelo próprio sujeito do enunciado se manifeste para o ser-aí. Por isso a verdade primeira não re-side na concordância entre o que é asseverado e o estado de coisa, mas nesse manifestar-se do ente. esse ente se manifestando, isto é, sendo verdadeiro, manifesta seu ser, aquilo que ele é; e o faz para o Dasein. O próprio ser-aí, por sua vez, está na verdade; consiste num ente que se ocupa de seu ser, que tem dele uma pré-compreensão e que se afina com ele. Por isso, a verdade é desve-lamento. Não é o que os gregos intuíram, quando deram à verdade o nome de alêtheia? Heidegger durante muito tempo acreditou que essa palavra grega teria sido formada pelo prefixo “a” negativo ligado a “lêthêia”, termo que possui a mesma raiz de “lêthê”, esquecimento. A mesma raiz que dá em português, por exemplo, a palavra “latência”.

Nessas condições, a verdade, tal como os gregos a teriam pensado e, no fundo, tal como Heidegger a pensa, exprime um manifestar anterior a qual-quer discurso articulado, mas que, assim sendo, está intrinsecamente ligado a um encobrimento. A verdade é um des-velamento que, por isso mesmo, se

José Arthur Giannott i

36

move na dependência de uma ocultação. desde logo, pois, o nada está no sentido do ser, porquanto se mostra como negação do ente. Heidegger não considera o nada como Hegel, segundo o qual o ser equivale ao nada porque ambos estão inteiramente desprovidos de determinações. Ao contrário, o ser é, para Heidegger, plenitude, mas de tal maneira que sempre vem a ser pleno na medida em que se manifesta, nega a determinação do ente e luta contra o encobrimento. desse ponto de vista fenomenológico, o ser e o nada se configuram para nós tais como nos aparecem. Uma verdade antepredicativa, mostradora, assegura a verdade da predicação, mas igualmente a verdade de qualquer expressão pela qual o ser se está dando.

O ser-aí recebe do ser sua determinação temporal de estar jogado no mun-do. Por sua vez, o ser não estaria na verdade se dele não cuidasse o ser-aí, se este não o trouxesse para a linguagem, onde as coisas se tornam nomeadas para serem instaladas como entes. No final da carta que, em 1946, escreve a Jean Beaufret, conhecida como Carta sobre o humanismo, Heidegger explicita: “O pensar recolhe a linguagem para junto do simples dizer. A linguagem é assim a linguagem do ser, como as nuvens são as nuvens do céu. com seu dizer, o pensar abre sulcos invisíveis na linguagem. eles são mais invisíveis que os sul-cos que o camponês, a passo lento, traça pelo campo.” É preciso notar a dupla posição do ser-aí: de um lado, o ser necessita do ser-aí para poder-se destinar, vir a ser história e se dizer articuladamente; de outro, o ser-aí necessita do ser para poder ser o que pode efetivamente ser. daí a necessidade que tem de liberar a humanidade que ele mesmo possui. Note-se, ainda, que a negação originária depende de um “nadificar”, isto é, do ser se diferenciar do ente, sendo que este só vem a ser pelo próprio ser. Já que a Filosofia é anterior à lógica, não cabe pedir uma definição filosófica do homem. ele não é como um ente, mas um ser que se faz ente para ser ligado ao ente na sua totalidade, a uma totalidade história para o qual o ser se destina. Não se deve perguntar “O que é o homem”, mas “Quem ele é?”.

6 essa junção muito peculiar do ser e do nada, esse nada se mostrando como o ser oriundo da “nadificação” do ente, está muito distante do universo em

Pensar a humanidade

37

que se movem os filósofos da análise lógica da linguagem, em particular Wit-tgenstein. este possui outra concepção do logos e, se mantém a definição clás-sica da proposição como enunciado atravessado pela bipolaridade do verda-deiro e do falso, essa bipolaridade passa a depender exclusivamente de seu uso. Heidegger desenha a Filosofia do passo para trás, do recuo do ente para o ser, da linguagem dita para seu aparecer como palavra; Wittgenstein caminha no sentido contrário, sempre avança para além de suas fórmulas linguísticas já ar-ticuladas. Heidegger toma como ponto de partida a proposição asseverativa, conformada pela junção do predicado ao sujeito, cuja verdade se arma na sua conformidade com o real. isso posto, indaga pelas condições fenomenológi-cas da presença nomeada pelo sujeito. este se apresenta então sendo algo que é como tal, no contexto de um como. interessa-lhe desmontar a estrutura feno-menológica, antepredicativa, desse algo. Para Wittgenstein, em contrapartida, deixa de ter sentido falar do ser ou do nada fora dos jogos de linguagem dos quais “ser” e “nada” participam. mais ainda: torna-se possível explicar como a fala do não-ser provém de uma falsa interpretação de uma propriedade natu-ral das regras, a de poderem elas se referir ao que não é o caso. Ao dizer “isto não é o caso”, não estou atribuindo qualquer vestígio do ser àquilo que “isto” denomina. em vez de desenvolver uma filosofia do recuo, que caminha do pensar para o impensado, Wittgenstein se lança no caminho inverso, vai além da proposição asseverativa de tal modo que o juízo passa a ser construído por meio de juízos.

Num primeiro momento, no Tractatus logico-philosophicus, faz da proposição uma imagem ou figuração, Bild formada por dois signos se abrindo um para o outro, que se juntam ou se separam, conforme os elementos do real fazem o mesmo. isso não depende de um método de projeção que liga a estrutura da proposição à estrutura do real e vice-versa? Além do mais, essa união ou separação dos signos e dos objetos têm como pano de fundo um espaço lógi-co capaz de circunscrever todas as vinculações possíveis, positivas e negativas. somente assim fica assegurada que uma proposição seja falsa ou verdadeira. Posta a proposição como Bild, Wittgenstein pode contestar a prioridade do nome sujeito e da coisa a que ele se reporta, para insistir no modo pelo qual

José Arthur Giannott i

38

os signos se juntam ou se separam a fim de representar um fato conforme os elementos que o constituem se juntam ou se separam. Foi por água abaixo uma das maiores heranças aristotélicas, a teoria das categorias, dos diversos modos de dizer o ser, os quais tinham como base a sub-stância sujeito dita pelo predicado.

Wittgenstein logo percebe que essa teoria da proposição não logra exprimir estruturas mais complexas, como as mudanças de tonalidade de uma cor. tra-ta, então, de pensar a linguagem como uma espécie de universo aberto do qual nunca poderíamos nos livrar, que só pode ser estudado por dentro mediante exemplos de situações linguísticas, onde palavras ligadas a atos determinados e a certas coisas possam mostrar seus respectivos sentidos pelo uso a que estão sendo submetidas. em vez de perguntar “Qual é o sentido da palavra ser?”, Wittgenstein simplesmente examina os vários usos da palavra “ser” numa determinada linguagem. Os exemplos vão configurando essas diferenças de emprego e mostram como as diferenças não se concentram numa matriz ori-ginária, num corpo de significações. Não vale, pois, pensar a “humanidade” como um , sem o jogo de linguagem onde esta palavra vem a ser usada.

estritamente o nome como tal não é bipolar, verdadeiro e do falso, o que desde Aristóteles caracteriza a proposição asseverativa. Nas Investigações filo-sóficas, Wittgenstein vai além desse modelo ao mostrar que, numa situação linguística determinada, num jogo de linguagem particular, uma palavra pode funcionar logicamente como se fosse uma proposição. No famoso jogo de linguagem número 2, elaborado precisamente para elucidar o procedimento de nomeação, quando um pedreiro pede a seu auxiliar que lhe traga certos materiais de construção e, ao pronunciar o nome “lajota”, recebe uma lajota, a palavra está funcionando corretamente, o que não aconteceria se recebesse um tijolo. “lajota” não pertence ao jogo das proposições. Não é a estrutura formal interna da fala que a transforma numa proposição, mas tão só seu uso dicotômico. daí a possibilidade de linguagens não-verbais, quando os sinais são seguidos correta ou incorretamente.

Para Wittgenstein, a lógica é entendida como o processo de reduzir tradi-cionais problemas filosóficos a contrassensos gramaticais, graças à montagem

Pensar a humanidade

39

de exemplos que mostram como os termos desses problemas implicam usos limitados ou inconvenientes. Nessa análise, podem aparecer problemas feno-menológicos, o que não basta para constituir, entretanto, uma fenomenologia. em determinadas situações, vai ser preciso mostrar como certos casos apare-cem, mas em vez de se colocarem tão só como entes, agora o ente é originaria-mente determinado como caso de uma regra sendo seguida. As palavras “ser”, “ente”, “mundo”, e tantas outras empregadas pela metafísica, encontram suas raízes no uso cotidiano e valem exclusivamente em cada contexto particular de significação.

toda a problemática lógica se concentra na maneira pela qual regras são formadas e seguidas. A constância do seguimento dessas regras implica cons-tâncias de comportamentos, vale dizer, de formas de vida. Que tipo de fala diz respeito a essas formas? É a própria linguagem corrente que fala dela, mas, quando isso ocorre, as expressões não mais são bipolares, verdadeiras ou falsas, mas se dão como valendo por si mesmas. Não deveríamos retomar, então, o ponto de vista da Fenomenologia? de modo nenhum. O funcionamento das proposições bipolares depende de certas certezas; uma das mais elementares, por exemplo, é a certeza de que os sinais utilizados se mantenham os mesmos durante o processo. existe, pois, uma dinâmica entre as proposições bipolares e tudo aquilo que está sendo usado tacitamente para que elas funcionem, uma base segura que, ao ser formulada, se dá mediante proposições monopolares. Qualquer dúvida formulada não duvida, enfim, da fórmula que a exprime.

A denúncia dos problemas filosóficos não termina elaborando novas teses fi-losóficas? Uma proposição monopolar pode ser usada bipolarmente e vice-versa. tudo funciona como se estivéssemos rodando uma bola cujo movimento deter-mina dois polos inertes e os círculos se movendo numa ou noutra direção. “todo jogo de linguagem se baseia em palavras e objetos que são sempre reconhecidos. Aprendemos com a mesma inexorabilidade que isto é um seixo e que 2 x 2 = 4.”9 mas não aprendemos inexoravelmente que isto é um homem, pois o homem designado pela palavra “homem” num jogo de linguagem não é estritamente o

9 Sobre a certeza, § 455.

José Arthur Giannott i

40

mesmo homem que pertence àquele objeto que participa duma imagem do mun-do que, no fundo, é quase uma mitologia que anuncia como o homem é numa certa direção. A Filosofia, nota Wittgenstein, é como uma enfermidade. mas o ser humano, como nos lembra Hegel, não há de permanecer um animal doente? doença, diremos lembrando Wittgenstein, que o impede de ser algo.

7 Percebemos que a humanidade é dita de várias maneiras. em sua diver-sidade, essas maneiras de dizer, correspondentes a diversas maneiras de ser, mostram o ser humano sempre indo além de si mesmo. Não nos é possível deixar de lidar com nossa transcendência, seja lá onde ela se manifeste. Não é por isso que saibamos o que exatamente o que este ir além significa. mas sabemos muito bem que, para ser pensado, é preciso escavar as ruínas que o pensamento cotidiano deposita nele. Não mais esperamos que a filosofia vista o uniforme do sistema, hoje ela se reduz a uma prática de repensar pensamen-tos cristalizados e preparar o terreno para que outros possam ser pensados. mais do que se projetar contra um alvo determinado, é filósofo quem apren-de a mudar de aspecto. Não acredita na “emancipação do gênero humano” enquanto a diversidade desse alvo não for esmiuçada. Não acredita na “revo-lução” enquanto não vislumbrar o que precisamente querem seus amantes e adversários. Não acredita num ponto de fuga a partir do qual todas as injus-tiças poderiam ser alinhadas e corrigidas. Para que possa vir a ser mais do que hoje é, depende da criação de uma trama de atividades coletivas que abram fendas para o futuro. Nessa abertura, a política ocupa papel muito especial. como? Justamente essa política aviltada, desmoralizada, onde o político se comporta como manipulador de votos e, muitas vezes, de dinheiro ilícito? Não é só ela, porém, que pode aceitar o desafio urgente de configurar uma nova forma de sociedade que impeça a destruição do mundo físico, natural e humano, provocada pelo modo de produção vigente?

41

C i c l o “ P e n s a r h o j e ”

Historiador, é Professor titular (aposentado) e emérito da Faculdade de Filosofia, letras e ciências Humanas da UsP e ex-diretor (fundador) do instituto de estudos Avançados (UsP). Atualmente, é Professor titular de História da cultura na Universidade Presbiteriana mackenzie. Autor de várias obras, entre as quais Nordeste 1817. Estruturas e Argumentos, 1789-1799. A Revolução Francesa, Ideias de Revolução no Brasil e outras ideias e, com Adriana lopez, História do Brasil. Uma Interpretação. em 2011, recebeu da Academia Brasileira de letras, o Prêmio machado de Assis pelo conjunto de sua obra.

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

* conferência proferida na ABl em 10 de abril de 2012.

Carlos Guilher me Mota

“Nada mais útil e eficaz que apreender as passagens (...). No processo de mudança da mentalidade coletiva, o que im-porta é penetrar os momentos de indecisa complexidade.”

(Sérgio Milliet, a propósito do renascimento, em Quatro ensaios, são Paulo: martins, 1966, p. 12)

“O passado nunca morre; ele nem é passado”.(William Faulkner)

comecemos por indagar, na perspectiva do historiador das mentalidades e ideologias: que significado pode ter o pen-

sar a História, hoje, nesta etapa do processo civilizatório que se assiste em nosso país, quando (ainda que não cultivemos uma visão

*

Carlos Guilher me Mota

42

*

apocalíptica) nos vemos em face senão do colapso, ao menos a falência de um conjunto de valores científicos, sociais e políticos? Valores que funda-mentavam até há pouco tempo as produções culturais, as reflexões político-econômicas e os projetos sociais. e de fato, como alertava Hannah Arendt, há conjunturas em que densos conceitos (como os de democracia e sociedade civil, por exemplo) perdem significado, reduzem-se a formas ocas e abrem espaço para totalitarismos de todos os tipos, inclusive religiosos.

O problema é esse: que resta de nossas antigas noções de cultura e de História, de nossa Paideia ocidental enfim? refiro-me à Paideia (ou seja, os fundamentos da cultura ocidental) predominante desde a crise de 1929 até a queda do muro de Berlim, a destruição das torres Gêmeas de Nova York e a nova crise do capitalismo de 2008 até hoje.

Nesse mesmo diapasão, perguntamo-nos hoje, em relação a quais balizas históricas a crítica da cultura, nova ou velha, pode orientar-se? e, mais parti-cularmente, impõe-se aqui indagar, sem voluntarismos: após tantas ondas de revisões de “paradigmas”, baseados em quais fundamentos teórico-filosóficos podemos hoje nos orientar para propormos a instauração de uma nova (su-postamente nova!) crítica Historiográfica, disciplina fundamental, porém abandonada no último meio século?

O pensar a História na etapa atual de nossa vida coletiva impõe algumas reflexões prévias. Partamos do que nos é mais próximo e familiar, a História no Brasil. em seguida, distanciados do equivocado debate nostradâmico sobre o “fim da História”, que consumiu páginas inúteis nas últimas décadas, re-consideremos alguns pontos para meditação sobre os estudos Históricos em seu sentido mais amplo, universal e contemporâneo. Primeiro, alguns pontos sobre o Brasil, com seus complexos e surpreendentes níveis de historicidade, ou mais diretamente:

a. sobre a natureza desta História, extremamente complexa e marcada por contradições intensas. História com raros momentos de ruptura, problema que já mereceu de historiadores desta casa estudos de profundidade, a exem-plo de raymundo Faoro, José murilo de carvalho, Alberto da costa e silva,

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

43

celso Furtado. A estes estudiosos, agregam-se as reflexões de não-acadêmicos como o pernambucano evaldo cabral de melo ou o sociólogo-historiador paulistano Florestan Fernandes, que, em perspectivas em nada coincidentes, procuraram compreender e jogar luzes nos movimentos mais profundos, es-truturais, de nossa sociedade.

b. segundo ponto: o tema da transição e mudança na História do Brasil. Particular atenção vem sendo dada à temática da transição, noção algo vaga, embaçada, que se confunde com o próprio conceito de processo histórico. Ora, observada a História do Brasil na longue durée, raras foram as transições efetivas, aquelas que significaram modificações estruturais, em profundidade, em nosso padrão societário. raríssimas rupturas, em verdade, em nosso bru-moso processo civilizatório. José Honório rodrigues dizia que na História do Brasil nunca houve rupturas significativas; ao contrário, nela o que sempre ocorreu foi a vitória da contrarrevolução permanente, como mostrou em seu polêmico Conciliação e reforma.

c. terceiro ponto. As tão faladas mudanças de paradigmas. A despeito das escassas mudanças em profundidade, estruturais, em nossa sociedade, pensar a História hoje implica darmo-nos conta da profunda mudança de paradig-mas na própria compreensão do que somos, que vem ocorrendo nas quatro últimas décadas, impondo-se o repensar crítica e interdisciplinarmente esse antiquíssimo campo do conhecimento humano. e reavaliar também o próprio fazer História neste dealbar do terceiro milênio. curioso é que, nesse pro-cesso de avanço em direção a uma nova crítica, demanda-se cada vez mais a releitura dos clássicos, de machado a Nabuco, de Gilberto Freyre ao sérgio milliet.

Nesse patamar em que nos situamos, o da História das mentalidades, po-de-se, nada obstante, apontar mudanças significativas no que diz respeito às interpretações do Brasil e à ideologia da cultura Brasileira. mudanças ocor-reram sim, se não na prática concreta, ao menos no plano dos diagnósticos e

Carlos Guilher me Mota

44

metodologias. A questão é que a crítica e os diagnósticos frequentemente são de vanguarda, mas a sociedade real ainda se rege por valores remanescentes da sociedade estamental-escravista e da ordem oligárquica da Primeira república e do estado Novo.

Nada obstante, mudanças positivas ocorrem...

Vejamos algumas, que consideramos significativas:

1. Dessacralização do personagem histórico, sobretudo do “herói na His-tória”. Na terminologia dos cientistas políticos, os “atores” são outros. Por vezes são “atrizes”, pois a questão dos Gêneros está posta para o debate: a voz dominante da Historiografia, pesadamente masculina, abre espaço a outras vozes e temas, sobretudo a voz feminina, com inúmeras historiadoras, mas também personagens, como a marquesa de santos e teresa cristina, redesco-berta por Nello Avella.... Nesse passo, o biografismo adquire nova dimensão, certamente mais rica, por conta também da conversação da História com a sociologia weberiana (a questão do carisma, por exemplo), com a interpreta-ção marxista e outras, dando novo alento ao estudo das classes, estamentos e castas sociais, conceitos histórico-analíticos para ultrapassarmos as visões de senso comum nestes tempos de neoliberalismo mental. mais: o estudo apro-fundado dos movimentos sociais vem alimentando a cultura de resistên-cia e a Contra-História. enfim, amplia-se o reconhecimento da importância da crítica ideológica que antecede a análise historiográfica, como sugerem Antonio candido, eduardo Portella, Alfredo Bosi, marco lucchesi, Walnice Galvão, carlos Fico, domício Proença, ronald Polito, entre outros.

2. Vivemos de fato a abertura de uma nova etapa histórica desde o colapso da União soviética e a falência do socialismo real, a Queda do muro de Ber-lim, o 11 de setembro, a crise do capitalismo financeiro, e a “emergência” da china, Índia e Brasil (no linguajar de economistas...). Nova etapa histórica, a atual, que solicita a rediscussão de antigos conceitos, como os de revolução, estado, cultura, capitalismo, socialismo, sociedade civil, civilização, cidade,

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

45

cidadania. e também dos esmaecidos conceitos de processo, estrutura, siste-ma, ideologia, discurso etc. em suas diversas acepções.

Nessa perspectiva, marcante foi o seminário interdiciplinar, patrocinado pela UNescO em 1959, e coordenado por roger Bastide, sociólogo, sobre Usos e Sentidos do Termo “Estrutura”,1 com vistas à elaboração de um Dicionário terminológico das Ciências Sociais. seminário que reuniu, entre outros, lévi-strauss (Antropologia), Benveniste (linguística), Étienne Wolff (Bio-logia), François Perroux (economia), Francastel (História da Arte), lagache (Psicanálise), lefebvre (marxismo), raymond Aron (ciências Políticas), lu-cien Goldmann (História da cultura), merleau–Ponty (Filosofia), Gurvitch (sociologia) e charles morazé (estruturas temporais). dicionários setoriais já haviam dado conta de vários campos do conhecimento, como os de lalan-de e, mais recente, de Norberto Bobbio, dentro de uma certa divisão ideoló-gica do trabalho intelectual.

Hoje, porém, o antigo instrumental conceitual, as lentes para enxergarmos a História, demandam aggiornamento, a rediscussão de tudo após tantas descons-truções e releituras. como advertiu o historiador português Vitorino magalhães Godinho em maio de 2011, a própria noção de capitalismo já não define o que ocorre no mundo contemporâneo: o desafio é o de descobrirmos um novo conceito analítico que dê conta do que vivemos. sobretudo nós, viventes nestas regiões semiperiféricas do Atlântico. Nessa direção, é inovadora, e útil, a obra de raymond Williams (1922-1988),2 Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e socieda-de. Um instigante dicionário histórico-filológico e transdisciplinar.

3. como decorrência, o que há de novo e positivo é que o estudo da Histó-ria das mentalidades invade todas as disciplinas, inclusive as Artes, sugerindo outros modos de contagem do tempo e análise das formas de pensamento, outras visões das temporalidades nos diferentes campos do conhecimento, da Física à Psicologia e da Genética à Historiografia. trazendo a necessidade

1 são Paulo: Herder/edUsP, 1971.2 são Paulo: Boitempo, 2007.

Carlos Guilher me Mota

46

de reconsideração das historicidades dos fatos e valores sociais, econômicos, políticos, religiosos, culturais, psicológicos, científicos, e assim por diante. complexas no caso do Brasil são, por exemplo, as batidas e fugazes noções (menos que conceitos...) de “sociedade civil” e de “cidadania”, superiormente estudadas por Faoro: terão de fato vigência neste país?3

ȅ

Vivemos uma profunda revolução no plano epistemológico, que nos obriga a repensar as noções de cultura, de História, de tempo, matérias-primas do historiador e, mais amplamente, do novo e embaraçoso papel do intelectual, que era o artesão da memória por excelência. era, até um passado recente, pois a própria ideia da missão dos intelectuais vem sendo erodida, solapada, dessacralizada. Neste embate, não estamos sós, pois a própria Universidade vem sendo posta fora do jogo, como denuncia russell Jacoby em seu inquie-tante livro Os últimos intelectuais.4

É nessa reflexão que se deve reforçar a ponte sólida entre História e lite-ratura, aqui incluída a revalorização da antiga Filologia (disciplina-irmã da História), como também das ciências sociais. Até porque dissemina-se mais

3 “existe um pensamento político no Brasil?” perguntava Faoro em 1986 na conferência de abertura de nosso instituto de estudos Avançados da UsP, publicada no n.º 1 da Revista Estudos Avançados. Acho difícil. serão tais conceitos “ideias fora do lugar”, como propôs roberto schwarz, ou o lugar é que está fora do mundo?4 mais otimista, claudio magris, crítico desta civilização da frivolidade, do espetáculo, da desconstru-ção e apagamento da memória que nos sufoca, crê que a literatura ajuda, sim, as pessoas a viver, e pode mudar a História. Ou como disse Vargas llosa sobre seu brilhante livro O Danúbio: magris, nascido em trieste e, portanto, especialista em fronteiras de civilizações, vai “contra a tendência dominante em nosso tempo de autópsia filológica ou desconstrução linguística de um texto separado de seu referente real”. Ao contrário, busca ele uma “aproximação à realidade histórica e social através das visões que dela nos dá da criação literária em seu cotejo com as que as ciências sociais nos propõem”. enfim, a literatura não se remete apenas a sí mesma, mas é, ainda nas palavras de Vargas llosa, uma “maneira privilegiada e excelsa” de viver, ajudando a “saber o que se vive e para que se vive: pois na vida há hie-rarquias, valores e desvalores, opções a defender e criticar e combater, como por exemplo as fronteiras”. (El País, Babelia, 13-12-2009, p. 27).Obs.: esta palestra já estava escrita quando tomei conhecimento do n.º 186 da Revista Tempo Brasileiro (julho-setembro de 2011), dedicado a claudio magris.

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

47

que nunca, transdisciplinarmente, o conceito de historicidade no campo da criação literária e da produção do conhecimento em geral. sem lembrar que a História também é um gênero literário, e dos mais antigos...

desconstrução e História ȄAqui entramos em uma vereda difícil. Pois é necessário que se diga que os

desconstrutores das últimas décadas tiveram um papel importante na revisão de conceitos e interpretações do que “era” texto, discurso, análise, disciplina, crítica ideológica, semântica e assim por diante. invadiram todas as áreas do conhecimento e por vezes “descobriram a pólvora” (revelando, em suas novas “leituras”, “novidades” que a Filologia Histórica e a Filosofia já haviam desvendado há séculos). mas também ajudaram a implodir noções viciadas e cristalizadas, como as de saúde, sexualidade, loucura, poder, política, pro-cesso, fato histórico, economia etc. como resultado, e visto em perspectiva, constituíram a vanguarda guerrilheira no advento da nova era tecnológica, preparando (para o bem e para o mal) o caminho para a cultura digital.

O problema é que, se foram eficazes no desmontar dos discursos de uma época (os discursos liberal, marxista, estruturalista, neopositivista etc.), se foram sutis ao lamuriarem sobre a melancolia e desencantamento (lepe-nies), e desanimados ao evocarem as “ilusões perdidas”, ao fim e ao cabo fracassaram, ou fizeram um trabalho incompleto,5 pois não deixaram sinali-zadas as rotas para a construção de pistas de decolagem de um pensamento novo. de uma nova scienza nuova.

ȅ

5 documento desta época, a produção do conhecido diretor de cinema contemporâneo, Woody Allen, ilustra o que desejo assinalar. Obsedado com a temática da memória, em especial no seu filme Desconstruindo Harry (1997), o personagem central é desfocado, logo desconstruído, apagado como qualquer súdito-contribuinte brasileiro (...), em um processo que já não cabe falar em “herói da história” ou, como gostam de dizer os cientistas políticos, em “atores” etc. enfim, tudo muito longe dos tempos em que o cinema de Hollywood nos impunha Ben-Hur ou Sansão e Dalila, ou os westerns com John Wayne...sintoma positivo desta época é, nada obstante, a vaga de documentários que vêm sendo produzidos, como os de Nelson Pereira do santos.

Carlos Guilher me Mota

48

Que fim levaram os intelectuais? Ȅ

recentemente, a chamada de capa do Babelia, suplemento de cultura do El País, lançava a pergunta: “Que fim levaram os intelectuais?” A questão está posta: seremos os últimos abencerrages?

Hoje, mais perturbadora é a mudança verificada no plano das tecnologias da comunicação. Na quadra atual, seu impacto se faz sentir precisamente nesse velho conceito de tempo, “matéria da qual somos feitos” (segundo Jor-ge luis Borges), conceito que se evapora nesta sociedade de massas, deixan-do parcos vestígios para os profissionais da antiga signação. Ora, o conceito central cultivado pelos historiadores era (e é!) justamente o de historicidade, conceito que se funda intrinsecamente na ideia de tempo, em seus desdobra-mentos e implicações (duração, processo etc.). dada a supremacia da cultura digital (choca a heroicização algo ingênua de steve Jobs), imposta como refe-rência absoluta e irreversível, o presente “aparece” dominado, domesticado e desidratado: num mesmo passo, presentifica-se também o passado e o futuro se cristaliza no presente. Pura ideologia, a da “geleia geral” eletrônica, pós-mo-derna e globalizada. Utopia por fim realizada do lugar nenhum, do não lugar. Ou seja: a vitória da ideologia sobre a Utopia: adeus mannheim...

No plano da História contemporânea das Mentalidades, a consequência é o nivelamento dos valores, a eliminação do que é relevante, a banalização da reflexão aprofundada. O aplastamento da inteligência, enfim. economiza-se tempo com os computadores, celulares, blackberrys, ipads e ipods, mas perde-se o precioso tempo da reflexão (para não falarmos do impacto de tecnologias avançadas em países subdesenvolvidos, sem preparo educacional prévio). Ou seja, visto o processo “do alto”, deixa-se o campo limpo para a implantação “democrática” da cultura do marketing que alimenta a sociedade do espetáculo e do consumo, seja nos currais eleitorais eletrônicos, seja nos aglomerados de religião massificada, seja no recôndito das universidades, academias, institutos de pesquisa e das escolas.

O que não pode ir para o ralo é todo o instrumental conceitual que sus-tentava a “cultura antiga” humanística até a entrada do século XXi, em que

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

49

as noções de processo (histórico), de estrutura, de sistema, de ideologia, de classes sociais, de crítica e de sociologia da cultura tinham vigência. Agoni-camente, podemos correr o risco de derrapar ao tentarmos utilizar tal instru-mental, que aguarda atualização... exemplo? O conceito de cidade solicita o de anticidade (como é o caso de são Paulo, anticidade desvairada). Anticida-de ou cidade-pânico (Paulo Virilio).6

4. Outro ponto, agora positivo: vivemos, felizmente, em um período pos-terior à hegemonia da História econômica e da demografia Histórica stricto sensu, em que se assistiu no Brasil ao “milagre econômico”, naqueles anos mais esquecíveis da ditadura. Uma outra Historiografia nasceu com celso Furtado, notável precursor que inaugurou uma História econômica mobilizadora, a serviço de reformas estruturais para o país, apontando já na direção de seu belo livro O longo amanhecer...em outra chave, caio Prado Júnior revelara os mecanismos recorrentes da transação (“arranjo”, dizia) em nossa História, mostrando-nos o surgimento, já na colônia, de imensa massa de desqualifica-dos, expressão triste de nosso atraso...

5. Na atualidade, vivemos também o esgotamento da antiga História Polí-tica tradicional: de Afonso Arinos e Boris Fausto a José murilo de carvalho (A cidadania no Brasil, uma análise radical) assiste-se a uma reconceituação e aprofundamento da noção de História e de Política, com nutrido diálogo multidisciplinar centrado na História latu sensu.

6 mas nem tudo é negativo. Um sinal de mudança dos tempos é a recente consagração, pelo Oscar, de um filme que é o elogio, em branco e preto, do discurso mudo, O artista, um alerta candente e paradoxal contra a hiperutilização de tecnologias presentificadoras e desistoricizantes. tecnologias que, com a correspondente ideologia autojustificadora da cultura de massas, oferecem ao consumidor a sensação de comunicação farta e “universal”, sufocando, porém, cada dia mais, a comparativamente apequenada produção e consumo de signos, símbolos e valores da cultura “antiga”. (cultura “antiga” aqui enten-dida aqui como um amplo sistema idelógico-cultural e científico que abrange grosso modo o período que, no Ocidente, vem da ilustração até o fim do século XX).

Carlos Guilher me Mota

50

A implosão e renovação da disciplina histórica ȄUm novo período abre-se, pois, na História da Historiografia, para o qual

ainda não se tem um rótulo, um título. As historiografias liberal, marxista, historicista, neopositivista, funcionalista, neoliberal e outras perderam seus estatutos epistemológicos consolidados entre 1850 e 1970, aproximadamen-te. desidrataram-se suas bases e suas certezas teóricas.

Alguns dados permitem sinalizar essa longa transição de mudanças de refe-rencial e de embasamento teórico nos estudos Históricos, a saber:

Noções há que vêm sendo abandonadas, não de agora, como as de “influ-ência”, “reflexo”, “raça”, “comunidade”, de “caráter nacional” (recordando aqui a excelente crítica de dante moreira leite), de sujeito etc.

A ideia de “influência”, a que se recorria em inúmeras “explicações” históri-cas, foi demolida na teoria por Gaston Bachelard (1884-1962), que, aceitando quase todas a ideias de Bergson, menos a de continuidade, descobriu em seu O novo espírito científico (1934) as tais “rupturas epistemológicas”. importante, nessa linha, é sua Dialética da duração (1950), sobre duração e causalidade.7

mais tarde, michel Foucault volta-se para a História, instrumentaliza a psicanálise, descobre Febvre e os caminhos da loucura na idade moderna, abrindo o foco historiográfico. e logo os da sexualidade, em seguida a micro-física do poder (Vigiar e punir) etc. com maior rigor, o inglês Quentin skinner, autor do clássico As fundações do pensamento político moderno (1978), indicou as di-reções metodológicas para a pesquisa histórica sobre o pensamento. Nada de “influências”, como se vê, pois se descobre quão difícil é... a arte de “pensar o pensado”, como notou machado de Assis, na “teoria do medalhão”.

Outra noção equivocada é a de “reflexo”, muito utilizada em certa época pelos marxistas dogmáticos. ela também implodiu (superestrutura como “re-flexo” da infraestrutura etc.). em 1946, foi um grande marxista inglês maurice dobb (1900-1976) quem revelou as vias de passagem do Feudalismo ao ca-pitalismo em análise clássica, sofisticada, isenta de mecanicismos (no Studies on

7 “O tempo pensado ganha, então, prioridade sobre o tempo vivido e a dialética das razões de hesitação se transforma numa dialética temporal” (são Paulo : editora Ática, 1988, p. 70).

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

51

the development of capitalism, mal traduzido por A evolução do capitalismo). Nosso con-temporâneo eric J. Hobsbawm, marxista light e amante do jazz, tampouco nada tem de esquemático. (Hobsbawm instiga: “marx dizia que na História as coisas ocorrem na primeira vez como tragédia e, na segunda, como farsa; mas há um padrão mais sinistro, pois as vezes após a tragédia nada mais ocorre...”).8

Na lenta História da Historiografia: Ȅmudanças e ruptura

Um demorado processo de descoberta das diferentes temporalidades, va-riando conforme os níveis da realidade, ocorreu ao longo primeira metade do século XX. citamos muito os franceses, esquecendo-nos das obras do holan-dês Johan Huizinga (1872-1945), O outono da Idade Média (1919), autor tam-bém de Homo ludens (1938) e da conhecida biografia de erasmo de roterdam. mas é no clássico O outono da idade Média que trata ele das sensibilidades, de estilos de vida e arte, e do prenúncio do renascimento: um notável precursor da chamada “Nova” História (uma expressão equivocada, de resto...).

maior repercussão teve a obra de lucien Febvre (1878-1956). ele, junta-mente com marc Bloch, reuniu em Paris um brilhante grupo de pesquisadores em torno da revista Les Annales, descobrindo e pondo em prática a interdisci-plinaridade.9 O tempo revisitado por esse contemporâneo de einstein, Freud, Picasso desponta junto com o novo pensamento científico-cultural mundial.

8 “Marx somewhere says that history repeats itself, ocurring first as tragedy, then as farce, but there is a more sinister pattern of repetition: first tragedy, then despair”. Eric J. Hobsbawm, “Intellectual and the class struggle”. In: Revolutionaries (Nova York: Pantheon Books, 1973, p. 251)9 Ver nosso ensaio “Uma trajetória: lucien Febvre”, apresentação da coletânea de estudos desse historia-dor em Febvre (são Paulo: Ática, 1978, coleção Grandes cientistas sociais, dir. Florestan Fernandes). Para esse grupo, “fazer História” era decisivo: Febvre e o então jovem François crouzet esforçaram-se na divulgação de uma História nacional no pós-guerra, depois do assassinato de marc Bloch e tantos outros perseguidos pelos nazistas (cf. l. Febvre e F. crouzet – Nous sommes des sangs-mêlés. Manuel d’histoire de la civilisation française. Paris: Albin michel, 2012. Apresentação de denis e Élisabeth crouzet. trata-se de manuscrito de 1950, recém-encontrado). Note-se que Febvre, Braudel e marc Bloch, presos durante um bom tempo, destacaram-se na luta contra o nazismo, este último, judeu, tendo sido fuzilado.

Carlos Guilher me Mota

52

com efeito, no período de entre-Guerras formaram-se as mentes dos filóso-fos e cientistas sociais que forjaram as matrizes do pensamento contemporâ-neo, a nossa “contemporaneidade”, como merleau-Ponty e mannheim.

O alemão Karl mannheim fundou sociologia da cultura denunciando o principal problema intelectual do período no pós-guerra: a “carência de re-sistência mental” para fazer frente à cultura massificada. (O autor de Ideologia e utopia merece nova leitura neste país de “miséria farta”, segundo a expressão ácida de Anísio teixeira...).

Para a renovação da Historiografia, Braudel foi decisivo, com a pesquisa sobre as temporalidades em História: como se sabe, a chave está na impac-tante introdução do La Mediterranée et le monde mediterranéen à l’époque de Phillipe II (1949). ele pavimentou o caminho para a compreensão da História profun-da como substrato da História de superfície; e abriu o diálogo entre História, ciências sociais e outras disciplinas do campo científico em geral. sua visão de mundo está sintetizada na Gramática das civilizações.10

Aprofundam-se os estudos sobre as Histórias das civilizações. de fato, nessa passagem dos anos 50 para os 60, reafirma-se História das civilizações, porém em novas bases transdisciplinares, quando se aprofundam pesquisas no campo da História das mentalidades, inaugurada por Febvre, que, aliás, andou por são Paulo, rio, tietê (nesta cidade, guiado por Antonio candido)... “Os quadros mentais são prisões de longa duração” (escreve então Braudel, discípulo dileto de Febvre). em novas bases, ganham força os estudos de ideologias culturais, políticas, econômicas, jurídicas, religiosas (a religião de rabelais, na obra-mestra de Febvre...), a temática das identidades culturais e nacionais no pós-guerra.

Note-se também que a Cambridge Modern History teve papel renovador nos anos 60, ao lado da História Geral das Civilizações (coord. de maurice crou-zet), da eruditíssima coleção Clio (da qual, mais tarde, brotaria a divulgadís-sima Nouvelle Clio), da Peuples et Civilisations, da História das Relações Internacionais

10 Braudel foi um dos principais responsáveis pelo acohimento e difusão das obras de Gilberto Freyre e caio Prado Júnior na França e na europa. Além das longas resenhas das obras desses historiadores na Revista Annales, escreveu a bela introdução à de Freyre, “Padroni e Schiavi. La Formazione della famiglia brasiliana in regime di economia patriarcale” (roma: einaudi editore, 1962).

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

53

(renouvin), da coleção de História das Ciências (coord. de Alexandre Koyré), da História das Religiões (coord. por mircea Éliade) etc. mais recentemente, tam-bém a inovadora Cambridge History of Latin America (coord. por leslie Bethell).

em busca de um novo passado: dos 60 para os 70 ȄParalelamente, ao revisionismo na europa (ao qual, guardadas as proporções,

correspondeu no Brasil o “revisionismo historiográfico”, encetado por José Honó-rio rodrigues), uma profunda revisão historiográfica ocorria também nos estados Unidos, como se constata na impactante coletânea Towards a new past: dissenting essays in American history, coordenada por Barton J. Bernstein (Nova York: randon House, 1968), da qual participaram christopher lasch, o próprio Bernstein e eugene Genovese (este, com interpretações marxistas do escravismo sulista, em que toma como modelo os trabalhos de caio Prado Júnior, Octavio ianni e Fernando Hen-rique cardoso para o Brasil). Genovese, como se sabe, publicou depois The world the slaveholders made, sobre o sul dos eUA, inspirado em Gilberto Freyre11....

Pouco depois, em 1972, publica-se outra coletânea de impacto, Historical studies today (Nova York: W.W.Norton & company, publicada simultaneamen-te no canadá), coordenada por Felix Gilbert e stephen r. Graubard, reu-nindo 20 historiadores revisionistas, dentre os quais Hobsbawm (“From social history to the History of Society”), François Furet (“Quantitative History”), le roy ladurie (idem), Felix Gilbert (sobre História intelectual), Jacques le Goff (sobre Política e História), Arthur schelsinger Jr. (“The historian as participant”), robert darnton (ler e escrever no século XViii) e thomas Kuhn (relações entre História e História da ciência).

da interdisciplinaridade Ȅdesse modo, no último meio século, centrada na História, a interdisciplina-

ridade ganha terreno e se aprofunda na interlocução com a Antropologia (carlo

11 devo ao historiador michael Hall, um pesquisador de vanguarda, a indicação dessas obras tão inova-doras, naqueles tempos de obscurantismo e fechamento.

Carlos Guilher me Mota

54

Ginzburg, roberto damatta, ruth cardoso), com a linguística (régine ro-bin), com a Geografia (manuel correia de Andrade, milton santos, Ab’saber), com a Política econômica (Fernando A. Novais), com a literatura (sergio Pau-lo rouanet com seu Rétif de la Bretonne, Bosi, Nélida Piñon e tantos mais), com o direito (Faoro, lafer, Falcão, Venancio), mas também na esfera do cinema (marc Ferro, Nelson Pereira dos santos), do teatro (sábato magaldi, Flavio Aguiar) e do jornalismo (Alberto dines, elio Gaspari, e agora merval Pereira) etc. sem preocupação com arrolamentos, note-se também que a interdiscipli-naridade abrange, obviamente, vastos campos de outras áreas do conhecimento científico-cultural e artístico. de tal modo que, nos estudos de História, a pró-pria noção de discurso foi ampliada, sobretudo com recurso à linguística. O que é “texto” afinal, que se submete dócilmente a “leituras” ?...

O crítico eduardo Portella pontuou a questão em 2006, ao dizer que “a interdisciplinaridade é outra leitura do real, a leitura que permite o fácil acesso ao outro. É nesse movimento tenso onde se desdobra uma trama reveladora: a realidade organiza o pensamento que a organiza. cada disciplina é mais que uma disciplina”12

ȅ

enfim, assistimos no último período à implosão do Historicismo, do mar-xismo dogmático, do liberalismo historiográfico, do Quantitativismo, do Psi-cologismo e do Neopositivismo. está claro, porém, que desses modos de pensar e fazer a História persistem remanescências e vícios mentais. Afinal, vale reafir-mar, “os quadros mentais são prisões de longa duração”, como dizia Braudel).

diga-se que releituras sobre as estruturas temporais e a História vêm sendo realizadas no pensamento de marx, já agora considerando os encontros e desen-contros entre os “estamentos pretéritos e classes futuras”, e modos de produção opostos ou superpostos... do mesmo modo, revisita-se a noção de tempo no pen-samento de max Weber, de Adorno e dos participantes da escola de Frankfurt...

12 Tempo Brasileiro, rJ, 164:159/162, jan.-março, 2006, p. 160.

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

55

A grande descoberta do marxismo e, depois, da École des Annales foi a de considerar os acontecimentos como expressão de estruturas em movimento. A paz (sempre provisória em Historiografia...) se verificou em um encontro marcante realizado na École Normale de saint-cloud, em maio de 1965, coordenado pelo venerando ernest labrousse e publicado em L’Histoire Sociale: sources et méthodes.13 Uma tentativa de paz, apenas...

O encontro foi aberto por Albert soboul, com a conferência “descrição e medida em História social”. soboul representava a visão marxista, agora as-souplie após sua pesquisa monumental sobre os sans-culottes durante a revolução Francesa, em confronto e aproximação com as outras visões, como a “liberal”, a neopositivista dos demógrafos, a da sorbonne e a da escola dos Annales. im-portante foi a pontuação de labrousse, chamando a atenção para a necessidade de estudos sobre “as relações entre o social e as representações coletivas do so-cial e do mental” e sobre a “História das tomadas de consciência” (pp. 4 e 292), como aliás sérgio milliet o fazia no Brasil. labrousse, historiador minucioso, quantitativista e socialista, que descobrira ter sido o 14 de julho de 1789 o dia em que o preço do pão atingiu seu ponto mais alto em Paris...

Não sem escaramuças, a “paz” de saint-cloud duraria um tempo, até os preparativos para as celebrações do Bicentenário da revolução Francesa, com o “exército” de François Furet, remanescentes do braudelismo, de um lado, contra as “brigadas” da sorbonne, de outro, sob o comando de michel Vovel-le, na tradição de Jaurès, mathiez, soboul (a linhagem jacobina, enfim).14

13 Paris: PUF, 1967.14 sobre os bastidores desse desencontro marcante, ver o esclarecedor livro de Olivier Bétourné e Aglaia l Hartig, Penser l’Histoire de la Révolution: deux siècles de passion Française. Paris: la découverte, 1989. Vale recordar que o historiador econômico marxisante dos Annales, Pierre Vilar, especialista da catalunha, perguntava se não seria possível fazer uma História quantitativa sobre as produções do espírito para, por exemplo, assinalar em que momento da conjuntura econômica surgiu no imaginário espanhol a figura do Quixote. cf. El tiempo del Quijote, em Crecimiento y desarrollo (Barcelona: editorial Ariel,1964). Vilar adverte: “Demasiados pensamientos en fuga ante la historia hacen hoy de la historia del pensamiento ‘una serie descontinua de totalidaddes singulares’” (p.332).Algumas formas de pensamento girondinas e jacobinas parecem ainda aflorar aqui e ali. em são Paulo, nos meados dos anos 90, o historiador e jurista Faoro reagiu ao ser saudado na UsP como representante da tradição jacobina: ”Não se iludam, respondeu com ironia, pois se eu pudesse ter participado da con-venção republicana, gostaria de ter-me sentado entre os girondinos condorcet e thomas Paine”...

Carlos Guilher me Mota

56

recorde-se que o início dos anos 60 foi marcado pela euforia com a “des-coberta” da interdisciplinaridade, que levou lucien Goldmann, o autor de Dieu caché e de Sciences humaines et philosophie, a repetir que “não há história que não seja sociológica; não há sociologia que não seja histórica”, que se tornou lema no combate a velhas concepções do fazer e pensar a História.

tal atitude positiva e inicialmente inovadora nas pesquisas trans e interdisci-plinares, exacerbada, deu lugar, porém, a um modismo por vezes esvaziador das disciplinas, alimentado por especialistas em generalidades simplificadoras. O que a certa altura levou à reação, por parte de alguns intelectuais como eduardo Portella, de revalorização da disciplina, cada uma com seus métodos e técnicas próprios. Afinal, para ocorrer a interdisciplinaridade, necessário se torna que os pesquisadores dominem (e muito bem) quando menos duas disciplinas do conhecimento, para não perderem o sentido das coisas e da proposta...

ȅ

Hora de concluir: pensar a História, Ȅpensar o Brasil

O tema maior, central, para pensarmos o conceito de História hoje, em nosso país, implica pararmos para refletir sobre a noção de tempo. As di-ferentes temporalidades em nossas culturas, ou melhor, as ideias de Tem-po refratadas nas ideologias culturais brasileiras. Foi Nélida Piñon quem advertiu, no ano 2000, na cidade do méxico:

“Qualquer cultura, proveniente de países de reduzida autoestima políti-ca e social, é presa fácil das culturas de exportação, constituídas de falsa, faustosa e assimilável modernidade. e que se apresentam, frente ao usuário da cultura periférica, com estrondoso aparato percuciente, impondo-lhe, como consequência, o sentimento de obsolescência e do anacronismo”.15

15 em “O mapa da arte ibero-Americana”. In: O presumível coração da América. rio de Janeiro: topbooks, 2002.p. 226. No i encontro do Fórum ibero-Americano, e organizado por carlos Fuentes e ricardo esteves.

Pensar a História (A perspectiva de um historiador das mentalidades)

57

Nélida denuncia a “falsa, faustosa e assimilável modernidade” que, por ve-zes, nos obriga a correr atrás da moda, esquecidos da lição de milton santos, que sempre alertava seus alunos a não confundirem o modo com a moda.

mais simplesmente, sugiro que a “nossa revolução cultural” tenha como pedra de toque necessidade de passarmos, nós intelectuais com certa respon-sabilidade, da atual cultura estressante do timing dos executivos apressados à cultura do andamento humanístico velho de guerra...

“temporizemos” Ȅ (Murilo Mendes)

No caso do Brasil, o sentido da História, em perspectiva transdisciplinar, foi aprofundado – por exemplo – por Florestan Fernandes, sociólogo, histo-riador e antropólogo, ao reconceiturar a natureza do capitalismo na América latina (Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, 1969) e a inaugurar, do mesmo modo que Alberto da costa e silva (embora em outra chave), uma nova Historiografia da escravidão e do negro, prolongada no estudo sobre as ambiguidades do processo de sua integração na sociedade de classes. “A África nos civilizou”, ensinou Alberto da costa e silva...

O fato é que havia já o ensaísmo bem-sucedido. ensaísmo por definição interdisciplinar, embora sem dizê-lo nem rufar tambores. No Brasil, a nova História fora descoberta na prática da pesquisa e do ensaio, sem manuais de metodologia, embora com fortes inspirações, modelos, fontes e conexões externas... Na virada do século e até os anos 40, redescobriu-se e se rein-terpretou o Brasil com lima Barreto e euclides, Gilberto Freyre, mário de Andrade, drummond, sérgio Buarque, caio Prado Júnior, Afonso Arinos e outros, o conceito de tempo variando segundo cada um deles.

entretanto, o precursor do brilhante grupo-geração dos anos 30, Freyre-Buarque-Prado, tão comemorado, foi porém Paulo Prado (1869-1943), com seu Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, como acentua carlos Augusto calil, em reedição crítica recente sob sua coordenação.16 Note-se, entretanto,

16 décima edição. são Paulo: companhia das letras, 2012, com substanciosa introdução do organi-zador. Na fortuna crítica, inclui-se ensaio Paulo Prado, o Tomasi de Lampedusa brasileiro (pp. 223-228), de minha autoria, ao lado de outros críticos.

Carlos Guilher me Mota

58

que densas e sutis percepções de historicidade já estavam em machado, lima Barreto, euclides da cunha, monteiro lobato (As cidades mortas) e até no es-quecido Amadeu Amaral17.....

ȅ

Hoje, em que o historiador-artesão já sofre por ver-se transformado em homem público numa sociedade tão injusta, tem ainda pela frente um maior desafio, que é o de saber como a utilização de novas técnicas oferecidas pela cultura digital, transdiciplinar por excelência, poderá ser combinada com an-tigos métodos e valores.

de todo modo, a História se faz com documentos, conforme o velho lema positivista e historicista. Nos dias que fluem, sabe-se que tal leitura de do-cumentos constitui trabalho multi e transdisciplinar. e que, nada obstante, para a construção de uma Teoria da História, o melhor especialista ainda é o antigo artesão historiador, pois é ele quem indaga e formula os problemas, com perspectiva mais abrangente. enquanto o historiógrafo moderno, seu cúmplice, sabe que o problema é a História do problema...

ȅ

Para concluir, ainda está para ser sistematizada essa História intelectual e das mentalidades que, percorrendo dos grandes centros às províncias mais remotas, mostre a fermentação político-ideológica regional, as pulsações locais e a produ-ção de cada época. Nela forjaram-se matrizes de pensamento que presidem o “fazer história” – e o pensar a História – até os dias presentes. À esquerda, mas também à direita, que, metamorfoseada, “modernizada” (aspas necessárias) e com poderosos e sofisticados mecanismos de apagamento da memória coletiva mais crítica e empenhada, continuam bem vivas em nosso país.18

17 O pouco estudado Amadeu Amaral (1875-1929) escreveu, no prefácio do Memorial de um passageiro de bonde, estas palavras: “As coisas da vida surgem por sí mesmas, sem prefácios nem explicações, e, no entanto, conseguem perfeitamente o fim de todas as coisas: passam! Pois façamos de conta que este prefácio já passou!”... como esta conferência.18 Adriana lopez e carlos Guilherme mota. História do Brasil: uma interpretação (são Paulo: editora senac, 2008, 2.ª edição, p. 712. Prefácio de Alberto da costa e silva)

59

educação, insubstituível opção

Eduardo Portella

O tema que me foi confiado hoje, pensar a educação, reco-menda começar pela sua contextualização em um quadro

maior que implique simultaneamente homem, sociedade, saber. e tenha em mente que, no universo da educação, do pré-escolar à pós-graduação, tudo é prioritário.

Pensar significa elucidar e compreender, em regime de diálogo. O Ocidente, é o que nos informa a história dos vencedores – a única que conhecemos – se pensa desde os pré-socráticos. com evidentes diferenças de níveis e temperaturas reflexivas. A preguiça reflexiva é um dos males nacionais. O brasileiro reage antes pelo reflexo mais ou menos condicionado, do que pela reflexão.

O homem, que já foi o super-herói do humanismo filantrópico, demonstra ostensivos sinais de fadiga. Há mesmo os que se apres-sam em proclamar “a morte do homem”. Jean-Paul sartre, tomado

Ocupante da cadeira 27 na Academia Brasileira de letras.

C i c l o “ P e n s a r h o j e ”

* conferência proferida na ABl em 17 de abril de 2012.

*

Eduardo Portella

60

pelo fantasma de uma grande guerra, chegou a afirmar: “O homem é uma paixão inútil.” décadas depois, eu mesmo, diante da voracidade cibernética, tomei a liberdade, com injustificada temeridade e nenhuma autorização, de formular uma possível errata: “O homem é uma utilidade sem paixão.”

Não saberia dizer quem está com a verdade. Ou mesmo se a verdade se encontra em alguma parte. só posso adiantar que o projeto humano perma-nece perplexo entre a relíquia tombada e a declaração de guerra. com alguma esperança de que o indivíduo social que ainda atende pelo nome de homem, evite que a sociedade do conhecimento seja reduzida à sociedade da informa-ção. Por quê? Porque o homem é em virtude de suas relações com o mundo da vida. O que nos levará a uma educação capaz de reprogramar o saber, alcançar a sabedoria, sob os auspícios do viver. educação para ser, e não somente para fazer ou para ter.

É o que me tem levado a insistir, desde sempre, na urgência de uma peda-gogia da qualidade. A qualidade nunca foi uma abstração; e sim a criteriosa construção histórico-cultural. A propalada “inclusão social” jamais passará de uma exclusão, se não se fizer acompanhar desse compromisso. sempre foi assim, mas agora depara com os índices atuais de competitividade, nacionais e internacionais. Já começamos a importar mão de obra qualificada. É claro que os empresários do ensino, e o poder público desqualificado, não levam em consideração essas constatações incômodas.

O estado brasileiro não investe o suficiente, ou, quando investe, investe mal no seu projeto educacional. O chanceler alemão Willy Brant costumava falar na “década perdida”. entre nós, levando em conta a nossa deseducação, já po-demos reconhecer pelo menos duas décadas perdidas, prejudicadas que foram pela carência e pelo desvio orçamentário. Quando as coisas se complicam, o que ocorre com frequência, apela-se para a soberania do “contingenciamento”, cujo endereço preferido é a educação, a ciência, a cultura. contingenciamos o futuro. Permanece na pauta dos problemas protelados. É o caso dos professores, ainda à espera do estatuto docente que seja também um pacto decente.

O público, a audiência escolar e transescolar, a nação, o mundo vão mu-dando. mudam com o indivíduo e a sociedade que mudam. e nós insistimos

Educação, insubst itu ível opção

61

em operar com modelos esgotados, com instrumentos com prazos de validade vencidos. Nas sociedades mais dóceis, nunca foi necessário organizar um dis-positivo de prevenção de violências escolares. Nas atuais, são imprescindíveis. sem educação, cultura, ciência, tecnologia, saúde, fica difícil acreditar que fizemos o dever de casa.

Ainda há pouco, em recente visita ao Brasil, o primeiro-ministro da china fez declarações oportunas, recolhidas pelo jornalista Joelmir Beting. “Um país – afirma ele, com um sotaque tecnocrático perfeitamente dispensável – que quer crescer precisa produzir os melhores profissionais do mundo, e isso só é possível quando o país investe no mínimo cinco (5) vezes mais do que o Brasil tem investido hoje em educação. caso contrário, o país fica emperrado, e aqueles que poderiam ser grandes profissionais acabam perdidos no merca-do de trabalho por falta da base que deveria prepará-los. com o tempo, é nor-mal a mão de obra especializada passar a ser importada, o que vem ocorrendo cada vez mais no Brasil, principalmente nos últimos cinco (5) anos, quando o país passou a crescer em passos mais largos.” O sotaque pode ser dispensado, porém o conselho convém aproveitar.

todo cuidado é pouco para evitar o domínio da razão performática, para-doxalmente aliada do delírio diversionista. A primeira privilegia os resultados, e o segundo aposta na expansão do espaço do lazer, indiferente e indiferen-ciado. Na primeira, a vontade performática não raro resvala ou reproduz os vícios da pedagogia bancária, na esteira das relações custo e benefício. Na segunda, trazendo como carro-chefe o espetáculo, encontra na sociedade civil incivilizada, destituída de traços identitários, desproporcional receptivida-de. esse balanço nas águas do entretenimento, ou no tablado do espetáculo irresponsável, é simultaneamente fascinante e perigoso. A cultura do puro espetáculo alimenta o espectador refém, e é realimentada por ele. interminável intercâmbio de futilidades, círculo vicioso difícil de romper. A telinha ou a te-lona está diante dos nossos olhos, sem pedir licença, nem negociar condições. A passarela da cultura é a interminável avenida com algum começo, mas sem nenhum término combinado, em que pesem as antevisões apocalípticas. Por ela trafegam rostos anônimos, em geral perdidos na trepidação das massas.

Eduardo Portella

62

Por que tudo isso acontece? Pergunto. A resposta que imediatamente me vem à cabeça é: porque falta cultura à educação. e não adianta, com licença de chico Buarque, chorar o “leite derramado”, e dedurar o ensino médio como o ponto de estrangulamento. É verdade, mas é pouco. devemos levar adiante uma nova alfabetização cultural. Navegar é sempre preciso. Navegar contra a correnteza é mais necessário ainda, se quisermos realmente desmassificar a massa.

O que não podemos esquecer é de que tudo, nessa corrida de obstáculos, é prioritário.

certa vez, em função pública, no Brasil, eu propus o fortalecimento do ensino pré-escolar. Os tecnocratas de plantão, com aquela arrogância direta-mente proporcional à insensibilidade, contra-argumentaram que não se tra-tava de instância que pertencesse ao sistema formal da educação. expliquei pacientemente que, embora não pertencesse, decidia a sorte da repetência e da evasão escolar nas primeiras séries formalizadas. Não sei se fui bem enten-dido. depois, em Paris, integrando a direção-Geral da Unesco, o programa da “pequena infância” veio a ser subordinado ao meu gabinete. e por uma casualidade, dessas que vêm do além, pude realizar pelo mundo afora, o que não conseguira no meu país.

tenho tendência a imaginar que o ingresso na Universidade começa no pré-escolar. A imaginação felizmente não tem limites. As formas de acesso têm, e a elas ficam limitadas. Os exames seletivos, o velho vestibular e o novo Enem, descontextualizaram. rompem a dinâmica do processo e denegam a estrutura unitária do tempo. Promovem o corte sincrônico que, no caso, não passa de uma mentira epistemológica. tão mentira, que deixa de ser episte-mológica. tratam a história, o tempo, como se fosse um bolo de aniversário. cortam as fatias, e as distribuem indiscriminadamente.

O mesmo parece acontecer com a Universidade. ela já foi o trono do saber absoluto, todo trancado atrás das muralhas do sujeito. ia morrendo de claus-trofobia quando a modernidade avisada derrubou os seus muros. mas logo em seguida, ou progressivamente, a industrialização foi impondo a sua pauta de rei-vindicações, ou o seu catálogo de demandas laborais. saltamos da universidade

Educação, insubst itu ível opção

63

da consciência para a universidade do trabalho. mas a universidade voltada a ciclotimia do emprego começou a se desestabilizar, a expor sérias rachaduras no seu edifício compacto. Foi quando, aqui e ali, deixando de lado o “conflito das faculdades”, procuramos abrir o leque das monodisciplinas. É a universidade que se encontra diante de nós: a universidade cidadã, perquiridora, transfor-madora. A cidade assiste a essa contenda com bastante desconfiança. Falta ser iluminado, o que já se chamou um dia de “direito de cidade”.

Nesse quadro, cresce o papel da pós-graduação, intimamente articulado com linhas de pesquisas. enquanto a graduação é lugar do saber sabido, a pós é o lugar do saber por saber. Foi assim que sempre a entendi, desde longín-quos e profícuos dias, quando implantamos, na Universidade Federal do rio de Janeiro, os primeiros programas de pós-graduação da nossa área, reconhe-cidos pelo conselho Federal de educação.

A educação como política de estado, federativamente enlaçada, e não apenas como tarefa de um único ministério, terá de poder operar interfaces ministe-riais, evitar o contingencionamento do conteúdo na gestão orçamentária.

mas para prosseguir, constitui pré-requisito continuar pensando, por entre caminhos e atalhos desafiantes, por entre os pequenos sertões e as grandes veredas, da ciência plantada na consciência solidária, da sociedade civil com civilidade, da comunicação sem opressão, sem brutalidade, da cultura parti-lhada entre o élan de eros e a sabedoria de thymos. essa deverá ser, ao que tudo indica, a pedagogia da qualidade.

Hélio Jesuíno

65

Pensar a transcendência

Tarcís io Padilha

Quem sou eu?, se pergunta cada ser humano, para acrescentar indagações a respeito da liberdade e dos limites de sua ação.

são perguntas que nos acodem e que, por vezes, parecem adormecidas.Assim, o homem se defronta frequentemente com desafios gno-

seológicos e ontológicos que suplantam a sua capacidade de com-preensão. É o domínio diverso e mesmo rico do inacessível, de quanto ultrapassa a nossa percepção possível. Os questionamentos avultam e escassas são ou parecem ser as nossas respostas a eles. daí as angústias, a insegurança que só opulentam os riscos existenciais. Foi o que levou Peter Wust a reiterar que a vida é em si mesma incerteza e risco. Não há que escapar de tal armadilha. isto ocorre quando certos conceitos pervadem a nossa intimidade e como que tomam conta de nós mesmos, levando-nos a respirar a atmosfera carregada de pesadas nuvens de que não nos libertamos.

Ocupante da cadeira 2 na Academia Brasileira de letras.

C i c l o “ P e n s a r h o j e ”

* conferência proferida na ABl em 24 de abril de 2012.

*

Hélio Jesuíno

Tarcís io Padilha

66

É o que se verifica ante ideias como as de transcendência, transcendente, transcendental, autotranscendência, conceitos de rara consistência e de amplo espectro, ao mesmo passo em que estão entranhadas de mistérios, de desafios ao seu entendimento. Falam do imenso dardo lançado ao homem no sentido de penetrar no mistério inefável do filosofar: o ser que gera uma dependência visceral e inspira a construção existencial, alcança todos os espaços e todos os tempos, sem, contudo, subordinar-se a tais categorias, porque está sempre acima de todas elas – o transcendente, que não se deixa envolver e cingir ao mundo da coisificação que tanto emperra o progresso da metafísica. sem-pre que pensamos ou falamos de deus, do transcendente deveríamos volver nossos passos para relembrar o que schelling nomeava “a liberdade de deus a respeito de sua própria existência”. Ou recorrermos a Heidegger “se me ocorresse de pôr por escrito uma teologia – o que por vezes eu me sinto in-clinado – então a palavra ser não deveria em nenhum caso intervir. A fé não tem necessidade do pensamento do ser”.

Falar em transcendência é respirar o clima da plenitude do ser, é ancorar-se num plano além e acima do que a experiência sensorial pode revelar-nos. É o que por igual ultrapassa o nível da conceitualização que conduz mavio-samente ao abstracionismo. Ao termo transcendência, opõe-se a imanência (in+manere), que adstringe o ser a territórios mais bem definidos, sem aber-tura para patamares mais dilatados. Os filósofos da transcendência são, na verdade, filósofos da liberdade, pois acentuam o valor e a presença do ego, sem incidir no erro de Narciso. isto porque a consciência de si é o primeiro momento da metafísica, já que o eu não é fenômeno de nada.

É imperioso referir, sobretudo em face do idealismo kantiano, a inacessibi-lidade do conhecimento do ser, do sentido da existência e de outros temas que fogem à alçada da sensibilidade epidérmica. É mais um viés do agnosticismo, sempre a constranger em demasia o campo de captação do real perseguido pelas filosofias.

transcendência nos fala, consoante o sentir de leibniz, como “um inven-tor se situa diante de sua máquina, o que um príncipe se posiciona em relação a seus súditos e mesmo um pai diante de seus filhos”. trata-se de hierarquia

Pensar a transcendência

67

ontológica de que não podemos fugir. Às vezes, a transcendência emerge da consciência do ser individual que, com angústia, se alça a um ser diverso de si mesmo e de um poder superior ao seu. No seu tom manifestamente pessi-mista, sartre assevera que “a filosofia da transcendência nos lança na grande estrada, em meio a ameaças, sob uma luz que nos cega”.

Berkeley obtempera, com prudência, que “deus é um ser dotado de per-feições transcendentes e ilimitadas; sua natureza é portanto incompreensível para espíritos finitos”. daí se conclui que a transcendência e o transcendente nos falam de um ser supremo, absoluto: deus.

É penoso, mas necessário, discernir a inteligência da sensibilidade. segre-gá-las radicalmente fora rematada insensatez. O metafísico espanhol Xavier Zubiri busca intelegizar o logos e reificar o ser, para concluir que “inteligir e sentir não só não se opõem, mas, apesar de sua essencial irredutibilidade, constituem uma só estrutura, .... que, segundo o ângulo por que se olhe, deve-mos chamar de inteligência senciente ou sentir intelectivo”.

A gnoseologia assim apresentada pressupõe uma antropologia filosófica ainda em fase embrionária. trata-se de mais bem fixar a fronteira entre a matéria e o espírito, sem isolá-los num recanto em que ambos poderiam perder-se. Por vezes filósofos e teólogos traçam limites rígidos para a atuação de ambas as realidades que formam o nosso arcabouço e, assim procedendo, geram problemas que bem poderiam denominar-se pseudo-problemas.

transcender é superar, mas há que estabelecer distinções em seu bojo. As-sim, Johannes lotz contempla a transcendência do ponto de vista epistemoló-gico e do ponto de vista ontológico. ela significa para o mestre alemão “inde-pendência de consciência. O objetivo transcende o ato cognitivo, contrapõe-se a ele como algo independente dele. com dobrada razão, o mundo exterior transcende toda nossa consciência, a qual se dirige a ele como algo já existente. em relação à nossa experiência, transcendente significa o suprassensível e o inexperimentável. O âmago essencial das coisas visíveis e toda a ordem espiri-tual transcendem nossa experiência sensório-intuitiva: são, portanto, supras-sensíveis, transcendentes, mas não absolutamente inexperimentáveis, porque mediante a reflexão experimentamos nosso pensar e querer em sua existência,

Tarcís io Padilha

68

embora não em sua espiritualidade. também no que diz respeito às essências, poderemos falar de experiência, na medida em que primariamente refulgem enquadradas totalmente na intuição. contudo, as essências desligadas do sen-sível, bem como as leis e o espiritual como tal, transcendem toda a experiência, porque só são acessíveis num novo ato apreensivo que se dispõe em frente dela (abstração explícita, intelecção da essência, consequência de um raciocínio). convém-lhes também a transcendência no sentido de inexperimentabilidade. O pensamento dirigido ao inexperimentável chama-se especulação.”

Na ordem do ser, transcendência significa supramundanidade. A alma hu-mana participa já desta, na medida em que, mercê de sua espiritualidade, su-planta o mundo visível, apesar de permanecer inserta nele como forma essen-cial do corpo. O puro espírito, que não é parte nem membro do mundo, ex-prime plenamente a supramundanidade. incomparável é a transcendência ou a supramundanidade de deus, cuja infinidade sobrepuja, de modo inefável, o mundo e tudo quanto é finito; transcendência, a qual, não obstante, se une, em virtude da mesma infinidade, uma imanência igualmente incomparável. A transcendência reflui para a transcendência porque a supramundanidade traz consigo também uma rigorosíssima supra-sensibilidade e inexperimenta-lidade. considerada do ponto de vista lógico, a transcendência convém àque-les conceitos universalíssimos que ultrapassam todas as categorias e, em geral, todas as ordens particulares, envolvendo absolutamente tudo dentro de sua extensão. trata-se, neste caso, do ser e dos chamados transcendentais. O ens compõe um conjunto de atributos que bem o caracterizam: unum, verum, bonum que provêm do tomismo original e aos quais se acrescem o pulchrum (o belo) e a res (coisa). Unidade, verdade, bondade, no plano especulativo, adornam e configuram seu perfil.

Kant tem outro enfoque em seu criticismo transcendental. de resto, para o filósofo de Koenigsberg, merece o epíteto de transcendental todo o conhe-cimento que se ocupa, em geral, não tanto de objetos, quanto de nosso modo de conhecê-los, enquanto este deve ser possível a priori.

Karl Jaspers fala do ser como envolvente (das Ungreifende), a existência se constitui por sua abertura ao Absoluto.

Pensar a transcendência

69

sobrepujando o âmbito das criaturas, surge a questão concernente à liber-dade do homem, ponto que põe em cheque a interferência divina no domínio criado. Aí se defrontaram as escolas de Bañez e de molina, o primeiro, de ca-ráter tomista, acentuava a predeterminação física pela qual o homem não age sem o impulso divino, sem o chamado concursus divinus. molina teme que a liberdade humana possa ser sacrificada. Nossos atos dimanam do poder que temos de agir ou não agir senão em virtude deste poder que nos foi conferido pela transcendência.

do ponto de vista gnoseológico, transcendência se edifica na raiz da re-lação sujeito-objeto. À pergunta que é a transcendência, Karl Jaspers respon-de: não se pode responder mediante um conhecimento da transcendência; o conhecimento é apenas indireto e se produz através de um esclarecimento do caráter incompleto do mundo, do “fracasso universal”. em Heidegger, discernem-se duas acepções: no estar-mais-além de si do dasein, e no ser enquanto ontologicamente diferente.

Ao longo da história humana, as religiões e as filosofias atribuíram à trans-cendência um lugar de patente destaque, sem obscurecer sua relevância gno-seológica e ontológica.

História das religiões e a ênfase em deus atravessam os tempos. Podemos reconhecer uma evolução da ideia de deus. mitologia e teologia, em algum momento, se deram às mãos na empreitada de consolidar o conceito de um ser supremo.

e, com marcante presença no cenário filosófico, especialmente em nosso País, difunde-se a lei sociológica dos três estados de Augusto comte que moldou o abismo que separa o período teológico, o metafísico e o positivo. Não apenas as instituições, a humanidade em geral, senão o desenvolvimento de cada ser humano. eis a palavra de comte: “cada um de nós foi teólogo em sua infância, metafísico em sua mocidade e físico em sua virilidade.” A ciência passou a ocupar o lugar que antes cabia à metafísica e á religião. daí o realce propagonizado pela ciência e pela tecnologia que, por simples gravi-dade, geraram um consumismo que dominou os espíritos e neles fez morada aparentemente duradoura.

Tarcís io Padilha

70

É extremamente rica a literatura a respeito das religiões, em geral, e de deus, em particular. A rigor, onde uma civilização viceja e se constitui, lá se consolida uma crença num poder supremo. seria matéria para infindas pes-quisas. Aqui apenas registramos a presença do fenômeno religioso, recordan-do a palavra de Novalis: “todo sentimento absoluto é religioso.”

Nem sempre se vislumbram sequer as franjas da transcendência. Assim, Ferdinand Alquié avança decididamente o sinal, ao declarar: “A recusa do tempo, a nostalgia do passado, o amor do eterno não são senão fugas diante de nossa tarefa: somente os empreendimentos temporais podem manifestar nossa fidelidade ao espírito.”

O eu retoma as redes da problemática ontológica. Assim, Bergson atira a barra mais longe: “Um dos objetos da evolução criadora consiste em mos-trar que o todo é, ..., de mesma natureza do eu, e que o apreende por um aprofundamento mais e mais completo de si-mesmo!”

Kierkegaard, com razão, dá ênfase à riqueza existencial, quando assevera: “A existência é a narrativa sobre a qual o pensamento puro naufraga.” este poderia ser apontado como um postulado do existencialismo para uma me-tafísica capaz de dar conta dos altiplanos do espírito e do cotidiano da vida humana.

Fiado em tal asserção, Bergson volta à carga para reforçar a tese de que “para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar em amadurecer, amadurecer em se criar indefinidamente a si-mesmo”. É a permanente cons-trução existencial. somos um ser in fieri que, por sucessivos atos livres, mo-delamos o nosso ser pessoal. tudo sob as vistas do ser total, que é presença eterna, abrindo-se à participação criadora e moral dos seres humanos, assim vistos como atos participados.

e o deus tão proclamado tem sua existência atestada pela realidade, por argumentos apodíticos ou será apenas um ídolo que mantém distância do ser humano, que o busca com tamanha sofreguidão?

Após as manifestações filosóficas de Platão que chegou a afiançar que “é de capital importância um pensamento correto sobre os deuses, se se quiser

Pensar a transcendência

71

conduzir bem a própria vida”, indo ao extremo de proclamar, em suas leis, que “deus, e não o homem, é a medida de todas as coisas” e de Aristóteles, com a preeminência do Ato Puro, em que o estagirita timbra em atestar uma distância ilimitada ente deus e os homens, sobreveio o neoplatonismo, com Plotino à frente. É um momento mágico da evolução da filosofia, pois o fi-lósofo egípcio continuou, em certo sentido, o platonismo em seus aspectos positivos e negativos. O Uno é o ser necessário, transcendente, vale dizer, deus. A inteligência já põe em realce a dualidade de sujeito e objeto. A seguir a alma representa uma pluralidade unificada, a que se segue a multiplicidade pura, configurada na matéria.

Há, porém, que discernir a teologia positiva da negativa. deus não teria vida, nem mesmo é um ser. reza Plotino, “o nome mesmo do Uno não expri-me outra coisa senão a negação da pluralidade”.

É evidente a presença do misticismo na filosofia cristã. em lalande de-frontamo-nos com uma tentativa de definição do misticismo, como uma “crença na possibilidade de uma união íntima e direta do espírito humano ao princípio fundamental do ser, união que constitui por seu turno um modo de existência e um modo de conhecimento estranhos e superiores à existência e ao conhecimento normais”.

Pinçamos um exemplo, exemplo aliás maiúsculo, do filósofo-teólogo Pseu-do-dionísio, o Aeropagita, que viveu no fim do século V ou no começo do Vi. Para o mestre, ontologicamente transcendente, a natureza divina se res-guarda de nosso limitado entendimento e permanece fora de qualquer inte-lecção pura.

dionísio discerne três vias para o conhecimento de deus: a afirmativa, a negativa e a simbólica. A primeira se permite mencionar atributos divinos, como a unidade, a paternidade e a filiação. É um alongamento dos conceitos conaturais aos homens. Na teologia negativa, parte-se das criaturas mais hu-mildes para concluir que deus, em sua absoluta transcendência, se esconde nas trevas do mistério. Na simbólica, tira seus conceitos da ordem sensível, para os aplicar a deus em sentido figurado.

Tarcís io Padilha

72

A contribuição de dionísio abriu o caminho para a compreensão da inde-vassável essência divina, sem negar a existência de um acesso aberto ao nosso entendimento da transcendência.

sobre a obra de Peudo-dionísio, marco lucchesi, ao traduzir a teologia mistica, obtempera ter sido ela “um dos eixos do Pensamento Ocidental, da idade média ao século XX, que impactou filósofos tão diversos como Hegel, Kant, spinoza, Nicolau de cusa, Heidegger, tomás de Aquino e Fichte”. É uma atualidade que desafia a deterioração do tempo histórico e se afirma majestosamente como um legado perene para a cultura.

Bem mais tarde, com o Proslogion (alocução) Anselmo de cantuária, cunhou a fórmula que ganhou foros de cidadania-fides quaerens intellectum e intellectus quae-raens fidem. em seu opus magnum colhe-se a assertiva “disse o insensato em seu coração; deus não existe’’.

O fulcro do pensamento anselmiano é o de que temos uma ideia maior do que a qual não pode existir outra maior. esta ideia contempla deus que emerge como consectário de um raciocínio que o coloca acima de tudo e que resulta de um pensamento havido como consistente, como se não houvesse outra conclusão a extrair-se do ponto de partida do filósofo. da simples ideia para o próprio ser, Anselmo criou uma ponte que, no fundo, resultou numa passagem da ideia para a realidade.

A obra separou grupos e desempenhou um papel de singular relevo nos de-bates filosóficos e teológicos da época. A ponto de haver sido repensada por Boaventura, duns scot, descartes e leibniz de um lado, cada qual lhe dando o seu colorido particular e, de outro, contraditado por tomás de Aquino e Kant.

Para Anselmo “não há dúvida de que alguma coisa de que não podemos conceber de maior existe, seja na inteligência, seja na realidade”. É o chamado argumento ontológico. Kant criticou a tese, sustentando que da ideia para a realidade há um abismo impossível de vencer. mas o pensador inglês parte de outro pressuposto, vale dizer, o de que o ser concebido não é um ser mera-mente conceitual, mas algo de real e mesmo anterior ao conceito.

Pensar a transcendência

73

A propósito, cabe repisar perfunctoriamente as cinco vias tomistas, presen-tes nos tratados de metafísica tradicional.

Na análise percuciente de Jean-luc marion, o argumento inicial do dou-tor Angélico conduz ao primeiro motor, não sem encerrar a narrativa com um comentário adicional prenhe de inocência: “e todos entendem este como sendo deus.” O segundo, na sequência das demonstrações, concerne à causa eficiente, para terminar com os termos surpreendentes: “todos a denominam deus”. O terceiro momento diz respeito à causa de uma necessidade, que é identificada como “o que todos dizem ser deus”. O quarto argumento é o da causa da perfeição, onde também se afirma que “dizemos que ela é deus.” A quinta se prende à ideia de finalidade. descendo a cortina da mesma forma, reza mestre aquinate: “Afirmamos que ela é deus.”

A filosofia tomista se defronta com a distinção entre essência e existência, que sartre inverte antepondo a segunda à primeira. mas é imperioso subli-nhar, com o talvez maior medievalista, etienne Gilson, que “o que caracteriza a ontologia tomista é menos a distinção da essência e da existência que o primado do existir, não sobre o ser, mas em si”. O ser se define pelo existir e não como um conceito vago e perdido no espaço ontológico.

Não se pode omitir o nome de Nicolau de cusa que, de certo modo, reto-mando o fio condutor filosófico de Pseudo-dionísio, aprofunda a via mística, em sua obra de largo fôlego “De docta ignorantia”. Há um sentido socrático na mensagem do filósofo, pois a ênfase é dada pelo substantivo e não pelo adjetivo. entre o douto e o ignorante, proclama Nicolau de cusa “há ... a mesma relação que existe entre alguém que conhece o sol de vista e o cego que não o conhece por experiência própria”.

O mestre em questão acentua que pela docta ignorantia ascendemos à divinda-de. A teologia positiva como que exige a negativa da douta ignorância.

Há um modelo racionalista na filosofia moderna que admite a comprova-ção ontológica, oriunda de um conhecimento direto de deus. citam-se nesta linha de pensamento descartes, malebranche, spinoza e leibniz. Kant figura entre os agnósticos, juntamente com david Hume. Os idealistas estão bem

Tarcís io Padilha

74

representados pela trindade alemã: Fichte, schelling e Hegel. Não se pode obscurecer a presença da fenomenologia, designadamente numa leitura realis-ta que lhe deram max scheler, Heidegger, lévinas e ricœur.

sentencia max scheler: “... o pensamento... é animado não pela vontade de dominar, de organizar, de determinar, de estabelecer fixações unívocas, mas pelo movimento de simpatia, e consentimento à existência, de saudação ao acréscimo oferecido pela plenitude, no único olhar capaz de conhecer os conteúdos do mundo, que continuamente escapam às tentativas do intelecto humano e transpõem os limites dos conceitos.”

Outro grupo vê em deus uma mera ilusão. Assim, Feuerbach, marx, Nie tz sche, Freud, sartre. sustentam o ateísmo, militante ou não. como sus-tentou Hans Küng, “a teologia não pode evitar as investigações que visam a comprovar ou não a fé em deus”.

Falar de deus é excogitar sobre perfeições puras, já que nas mistas o ser se mescla ao não-ser e preludia a negação da infinitude. No ser supremo, essên-cia e existência não se distanciam, antes se confundem, uma vez que a essência divina é o seu pleno existir.

O politeísmo e o panteísmo incorrem no desvio de rumo ao não haverem captado a pureza ontológica de deus. refugiam-se em postura intermediária. O que levou schopenhauer a concluir que o panteísmo é uma forma elegante com que os homens se descartaram de deus, afiançando que ele se confunde com o mundo, com as criaturas. e o vulto quantitativo de seres que merece-riam a denominação de deuses esvaziaria o conteúdo unitário do ser.

É curial sublinhar-se o conhecimento analógico que podemos ter de deus. inútil perfilhar a tese de um conceito total capaz de abarcar o ser em sua inteireza. melhor fora que conservássemos a humildade intelectual de nos mantermos equidistantes da visão onímoda do ser e do pretenso conheci-mento esmiuçado da transcendência. certos tratados de filosofia moral ou obras de ascética e mística extrapolam de seus limites e nos seduzem por seus atrativos capazes de nos conduzir suavemente à ilusão de um conhecimento abrangente do ser.

Pensar a transcendência

75

cabe aqui ponderar que sério é o risco de cedermos aos rogos de um do-lorismo a inspirar nossas melhores virtudes. A dor, o sofrimento nos atingem, mas não lhes cumpre a ilação de ser este necessariamente o caminho mais cur-to, mais direto de conectar-nos com o ser. Por vezes, o vale de lágrimas que nos apresentam parece malbaratar o esforço espiritual de caminhar em busca da perfeição inatingível, mas nem por isso menos convidativa.

A exigência de deus não deve provir simplesmente de um apelo a uma racionalidade formal. Nem mesmo de uma análise ontológica reveladora de uma entidade superior e distinta do comum dos seres que nos circun-dam. É que a racionalidade, tão necessária ao homem em seu caminhar nas estradas poeirentas da vida, põe a nu sua indigência para a metapro-blemática.

Além e acima dos silogismos apetitosos que fazem as delícias dos espíritos geométricos, alça o seu voo no ilimitado patamar do amor, que passou a ser uma espécie de definição do próprio deus: Deus caritas est. O homem se despe de sua indumentária aparentemente garantidora de sua performance existen-cial e passa a se deixar levar pela força incoercível da afeição espontânea por um ser, que não se revela, mas se entremostra no meio das sombras que pare-cem preceder a luz, prelúdio de um amplexo ontológico decisivo no percurso existencial de cada ser humano.

Na esteira do ser, do conhecer, do existir, impõe-se uma breve consideração sobre a fenomenologia. sua nomeada surgiu com sinete marcadamente idealis-ta. No início, a fenomenologia tinha epistemologicamante um pendor realista. mas sobreveio a conversão de Husserl ao idealismo transcendental. A verdade é que muitos não lhe seguiram as pegadas, fiéis à vocação realista inaugural. destacam-se no grupo max scheler, o mais talentoso de todos, Adolph rei-nach, dietrich von Hildebrand, roman ingarden, Nikolai Hartmann e edith stein. A importante corrente de pensamento vem desempenhando relevante papel no estudo do fenômeno religioso e na questão da transcendência. rele-va acrescer que a ética foi então abordada por max scheler e daí se consolidou toda uma axiologia.

Tarcís io Padilha

76

deus como que se despe de suas representações, que se inscrevem no mun-do ontológico puro e adentra ardentemente as almas dos homens e assim lhes bosqueja o retrato existencial.

convém referir sempre a parcela da participação humana na visão de deus do que se possa supor seja a perspectiva divina.

erramos frequentemente quando pretendemos mencionar os atributos divinos. Assim, ao apontamos a onipotência em deus, apenas aceitamos passivamente a forma humana de visualizar o ser supremo. se pensarmos que deus não pode ser onipotente, pois teria que deixar margens não li-mitadas, por exemplo, para pecar, para não perdoar, etc. (pensando sim-plesmente em obediência à lógica formal), mais bem compreenderemos o abismo especulativo-prático de nossas receitas pueris ao excogitarmos da momentosa questão.

É chegado o momento de enriquecer a sucessão de filósofos com a con-tribuição original de Gabriel marcel. Uma riqueza intelectual e espiritual advinda da sinergia interna entre a filosofia e as artes, acrescida da orfanda-de precoce que lhe marcou a intimidade pessoal, marcel trouxe expressiva contribuição ao debate filosófico e opulentou a metafísica com abordagens originais, do ponto de vista metodológico e metafísico. Assim, deu especial ênfase à intersubjetividade e traçou os limites entre problema e mistério, de preferência sublinhando o papel do segundo. distinguiu o ser do ter com maestria e, com o seu diário metafísico, contribuiu significativamente para a emergência de uma filosofia existencial autônoma e distante da embófia de sartre. “Nomear deus como o tu Absoluto, é dizer que no que o con-cerne a incondicionalidade da fé se funda sobre o próprio ser: quaisquer que sejam nossas deficiências”. Assim, “o problema ontológico não é nada mais do que a interrogação sobre a totalidade do ser e sobre mim-mesmo, enquanto totalidade.”

Uma escola de alto nível para formar filósofos foi fundada por Josef sei-fert, há cerca de trinta anos. Promove seminários com participação de gran-des mestres, destacando-se robert spaemann, rocco Buttiglione, Giovanni

Pensar a transcendência

77

reale. livros, revistas e demais publicações de conteúdos consistentes são publicados.

A obra de seifert encontra seu fundamento na fenomenologia, designa-damente no pensamento de dietrich von Hildebrand e de Adolf reinach. É um esforço de reconduzir a fenomenologia às suas origens realistas. O con-tato intelectual com Karol Wojtyla, que buscou conciliar a metafísica tomista com a fenomenologia, representou para seifert o ensejo para aprofundar sua metafísica realista e personalista, onde a ação ocupa papel privilegiado. Pare-ceria um retorno à forte palavra de Goethe: no princípio, está a ação.

É patente a presença de duns scot na metafísica de seifert, especialmente no tocante às perfeições puras. Basta recordar a palavra do Filósofo: “Perfei-ção em sentido absoluto é somente o que pode subsistir em qualquer coisa como infinito.”

conclusão ȄNo evolver dos tempos, cristalizaram-se as civilizações e as culturas en-

riqueceram o patrimônio da humanidade. com a ideia de deus e a fé no invisível, proliferaram as religiões. É de vital prioridade não incidirmos no cômodo desvio do fanatismo e do dogmatismo. daí repetirmos o pensamen-to independente de simone Weil: “A religião como fonte de consolação é um obstáculo à verdadeira fé, e, neste sentido, o ateísmo é uma purificação.”

Não há, porém, como obscurecer as considerações judiciosas de Xavier tilliette, sobre schelling. Para ele, “A ideia de deus não é uma ideia como as outras, ela não vem da experiência, nem do pensamento abstrato, ela não conclui um pensamento, ela é indevassável e irrecuperável”.

Os desenvolvimentos anteriores atestaram à saciedade a complexidade e a magnitude do desafio de versar a tarefa relativa à configuração de um ser supremo.

Há os que simplesmente desconhecem a existência do problema, melhor dizendo, do mistério. A propósito Karl Jaspers nos recorda o peso impositivo

Tarcís io Padilha

78

das situações-limite, como a dor, o sofrimento moral, a angústia existencial, a carência estrutural do amor na vida humana. O limiar da morte alerta-nos para uma transcendência sempre à espreita, revelando-nos a perfectibilidade convidativa e a progressão de um vir-a-ser, que se confunde com a própria construção existencial, que nos compete coroar singularmente no abismo do ser em que nos encontramos. É chegado o momento da fé, filosófica ou teo-lógica, prelúdio da retomada da paz interior, sem a qual a vida se estiola e murcha, na noite obscura de um percurso destituído de sentido.

inversamente, o horizonte assinala a presença de uma luz que o homem descobre dentro de si mesmo, fiel ao pensamento de Agostinho: noli foras ire, in interiore hominis habitat veritas. As brumas se dissolvem ao contato com a luminosidade imperativa que aplaina as arestas para uma vida repleta de mistérios e desafios sim, mas também alcandorada pela atmosfera diáfana que o homem só vislumbra nos cumes, pois, como afiançou Goethe: somen-te nos cumes há paz.