o que falar quer dizer (pierre bourdieu)

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1 O QUE FALAR QUER DIZER 1 Pierre Bourdieu Se o sociólogo tem um papel, este seria, antes de tudo, dar armas e não lições. Vim aqui para participar de uma reflexão e tentar dar aos que têm a experiência prática de um certo número de problemas pedagógicos, os instrumentos que a pesquisa propõe para interpretá-los e compreendê-los. Se, no entanto, meu discurso é decepcionante, e às vezes até mesmo deprimente, não é porque eu tenha qualquer prazer em desencorajar; ao contrário. É que o conhecimento das realidades leva ao realismo. Uma das tentações do ofício de sociólogo é aquilo que os próprios sociólogos chamaram de socioloqismo, isto é, a tentação de transformar as leis ou as regularidades históricas em leis eternas. Daí a dificuldade que há em comunicar os produtos da pesquisa sociológica. Temos que nos situar constantemente entre dois papéis: de um lado, o de desmancha-prazeres e do outro, o de cúmplice da utopia. Hoje, aqui, gostaria de tomar como ponto de partida de minha reflexão o questionário que alguns de vocês prepararam para esta reunião. Se tomei este ponto de partida, foi com a preocupação de dar a meu discurso um enraizamento tão concreto quanto possível e evitar (o que me parece uma das condições práticas de toda relação de comunicação verdadeira) que aquele que tem a palavra, que tem o monopólio real da palavra, imponha completamente o arbitrário de sua interrogação, o arbitrário de seus interesses. A consciência do arbitrário da imposição da palavra coloca-se cada vez com mais freqüência, hoje, tanto a quem tem o monopólio do discurso quanto aos que o sofrem. Por que em certas con- dições históricas, em certas situações sociais, ressentimo-nos com angústia ou mal estar, desta demonstração de força que está sempre implícita ao se tomar a palavra em situação de autoridade ou, se quisermos, em situação autorizada, 1 Intervenção no Congresso da AFEF (Associação Francesa dos Docentes de Francês), Limoges, 30 de outubro de 1977, publicada em Le français aujourd'hui, março de 1978, 14 e suplemento.

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Page 1: O Que Falar Quer Dizer (Pierre Bourdieu)

1

O QUE FALAR QUER DIZER 1

Pierre Bourdieu

Se o sociólogo tem um papel, este seria, antes de tudo, dar armas e não

lições.

Vim aqui para participar de uma reflexão e tentar dar aos que têm a

experiência prática de um certo número de problemas pedagógicos, os

instrumentos que a pesquisa propõe para interpretá-los e compreendê-los.

Se, no entanto, meu discurso é decepcionante, e às vezes até mesmo

deprimente, não é porque eu tenha qualquer prazer em desencorajar; ao contrário.

É que o conhecimento das realidades leva ao realismo. Uma das tentações do

ofício de sociólogo é aquilo que os próprios sociólogos chamaram de

socioloqismo, isto é, a tentação de transformar as leis ou as regularidades

históricas em leis eternas. Daí a dificuldade que há em comunicar os produtos da

pesquisa sociológica. Temos que nos situar constantemente entre dois papéis: de

um lado, o de desmancha-prazeres e do outro, o de cúmplice da utopia.

Hoje, aqui, gostaria de tomar como ponto de partida de minha reflexão o

questionário que alguns de vocês prepararam para esta reunião. Se tomei este

ponto de partida, foi com a preocupação de dar a meu discurso um enraizamento

tão concreto quanto possível e evitar (o que me parece uma das condições

práticas de toda relação de comunicação verdadeira) que aquele que tem a

palavra, que tem o monopólio real da palavra, imponha completamente o arbitrário

de sua interrogação, o arbitrário de seus interesses. A consciência do arbitrário da

imposição da palavra coloca-se cada vez com mais freqüência, hoje, tanto a quem

tem o monopólio do discurso quanto aos que o sofrem. Por que em certas con-

dições históricas, em certas situações sociais, ressentimo-nos com angústia ou

mal estar, desta demonstração de força que está sempre implícita ao se tomar a

palavra em situação de autoridade ou, se quisermos, em situação autorizada,

1 Intervenção no Congresso da AFEF (Associação Francesa dos Docentes de Francês), Limoges, 30 de outubro de 1977, publicada em Le français aujourd'hui, março de 1978, n° 14 e suplemento.

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sendo o modelo desta situação a situação pedagógica?'

Assim, para dissolver, a meus próprios olhos, esta ansiedade, tomei como

ponto de partida questões que realmente se colocaram a uma parte de vocês e

que podem se colocar a todos vocês.

As questões giram em torno das relações entre o escrito e o oral e poderiam

ser formuladas da seguinte maneira: "o oral pode ser ensinado"?

Esta questão é uma forma moderna de uma velha interrogação que já se

encontrava em Platão: "A excelência pode ser ensinada?" É uma questão

absolutamente central. Pode-se ensinar alguma coisa? Pode-se ensinar algo que

não se aprende? Pode-se ensinar isto com o que o ensinamos, ou seja, com a

linguagem?

Este tipo de interrogação não surge em qualquer momento. Se, por exemplo,

ela se coloca em tal diálogo de Platão, é, parece-me, porque a questão do ensino

se coloca ao ensino quando o ensino é questionado.

É porque o ensino está em crise que há uma interrogação crítica sobre o que

é ensinar. Em tempos normais, nas fases que podemos chamar de orgânicas, o

ensino não se interroga sobre si mesmo. Uma das propriedades de um ensino

que funciona bastante bem − ou bastante mal − é de estar seguro de si mesmo,

de ter esta espécie de segurança (não é por acaso que se fala de "segurança" a

propósito da linguagem) que resulta da certeza de não apenas ser escutado, mas

compreendido, certeza que é própria de toda linguagem de autoridade ou

autorizada. Esta interrogação não é, portanto, intemporal, ela é histórica. É sobre

esta situação histórica que eu gostaria de refletir. Esta situação está ligada a, um

estado da relação pedagógica. a um estado das relações entre o sistema de

ensino e aquilo a que chamamos a sociedade global, isto é, as classes sociais, a

um estado da linguagem, a um estado da instituição escolar. Eu gostaria de tentar

mostrar que a partir das questões concretas colocadas pelo uso escolar da

linguagem, pode-se colocar ao mesmo tempo as questões mais fundamentais da

sociologia da linguagem (ou da sócio-lingüística) e da instituição escolar. Parece-

me com efeito que a sócio-lingüística teria escapado mais rapidamente da

abstração se tivesse considerado como lugar de reflexão e de constituição este

espaço particular, mas muito exemplar, que é o espaço escolar, se ela tivesse

considerado como seu objeto este uso muito particular que é o uso escolar da

linguagem.

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Vou tomar o primeiro conjunto de questões: você acha que se ensina o oral?

Que dificuldades você encontra nisso? Você encontra resistências? Você se

choca com a passividade dos alunos?...

Imediatamente, me dá vontade de perguntar: ensinar o oral? Mas que oral?

Existe algo implícito aí, como em todo discurso oral ou mesmo escrito. Há

um conjunto de pressupostos que cada pessoa traz consigo ao colocar esta

questão. Sabendo-se que as estruturas mentais são estruturas sociais

interiorizadas, temos todas as chances de introduzir, na oposição entre o escrito e

o oral, uma oposição totalmente clássica entre o distinto e o vulgar, o científico e

o popular, de maneira que o oral tem grandes chances de ganhar toda uma aura

populista. Ensinar o oral seria assim ensinar esta linguagem que se ensina na

rua, o que já leva a um paradoxo. Dito de outra forma, será que a questão da

própria natureza da língua ensinada não importa? Ou então, será que este oral

que se quer ensinar não é simplesmente algo que já se ensina, e isto de uma

forma muito desigual, segundo as instituições escolares? Sabe-se por exemplo

que as diferentes instâncias do ensino superior ensinam o oral de uma maneira

muito desigual. As instâncias que preparam para a política como Sciences Po,

ENA; ensinaram muito mais o oral e lhe dão uma importância muito maior na

atribuição de notas do que o ensino que prepara para o magistério, ou para a

técnica. Por exemplo, na Polytechnique, faz-se resumos, na ENA, faz-se aquilo

que se chama de "grande oral", na verdade é uma conversa de salão exigindo um

certo tipo de relação com a linguagem, um certo tipo de cultura. Não há nada de

novo em dizer apenas "ensinar o oral", isto já é muito comum. E este oral pode,

portanto, ser o oral da conversa mundana, o oral do colóquio internacional, etc.

Assim, perguntar "ensinar o oral?", "que oral ensinar?", não é suficiente. É

preciso perguntar também quem vai definir que oral ensinar. Uma das leis da

sócio-lingüística é que a linguagem empregada numa situação particular depende

não apenas, como o pensa a lingüística interna, da competência do locutor no

sentido chomskyano do termo, mas também daquilo que chamo de mercado

lingüístico. O discurso que produzimos, segundo o modelo que proponho, é uma

"resultante" da competência do locutor e do mercado no qual passa seu discurso;

o discurso depende em parte (que seria preciso examinar de maneira mais

rigorosa) das condições de recepção.

Toda situação lingüística funciona, portanto, como um mercado onde o

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locutor coloca seus produtos, e o produto que ele produz para este mercado

depende da antecipação que ele tem dos preços que seus produtos receberão.

No mercado escolar, queiramos ou não, nós chegamos com uma antecipação

dos lucros e das sanções que receberemos. Um dos grandes mistérios que a

sócio-lingüística deve resolver é esta espécie de sentido da aceitabilidade. Nunca

aprendemos a linguagem sem aprender ao mesmo tempo as condições de

aceitabilidade desta linguagem. Ou seja, aprender uma linguagem é ao mesmo

tempo aprender que essa linguagem será lucrativa em tal ou qual situação.

De maneira inseparável aprendemos, a falar e a avaliar antecipadamente o

preço que nossa linguagem receberá; no mercado escolar − e nisto o mercado

escolar oferece uma situação ideal para a análise − este preço é a nota, a nota

que muito freqüentemente implica num preço material (se você não tem uma boa

nota em seu trabalho final da Polytechnique, você será administrador do INSEE e

ganhará três vezes menos...). Portanto, toda situação lingüística funciona como

um mercado onde se trocam coisas. Estas coisas são, evidentemente, palavras,

mas estas palavras não são feitas apenas para serem compreendidas; a relação

de comunicação não é uma simples relação de comunicação, é também uma

relação econômica onde o valor de quem fala está em jogo: ele falou bem ou

não? É brilhante ou não é? É uma pessoa "casável" ou não?...

Os alunos que chegam ao mercado escolar sabem antecipadamente das

oportunidades de recompensa ou das sanções prometidas a tal ou qual tipo de

linguagem. Ou seja, a situação escolar enquanto situação lingüística de um tipo

particular exerce uma censura formidável sobre todos aqueles que sabem

previamente, com conhecimento de causa, das oportunidades de lucro e de

perda que têm, dada a competência lingüística de que dispõem. E o silêncio de

alguns não passa de um interesse que eles compreendem muito bem.

Um dos problemas que é colocado por este questionário é o de saber quem

governa a situação lingüística escolar. Será que o professor é o capitão a bordo?

Será que ele tem verdadeiramente a iniciativa na definição da aceitabilidade?

Será que ele domina as leis do mercado?

Todas as contradições que as pessoas que entram na experiência do ensino

do oral encontram decorrem da seguinte proposição: a liberdade do professor é

limitada quando se trata de definir as leis do mercado específico de sua classe,

pois ele apenas criará um "império num império", um sub-espaço onde as leis do

Page 5: O Que Falar Quer Dizer (Pierre Bourdieu)

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mercado dominante são suspensas. Antes de continuar, é preciso lembrar o

caráter muito particular do mercado escolar: ele é dominado pelas exigências

imperativas do professor de Francês, legitimado para ensinar o que não deveria

ser ensinado se todo mundo tivesse oportunidades iguais para adquirir esta

capacidade, e com o direito de correção no duplo sentido do termo: a correção

lingüística ("a linguagem fina") é o produto da correção. O professor é uma

espécie de juiz de menores em questões lingüísticas: tem o direito de correção e

de sanção sobre a linguagem de seus alunos.

Imaginemos, por exemplo, um professor populista que recusa este direito de

correção e diz: "Quem quiser a palavra que a tome; a linguagem mais bela é a

linguagem dos subúrbios". Na realidade, este professor, quaisquer que sejam

suas intenções, permanece num espaço que normalmente não obedece a esta

lógica, porque é muito provável que a seu lado haja um outro professor que exija

o rigor, a correção, a ortografia... Mas suponhamos que um estabelecimento

escolar inteiro seja transformado. O acontecimento prévio das oportunidades que

os alunos trazem para o mercado farão com que eles exerçam uma censura

prévia, e será preciso um tempo considerável para que abdiquem de sua

correção e sua hipercorreção, que aparecem em todas as situações de uma

forma lingüística (isto é, socialmente) assimétrica (e em particular na situação de

entrevista). Todo o trabalho de Labov só foi possível graças a uma série de

truques visando destruir o artefato lingüístico produzido pelo simples fato de se

relacionar um "competente" e um "incompetente", um locutor autorizado e um

locutor que não se sente autorizado; da mesma maneira, todo o trabalho que

fizemos em matéria de cultura, consistiu em tentar superar o efeito da imposição

de legitimidade que o simples fato de se colocar questões sobre a cultura

provoca. Colocar questões sobre a cultura, numa situação de entrevista (que se

parece a uma situação escolar), a pessoas que não se julgam cultas, exclui de

seu discurso aquilo que verdadeiramente lhes interessa. Elas buscam então, tudo

aquilo que lhes assemelha à cultura; assim, quando se pergunta: "Você gosta de

música?", jamais ouve-se como resposta “Eu gosto de Dalida", mas sim: "Eu

gosto das valsas de Strauss", porque isto, na competência popular, é o que se

parece mais com a idéia que se tem a respeito do que a burguesia gosta. Em

todas as circunstâncias revolucionárias, os populistas sempre se chocaram com

esta espécie de revanche das leis do mercado que parecem só se afirmar

Page 6: O Que Falar Quer Dizer (Pierre Bourdieu)

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quando se pensa transgredi-las.

Voltando ao ponto de partida desta digressão: quem define a aceitabilidade?

O professor é livre para abdicar de seu papel de "senhor da fala" que, ao

produzir um certo tipo de situação lingüística, ou deixando funcionar livremente a

própria lógica das coisas (o estrado, a cadeira, o microfone, a distância, o habitus

dos alunos) ou então deixando atuarem as leis que produzem um certo tipo de

discurso, produzem um certo tipo de linguagem, não apenas nele próprio mas nos

seus interlocutores. Mas em que medida o professor pode manipular as leis da

aceitabilidade sem entrar em contradições extraordinárias durante o tempo em

que as leis gerais da aceitabilidade não são modificadas? É por isto que a experi-

ência do oral é muito apaixonante. Não se pode tocar nesta coisa tão central e ao

mesmo tempo tão evidente sem se colocar as mais revolucionárias questões

sobre o sistema de ensino: pode-se modificar a língua no sistema escolar sem

modificar todas as leis que definem o valor dos produtos lingüísticos das

diferentes classes no mercado? Sem modificar as relações de dominação na

ordem lingüística, isto é, sem modificar as relações de dominação?

Chego a uma analogia que hesito em formular mesmo me parecendo

necessária: a analogia entre a crise do ensino do francês e a crise da liturgia

religiosa. A liturgia é uma linguagem ritualizada que é inteiramente codificada

(quer se trate de gestos ou palavras) e cuja seqüência é Inteiramente previsível. A

liturgia em latim é a forma limite de uma linguagem que, não sendo compreendida

mas sendo autorizada, pode funcionar em certas condições como linguagem,

para a satisfação dos emissores e receptores. Em situação de crise, esta

linguagem pára de funcionar: ela não produz mais seu principal efeito que é o de

fazer acreditar, fazer respeitar, fazer aceitar - de se fazer aceitar mesmo que a

linguagem não seja compreendida.

A questão colocada pela crise da liturgia, desta linguagem que não funciona

mais, que não se compreende mais, na qual não se acredita mais, é a questão da

relação entre a linguagem e a instituição. Quando uma linguagem está em crise e

surge a questão de saber que linguagem falar, é porque a instituição está em

crise e coloca em evidência a questão da autoridade delegante − da autoridade

que diz como falar e dá autoridade e autorização para falar.

Por este rodeio através do exemplo da Igreja, eu queria colocar a seguinte

Page 7: O Que Falar Quer Dizer (Pierre Bourdieu)

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questão: a crise lingüística é separável da crise da instituição escolar? A crise da

instituição lingüística não é a simples manifestação da crise da instituição

escolar? Em sua definição tradicional, na fase orgânica do sistema de ensino

francês, o ensino do francês não constituía problema, o professor de francês

estava assegurado: ele sabia o que deveria ensinar, como ensinar e encontrava

alunos prontos a escutá-lo, a compreendê-lo e pais que compreendiam esta

compreensão. Nesta situação, o professor de francês era um celebrante:

celebrava um culto da língua francesa, defendendo-a, ilustrando-a e reforçando

seus valores sagrados. Ao fazer isto, ele defendia seu próprio valor sagrado: isto

é muito importante porque a moral e a crença são uma consciência de seus

próprios interesses, ocultada a si mesma. Se a crise do ensino de francês

provoca crises pessoais tão dramáticas, de uma violência tão grande como as

que se viu em maio de 68 e depois, é que, através deste produto de mercado que

é a língua francesa, algumas pessoas, encostadas à parede, defendem seu

próprio valor, seu próprio capital. Elas estão prontas a morrer pelo francês... ou

pela ortografia! Da mesma forma que as pessoas que passaram quinze anos de

sua vida aprendendo o latim, quando esta língua se desvalorizou bruscamente, se

transformaram numa espécie de detentores de empréstimos russos...

Um dos efeitos da crise é fazer com que se interrogue as condições tácitas,

os pressupostos do funcionamento do sistema. Pode-se, quando a crise revela

um certo número de pressuposto, colocar a questão sistemática dos pressupostos

e se perguntar o que deve ser uma situação lingüística escolar para que os

problemas que se colocam em situação de crise já não se coloquem. Atualmente,

a lingüística mais avançada concorda com a sociologia sobre este ponto, a saber,

que o objeto primeiro da pesquisa sobre a linguagem é a explicitação dos

pressupostos da comunicação. O essencial do que se passa na comunicação não

está na comunicação: por exemplo, o essencial do que se passa numa comunica-

ção como a comunicação pedagógica está nas condições sociais da possibilidade

da comunicação. No caso da religião, para que a liturgia romana funcione, é

preciso que se produza um certo tipo de emissores e um certo tipo de receptores.

É preciso que os receptores estejam predispostos a reconhecer a autoridade dos

emissores, que os emissores não falem por sua conta, mas falem sempre como

delegados, como padres mandatários e que nunca se autorizem a definirem por si

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mesmos o que deve ser dito e o que não deve ser dito.

Ocorre o mesmo no ensino: para que o discurso professoral comum,

enunciado e recebido como óbvio, funcione, é preciso uma relação de autoridade-

crença, uma relação entre um emissor autorizado e um receptor pronto a receber

o que é dito. É preciso que um receptor pronto a receber seja produzido, e não é

a situação pedagógica que o produz.

Para recapitular de maneira abstrata e rápida, a comunicação em situação de

autoridade pedagógica supõe emissores legítimos, receptores legítimos, uma

situação legítima, uma linguagem legítima.

É preciso ter um emissor legítimo, isto é, alguém que reconheça as leis

implícitas do sistema e que seja cooptado e reconhecido enquanto tal. É preciso

haver destinatários reconhecidos pelo emissor como dignos de receber, o que

supõe que o emissor tenha o poder de eliminação, que possa excluir "os que não

deveriam estar no lugar onde estão". Mas isto não é tudo: é preciso haver alunos

que estejam prestes a reconhecer o professor como professor, e pais que dêem

uma espécie de crédito, de cheque em branco, ao professor. É preciso também

que, idealmente, os receptores sejam relativamente homogêneos lingüisticamente

(isto é, socialmente), homogêneos quanto ao conhecimento da língua e quanto ao

reconhecimento da língua, e que a estrutura do grupo não funcione como um

sistema de censura capaz de proibir a linguagem que deve ser utilizada.

Em alguns grupos escolares com predominância popular, as crianças das

classes populares podem impor a norma lingüística de seu meio e

desconsiderando aqueles que Labov chama de "caxias", e que têm uma

linguagem para os professores, a linguagem que "pega bem", isto é, afeminada e

um pouco "puxa-saco". Pode ocorrer então que a norma lingüística se choque em

algumas estruturas escolares com uma contra-norma. (Inversamente, em

estruturas de predominância burguesa, a censura do grupo dos "pares" se exerce

no mesmo sentido que a censura professoral: a linguagem que não é fina é auto-

censurada e não pode ser produzida em situação escolar).

A situação legítima é algo que ao mesmo tempo provoca a intervenção da

estrutura do grupo e do espaço institucional onde o grupo funciona. Por exemplo,

há todo um conjunto de signos institucionais de importância e especialmente a

linguagem de importância (a linguagem de importância possui uma retórica

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particular, cuja função é dizer o quanto aquilo que é dito é importante). Esta

linguagem de importância se porta de forma muito melhor numa .situação

eminente, num estrado, num lugar consagrado, etc. Entre as estratégias de

manipulação de um grupo, há a manipulação das estruturas do espaço e dos

signos institucionais de importância.

Uma linguagem legítima é uma linguagem com formas fonológicas e

sintáticas legítimas, isto é, uma linguagem que responde aos critérios habituais

de gramaticalidade, e uma linguagem que além daquilo que diz, diz

constantemente que o diz bem. E através disso, deixa crer que aquilo que diz é

verdadeiro; o que é uma das maneiras fundamentais de fazer o falso passar pelo

verdadeiro. Entre os efeitos políticos da linguagem dominante existe esse: "Ele o

diz bem e, portanto, é possível que seja verdade".

Este conjunto de propriedades que fazem um sistema e que estão reunidas

no estado orgânico de um sistema escolar, define a aceitabilidade social, o

estado através do qual a linguagem passa: ela é escutada (isto é, acreditada),

obedecida, entendida (compreendida). A comunicação se dá, no limite, por meias

palavras. Uma das propriedades das situações orgânicas é que a própria

linguagem − a parte propriamente lingüística da comunicação − tende a se tornar

secundária.

No papel de celebrante, que freqüentemente era o dos professores de arte

ou de literatura, a linguagem era quase interjeição. O discurso de celebração,

aquele dos críticos de arte por exemplo, não diz muito mais do que uma

"exclamação". A exclamação é a experiência religiosa fundamental.

Em situação de crise, este sistema de crédito mútuo se desmorona. A crise é

parecida com uma crise monetária: pergunta-se se todos os dtulos que circulam

não são assignats.2

Nada ilustra melhor a extraordinária liberdade que uma conjunção de fatores

favorecedores dá ao emissor do que o fenômeno da hipocorreção. Ao contrário

da hipercorreção, fenômeno característico do falar pequeno-burguês, a

hipocorreção só é possível porque quem transgride a regra (Giscard, por

exemplo, quando não faz a concordância do particípio passado com o verbo ter)

manifesta por outras coisas, por outros aspectos de sua linguagem, a pronúncia

2 N. T. - Assignats: papel-moeda da revolução de 1789, que terminou muito desprestigiado, quase como sinônimo de dinheiro falso.

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por exemplo, e também por tudo aquilo que é, por tudo aquilo que faz, que

poderia falar corretamente.

Uma situação lingüística jamais é propriamente lingüística. Através de todas

as questões colocadas pelo questionário que tomamos como ponto de partida,

colocavam-se ao mesmo tempo as questões mais fundamentais da s6cio-

lingüística (O que é falar com autoridade? Quais são as condições sociais da

possibilidade de uma comunicação?) e as questões fundamentais da sociologia

do sistema de ensino, que se organizam em torno da questão última da

delegação.

O professor, quer ele queira ou não, quer saiba ou não, e principalmente

quando pensa que está rompendo com as regras estabelecidas, continua um

mandatário, um delegado que não pode redefinir sua tarefa sem entrar em

contradições, nem colocar seus receptores em contradições, a não ser quando se

transformarem as leis do mercado em relação às quais ele define negativa ou

positivamente, as leis relativamente autônomas do pequeno mercado que

instaura em sua classe. Por exemplo, um professor que recusa atribuir nota ou

corrigir a linguagem de seus alunos tem o direito de fazê-lo, mas pode, ao fazer

isto, comprometer as chances de seus alunos no mercado matrimonial ou no

mercado econômico, onde as leis do mercado lingüístico dominante continuam a

se impor. O que nem por isto deve levar a uma demissão.

A idéia de produzir um espaço autônomo arrancado às leis do mercado é

uma utopia perigosa enquanto não se coloque ao mesmo tempo a questão das

condições de possibilidade política da generalização desta utopia.

P - Sem dúvida é interessante ir mais fundo na noçã o da competência

lingüística para ultrapassar o modelo chomskyano de emissor e de

locutor ideal; no entanto, suas análises da competê ncia, no sentido de

tudo aquilo que tornaria legítima uma fala, ficam à s vezes muito no ar,

particularmente a análise sobre o mercado: ora você utiliza o termo

mercado no sentido econômico, ora você identifica o mercado à troca na

situação macro e me parece que existe uma ambigüida de aí. Além disso

você não faz uma reflexão suficiente sobre o fato d e que a crise da qual

você fala é uma espécie de sub-crise ligada essenci almente à crise de um

sistema que nos engloba a todos. Seria preciso refi nar a análise de todas

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as condições das situações de troca lingüística no espaço escolar ou no

espaço educativo no sentido mais amplo.

- Evoquei aqui este modelo da competência e do mercado após uma certa

hesitação, pois é bastante evidente que para defendê-lo de forma completa

seria preciso mais tempo e eu teria que desenvolver análises muito abstratas

que forçosamente não interessariam a todo mundo. Fico muito contente, pois

sua pergunta me permite fazer algumas precisões.

Dou ao termo mercado um sentido muito amplo. Parece-me inteiramente

legítimo descrever como mercado lingüístico tanto a relação entre duas donas

de casa que conversam na rua, como o espaço escolar ou a situação de

entrevista através do qual os executivos são recrutados.

O que está em questão, quando dois locutores se falam, é a relação

objetiva entre suas competências, não apenas sua competência lingüística (seu

domínio mais ou menos completo da linguagem legítima), mas também o

conjunto de sua competência social, seu direito a falar, que depende

objetivamente de seu sexo, sua idade, sua religião, seu estatuto econômico, e

seu estatuto social, assim como das informações que poderiam ser conhecidas

antes ou ser antecipadas através de indícios imperceptíveis (ele é cortês, ele

tem uma medalha, etc.). Esta relação passa sua estrutura para o mercado e

define um certo tipo de lei da formação de preços. Há uma micro-economia e

uma macro-economia de produtos lingüísticos, estando claro que a micro-

economia nunca é autônoma em relação às leis macro-econômicas. Por

exemplo, numa relação de bilingüismo, observa-se que o locutor muda de

língua de uma maneira que não tem nada de aleatória. Pude observar. tanto na

Argélia como numa aldeia bearnesa que as pessoas mudam de língua

dependendo do assunto abordado, mas também dependendo do mercado,

dependendo da estrutura da relação entre os interlocutores, sendo que a

propensão a adotar a língua dominante aumenta em proporção à posição que a

pessoa a quem se dirige ocupa na hierarquia antecipada das competências

lingüísticas: a alguém que se considera importante, há um esforço em se dirigir

no melhor francês possível; a língua dominante domina tanto mais quanto mais

completamente os dominantes dominem o mercado particular. A probabilidade

do locutor adotar o francês para se exprimir é muito maior quando o mercado é

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dominado pelos dominantes, por exemplo, nas situações oficiais. E a situação

escolar faz parte da série dos mercados oficiais. Nesta análise, não há

economicismo. Não se trata de dizer que todo mercado é um mercado

econômico. Mas também não se deve dizer que não existe mercado lingüístico

que não implique, em maior ou menor grau, em injunções econômicas.

Quanto à segunda parte da pergunta, ela coloca o problema do direito

científico à abstração. Faz-se a abstração de um certo número de coisas e

trabalha-se no espaço por nós definido.

P - No sistema escolar que você definiu a partir de ste conjunto de

propriedades, você acha que o professor conserva, o u não, uma certa

margem de manobra? E qual seria ela?

- É uma questão muito difícil, mas acho que sim. Se eu não estivesse

convencido de que existe uma margem de manobra, não estaria metido onde

estou.

Mais seriamente, ao nível da análise, acho que uma das conseqüências

práticas do que disse é que a consciência e o conhecimento das leis específicas

do mercado lingüístico que se manifestam numa determinada turma podem, não

importando o. objetivo que se tenha (preparação para o vestibular, iniciação à

literatura moderna ou à lingüística), transformar completamente a maneira de

ensinar.

É importante saber que uma produção lingüística deve uma parte

importantíssima de suas propriedades à estrutura do público de receptores. Basta

consultar as fichas dos alunos de uma classe para perceber esta estrutura: numa

classe onde três quartos dos alunos são filhos de operários, deve-se tomar

consciência da necessidade de explicitar os pressupostos. Toda comunicação

que se pretende eficaz, supõe também um conhecimento daquilo que os

sociólogos chamam de grupo de pares: o professor sabe que sua pedagogia

pode se chocar na sala de aula com uma contra-pedagogia, com uma

contracultura; esta contracultura − e é também uma escolha − pode ser

combatida dentro de certos limites, em função do que ele quer transmitir, o que

supõe que o professor a conheça. Conhecê-la é, por exemplo, conhecer o peso

relativo das diferentes formas de competência. Entre as modificações muito

Page 13: O Que Falar Quer Dizer (Pierre Bourdieu)

13

profundas ocorridas no sistema escolar francês, há efeitos qualitativos de

transformações quantitativas: a partir de um certo limite estatístico na

representação das crianças das classes populares no interior de uma sala de

aula, a atmosfera geral da sala muda, as formas de bagunça mudam, o tipo de

relações com os professores muda. E muitas outras coisas que se pode observar

e levar em conta na prática.

Mas isso tudo se refere apenas aos meios. E, de fato, a sociologia não pode

responder à questão dos fins últimos (o que se deve ensinar?): eles são definidos

pela estrutura das relações entre as classes. As mudanças na definição do

conteúdo do ensino e mesmo a liberdade que é deixada aos professores para

que vivam essa crise, se deve ao fato de também haver uma crise na definição

dominante do conteúdo legítimo, a classe dominante sendo atualmente um lugar

de conflitos a respeito do que merece ser ensinado.

Eu não posso (seria uma usurpação, eu estaria agindo como um profeta)

definir o projeto de ensino; posso simplesmente dizer que os professores devem

saber que são delegados, mandatários, e que seus próprios efeitos proféticos

ainda precisam do apoio da instituição. O que não quer dizer que eles não devam

lutar para ser uma parte atuante na definição do que têm que ensinar.

P - Você apresentou o professor de francês como o e missor legítimo

de um discurso legítimo que é o reflexo de uma ideo logia dominante e de

classes dominantes se expressando através de um ins trumento

fortemente "impregnado" por esta ideologia dominant e: a linguagem.

Você não acha que esta definição também é muito red utora? Aliás, há

uma contradição entre o começo e o fim de sua expos ição, onde você diz

que a aula de francês e os exercícios orais também poderiam ser o lugar

de uma tomada de consciência e que esta mesma lingu agem, que podia

ser o veículo dos modelos de classes dominantes, ta mbém podia ser, para

os outros e para nós mesmos, um meio de aceder ao m anejo de

instrumentos que são instrumentos indispensáveis.

Se estou aqui, na AFEF, é porque acho que a linguag em também é um

instrumento que possui um modo de ser empregado e q ue não funciona

se não é empregado de modo conveniente; é porque es tamos con-

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vencidos disso que exigimos maior cientificidade no estudo de nossa

disciplina. O que você acha disto?

Você acha que a troca oral na sala de aula é a imag em de uma

legalidade que também seria uma legalidade social e política? A sala de

aula também não é objeto de uma contradição que exi ste na sociedade: a

luta política?

- Eu não disse nada do que você põe na minha boca. Jamais disse que a

linguagem era a ideologia dominante. Também acho que nunca pronunciei aqui

a expressão "ideologia dominante"... Isto, para mim, faz parte de mal-

entendidos muito tristes: e, ao contrário, todo meu esforço consiste em destruir

os automatismos verbais e mentais.

Que quer dizer legítimo? Esta é uma palavra técnica do vocabulário

sociológico que emprego cientemente, pois somente as palavras técnicas

permitem dizer e portanto pensar, e de maneira rigorosa, as coisas difíceis. É

legitimo uma instituição, ou uma ação, ou uso que é dominante mas

desconhecido como tal, o que quer dizer que é tacitamente reconhecido. A

linguagem que os professores empregam, a que você emprega para me falar

(uma voz: "Você também a emprega!" . É claro que eu a emprego. Mas

passo o tempo todo dizendo que o faço! ), a linguagem que empregamos

neste espaço é uma linguagem dominante desconhecida como tal, isto é,

tacitamente reconhecida como legitima. É uma linguagem que produz o

essencial de seus efeitos aparentando não ser o que é. Dai a questão: se é

verdade que falamos uma linguagem legitima, será que tudo o que podemos

dizer nesta linguagem não é afetado por isto, mesmo se colocamos este

instrumento a. serviço da transmissão de conteúdos que se querem críticos?

Outra questão fundamental: esta linguagem dominante e desconhecida

como tal, isto é, reconhecida como legitima, não tem uma afinidade com certos

conteúdos? Não exerce efeitos de censura? Não torna certas coisas difíceis ou

impossíveis de serem ditas? Esta linguagem legitima não é, entre outras coisas,

feita para proibir o falar espontâneo? Eu não deveria ter dito "feita para". (Um

dos princípios da sociologia é recusar aquele funcionalismo da pior espécie: os

mecanismos sociais não são produtos de uma intenção maquiavélica; eles são

muito mais inteligentes do que os mais inteligentes dominantes).

Tomando um exemplo irrefutável: acho que no sistema escolar, a

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linguagem legitima está em afinidade com uma certa relação ao texto que nega

(no sentido psicanalítico do termo) a relação com a realidade social da qual o

texto fala. Se os textos são lidos por pessoas que os lêem como se não os

lessem, é em grande parte porque as pessoas são formadas para falar uma

linguagem na qual elas falam para dizer que não dizem o que estão dizendo.

Uma das propriedades da linguagem legítima é justamente a de dês-realizar o

que diz. Jean-Claude Chevalier diz isso muito bem, com muita ironia: "Uma

escola que ensina o oral ainda é uma escola? Uma língua oral que se ensina na

escola ainda é oral?"

Vou dar um exemplo muito preciso no domínio da política. Impressionou-

me o fato de que os mesmos interlocutores que, em conversas faziam análises

políticas muito complicadas sobre as relações entre a direção, os operários, os

sindicatos e suas seções locais, ficassem completamente desarmados e não

dissessem mais do que banalidades quando eu lhes fazia perguntas do tipo das

que são feitas em pesquisas de opinião e também nos trabalhos acadêmicos.

Isto é, perguntas que exigem que se adote um estilo que consiste em falar de

uma maneira tal que a questão do verdadeiro Ou do falso não se coloca. O

sistema escolar ensina não apenas uma linguagem, mas uma relação com a

linguagem que corresponde a uma relação com as coisas, uma relação com os

seres, uma relação com o mundo completamente des-realizada.3

(...)

In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.

p. 75-88.

3 Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em P. Bourdieu, "Le fétichisme de la langue”, Actes de Ia recherche en sciences sociaeles, 4, julho de 1975; "L'économle des échanges IInguistiques" Lengue Française, 34, maio de 1917; "Le langage autorizé, note sur les condltions sociales de l'efficacité du discours rituel", Actes de la recherche en sciences sociales, .5-6, novembro de 1975.