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O QUE É CRÍTICA. OU: QUAL É A CRÍTICA DA GEOGRAFIA CRÍTICA? José William Vesentini* RESUMO Este texto procura problematizar o que é crítica. Para isso realiza um breve histórico do vocábulo desde a Grécia antiga, onde surgiu, até Kant, pensador que redefiniu essa atitude. De fato, a partir de Kant – inclusive em autores como Hegel, Marx, Adorno, Habermas e outros – crítica passou a ser vista como superação com subsunção e como engajamento num projeto de autonomia. Além disso, este ensaio procura verificar como o termo crítica tem sido entendido na geografia crítica, mostrando que esta é uma questão e um importante debate em andamento nos dias de hoje. PALAVRAS CHAVE: crítica, autonomia, geografia crítica, pós-modernidade. ABSTRACT This text has tried to understand critical as an intellectual issue. Thereby, a brief history of the word is produced: since the Ancient Greece, where the word was created, until Kant, thinker who redefined this expression and attitude. Indeed, from Kant – include authors like Hegel, Marx, Adorno, Habermas and others – critical means an overcome with subsume and at the same time a commitment in an autonomy project. Moreover, this essay has tried to verify how the word critical has been understood in the critical geography, showing that this is an important question and argument that has gone on nowadays. KEY WORDS: critics, autonomy, critical geography, postmodernism. Geografia ou geografias críticas. A bibliografia da/sobre essa vertente geográfica já é bastante significativa. Entretanto, uma dúvida se impõe: o que é crítica? Em que sentido esse verbete vem sendo empregado na(s) geografia(s) crítica(s)? Qual é, afinal, o significado do adjetivo crítico, frequentemente utilizado, algumas vezes com diferentes sentidos, em várias áreas do conhecimento? (Basta lembrarmos das ideias de reflexão crítica, atitude crítica, teoria crítica, pensamento crítico, ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo crítico e inúmeras outras). Esta preocupação, longe de ser diletante ou superficial, é algo que se impõe fortemente com as mudanças na realidade social, em especial com a crise terminal do antigo mundo socialista e com a relativização das noções políticas de esquerda e direita, que para muitos não têm mais sentido na realidade atual. Como iremos esquadrinhar logo adiante, a noção de crítica (especialmente a crítica social) a partir da Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX viu-se associada à ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles que propugnavam uma mudança radical na sociedade com vistas a uma maior igualdade e liberdade. Por isso tornou-se muito comum a idenfificação das noções de crítica e de radical, que também iremos problematizar. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 29 - 43, 2009 * Professor Livre Docente do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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O QUE É CRÍTICA.OU: QUAL É A CRÍTICA DA GEOGRAFIA CRÍTICA?

José William Vesentini*

RESUMOEste texto procura problematizar o que é crítica. Para isso realiza um breve histórico do vocábulodesde a Grécia antiga, onde surgiu, até Kant, pensador que redefiniu essa atitude. De fato, a partir deKant – inclusive em autores como Hegel, Marx, Adorno, Habermas e outros – crítica passou a ser vistacomo superação com subsunção e como engajamento num projeto de autonomia. Além disso, esteensaio procura verificar como o termo crítica tem sido entendido na geografia crítica, mostrando queesta é uma questão e um importante debate em andamento nos dias de hoje.

PALAVRAS CHAVE: crítica, autonomia, geografia crítica, pós-modernidade.

ABSTRACTThis text has tried to understand critical as an intellectual issue. Thereby, a brief history of the word isproduced: since the Ancient Greece, where the word was created, until Kant, thinker who redefinedthis expression and attitude. Indeed, from Kant – include authors like Hegel, Marx, Adorno, Habermasand others – critical means an overcome with subsume and at the same time a commitment in anautonomy project. Moreover, this essay has tried to verify how the word critical has been understoodin the critical geography, showing that this is an important question and argument that has gone onnowadays.

KEY WORDS: critics, autonomy, critical geography, postmodernism.

Geografia ou geografias cr ít icas. Abibliografia da/sobre essa vertente geográficajá é bastante significativa. Entretanto, umadúvida se impõe: o que é crítica? Em que sentidoesse verbete vem sendo empregado na(s)geografia(s) cr ít i ca(s)? Qual é, a f inal , osignificado do adjetivo crítico, frequentementeut i l izado, algumas vezes com d iferentessentidos, em várias áreas do conhecimento?(Basta lembrarmos das ideias de reflexão crítica,atitude crítica, teoria crítica, pensamento crítico,ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismocrítico e inúmeras outras).

Esta preocupação, longe de ser diletanteou superficial, é algo que se impõe fortemente

com as mudanças na realidade social, emespecial com a crise terminal do antigo mundosocialista e com a relativização das noçõespolíticas de esquerda e direita, que para muitosnão têm mais sentido na realidade atual. Comoiremos esquadrinhar logo adiante, a noção decrítica (especialmente a crítica social) a partirda Revolução Francesa e principalmente notranscorrer do século XIX viu-se associada àideia política de uma esquerda, isto é, àquelesque propugnavam uma mudança radical nasociedade com vistas a uma maior igualdade eliberdade. Por isso tornou-se muito comum aidenfificação das noções de crítica e de radical,que também iremos problematizar.

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 29 - 43, 2009

* Professor Livre Docente do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Para início de conversa, a verdade é queninguém mais sabe ao certo o que é esquerda edireita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracassode todas as experiências autodenominadassocialistas, fundamentadas bem ou mal nomarxismo e tendo se apresentado como “críticas”ao capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pelacrescente complexização da sociedade moderna,em especial com o declínio das lutas trabalhistasque tanto marcaram o século XIX e a primeirametade do XX, lutas essas sempre identificadascom a esquerda e com todas as vertenteslibertárias ou socialistas. Pelo advento de novossujeitos e frentes de lutas no plural – feministas,ecológicas, étnicas, de orientação sexual, demoradia, imigrantes de regiões pobres em áreasmais desenvolvidas, etc. –, que por vezes sãoaté antagônicos. Pela expansão e o enormepoderio da mídia, que juntamente com aspesquisas de opinião faz com que praticamentetodos os partidos políticos reformulem os seusdiscursos em função do que o público quer nesteou naquele momento independentemente de suaposição ideológica (se é que isso ainda existe).Por tudo isso, reiteramos, as noções de esquerdae direita tornaram-se problemáticas para definirtodo um espectro de posições políticas no mundoatual. Existe ainda uma perda de referências. Agrande bandeira de luta da velha e heroicaesquerda, aquela do século XIX e da primeirametade do século XX, a de uma sociedadeutópica1 que garantisse concomitante o máximode liberdade e de igualdade, foi completamentedestroçada por inúmeros acontecimentos eestudos científicos: pela triste realidade de todosos socialismos reais, em primeiro lugar, e tambémpor pesquisas e reflexões lógico-matemáticas, taiscomo, por exemplo, aquelas do prêmio Nobel deeconomia Amartya SEN (2001), nas quais sedemonstra cabalmente que é impossível existirum máximo de igualdade sem sacrificar aliberdade e vice-versa.

Nesses termos, alguns autores que seconsideram progressistas e apregoam um mundomelhor, com maior justiça – entendida comogarantias para as liberdades democráticas, quenão são algo eterno e acabado e sim partes deum processo de constante criação e reinvenção

de direitos – e igualdade (embora nunca total),falam em ir “além da esquerda e da direita”(LEFORT, 1983; GIDDENS, 1995), enquanto quealguns poucos outros despendem os maioresesforços no sent ido de conservar, emboraredefinindo, essas categorias políticas (BOBBIO,1995; FAUSTO, 2007).

A manutenção desses rótulos – algo queno Brasil e na América Latina em geral é umesforço quase exclusivo da autodenominada“esquerda”, sendo que nos Estados Unidos, aoinverso, é mais identificado com os conservadores– não deixa de pagar um elevado preço teórico.De fato, trata-se mais de um apego a umaidentidade vista como “positiva” (esquerda naAmérica Latina e direita nos Estados Unidos), queno fundo faz parte da autodefinição de certaspessoas e grupos, uma tentativa de se manterfiel a um certo passado (ou a determinadastradições), e no extremo – no caso de algunspartidos – é algo que visa angariar simpatias evotos.

Sem dúvida que existem teóricos sérios ebem intencionados que procuram manter essesrótulos políticos. Não estamos nos referindo aautores panfletários com visíveis insuficienciasteóricas, que não conseguem ir além domarxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel, EmirSader, Robert Kurz e outros, que escrevem comose ainda vivéssemos no século XIX, que serecusam a analisar seriamente – e aprender com– a experiência dos totalitarismos (nazismo,fascismo e comunismo), que menosprezam asconquistas democráticas. Pensamos em teóricosdo calibre de Norberto BOBBIO (1995) e RuyFAUSTO (2007), entre alguns poucos outros.Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerdahoje define-se fundamentalmente pela busca deuma maior igualdade social, enquanto que adefesa da liberdade seria mais um atributo dadireita. E Fausto pensa que uma esquerda nosdias atuais deve ser defensora intransigente dademocracia – por sinal, Bobbio também advogaessa posição, embora identificando democraciacom o liberalismo, algo que Fausto repudia – e iralém do marxismo (posição também defendidapelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de

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uma “ditadura do proletariado” (ou de qualqueroutro tipo de ditadura) e mesmo a de umaeconomia planificada sem a propriedade privadanos moldes genericamente apontados por Marx,recuperando o ideal anarquista e socialista utópicode autogestão, de cooperativas de pequenosprodutores ou trabalhadores, etc.

Essas proposições, contudo, emborasejam as mais palatáveis (sem dúvida que as maisdemocráticas) entre os que se autointitulam deesquerda, nos parecem em certa medida frágeis.Primeiro, no caso de Bobbio, significaria deixarde lado os reclames por liberdades (contra asprisões arbitrárias e a tortura, contra a violaçãodos direitos humanos, pela ampliação dos direitosdas mulheres, dos homossexuais, das etniasminoritárias, dos idosos, etc.) para a direita, algoevidentemente absurdo e oposto a toda tradiçãoprogressista da esquerda. É certo que Bobbioassinalou que a liberdade que a direita maisdefende é a do mercado, mas mesmo assiminsistiu que a bandeira de luta da esquerda ébasicamente a igualdade e não as liberdades. Emesmo a liberdade do mercado – algo que nosdias atuais inclui a proteção dos consumidores,o combate aos cartéis e monopólios, inclusiveàqueles estatais, etc. – é fundamental paraqualquer democracia moderna na medida em queainda não foi encontrado um substituto aceitável.Durante algum tempo pensou-se que aestatização e a planificação da economia fossemmelhor que o mercado, mas isso já foicompletamente descartado ao ponto de algunsautores da new left, inclusive economistas queparticiparam de planos quinquenais na Hungria ena China na época em que vigorava a economiaplanificada, terem afirmado que se houver umnovo socialismo no século XXI sem dúvida queele terá por base a economia de mercado (cf.NOVE, 1989). Depois, existe o fato óbvio de quesomente a vigência da democracia, logo dasliberdades e da participação, é que pode garantirum mínimo de igualdade – mas nunca total, poisisso é um sonho utópico no sentido literal dapalavra [isto é, “que não existe em lugar algum”],tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Naprática, a própria vigência das liberdades conduza uma certa desigualdade na medida em que as

pessoas e os grupos são desiguais nas suaspotencialidades, nas suas necessidades, no seuvalor de barganha para a sociedade, nacriatividade ou nas formas de luta, etc. E tentarimpor uma igualdade total através da única formapossível, qual seja, pela força através de umregime não democrático – um partido único nopoder (ou um l íder carismático) que dizrepresentar os trabalhadores ou o povo –, comofoi demonstrado ad nauseam, é algo que sempreresulta em privilégios abusivos para alguns, quemandam e desmandam de forma arbitrária, queusam em seu proveito pessoal os bens tidos comopúblicos. Quanto à posição de Fausto, acreditoque de fato seja interessante investir esforços nabusca de alternativas libertárias do tipo economiacom base em cooperativas, autogestão emempresas e outras instituições, etc. O problemaé que muitas vezes essas experiênciascooperativas ou autogestionárias resultam naditadura de uma pessoa ou um grupo. Ou entãona promoção de interesses corporativos – ou degrupelhos específicos – que são opostos aosinteresses maiores da sociedade. [Não podemoscontinuar a ser ingênuos hoje, depois de tantasexperiências de manipulação de assembleias –basta lembrar, sem a menor pretensão emdenegar, de inúmeras instrumentalizações da“vontade popular” em alguns orçamentosparticipativos – a respeito do assembleismo. Viade regra existem partidos ou grupelhosorganizados que conseguem impor os seus pontosde vista apriorísticos nas resoluções, seja pelocansaço da maioria seja pela manipulação dosvotos, etc.]. E ao contrário de Bobbio, Fausto nãoenfrenta o dilema da igualdade versus a liberdade;ele continua – tal como no século XIX – a escrevercomo se essa antinomia não existisse. Parodiandoo título do seu livro, podemos dizer que de fato édifícil ser [inequivocamente] de esquerda – etambém de direita – no século XXI.

Essa polêmica evidentemente já chegouna geografia crítica. Desde a última década doséculo XX, logo depois do debacle do socialismoreal no Leste europeu e na ex-União Soviética,surgiram várias listas de discussão – ou fóruns,como se denominam – na Internet a respeito doque seria uma geografia crítica hoje2. Dando uma

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rápida espiada em algumas dessas mensagens –pois é praticamente impossível ler todas (sãomilhares), algo que provavelmente nem mesmoo mediador de cada um desses grupos faz –,logo se percebe que não existe sequer um mínimoconsenso entre os participantes a respeito do queé ou deveria ser uma geografia crítica: para algunsé sinônimo (ou no mínimo complementar) doadjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista(embora nunca fique claro que tipo de socialismo),para outros simplesmente de denúncia de gruposneonazistas, de alguma forma de desigualdadesou injustiças, ou de agressões à natureza emqualquer parte do mundo, e assim por diante.

Também em livros e artigos acadêmicosesse debate se encontra em andamento. Doisgeógrafos britânicos, apesar de admitirem haver“inúmeras desavenças sobre o que seriaesquerda”, concluiram o seu artigo de formaextremamente otimista, afirmando que ela hoje“representa o futuro” (THRIFT e AMIN, 2005).Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto quejá é considerado o ensaio mais citado entre todosos que já foram publicados nessa revista –Antipode –, que em 1969 inaugurou a “geografiaradical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número darevista existe um diálogo com esse texto, porparte de um autor marxista que censura a ênfaseno pluralismo em Thrift e Amin e os chama – deforma depreciativa, pois acredita por um motivoobscuro qualquer [não explicitado] que hásemelhanças entre o pluralismo científico e a“conversão ao neoliberalismo” da esquerdatrabalhista britânica (Tony Blair e outros) – deneocríticos (SMITH, 2005). Logo no ano seguinteveio uma intervenção de uma geógrafa norte-americana, que estranhou tanto otimismo – outanta ingenuidade – por parte daqueles doisautores num momento em que inegavelmente aesquerda se encontra em crise (WILLS, 2006).Um outro autor norte-americano, nesse mesmoano, assinalou – para horror de autores comoSmith – que a partir do final dos anos 1980 nosEstados Unidos, por influência do pensamentopós-moderno em ascensão, que gradativamentepassou a subst ituir o neomarxismo comoreferência teórica nos círculos engajados dageografia acadêmica, pouco a pouco a bandeira

de uma “geografia radical” foi sendo substituídapela de “geografia crítica” (BLOMLEY, 2006).Considero pertinente este último ponto de vista,pois na verdade a ideia de uma geografia críticanasceu primeiramente na França, em 1976, comYves Lacoste e outros participantes da revistaHérodote, que desde o início se mostraramret icentes em relação ao marxismo eincorporaram ideias de pensadores anarquistas(Réclus) e pr incipalmente pós-modernos(Foucault)3. Esse geógrafo francês chegou aafirmar que o marxismo negligenciou o espaçoem prol de uma supervalorização do tempo(LACOSTE, 1988: 139-51).

Mas, prosseguindo com o seupensamento, o mencionado geógrafo norte-americano questiona sobre o que seria de fatouma atitude crítica e coloca a seguinte dúvida:será que todos nós, que dizemos praticar umageografia crítica, somos realmente críticos?(BLOMLEY, 2006: 87). Ele ainda se pergunta, combase num questionamento de um colega seu dauniversidade [cujo nome não mencionou], se oadjetivo crítico na verdade não se tornouredundante; e afirma que a tradição crítica nasciências sociais teria começado com Marx, quenum trecho célebre decretou que: “Entretanto osfilosófos somente têm interpretado, de váriasmaneiras, o mundo. A questão principal étransformá-lo” (MARX apud BLOMLEY, 2006). Ameu ver, o autor acertou em cheio ao questionaro significado de crítica [ou mesmo de radical, numoutro plano] nos dias de hoje. Mas erroucompletamente ao identificar o conceito de críticacom esse chamado ao engajamento que Marxproclamou em 1845 nas suas Teses contraFeuerbach. Como iremos mostrar a seguir, esseé um tremendo desacerto, típico da geografiaanglo-saxônica em geral que, via de regra, nãoconseguiu discernir os significados (diferentes)de crítica e de radical e tampouco esquadrinhar olongo percurso, que começou muito antes deMarx, da crítica na vida social e política.

Ipso facto, este nosso ensaio constitui umamodesta tentativa de contribuição através de umareleitura dos significados de crítica, em primeirolugar, e também dos adjetivos radical e esquerda.

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Uma releitura que vai até as origens e procuramostrar as mudanças que a noção de crítica sofreuem alguns momentos históricos cruciais. Eprincipalmente tentaremos polemizar o quesignifica uma atitude crítica hoje e se essaadjetivação ainda é necessária na geografia doséculo XXI.

Vamos iniciar pela semântica. No sensocomum a palavra crítica normalmente é vista sobum viés negativo, enquanto uma censura oucondenação, como um julgamento sempredesfavorável. Criticar, no entendimento comumamiúde encontrável na mídia, em filmes, emdiscursos políticos e mesmo em assembleiaspopulares ou trabalhistas, significa basicamente“falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, dealgum projeto ou de alguma proposição 4.Entretanto, essa não é a acepção filosófica ecient if ica do conceito. Na f ilosofia, naepistemologia e nas ciências humanas em geralo significado de crítica é o de um procedimentoque implica em discernimento, critério, apreciaçãominuciosa e julgamento que não precisa ser,necessariamente, negativo. Mais ainda: é umprocedimento tido como necessário e até mesmoimprescindível para o aprimoramento e o avançodo conhecimento5.

Etimologicamente, a palavra crítica vemdo grego kritikòs, que significa o ato de examinarou julgar alguma coisa. Essa palavra é umderivativo do vocábulo grego krinò, que pode serentendido como a capacidade de distinguir, deestabelecer uma distinção (cf. SIERRA, 1999; eCARROLI, 2006). Com os gregos da antiguidade,portanto, os criadores do vocábulo, a críticaimplicava numa reflexão, num ato reflexivo noqual se avaliava ou examinava alguma coisa: umaideia, uma teoria, um comportamento, uma peçade teatro, uma obra literária, etc. Uma avaliaçãotanto dos aspectos positivos quanto dosnegativos, um julgamento, digamos assim, da“qualidade” dessa coisa, de sua validade ouveracidade (total ou parcial) e de seus erros ouequívocos (idem).

Michel Foucault procurou datar o momentoem que a crítica passa a ter um significado político.Numa conferência pronunciada em 1978 na

Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou queno Ocidente, com o advento da modernidade,especialmente entre os séculos XV e XVI, apalavra crítica começa a denotar um tipo deposição política, uma oposição ao ato de governar,que, convém recordar, naquele momento seident if icava com a nascente monarquiaabsolutista. Na interpretação desse autor:

“E eu proporia então, como uma primeiradefinição da crítica, esta caracterização geral:a arte de não ser de tal forma governado. Nãoquerer ser governado assim, não é não maisquerer aceitar essas leis porque elas sãoinjustas, porque, sob sua antiguidade ou sob oseu brilho mais ou menos ameaçador que lhesdá a soberania de hoje, elas escondem umailegitimidade essencial. A crítica é então, desseponto de vista, em face do governo e àobediência que ele exige, opor direitosuniversais e imprescritíveis, aos quais todogoverno, qual seja ele, que se trate domonarca, do magistrado, do educador, do paide família, deverá se submeter. À questão‘como não ser governado?, responde-sedizendo: ‘quais são os limites do direito degovernar’?” (FOUCAULT, 1990 : 35-63).

Mas foi com Kant, no século XVIII, que acrítica assumiu o seu significado moderno,praticamente o mesmo posteriormente retomadopor Hegel, por Marx e pelos tantos outros filósofosou cientistas sociais que se utilizaram desseconceito para definir alguma teoria ou correntede pensamento: Adorno e Horkheimer com a suateoria crítica, Karl Popper com o seu racionalismocrítico, Paulo Freire e Giroux, dentre outros, coma proposta de uma pedagogia crítica, etc. Tantoque a filosofia kantiana também é conhecida pelonome de criticismo (LEGRAND, 1986:103-4). Suamonumental obra, Crítica da Razão Pura, é umatentativa de examinar minuciosamente aspropriedades da razão pura, aquela desligada daexperiência, estabelecendo os seus limites. Nãose trata, porém, de uma radical negação da razãoe sim uma autocrítica desta, uma espécie decontinuação do projeto iluminista de, utilizandoa razão com base na ciência moderna, combatertodas as formas de escuridão (ignorância por

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crenças e superstições, dogmatismo religioso,autoritarismo no conhecimento e na vida política).Nas suas palavras:

“O objetivo desta Crítica da razão puraespeculativa reside na tentativa de mudar oprocedimento tradicional da Metafísica epromover assim uma completa revolução nelasegundo o exemplo dos geômetras einvestigadores da natureza. (...) Com base numlance superficial de olhos sobre esta obra,poder-se-á pensar que a sua utilidade sejasomente negativa, ou seja, de não ousarmosjamais elevar-nos com a razão especulativaacima dos limites da experiência(...) Ela setornará, porém, imediatamente positivaquando nos dermos conta de que os princípios,com cujo apoio a razão especulativa ultrapassaos seus limites, na verdade têm como resultadoinevitável , se o observarmos mais de perto,não uma ampliação mas uma restrição do usoda nossa razão(...) Contestar a utilidadepositiva deste serviço prestado pela Críticaequivaleria a dizer que a polícia não possuinenhuma utilidade positiva por ser a suaprincipal ocupação fechar a porta à violência.”(KANT, 1974: 14-5).

A crítica, nesses termos, não é somentenegativa – o “falar mal” de algo ou mesmosomente apontar lacunas, problemas,insuficiências, contradições –, mas tambémpositiva na medida em que auxilia no avanço ouno aprimoramento do objeto criticado, promoveenfim uma revolução no sentido de propor novasalternativas ou perspectivas. Mas o criticismokantiano ainda vai além. Prosseguindo com ainterpretação de Foucault, temos que a críticakantiana vincula-se à de esclarecimento, isto é,da conquista da maioridade pelo ser humano:

“A definição que Kant dava de crítica não édistante de como ela entendia a Aufklärung[esclarecimento, ilustração]. É característico,com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre oque é a Aufklärung, ele a definiu em relação aum certo estado de menoridade no qual estariamantida, e mant ida autoritar iamente, ahumanidade. Em segundo lugar, elecaracterizou essa menoridade por uma certa

incapacidade na qual a humanidade estariaretida, incapacidade de se servir de seu próprioentendimento sem alguma coisa que fossejustamente a direção de um outro (...) Emterceiro lugar, creio que é característico queKant tenha definido essa incapacidade por umacerta correlação entre uma autoridade que seexerce e que mantém a humanidade nesseestado de menoridade, correlação entre esteexcesso de autoridade e, de outra parte, algoque ele considera, que ele chama uma falta dedecisão e de coragem. (...) Enfim, écaracterístico que, nesse texto Kant dá comoexemplos de retenção da menoridade dahumanidade, e por conseqüência, comoexemplos, pontos sobre os quais a Aufklärungdeve erguer esse estado de menoridade emaioridade em, certo tipo, os homens,precisamente a rel igião, o direito e oconhecimento. O que Kant descrevia como aAufklärung, é o que eu tentei até agoradescrever como a crítica, como essa atitudecrítica que se vê aparecer como atitudeespecífica no Ocidente a partir, creio, do quefoi historicamente o grande processo degovernamentalização da sociedade. Comrelação a essa Aufklärung (cujo emblema,vocês bem o sabem e Kant lembra, é ‘sapereaude’ [atreva a conhecer, a pensar por contaprópria], praticamente um contraponto a umaoutra voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘queeles raciocinem tanto quanto querem contantoque obedeçam’). Como Kant vai definir acrítica? Eu diria que a crítica será aos olhos deKant o que ele dirá ao saber: você sabe bematé onde pode saber? Raciocina tanto quantoqueira, mas você sabe bem até onde poderaciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma,que está menos no que nós empreendemos,com mais ou menos coragem, do que na idéiaque nós fazemos do nosso conhecimento e dosseus limites, que aí vai a nossa liberdade, eque, por conseqüência, ao invés de deixar dizerpor um outro “obedeça”, é nesse momento,quando se terá feito do seu próprioconhecimento uma idéia justa, que se poderádescobrir o princípio da autonomia e que nãose terá mais que escutar o obedeça; ou antes

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que o obedeça estará fundado sobre aautonomia mesma.” (FOUCAULT, 1990: 40).

Nesses termos, a crítica para Kant implicanum projeto de autonomia, de libertação da razãodas amarras do autoritarismo, do tradicionalismoe das crendices. É uma contribuição para arevolução democrática no sentido de maiorautonomia da humanidade e dos indivíduos oucidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável,de raciocinarmos por conta própriaindependentemente dos dogmas e das proibições.Ou seja, um convite a “mudar o mundo” nosentido de construir uma sociedade com maiorjust iça e igualdade, com maior progressocientífico, com esclarecimento enfim. Nãopodemos negligenciar que em grande parte a obrade Kant representa uma certa continuação doiluminismo e ao mesmo tempo reflete umaadmiração pela Revolução Francesa. Hegelretomou essa ideia de crítica, mesmo procurandoà sua maneira superar o criticismo kantiano.Sabemos que ele valorizou a História – com Hmaiúsculo, vista como a realização paulatina darazão através de etapas ou avatares, numprocesso teleológico com um final pré-definido.A dialética para ele, longe de ser apenas umprocedimento de oposição (tese e antítese) quegera uma síntese, como em Kant, assume umadimensão ontológica que aparece sob a forma dosprocessos históricos. A dialética hegeliana nãopretende ser apenas uma forma de lógica, mastambém uma ontologia; ela se apresenta como omovimento da História.

Marx prosseguiu com essa ideia hegelianada dialética como a realização da História, sendoesta uma dinâmica complexa que atravessariavárias fases e afinal desembocaria na completalibertação do ser humano. Afirmando ter colocadoHegel em posição invertida, com os pés no chão,ele substituiu a razão ou o espírito pelas condiçõesmateriais e a luta de classes, que também numprocesso teleológico, por etapas, conduziriam aosocialismo e, após um período de transição, aocomunismo, a História enfim realizada ouacabada. Sua principal obra, O Capital, tem comosubtítulo Crítica da Economia Política, numainegável inspiração kantiana no qual a crítica é

uma superação com subsunção e, mais ainda, éum procedimento revolucionário que aponta parauma libertação do ser humano, para umacompleta autonomia no futuro. Procurandoestabelecer os limites da economia políticaclássica (de Adam Smith, David Ricardo e outros)– que seria antes de tudo uma economia burguesaou justificadora do sistema capitalista –, Marxacreditou ter encontrado a sua superação com aanálise das contradições do capitalismo, o qualinexoravelmente cederia lugar a um novo modode produção sem a propriedade privada dos meiosde produção. Ao contrário do que pensam alguns,a crítica de Marx ao capitalismo e à economiapolítica não significou uma “crítica negativa” nosentido de apenas apontar erros, problemas,mistificações ou contradições. Como mostrou compropriedade BERMAN (1987: 85-125), é na obrade Marx – muito mais do que na de Ricardo, deSmith, de Keynes ou de qualquer outro autor tidocomo ideólogo da economia de mercado – quepodemos encontrar os mais rasgados elogios aocapitalismo, em especial ao imenso “progresso”que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, àcriação de um mercado mundial integrado. Osentido que Marx dava ao termo crítica, convémrepetir, era o de um procedimento kantiano deentender profundamente algo, inclusive nos seusaspectos positivos, assinalando a sua importânciahistórica e ao mesmo tempo apontando os seuslimites ou as suas insuficiências (ou as suas“contradições”, nos termos da dialét icahegeliana).

Sabemos que a partir do final do séculoXIX – e até o final do século XX – a ideia de críticaesteve identificada basicamente com o marxismo,como se fosse um atributo somente da “esquerda”(vista como os adeptos do socialismo) e tendo ocapitalismo como objeto privilegiado, o alvo porexcelência das críticas. No entanto, ao contráriodo procedimento crítico adotado por Marx, omarxismo posterior, com raras exceções, somenteviu aspectos “negativos” e inaceitáveis nocapitalismo (e mesmo na democracia!), como seeste fosse um sistema que de forma inelutávelamplia as desigualdades e entrava o “progresso”,isto é, o desenvolvimento das forças produtivas.É evidente que, hoje, essa leitura precisa ser

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reexaminada e superada. Precisa ser criticadaenfim. Não é mais possível levar a sério aconcepção de dialética como portadora dosegredo da história, ou como o “método científico”por excelência; e muito menos a existência deum sujeito qualquer (o proletariado, ostrabalhadores, o espírito, as massas, a multidão,os movimentos sociais, as ONG’s ou qualqueroutro agente) que seria o redentor dahumanidade. E não apenas o capitalismo, mastambém o socialismo real, assim como qualqueroutro projeto de sociedade que repudie omercado e a democracia (por exemplo, aquelesalicerçados em valores religiosos; ou o populismoautoritário “de esquerda” da América Latina),deve igualmente ser objeto de profundas críticas.

Malgrado os equívocos e as insuficiênciasde Marx e de Hegel – em especial a tentativade teleologizar a história e a pretensão deidentificar um agente portador do futuro e dosegredo da história (a razão ou o proletariado)–, não podemos perder de vista o que há decomum entre eles e Kant. Ou, em outraspalavras, o entendimento da crítica não comofalar mal ou desancar um pensamento, mas simcomo compreensão minuciosa dos seusfundamentos e limites, como superação na qualse incorpora o que foi superado como parte deuma síntese ou teoria superior. E ao mesmotempo crítica como um projeto de autonomiada humanidade, de crescimento do ser humanono sent ido de l ibertação das amarras dotradicionalismo, das crendices, da exploraçãosocial e do autoritarismo.

Acredi tamos que esta deva ser aconcepção reproduzida pela geografia crítica –ou pelo menos por grande parte dela, que afinalé plural. Crítica como superação com subsunçãoe ao mesmo tempo como um engajamento emalgum projeto de libertação que amplie o espaçoda democracia, que combata todas as formasde dogmatismo e de autoritarismo. Todavia,existe hoje um grande dilema: a ideia de projetode l ibertação tornou-se ext remamenteproblemática, embora de maneira algumadispensável. Mas a profunda compreensãodesse fato requer algumas explicações.

Em primeiro lugar, ao contrário do quepensam alguns, não se trata de denegarcompletamente a geografia clássica ou tradicional,substituindo-a pelo materialismo histórico com osseus conceitos fundamentais (modo de produção,formação econômico-social, classes sociaisalicerçadas na produção, a teoria marxista dovalor, o socialismo como etapa que substituirá ocapitalismo, etc.). Com tal procedimento, mesmoquando existe a tentativa de enriquecer oucompletar o marxismo com a incorporação doespaço geográfico – a formação econômico-socialtransforma-se em formação socioespacial, a lutade classes passa a abarcar os conflitos ambientaise territoriais, o materialismo histórico passa a serchamado de materialismo histórico-geográfico(HARVEY, 2001: passim), etc. –, não existe umaverdadeira crítica da tradição geográfica. Não háuma superação com subsunção e tampouco umprojeto de libertação realista e coerente com anossa época. O que existe nesse procedimento éapenas a substituição da tradição geográfica poruma teoria do século XIX (mesmo que esta sejalida a partir de algum autor posterior: Lukács,Althusser ou mesmo Léfebvre...) que imaginouter superado o capitalismo pela análise de suascontradições e limites, que pretensamenteconduziriam ao socialismo. Sem dúvida quenaquele momento de ascensão dos movimentosoperários essa construção teórica era crítica. Masnos dias de hoje ela se encontra envelhecida, atémesmo caduca, além de completamentedeslocada dos verdadeiros projetos de libertação,que não se identificam mais com esse agenteidealizado por Marx, o proletariado, o qual,sejamos francos, sequer existe no mundoempírico6. Insistir nessa via sem levar em contaa experiência dos totalitarismos do século XX –que em boa parte nela se alicerçaram – e asmudanças na vida social e econômica, com oadvento de novos sujeitos e campos de luta, nadamais é que, consciente ou inconscientemente,partilhar um projeto de ascensão ao poder poruma camada de burocratas que fala em nomedos trabalhadores, dos excluídos ou da História7.

Destarte, a história do século XX – e emespecial a crise do mundo socialista, a emersãode novos sujeitos e formas de luta social, a par

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das profundas mudanças ocorridas no capitalismo,que não pode mais ser entendido pelas análisesmarxistas clássicas – , evidencia que a crítica daeconomia política também deve ser criticada, queela também possui os seus limites e insuficiências,cada vez mais evidentes. Assumir o materialismohistórico como “a” teoria na qual a geografia deveser diluída é um procedimento acrítico, que nãorealiza, sequer minimamente, uma análise críticada geografia, tal como aquela de Kant frente àrazão pura, ou mesmo a de Marx frente aocapitalismo. Apenas se incorpora, de formamecânica e sem grande criatividade,determinados conceitos ou preocupaçõesespaciais a um corpo teórico já constituido, estesim nascido de uma tradição crítica, emboradatada e integrada a outros tempos, outrascircunstâncias. Pouco se avança no conhecimentoda realidade; em geral tão somente velhoschavões ou estereótipos são regurgitados.

Devemos então indagar sobre o que seriaum procedimento crítico nos dias de hoje. Nestaépoca de pós-modernidade com múltiplos sujeitose verdades, com visões de mundo alternativas eigualmente aceitáveis, cada uma dentro de seuponto de vista, continuar propagando a ideia decrítica como a realização do sentido da história éalgo completamente extemporâneo. Ninguémmais tem o direito de falar em nome da história enenhum sujeito ou agente social é o detentor daverdade entendida como algo unívoco. Um outroproblema é que não temos mais aquele otimismodos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidadeda humanidade. Poucos acreditam hoje numprojeto de libertação que inclua todas as culturase civilizações, todos os povos num único modelosocietário para o futuro. Cada vez mais sevalorizam as diferenças e as alteridades, aquestão dos Outros, com suas diferentesconcepções a respeito do ideal de uma sociedadeno futuro.

Isso posto, cabe uma interrogação:qualquer discurso que critique outro(s) no sentidode incorporá-lo numa nova síntese, e quecontenha um projeto qualquer de autonomia,pode ser considerado crítico? Exemplificando: sepensarmos numa perspectiva cristã

fundamentalista, adepta do criacionismo, críticaseria uma compreensão dos fundamentos elimites da ciência – neste caso, do neodarwinismo– procurando superá-la com o ato de a incorporarcomo parte de uma teoria que mantivesse osdogmas da religião e ao mesmo tempo admitissecertas mudanças temporais na natureza e noadvento dos seres vivos. (E também existiria umprojeto de autonomia ou libertação nesse caso,mesmo que em outra vida). O mesmo poderíamosadmitir para os fundamentalistas islâmicos, paraos hinduístas, para os adeptos da supremaciabranca, etc.

Cairíamos então num relativismo segundoo qual todos os pontos de vista se equivalem e,assim sendo, qualquer discurso que procurassecompreender uma teoria e incorporá-la numprojeto qualquer de “libertação” seria consideradocrítico? É evidente que não. Então, como sairdesse empasse?

Em primeiro lugar, temos que lembrar quepara Kant existe um vínculo indissociável entrecrítica e democracia, sendo esta um processo queimplica na crescente libertação da humanidadeem relação às crendices, ao autoritarismo, àstradições que reproduziam ou reproduzem umasociedade rigidamente estratificada e comprivilégios para alguns. Crítica, nessa concepçãokantiana e moderna, deve ser algo que contribuipara a liberdade e a igualdade dos seres humanos,e nunca algo que justifique ou legitime qualquertipo de ditadura, de autoritarismo ou detotalitarismo, de privilégios, de racismo ou depreconceitos. Não vivemos mais uma batalhaentre direita e esquerda, tampouco entrecapitalismo e socialismo. Um intelectual queenxergou muito bem um dos principais conflitosneste novo século foi o escritor Francis Wheen,que afirmou que: “A nova batalha será entre omelhor do legado do Iluminismo (racionalismo,empirismo científico, separação da Igreja e doEstado) por um lado e, do outro, várias formasde obscurantismo e relativismo destituído devalores, freqüentemente mascarado como‘antiimperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para darum verniz atraente radical a atitudesprofundamente reacionárias” (WHEEN, 2007).

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Assim sendo, não tem sentido adotaraquela posição comodista que considera críticasdeterminadas ideias que servem de propagandapara fundamentalismos ou dogmatismos, mesmoque elas sejam extremamente ácidas em relaçãoao capitalismo, que é exorcizado como o demôniodo nosso tempo. Críticas essas, por sinal, queestão mais para o “falar mal” de algo e nuncapara a análise de seus fundamentos e limites;que no fundo constituem tão somente impropériosa respeito do capitalismo, da globalização e atémesmo da democracia.

Em segundo lugar, temos que levar emconta que a geografia é ou pretende ser umaciência. O que Kant almejava com a sua críticacomo prolongamento do iluminismo eraexatamente libertar a humanidade das amarrasdos dogmatismos e dos autoritarismos, daescuridão enfim; e que essa iluminação atravésda razão era comandada pela ciência moderna.O escopo da ciência – ou melhor, das ciências,no plural, para evitarmos o mito de um métodoúnico para todos os aspectos do real – édesenvolver ou dilatar o conhecimento humanosobre a realidade em todas as suas dimensões.Um conhecimento que, não raro, serve paraampliar nosso controle sobre a natureza, tanto ainterna (nosso corpo e mente) como a externa(através da redução das distâncias, da ampliaçãoda oferta de alimentos, ou mesmo de novassubstâncias, da produção de máquinas e até dearmamentos, etc).

Sem dúvida que esse controle hoje, aocontrário dos séculos XVIII e XIX, é tido comoproblemático. Sabemos que muitas vezes ele geraconsequências nocivas para determinadosecossistemas e grupos humanos ou, em algunscasos, até mesmo para a biosfera e para ahumanidade como um todo. Contudo, bem oumal, ele sempre foi e continua sendo o motor queimpulsiona o chamado desenvolvimento, inclusivenas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmoque critiquemos o conhecimento científico – algoque, como vimos, faz parte do seu próprio modode ser, no qual a crítica é necessária para suascorreções e rearranjos. Mesmo que deneguemosessa excrecência da ciência moderna, o

cientificismo, que advoga uma absurda atitudearrogante e imperialista frente às demais formasde conhecimento – desde o artístico ao filosófico,passando pelos diversos sensos comuns, pelaexperiência de vida das comunidades tradicionaise dos povos ditos selvagens, etc.. Mesmo assim,os cânones do conhecimento científico continuamsendo a melhor maneira de superar o relativismopuro e simples e avançar nessa problemática doque é uma atitude crítica hoje.

Um dos grandes méritos da ciência ou dasciências é admitir que suas verdades, emborafrequentemente úteis e eficazes, são sempreprovisórias e sujeitas a correções ou superações.O conhecimento científico não procura nem aceitao Absoluto. Ele relativiza os conceitos e teorias,embora não no sentido do relativismo ingênuo,ou puro e simples, na qual tudo é igual e portantonão existe qualquer hierarquia e tampouconenhuma forma de aprimoramento ou avançogradativo do conhecimento. A ciência relativizaos conceitos e teorias – e até mesmo os objetos– ao considerá-los como verdades provisórias esempre sujeitas a testes, a confrontos com arealidade e com outras explicações, mas cujosentido, mesmo havendo encontros edesencontros, avanços e possíveis recuos, semdúvida que tem um norte, que é um crescenteacúmulo de informações cada vez mais eficazesno sentido de compreender (e agir sobre) omundo, o real em todos os seus aspectos.

É justamente aqui que encontramos a viaque nos permitirá reconhecer a criticidade numateoria, num discurso: a sua relatividade emtermos de contextualização e significado para ouniverso do qual faz parte. Não existem ideias outeorias críticas em si. Elas só o são em função dopapel que desempenham no seu contexto, razãopela qual podem ser críticas numa época, nummomento e num lugar determinados – porexemplo, o marxismo na Europa Ocidental doséculo XIX – e também podem ser completamenteacríticas em outra época ou lugar, tal como ocorre,como já mencionamos, com o marxismo empraticamente todo o mundo nos dias de hoje.

Voltando agora para a seara da geografia,podemos seguir com a inquietação de Blomley.

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Sem dúvida que existe uma certa verdade naafirmação que há diferentes vertentesautodenominadas críticas na geografia (como naciência social e na filosofia em geral) e que talvezo melhor seja deixar de lado esse adjetivo, poisafinal de contas, já não teria ele cumprido o seupapel? (Que foi o de servir de bandeira de lutacontra a geografia tradicional, que praticamentenão existe mais ou pelo menos já não conta comteóricos que a defendam).

Mas, por outro lado, cabe uma indagação.Como os geógrafos ditos críticos vêm enfrentandoesse problema da crítica? Uma parte deles,felizmente minoritária (talvez não na AméricaLatina), continua a agir e escrever como se nadade importante tivesse ocorrido nos últimos anose décadas, como se vivéssemos ainda uma lutaentre “esquerda” (os adeptos do socialismo ecríticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos docapital ismo, que seriam por definiçãoconservadores e inimigos do pensamento crítico).Crítica aqui é entendida como “falar mal” dosdemônios do nosso tempo: o capitalismo,naturalmente, junto com a globalização vistacomo neoliberal, a democracia “burguesa” e aimprensa livre (principalmente quando estadesanca regimes autoritários e populistas “deesquerda”, quando denuncia os abusos dosdireitos humanos em Cuba, etc.). São produzidospanfletos – ou estudos pouco fundamentados,onde o objeto criticado sequer é compreendidode fato – nos quais via de regra existe umainterpretação paranoica ou conspiracionista dahistória: foi a CIA quem promoveu os atentadosde 11 de setembro de 2001 com vistas a obterapoio para as invasões do Afeganistão e do Iraque,as cobranças de organizações internacionais,especialmente o Banco Mundial, com a qualidadedo sistema escolar é apenas parte de um projetoneoliberal com vistas a privatizar o nosso ensinopúblico, as preocupações com os desmatamentosna Amazônia são meramente uma faceta doimperialismo que objetiva internacionalizar aquelaregião (o que significaria deixá-la aos cuidadosdos países ricos, principalmente dos EstadosUnidos), as denúncias de presos políticos em Cubaou da pobreza e do autoritarismo na Coreia doNorte ou na Venezuela no fundo fazem o jogo do

imperialismo norte-americano, que almejaderrubar aqueles regimes revolucionários, etc.Para esta vertente o pluralismo é um mal, omarxismo [entendido como se fosse algo unívoco]é o único “método” científico válido, as citaçõesde algum autor (seja do próprio Marx ou, maisfrequentemente, de algum marxista posterior)substituem as análises ou até mesmo o raciocínio,não existiria nenhum aspecto positivo naglobalização e nas novas tecnologias, mas tãosomente uma constante ampliação dasdesigualdades sociais e espaciais, e por aí afora.

Contudo, sem dúvida que existem sériastentativas de renovar dentro das geografiascríticas, que não são meramente panfletárias ecomodistas, que procuram enfrentar os desafiosde uma nova realidade, inclusive aquele da crisedo marxismo e da absoluta incapacidade degrande parte das geografias críticas eprincipalmente das radicais de incorporar essaquestão até os primórdios dos anos 1990. Nemtodos os geógrafos ditos críticos são dogmáticose meramente reproduzem estereótipos. Existeuma vertente crítica na boa acepção do termo,que procura realizar uma análise crítica tanto docapitalismo como também – ou talvez mais ainda– do socialismo real, que buscou e busca subsídiosnão apenas no marxismo (embora tambémcriticado pelo reducionismo econômico eprincipalmente pela valorização do tempo emdetrimento do espaço), mas notadamente nosanarquismos (especialmente de Reclus eKropotkin), em Foucault e na pós-modernidade.Mencionando apenas um exemplo entre muitos,uma expressiva parte dos geógrafosautointitulados críticos, ao constatar as radicaismudanças no capitalismo e o final do socialismoreal, vem procurando nos últimos anos renovaras suas teorias com o uso de conceitos ou ideiasda teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt,em especial as de Habermas. Um dos expoentesdessa vertente, ao procurar superar a “geografiaradical” e construir uma “geografia crítica”, assimse expressou:

“As correntes radicais da geografia, em todasas suas variantes, não apenas procuraramelaborar uma crítica do positivismo lógico, como

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também efetuar mudanças sociais e políticas.Em face do visível êxito do capitalismo nos anos1980 e da queda dos regimes comunistas daEuropa durante os anos 90, a geografia radicalfracassou retumbantemente nos seus objetivospráticos. No exame das razões desse fracasso,devemos reexaminar as cinco característicaschaves da teoria crítica de Habermas: asrelações entre teoria e prática, a teoria dosinteresses cognoscitivos, a teoria dacompetência comunicativa, o interesse pelaemancipação e a prática da autoreflexão. (...)O trabalho da geografia crítica consiste emexprimir as desigualdades e convencer aspessoas do poder sobre suas prováveisrepercussões, além de participar ativamentena criação de novas formas de organizaçãosocial e econômicas. Em poucas palavras,devemos reconhecer o mal estar de nossasociedade, adotar uma postura autoreflexivafrente a ela e atuar como psicanalistas dasituação da qual fazemos parte.” (UNWIN,1991: 250-3).

Notamos um grande avanço nessaproposta que, como havia assinalado Blomley,significa a passagem de uma geografia radicalpara uma geografia crítica. Pois crítica não seidentifica com – embora pressuponha– um meroengajamento. O engajamento com os problemassociais e territoriais, inclusive os ambientais, foia grande bandeira de luta dos radicais anglo-saxônicos contra a geografia que predominavana sua realidade até o final dos anos 1960: ageografia pragmática ou quantitativa, voltadapara planejamentos e aparentemente “técnica”ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo. Mas omundo mudou, os problemas se modificaram –alguns se ampliaram, outros se contraíram, outrosnovos surgiram e outros ainda adquiriramdistintas facetas – e o simples engajamento,embora necessário, se tornou problemático.Engajamento, por sinal, que de forma visível hojepode denotar uma atitude intransigente,antidemocrática ou até terrorista. Principalmentequando t ido como “radical” 8. Não existeengajamento apenas por um “outro mundo” ouum “mundo melhor” (e, afinal de contas, o quequer dizer “melhor”?, sem dúvida algo que pode

ser defendido com convicção até mesmo porneonazistas, maoistas, bolivaristas e vários outrostipos político-ideológicos com viés autoritário).Assim, os termos radical e crítica não seidentificam completamente. Eles podem sesobrepor em algumas ocasiões, mas em geralapontam para atitudes diferentes. Voltando àproposta de Unwin, observamos que nela o papeldo geógrafo crítico não é o de meramente ser umterrorista intelectual ou um incendiário – isto é,um engajado de forma radical – e sim um“psicanalista” que detecta problemas e ao mesmotempo potenciais. Como se sabe, o psicanalistanão destrói a personalidade que analisa e sim areconstrói, a ajuda no seu encontro, na superaçãodos seus problemas e fobias. [Alguns diriam,citando Gramsci, que para o novo nascer o velhotem que morrer. Talvez sim, mas somente numsentido metafórico. Pois o novo sempre significaum certo prolongamento, com determinadasnuanças, do velho. Não se trata do nascimentode um indivíduo que vai – depois de váriasdécadas – substituir um outro que envelhece emorre. Essa visão organicista é equivocada namedida em que é a mesma sociedade, emboratransformada, que perdura. Ela pode mudar suaestrutura produtiva, revolucionar seus valores,melhorar substancialmente a qualidade de vidade seus membros. Mas sempre haverá uma certacontinuidade, uma herança que permanece. Ovelho, portanto, nunca morre totalmente. É porisso que ainda hoje somos herdeiros dos egípcios,dos gregos e dos romanos da antiguidade9, dosiluministas do século XVIII ou dos socialistas [noplural] do século XIX. Ademais, a filiação dessegeógrafo à teoria cr ítica na sua versãohabermaniana pressupõe uma aversão aotradicional dogmatismo do marxismo-leninismoe principalmente uma aceitação da democracia,que ao invés de ser combatida deve serpreservada e inclusive expandida. Mesmo semconcordarmos inteiramente com a posição deUnwin [deixando de lado, por ora, o porquê disso],não podemos deixar de elogiar o avanço teóricoe político contido na sua proposta [como tambémna de Blomley e outros] de uma transição dageografia radical para uma geografia crítica pós-marxista aberta e plural.

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1 Na verdade, estamos generalizando de formaproposital para evitar d iscorrer sobre ascontrovérsias a respeito da utopia no pensamentocrítico (que nunca foi nem é apenas marxista), naqual há autores que a a exorcizam e outros que aassumem. Por exemplo: Marx e Engels, emprimeiro lugar, além de grande parte dos marxistasdo início do século XX (Lénin, Trotsky, RosaLuxemburgo, Kautsky...) nunca foram adeptos dautopia e, pelo contrário, desancaram os socialistasutópicos acreditando firmemente que o socialismonão era uma idéia utópica e sim “científica”, umresultado de “leis” inexoráveis da História (assimmesmo, com H maiúsculo). A respeito da aversãodo pensamento marxiano pela utopia remeto àsanálises de FAUSTO (2007: 31-50). Em todo o casonão há dúvida que, durante o transcorrer do séculoXX, o projeto socialista passou a ser visto comoutópico e essa defasagem entre ciência e utopiase estreitou sensivelmente.

2 Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia críticaexistente desde março de 1996.

3 É bem verdade que com a expansão da geografiacrítica para a Itália, Espanha, Brasil e outros paísesda América Latina, um certo marxismo-leninismocom fortes influências de Althusser e discípulospassou a ocupar o lugar do pensamento pós-moderno, pelo menos em grande parte, conformejá havíamos assinalado em dois textos dos anos80 (VESENTINI, 1984 e 1985). Basta lembrar, porexemplo, do livro extremamente dogmático dogeografo italiano Massimo QUAINI (1979), queconseguiu enxergar nos escritos de Marx e deEngels toda uma análise e até mesmo a “solução”para os problemas ambientais e territoriaishodiernos! Em todo o caso, mesmo continuando aexistir uma forte presença de marxistas ortodoxosnesta geografia [aqueles que têm por base teóricae filosófica os escritos de Lénin, Althusser ediscípulos como Martha Harnecker (com a sualeitura estruturalista e empobrecida da obra deMarx), o velho Lukács ou Trotsky], não há dúvidasde que ela avançou no sentido de incorporarautores marxistas heterodoxos ou neomarxistas(como Léfebvre), autores pós-marxistas (como

Notas

Habermas) e até mesmo pós-modernos (comoFoucault, Guattari, Giddens e outros).

4 Até mesmo alguns poucos cientistas sociaisincorporaram esse viés equivocado. Um autorbrasileiro bastante citado e tido como especialistaem metodologia científica, por exemplo, asseverouque: “Do ponto de vista metodológico, critica ésempre negativa. Crítica ‘positiva’ é outra coisa,quer dizer, é elogio.” (DEMO: 2002:30).

5 “A postura crítica torna-se, assim, um instrumentode pesquisa: a crítica é um instrumento deprogresso [científico]; é a crítica que distingue apostura científica da experiência pré-científica,onde se fazem erros e se espera até que se estejaarruinado com eles(...) Quando se tem posturacrítica, explora-se os erros de forma positivamentecrítica, aprendendo-se conscientemente a partirdeles.” (POPPER, 1994:51).

6 Claude LEFORT (1979: 249) foi um dos primeiros aperceber isso, tendo sugerido que o proletariadofoi mais uma invenção da “fértil imaginação deMarx”.

7 Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS(1982: 82-5), o marxismo no século XX pouco apouco degenerou numa ideologia da burocracia,num discurso legitimador de um partido ou umgrupo de burocratas que pretende alcançar o podere/ou que já o exerce de forma totalitária, isto é,sempre reprimindo violentamente as críticas eoposições, que são taxadas de “burguesas” eantirrevolucionárias, e sempre falando em nomede uma pretensa comunidade dos trabalhadores,do povo ou do proletariado.

8 O termo radical, ao contrário de crítica, não possuiuma rica tradição filosófica e epistemológica. Naverdade ele veio do latim [radic = raiz] e, deixandode lado o seu uso na matemática, na química, nalinguística, etc., ele tem dois significados principais.Primeiro, denota uma atitude intransigente,inflexível, sem um verdadeiro diálogo com osoutros. Segundo, e de acordo com a sua origemetimológica, significa ir às origens ou à raiz dascoisas. É amplamente conhecida a frase tautológicade Marx segundo a qual “a raiz do Homem é opróprio Homem”, ou melhor, as suas relações no

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sociedade está nos seus mitos e valores, para osecologistas está nas relações com a natureza, eassim por diante.

9 FREUD (1997), por exemplo, analisou com argúciacomo o egípcio Moisés propagou uma religiãomonoteísta cujos mitos até hoje influenciam umagrande parte do mundo. Quanto à importância dafilosofia – e das artes – grega ou do direito romanopara a nossa vida atual, creio que é desnecessárioinsistir nesse item.

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Trabalho enviado em fevereiro de 2009

Trabalho aceito em setembro de 2009