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O QUE A GEOGRAFIA DEVE SER* Piotr Kropotkin Era fácil prever que o grande renascimento das ciências naturais, o qual nossa geração tem tido a sorte de acompanhar desde há trinta anos, assim como a nova orientação dada à literatura científica por um grupo de homens eminentes, que se dispuseram a apresentar os resultados das mais complexas investigações científicas de forma acessível ao público em geral, deveriam necessariamente provocar um renascimento equivalente na geografia. Esta ciência, que toma em consideração as leis descobertas pelas suas ciências irmãs e coloca em pauta as suas ações e efeitos mútuos em relação à superfície do globo, não poderia permanecer à margem do movimento científico em geral; e assistimos na atualidade o despertar de um interesse pela geografia que relembra o interesse por ela suscitado na geração anterior, durante a primeira metade do nosso século**. . É verdade que não contamos hoje com um viajante e filósofo tão capaz como foi Humboldt; porém, as recentes expedições ao ártico e as investigações nas profundidades abissais, e, mais ainda, os rápidos progressos experimentados pela biologia, pela climatologia, pela antropologia e pela etnologia comparada, têm fornecido aos trabalhos geográficos uma atração tão considerável e um significado tão profundo, que os próprios métodos de descrição da Terra vêm experimentando desde há algum tempo uma profunda modificação. Reaparece novamente na literatura geográfica o mesmo nível de explicação científica e de fundamentação filosófica a que Humboldt e Ritter nos haviam acostumados. Não se deve estranhar, portanto, que os livros de viagens e aqueles de descrições geográficas gerais estejam voltando a ser o tipo mais popular de leitura. . Era também totalmente natural que o renascimento do interesse pela geografia dirigisse a atenção do público para a geografia na escola. Realizaram-se pesquisas e descobriu-se, com estupor, que havíamos conseguido que esta ciência a mais atrativa e sugestiva para pessoas de todas as idades resulte em nossas escolas como um dos temas mais áridos e carentes de significado. Nada interessa tanto às crianças como as viagens; e nada é mais árido e menos atrativo, em muitas escolas, do que aquilo que nelas é batizado com o nome de geografia. 0 mesmo podemos dizer, quase que com as mesmas palavras e com raras exceções, em relação a física, à química, à botânica, à geologia, à história e às matemáticas. Uma reforma em profundidade no ensino de todas as ciências e tão necessária quanto uma reforma na educação geográfica. Todavia, apesar da opinião pública ter permanecido bastante indiferente á respeito de uma reforma geral de nossa educação científica mesmo quando os homens mais eminentes deste século a tenham preconizado , ela parece, em troca, ter entendido rapidamente a necessidade de reformar o ensino da geografia: a discussão recentemente ini- ciada pela Real Sociedade Geográfica Britânica tem sido acolhida com simpatia geral por parte da imprensa. Nosso mercantilizado século parece ter entendido melhor a necessidade de uma reforma na medida em que foram colocados em pauta os chamados interesses "práticos" da colonização e da guerra. Uma discussão rigorosa deve forçosamente demonstrar que não se pode chegar a nada de sério nesse sentido desde que não se empreenda uma correlativa, porém, muito mais ampla, reforma geral do nosso sistema educacional. É quase seguro que não existe outra ciência que possa tornar-se tão atrativa para a criança como a geografia, e que possa se constituir num poderoso instrumento para o

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O QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*

Piotr Kropotkin

Era fácil prever que o grande renascimento das ciências naturais, o qual nossa geração tem

tido a sorte de acompanhar desde há trinta anos, assim como a nova orientação dada à

literatura científica por um grupo de homens eminentes, que se dispuseram a apresentar os

resultados das mais complexas investigações científicas de forma acessível ao público em

geral, deveriam necessariamente provocar um renascimento equivalente na geografia. Esta

ciência, que toma em consideração as leis descobertas pelas suas ciências irmãs e coloca em

pauta as suas ações e efeitos mútuos em relação à superfície do globo, não poderia

permanecer à margem do movimento científico em geral; e assistimos na atualidade o

despertar de um interesse pela geografia que relembra o interesse por ela suscitado na

geração anterior, durante a primeira metade do nosso século**. .

É verdade que não contamos hoje com um viajante e filósofo tão capaz como foi Humboldt;

porém, as recentes expedições ao ártico e as investigações nas profundidades abissais, e, mais

ainda, os rápidos progressos experimentados pela biologia, pela climatologia, pela

antropologia e pela etnologia comparada, têm fornecido aos trabalhos geográficos uma

atração tão considerável e um significado tão profundo, que os próprios métodos de descrição

da Terra vêm experimentando desde há algum tempo uma profunda modificação. Reaparece

novamente na literatura geográfica o mesmo nível de explicação científica e de

fundamentação filosófica a que Humboldt e Ritter nos haviam acostumados. Não se deve

estranhar, portanto, que os livros de viagens e aqueles de descrições geográficas gerais

estejam voltando a ser o tipo mais popular de leitura. .

Era também totalmente natural que o renascimento do interesse pela geografia dirigisse a

atenção do público para a geografia na escola. Realizaram-se pesquisas e descobriu-se, com

estupor, que havíamos conseguido que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva para pessoas

de todas as idades – resulte em nossas escolas como um dos temas mais áridos e carentes de

significado. Nada interessa tanto às crianças como as viagens; e nada é mais árido e menos

atrativo, em muitas escolas, do que aquilo que nelas é batizado com o nome de geografia. 0

mesmo podemos dizer, quase que com as mesmas palavras e com raras exceções, em relação

a física, à química, à botânica, à geologia, à história e às matemáticas. Uma reforma em

profundidade no ensino de todas as ciências e tão necessária quanto uma reforma na

educação geográfica. Todavia, apesar da opinião pública ter permanecido bastante indiferente

á respeito de uma reforma geral de nossa educação científica – mesmo quando os homens

mais eminentes deste século a tenham preconizado –, ela parece, em troca, ter entendido

rapidamente a necessidade de reformar o ensino da geografia: a discussão recentemente ini-

ciada pela Real Sociedade Geográfica Britânica tem sido acolhida com simpatia geral por parte

da imprensa. Nosso mercantilizado século parece ter entendido melhor a necessidade de uma

reforma na medida em que foram colocados em pauta os chamados interesses "práticos" da

colonização e da guerra. Uma discussão rigorosa deve forçosamente demonstrar que não se

pode chegar a nada de sério nesse sentido desde que não se empreenda uma correlativa,

porém, muito mais ampla, reforma geral do nosso sistema educacional.

É quase seguro que não existe outra ciência que possa tornar-se tão atrativa para a criança

como a geografia, e que possa se constituir num poderoso instrumento para o

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desenvolvimento geral do pensamento, assim como para familiarizar o estudante com o

verdadeiro método de investigação científica e para despertar sua afeição pela ciência natural.

As crianças não são verdadeiras admiradoras da natureza enquanto esta não tiver alguma

ligação com a humanidade. 0 sentimento artístico, que desempenha um papel tão importante

papel no deleite intelectual do naturalista, é demasiado débil na criança. As harmonias da

natureza, a beleza de suas formas, as admiráveis adaptações de seus organismos, a satisfação

obtida pela inteligência no estudo das leis físicas – tudo isso pode vir depois, porém não ainda

na primeira infância. A criança busca em todas as partes o homem, a atividade humana, as

lutas contra os obstáculos. Os minerais e as plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma

etapa em que prevalece a imaginação. Quer dramas humanos, o que significa que a melhor

maneira de suscitar-lhe o desejo de estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e

caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os perigos, de costumes e hábitos, de

tradições e migrações. Alguns "pedagogos" modernos buscam matar a imaginação das

crianças. Os melhores são aqueles conscientes de como a imaginação constitui uma excelente

ajuda para o raciocínio científico. Entendem assim que não é possível uma explicação científica

profunda sem a ajuda de um poder de imaginação bastante desenvolvido; e utilizam a

imaginação da criança não para abarrotá-la de superstições, mas sim para despertar a sua

paixão pelos estudos científicos. A descrição da Terra e de seus habitantes constituirá com

certeza um dos melhores meios para alcançar tal fim. Relatos do homem lutando contra as

forças hostis da natureza – o que poderá ser melhor do que isso para inspirar na criança o

desejo de averiguar os segredos dessas forças? pirar na criança o desejo de averiguar os

segredos dessas forças? Pode-se despertar facilmente nas crianças a feição por "colecionar",

transformar seus quartos em exposições de curiosidades, ao passo que, nas idades mais

prematuras, não é fácil despertar o desejo de investigar as leis da natureza; nada é mais fácil

que despertar numa mente infantil a capacidade de comparação mediante o relato das

histórias de países distantes, de suas plantas e animais, de suas paisagens e fenômenos,

sempre que plantas e animais, ciclones e tormentas, ou erupções vulcânicas, guardem relação

com o homem. Esta é a tarefa da geografia na primeira infância: tomando a humanidade como

intermediária, desenvolver nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da natureza,

despertar seu desejo de conhecê-los e explicá-los. .

A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito mais importante. Ela deve nos

ensinar, desde nossa mais tenra infância, que todos somos irmãos, independentemente da

nossa nacionalidade. Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades

entre nações, que são habilmente alimentados por pessoas que perseguem seus próprios e

egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em que a escola

deve fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para anular esses

ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar

que cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensável pedra para o

desenvolvimento geral da humanidade, e que somente pequenas frações de cada nação estão

interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais. Deve reconhecer que, além de outras

causas que nutrem as rivalidades nacionais, as diferentes nações não se conhecem

suficientemente bem entre si; as espantadas perguntas sobre seu país, que se fazem a um

estrangeiro; os absurdos preconceitos mútuos, que se estendem aos extremos de um

continente – e até a ambos os lados de um canal – são prova suficiente de que, mesmo entre

aqueles que se costuma denominar gente culta, a geografia e apenas conhecida pelo nome. As

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pequenas diferenças de característícas nacionais, que aparecem especialmente entre as clas-

ses médias, tendem a ocultar a imensa semelhança que existe entre as classes trabalhadoras

de todas as nacionalidades, semelhança que se converte no fato mais significativo à medida

que se obtém um maior conhecimento. É tarefa da Geografia esclarecer essa realidade, e com

grande ênfase devido ao contexto de mentiras acumuladas pela ignorância, presunção e

egoísmo. Deve reforçar nas mentes das crianças que todas as nacionalidades são valiosas umas

para as outras; que quaisquer que sejam as guerras que tenham ocorrido, subjaz sempre no

fundo destas o mais míope dos egoísmos. (...)

Esta segunda tarefa é suficientemente importante. Porém, existe uma terceira, que talvez

o seja ainda mais: a de combater os preconceitos que nos foram inculcados em relação às

chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo nos leva a crer que os contatos que

vamos ter com elas vão ser cada vez mais intensos. Quando um político francês proclamava

recentemente que a missão dos europeus é civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e

as matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos

fatos que os europeus estão praticando diariamente [notadamente na África e na Ásia, no final

do século XIX]. E não poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se

o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se a considerar como se fosses verdadeiros crimes

determinados hábitos e costumes dos “pagãos”, a tratar as “raças inferiores”, como são

chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado enquanto o

dinheiro ainda não penetrou. Até agora os europeus têm "civilizado os selvagens" com whisky,

tabaco e seqüestros; os têm inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é chegado

o mo mento em que nos devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o

conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a forma de utilizar o conhecimento

científico para construir um mundo melhor. .

Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a

afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos os homens são irmãos,

quaisquer que sejam as suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as chamadas

“raças inferiores”. Desde que se admita isso, a reforma da educação geográfica é imensa:

consiste nada menos que na completa renovação da totalidade do sistema de ensino de nossas

escolas. (...)

Existe atualmente em pedagogia, devemos reconhece-lo, uma tendência no sentido de

cuidar demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o raciocínio individual e de

restringir a originalidade; e existe também uma tendência dirigida no sentido de facilitar em

demasia a aprendizagem, até o ponto de produzir uma criança desacostumada a realizar

qualquer esforço intelectual próprio, ao invés de fazer o contrário, a acostumar a criança a

realizar esforços intelectuais cada vez mais complexos. Concedamos a nossos educandos mais

liberdade para seu desenvolvimento intelectual! Deixemos mais espaço para o seu trabalho

independente, sem mais ajuda do professor do que a estritamente necessária. (...)

Onde encontrar professores para levar a cabo essa imensa tarefa de educação? Esta é, nos

retrucam, a grande dificuldade que todo plano de reforma do ensino encontra. Onde encon-

trar, de fato, várias centenas de milhares de Pestalozzis e Frobels***, que dêem uma instrução

verdadeiramente sólida às nossas pequenas crianças? Seguramente não nas filas desse triste

exército de professores aos quais condenamos a ensinar durante toda sua vida, desde a

juventude até o túmulo; que são enviados a um povo com o qual carecem de toda

relação intelectual de reciprocidade, e que prontamente se acostumam a considerar o seu

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trabalho como uma maldição. Seguramente que não nas fileiras daqueles que somente

enxergam o ensino como uma profissão assalariada e nada mais além disso. Apenas

personalidades excepcionais podem continuar sendo bons professores, nessas condições, até

uma idade avançada. Estes homens e mulheres preciosos devem constituir, cumpre dize-lo, os

irmãos maiores de um exército de educadores cujas fileiras devem ser preenchidas com

voluntários orientados em seu labor por aqueles que tem consagrado toda sua vida à nobre

tarefa da pedagogia. Jovens, homens e mulheres, que dediquem um ano de sua vida ao ensino

porque são movidos pelo desejo de ajudar os mais novos em seu desenvolvimento intelectual;

gente de mais idade, que está disposta a consagrar determinadas horas a ensinar temas de sua

preferência – uns e outros constituirão provavelmente o exército de educadores de um

sistema de educação menos organizado. Em todo caso, claro está que não é precisamente

convertendo o ensino em uma profissão assalariada que conseguiremos uma boa educação

para nossas crianças, e manteremos em nossos pedagogos esse espírito aberto e receptivo que

é imprescindível para ajustar-se às crescententes necessidades da ciência. 0 professor somente

será um verdadeiro professor quando sinta verdadeiro amor tanto pelas crianças como pelos

temas que ensina, e esse sentimento não pode perdurar durante anos se o ensino é apenas

uma profissão. Pessoas dispostas a dedicar suas energias e ensinar, e suficientemente capazes

de faze-lo, não faltam em nossa sociedade. Falta saber como descobri-las, como interessá-las

pela educação e combinar seus esforços; e em suas mãos, com a ajuda de gente mais

experimentada, nossos colégios serão muito rapidamente diferentes do que são agora. Serão

lugares onde jovens gerações assimilarão conhecimentos e experiências das mais velhas, ao

passo que estas, em contato com as primeiras, recuperarão novas energias para um trabalho

conjunto em benefício da humanidade.

*“What Geography ought t be”, excertos selecionados e traduzidos de Antipode: a Radical

Journal of Geography, vol.10/11, n° 1/3, 1976, pp. 6-15. Mas este ensaio de kropotkin foi

originalmente publicado in The Nineteenth Contury, XXI, Londres, dezembro de 1885.

[Seleção, tradução e notas de José William Vesentini].

** Isto é, do século XIX.

*** Tanto Pestalozzi como Fröbel foram importantes educadores do século XXI, ambos

admirados por Kropotkin, que viveu de 1842 a 1921. A seguir, há um pequeno texto sobre cada

um desses educadores:

Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um reformador da educação de nacionalidade

suíça. Suas teorias criaram os fundamentos do moderno ensino primário. Em 1799 inaugurou

uma escola para crianças, na qual durante vinte anos colocou em prática os seus métodos. Aí

as crianças aprendiam por meio da prática e da observação, bem como da utilização natural

dos sentidos. Pestalozzi defendia a individualidade da criança e o seu desenvolvimento

integral. Ele foi um amigo e até certo ponto mentor pedagógico de Karl Ritter, que afirmava

que o ensino da geografia deveria ter como base as idéias de Pestalozzi.

Wilhem Friedrich Fröbel (1782-1852 ), de nacionalidade germânica, é considerado o criador

dos jardins-de-infância. Trabalhou alguns anos com Pestalozzi e desenvolveu idéias para a

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educação de crianças em idade pré-escolar, dos 3 aos 7 anos. Suas idéias, que tinham como

ponto central estimular o desenvolvimento natural das crianças pequenas através de

brincadeiras educativas e de jogos, eram demasiado inovadoras para serem aceitas pelo

público e pelas autoridades da época, razão pela qual, em 1851, o governo prussiano fechou as

portas de todos os jardins-de-infância do país. Mas seus discípulos promoveram a expansão

desses jardins para a Europa Ocidental, Estados Unidos e América Latina.

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO

Para alguns, especialmente os mais jovens, embora também para determinadas pessoas

mais experientes todavia acomodadas intelectualmente, é difícil entender o significado de um

texto já antigo, neste caso do final do século XIX – de 1885. É que eles absolutizam o

conhecimento – normalmente o dicotomizando e classificando em gavetas ou rótulos

simplistas do tipo “novo” e “velho” ou então “positivista” e “dialético” – e com isso não

percebem que toda fala, toda mensagem deve ser contextualizada, deve ser analisada em

função dos seus interlocutores, daqueles conceitos, idéias ou valores com os quais ela dialoga

ou trava um combate intelectual. .

Qual era e como era a época de Kropotkin? O que ele gostaria de mudar – tanto na

geografia como na sociedade – e como? Que tipo de escola existia e afinal com quem ele

dialogava?

Temos que lembrar que o final do século XIX era um momento de colonialismo, de partilha

da Ásia e especialmente da África pelas potências européias, que justificavam essa dominação

– que implicava até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório, na

tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e hábitos dos colonizadores –

através da idéia de que os europeus tinham a nobre “missão” de levar a verdadeira

“civilização” para os demais povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento

histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados, de ferrenhas disputas

entre as potências européias por terras e mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino.

Basta lembrar dos livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente estereotipavam

os “outros”, os estrangeiros, e supervalorizavam a “sua” nação, chegando até mesmo a arrolar

o número de soldados ou de navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre

subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a Alemanha e a Inglaterra,

no caso da França, e vice-versa) e inflando os dados sobre a “nossa pátria”. E inúmeros

geógrafos, que em grande parte eram mais viajantes ou exploradores a serviço do

colonialismo, participavam intensamente dessa aventura expansionista, seja produzindo idéias

pretensamente científicas sobre a superioridade do modelo civilizatório europeu, seja pela

compilação de dados sobre os recursos naturais e humanos de uma dada região:

mapeamentos e estudos sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento e

suas características, etc. A Royal Geographical Society of London, fazendo juz ao próprio nome,

contava com membros da família real – além de comerciantes, banqueiros, industriais

interessados no alargamento de seus negócios, etc. – em suas concorridas reuniões. A título de

parêntesis poderíamos lembrar do filme Mountains of the Moon (As montanhas da Lua, de

Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente disponível em vídeo ou DVD nas locadoras), que

mostra algumas dessas reuniões dessa instituição com ênfase na polêmica entre dois

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geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente do rio Nilo. Kropotkin

participou em várias dessas reuniões da Royal Geographical Society ; inclusive este seu texto

sobre “o que a geografia deveria ser” foi uma intervenção sua nessa sociedade, que depois foi

ampliada e publicada numa revista científica. .

Como se percebe facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém visto com um misto

de benevolência e curiosidade – afinal ele era de uma aristocrática família russa e ao mesmo

tempo, de forma paradoxal, anarquista e conseqüentemente um utopista que acreditava

numa humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de gênero, de

etnias, etc. Como um exilado russo que viveu em Londres durante décadas, ele polemizou com

os “grandes nomes” da geografia britânica do período – a começar por Sir Halford Mackinder.

Mackinder apregoava, de forma “realista” (isto é, em consonância com o que de fato ocorria

com a geografia britânica), que a geografia “deve servir aos homens do Estado e aos

comerciantes”, embora também deva satisfazer “os reclames do sistema escolar”1. Kropotkin,

ao contrário, exorcizava qualquer tipo de serviço para o Estado e principalmente para “os

comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara aversão ao tipo de

geografia que era ensinado nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso

como algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência do conhecimento

– e no princípio de que os seres humanos são iguais por natureza e que as divisões em nações,

classes, gêneros, grupos étnicos ou religiosos, etc., seriam apenas provisórias e tenderiam a se

anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua idéia de que a educação deveria

combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas, de preconceitos ou estereótipos,

qualquer tipo de racismo ou de discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua idéia de

que ao invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a Europa poderia lhes

fornecer seria a ciência moderna, as “leis” da natureza como uma forma de a humanidade

controlar o seu meio ambiente – sem depreda-lo – e construir uma sociedade mais rica e mais

justa. E como um bom seguidor das idéias de Pestalozzi e de Fröbel, Kropotkin advogava um

ensino que não fosse meramente discursivo e sim alicerçado em trabalhos de campo, em

observações da realidade, em uma gradativa construção pelos educandos de conceitos,

valores e atitudes. .

Como avaliar a importância das idéias de Kropotkin para a sua época? E qual seria a sua

(possível) atualidade? .

Sem dúvida que Kropotkin deve ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado

grupo de pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do exemplo da

Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os anarquistas, socialistas utópicos, marxistas –

da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de Élisée

Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da Comuna de Paris de 1871, e leu

com atenção as principais obras “socialistas” desse período, desde as de Marx até as de

Phoudon e Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier, etc. Mas esse grupo, convém

reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía idéias muitas vezes antinômicas. Por

exemplo: Marx e também alguns outros pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de

Kropotkin, não criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo chegaram a

defender as brutalidades e as matanças com o argumento de que, apesar dos pesares, isso

seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o desenvolvimento do

capitalismo e, posteriormente, do socialismo – nessas regiões do globo2. E também o sistema

escolar era visto por uns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista” no sentido de

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possibilitarem uma maior igualdade entre as pessoas e a inculcação de novos valores e

atitudes mais igualitários, sendo que para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela

universalização e democratização do ensino – por ele visto como “burguês” – era algo

superficial e até mesmo histriônico3. E por fim Kropotkin jamais professou a crença numa

“classe predestinada” a fazer a revolução, o proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou

os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas que deveriam ser levados em consideração com a

mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o seu equilíbrio que deveria ser respeitado (e

nunca aquele desprezo absoluto pela “natureza em si” que existe em alguns socialistas desse

período), as classes trabalhadoras (no plural), as crianças e os jovens, as mulheres, as etnias

minoritárias e as “raças” tidas como inferiores, os povos estrangeiros, em especial aqueles

mais diferentes de “nós” e dessa forma mais discriminados, etc. Neste sentido, será que

poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo daquilo que a partir dos anos 1970

seria rotulado como a pós-modernidade? .

Sim, o pensamento de Kropotkin tem uma certa atualidade. Quando consultamos um bom

texto sobre como deve ser a educação no século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de

Edgar Morin4 ou então o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a

pedido da Unesco5 – logo notamos que ele sublinha que a educação não deve ser um mero

ensinamento de conceitos e sim uma oportunidade para o educando aprender a aprender, a

ser, a conviver (combatendo assim todas as formas de preconceitos) e a fazer. Mais

importante do que levar o aluno a assimilar um conceito ou mesmo a aprender a escrever

corretamente é faze-lo perceber o absurdo dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para

nele desenvolver atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada tem de

burguês, mas, pelo contrário, deve sim ser visto como um passaporte para a cidadania, que

inclusive deveria ser global ou planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior

herança ou tesouro da humanidade, tal como aparece naquele mencionado estudo da Unesco.

E finalmente o ensino da geografia, como já preconizava Kropotkin no final do século XIX, deve

sim levar o aluno a adquirir um paixão pela natureza e pela sua conservação racional, e isso

sem entrar num atrito cego ou mítico com a ciência moderna, e deve sim ter como uma de

suas preocupações essenciais o mostrar que a humanidade é uma só apesar das diferenças,

que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin falaria em “raças”, mas esse termo era

absolutamente normal na sua época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de

toda a humanidade.

[José William Vesentini]

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1 Cf. MACKINDER, H.J. “On the Scope and Methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal

Geographical Society, IX, 1887, pp.159-60.

2 Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I,

Lisboa, Estampa, 1974, especialmente pp.47-8 e 103-4.

3 Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, pp.32-3.

4 MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000.

5 DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.