o que a geografia deve ser* - · pdf filemaneira de suscitar ... despertar seu desejo de...
TRANSCRIPT
O QUE A GEOGRAFIA DEVE SER*
Piotr Kropotkin
Era fácil prever que o grande renascimento das ciências naturais, o qual nossa geração tem
tido a sorte de acompanhar desde há trinta anos, assim como a nova orientação dada à
literatura científica por um grupo de homens eminentes, que se dispuseram a apresentar os
resultados das mais complexas investigações científicas de forma acessível ao público em
geral, deveriam necessariamente provocar um renascimento equivalente na geografia. Esta
ciência, que toma em consideração as leis descobertas pelas suas ciências irmãs e coloca em
pauta as suas ações e efeitos mútuos em relação à superfície do globo, não poderia
permanecer à margem do movimento científico em geral; e assistimos na atualidade o
despertar de um interesse pela geografia que relembra o interesse por ela suscitado na
geração anterior, durante a primeira metade do nosso século**. .
É verdade que não contamos hoje com um viajante e filósofo tão capaz como foi Humboldt;
porém, as recentes expedições ao ártico e as investigações nas profundidades abissais, e, mais
ainda, os rápidos progressos experimentados pela biologia, pela climatologia, pela
antropologia e pela etnologia comparada, têm fornecido aos trabalhos geográficos uma
atração tão considerável e um significado tão profundo, que os próprios métodos de descrição
da Terra vêm experimentando desde há algum tempo uma profunda modificação. Reaparece
novamente na literatura geográfica o mesmo nível de explicação científica e de
fundamentação filosófica a que Humboldt e Ritter nos haviam acostumados. Não se deve
estranhar, portanto, que os livros de viagens e aqueles de descrições geográficas gerais
estejam voltando a ser o tipo mais popular de leitura. .
Era também totalmente natural que o renascimento do interesse pela geografia dirigisse a
atenção do público para a geografia na escola. Realizaram-se pesquisas e descobriu-se, com
estupor, que havíamos conseguido que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva para pessoas
de todas as idades – resulte em nossas escolas como um dos temas mais áridos e carentes de
significado. Nada interessa tanto às crianças como as viagens; e nada é mais árido e menos
atrativo, em muitas escolas, do que aquilo que nelas é batizado com o nome de geografia. 0
mesmo podemos dizer, quase que com as mesmas palavras e com raras exceções, em relação
a física, à química, à botânica, à geologia, à história e às matemáticas. Uma reforma em
profundidade no ensino de todas as ciências e tão necessária quanto uma reforma na
educação geográfica. Todavia, apesar da opinião pública ter permanecido bastante indiferente
á respeito de uma reforma geral de nossa educação científica – mesmo quando os homens
mais eminentes deste século a tenham preconizado –, ela parece, em troca, ter entendido
rapidamente a necessidade de reformar o ensino da geografia: a discussão recentemente ini-
ciada pela Real Sociedade Geográfica Britânica tem sido acolhida com simpatia geral por parte
da imprensa. Nosso mercantilizado século parece ter entendido melhor a necessidade de uma
reforma na medida em que foram colocados em pauta os chamados interesses "práticos" da
colonização e da guerra. Uma discussão rigorosa deve forçosamente demonstrar que não se
pode chegar a nada de sério nesse sentido desde que não se empreenda uma correlativa,
porém, muito mais ampla, reforma geral do nosso sistema educacional.
É quase seguro que não existe outra ciência que possa tornar-se tão atrativa para a criança
como a geografia, e que possa se constituir num poderoso instrumento para o
desenvolvimento geral do pensamento, assim como para familiarizar o estudante com o
verdadeiro método de investigação científica e para despertar sua afeição pela ciência natural.
As crianças não são verdadeiras admiradoras da natureza enquanto esta não tiver alguma
ligação com a humanidade. 0 sentimento artístico, que desempenha um papel tão importante
papel no deleite intelectual do naturalista, é demasiado débil na criança. As harmonias da
natureza, a beleza de suas formas, as admiráveis adaptações de seus organismos, a satisfação
obtida pela inteligência no estudo das leis físicas – tudo isso pode vir depois, porém não ainda
na primeira infância. A criança busca em todas as partes o homem, a atividade humana, as
lutas contra os obstáculos. Os minerais e as plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma
etapa em que prevalece a imaginação. Quer dramas humanos, o que significa que a melhor
maneira de suscitar-lhe o desejo de estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e
caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os perigos, de costumes e hábitos, de
tradições e migrações. Alguns "pedagogos" modernos buscam matar a imaginação das
crianças. Os melhores são aqueles conscientes de como a imaginação constitui uma excelente
ajuda para o raciocínio científico. Entendem assim que não é possível uma explicação científica
profunda sem a ajuda de um poder de imaginação bastante desenvolvido; e utilizam a
imaginação da criança não para abarrotá-la de superstições, mas sim para despertar a sua
paixão pelos estudos científicos. A descrição da Terra e de seus habitantes constituirá com
certeza um dos melhores meios para alcançar tal fim. Relatos do homem lutando contra as
forças hostis da natureza – o que poderá ser melhor do que isso para inspirar na criança o
desejo de averiguar os segredos dessas forças? pirar na criança o desejo de averiguar os
segredos dessas forças? Pode-se despertar facilmente nas crianças a feição por "colecionar",
transformar seus quartos em exposições de curiosidades, ao passo que, nas idades mais
prematuras, não é fácil despertar o desejo de investigar as leis da natureza; nada é mais fácil
que despertar numa mente infantil a capacidade de comparação mediante o relato das
histórias de países distantes, de suas plantas e animais, de suas paisagens e fenômenos,
sempre que plantas e animais, ciclones e tormentas, ou erupções vulcânicas, guardem relação
com o homem. Esta é a tarefa da geografia na primeira infância: tomando a humanidade como
intermediária, desenvolver nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da natureza,
despertar seu desejo de conhecê-los e explicá-los. .
A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito mais importante. Ela deve nos
ensinar, desde nossa mais tenra infância, que todos somos irmãos, independentemente da
nossa nacionalidade. Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades
entre nações, que são habilmente alimentados por pessoas que perseguem seus próprios e
egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em que a escola
deve fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para anular esses
ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar
que cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensável pedra para o
desenvolvimento geral da humanidade, e que somente pequenas frações de cada nação estão
interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais. Deve reconhecer que, além de outras
causas que nutrem as rivalidades nacionais, as diferentes nações não se conhecem
suficientemente bem entre si; as espantadas perguntas sobre seu país, que se fazem a um
estrangeiro; os absurdos preconceitos mútuos, que se estendem aos extremos de um
continente – e até a ambos os lados de um canal – são prova suficiente de que, mesmo entre
aqueles que se costuma denominar gente culta, a geografia e apenas conhecida pelo nome. As
pequenas diferenças de característícas nacionais, que aparecem especialmente entre as clas-
ses médias, tendem a ocultar a imensa semelhança que existe entre as classes trabalhadoras
de todas as nacionalidades, semelhança que se converte no fato mais significativo à medida
que se obtém um maior conhecimento. É tarefa da Geografia esclarecer essa realidade, e com
grande ênfase devido ao contexto de mentiras acumuladas pela ignorância, presunção e
egoísmo. Deve reforçar nas mentes das crianças que todas as nacionalidades são valiosas umas
para as outras; que quaisquer que sejam as guerras que tenham ocorrido, subjaz sempre no
fundo destas o mais míope dos egoísmos. (...)
Esta segunda tarefa é suficientemente importante. Porém, existe uma terceira, que talvez
o seja ainda mais: a de combater os preconceitos que nos foram inculcados em relação às
chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo nos leva a crer que os contatos que
vamos ter com elas vão ser cada vez mais intensos. Quando um político francês proclamava
recentemente que a missão dos europeus é civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e
as matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos
fatos que os europeus estão praticando diariamente [notadamente na África e na Ásia, no final
do século XIX]. E não poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se
o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se a considerar como se fosses verdadeiros crimes
determinados hábitos e costumes dos “pagãos”, a tratar as “raças inferiores”, como são
chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado enquanto o
dinheiro ainda não penetrou. Até agora os europeus têm "civilizado os selvagens" com whisky,
tabaco e seqüestros; os têm inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é chegado
o mo mento em que nos devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o
conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a forma de utilizar o conhecimento
científico para construir um mundo melhor. .
Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a
afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos os homens são irmãos,
quaisquer que sejam as suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as chamadas
“raças inferiores”. Desde que se admita isso, a reforma da educação geográfica é imensa:
consiste nada menos que na completa renovação da totalidade do sistema de ensino de nossas
escolas. (...)
Existe atualmente em pedagogia, devemos reconhece-lo, uma tendência no sentido de
cuidar demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o raciocínio individual e de
restringir a originalidade; e existe também uma tendência dirigida no sentido de facilitar em
demasia a aprendizagem, até o ponto de produzir uma criança desacostumada a realizar
qualquer esforço intelectual próprio, ao invés de fazer o contrário, a acostumar a criança a
realizar esforços intelectuais cada vez mais complexos. Concedamos a nossos educandos mais
liberdade para seu desenvolvimento intelectual! Deixemos mais espaço para o seu trabalho
independente, sem mais ajuda do professor do que a estritamente necessária. (...)
Onde encontrar professores para levar a cabo essa imensa tarefa de educação? Esta é, nos
retrucam, a grande dificuldade que todo plano de reforma do ensino encontra. Onde encon-
trar, de fato, várias centenas de milhares de Pestalozzis e Frobels***, que dêem uma instrução
verdadeiramente sólida às nossas pequenas crianças? Seguramente não nas filas desse triste
exército de professores aos quais condenamos a ensinar durante toda sua vida, desde a
juventude até o túmulo; que são enviados a um povo com o qual carecem de toda
relação intelectual de reciprocidade, e que prontamente se acostumam a considerar o seu
trabalho como uma maldição. Seguramente que não nas fileiras daqueles que somente
enxergam o ensino como uma profissão assalariada e nada mais além disso. Apenas
personalidades excepcionais podem continuar sendo bons professores, nessas condições, até
uma idade avançada. Estes homens e mulheres preciosos devem constituir, cumpre dize-lo, os
irmãos maiores de um exército de educadores cujas fileiras devem ser preenchidas com
voluntários orientados em seu labor por aqueles que tem consagrado toda sua vida à nobre
tarefa da pedagogia. Jovens, homens e mulheres, que dediquem um ano de sua vida ao ensino
porque são movidos pelo desejo de ajudar os mais novos em seu desenvolvimento intelectual;
gente de mais idade, que está disposta a consagrar determinadas horas a ensinar temas de sua
preferência – uns e outros constituirão provavelmente o exército de educadores de um
sistema de educação menos organizado. Em todo caso, claro está que não é precisamente
convertendo o ensino em uma profissão assalariada que conseguiremos uma boa educação
para nossas crianças, e manteremos em nossos pedagogos esse espírito aberto e receptivo que
é imprescindível para ajustar-se às crescententes necessidades da ciência. 0 professor somente
será um verdadeiro professor quando sinta verdadeiro amor tanto pelas crianças como pelos
temas que ensina, e esse sentimento não pode perdurar durante anos se o ensino é apenas
uma profissão. Pessoas dispostas a dedicar suas energias e ensinar, e suficientemente capazes
de faze-lo, não faltam em nossa sociedade. Falta saber como descobri-las, como interessá-las
pela educação e combinar seus esforços; e em suas mãos, com a ajuda de gente mais
experimentada, nossos colégios serão muito rapidamente diferentes do que são agora. Serão
lugares onde jovens gerações assimilarão conhecimentos e experiências das mais velhas, ao
passo que estas, em contato com as primeiras, recuperarão novas energias para um trabalho
conjunto em benefício da humanidade.
*“What Geography ought t be”, excertos selecionados e traduzidos de Antipode: a Radical
Journal of Geography, vol.10/11, n° 1/3, 1976, pp. 6-15. Mas este ensaio de kropotkin foi
originalmente publicado in The Nineteenth Contury, XXI, Londres, dezembro de 1885.
[Seleção, tradução e notas de José William Vesentini].
** Isto é, do século XIX.
*** Tanto Pestalozzi como Fröbel foram importantes educadores do século XXI, ambos
admirados por Kropotkin, que viveu de 1842 a 1921. A seguir, há um pequeno texto sobre cada
um desses educadores:
Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um reformador da educação de nacionalidade
suíça. Suas teorias criaram os fundamentos do moderno ensino primário. Em 1799 inaugurou
uma escola para crianças, na qual durante vinte anos colocou em prática os seus métodos. Aí
as crianças aprendiam por meio da prática e da observação, bem como da utilização natural
dos sentidos. Pestalozzi defendia a individualidade da criança e o seu desenvolvimento
integral. Ele foi um amigo e até certo ponto mentor pedagógico de Karl Ritter, que afirmava
que o ensino da geografia deveria ter como base as idéias de Pestalozzi.
Wilhem Friedrich Fröbel (1782-1852 ), de nacionalidade germânica, é considerado o criador
dos jardins-de-infância. Trabalhou alguns anos com Pestalozzi e desenvolveu idéias para a
educação de crianças em idade pré-escolar, dos 3 aos 7 anos. Suas idéias, que tinham como
ponto central estimular o desenvolvimento natural das crianças pequenas através de
brincadeiras educativas e de jogos, eram demasiado inovadoras para serem aceitas pelo
público e pelas autoridades da época, razão pela qual, em 1851, o governo prussiano fechou as
portas de todos os jardins-de-infância do país. Mas seus discípulos promoveram a expansão
desses jardins para a Europa Ocidental, Estados Unidos e América Latina.
UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO
Para alguns, especialmente os mais jovens, embora também para determinadas pessoas
mais experientes todavia acomodadas intelectualmente, é difícil entender o significado de um
texto já antigo, neste caso do final do século XIX – de 1885. É que eles absolutizam o
conhecimento – normalmente o dicotomizando e classificando em gavetas ou rótulos
simplistas do tipo “novo” e “velho” ou então “positivista” e “dialético” – e com isso não
percebem que toda fala, toda mensagem deve ser contextualizada, deve ser analisada em
função dos seus interlocutores, daqueles conceitos, idéias ou valores com os quais ela dialoga
ou trava um combate intelectual. .
Qual era e como era a época de Kropotkin? O que ele gostaria de mudar – tanto na
geografia como na sociedade – e como? Que tipo de escola existia e afinal com quem ele
dialogava?
Temos que lembrar que o final do século XIX era um momento de colonialismo, de partilha
da Ásia e especialmente da África pelas potências européias, que justificavam essa dominação
– que implicava até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório, na
tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e hábitos dos colonizadores –
através da idéia de que os europeus tinham a nobre “missão” de levar a verdadeira
“civilização” para os demais povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento
histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados, de ferrenhas disputas
entre as potências européias por terras e mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino.
Basta lembrar dos livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente estereotipavam
os “outros”, os estrangeiros, e supervalorizavam a “sua” nação, chegando até mesmo a arrolar
o número de soldados ou de navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre
subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a Alemanha e a Inglaterra,
no caso da França, e vice-versa) e inflando os dados sobre a “nossa pátria”. E inúmeros
geógrafos, que em grande parte eram mais viajantes ou exploradores a serviço do
colonialismo, participavam intensamente dessa aventura expansionista, seja produzindo idéias
pretensamente científicas sobre a superioridade do modelo civilizatório europeu, seja pela
compilação de dados sobre os recursos naturais e humanos de uma dada região:
mapeamentos e estudos sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento e
suas características, etc. A Royal Geographical Society of London, fazendo juz ao próprio nome,
contava com membros da família real – além de comerciantes, banqueiros, industriais
interessados no alargamento de seus negócios, etc. – em suas concorridas reuniões. A título de
parêntesis poderíamos lembrar do filme Mountains of the Moon (As montanhas da Lua, de
Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente disponível em vídeo ou DVD nas locadoras), que
mostra algumas dessas reuniões dessa instituição com ênfase na polêmica entre dois
geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente do rio Nilo. Kropotkin
participou em várias dessas reuniões da Royal Geographical Society ; inclusive este seu texto
sobre “o que a geografia deveria ser” foi uma intervenção sua nessa sociedade, que depois foi
ampliada e publicada numa revista científica. .
Como se percebe facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém visto com um misto
de benevolência e curiosidade – afinal ele era de uma aristocrática família russa e ao mesmo
tempo, de forma paradoxal, anarquista e conseqüentemente um utopista que acreditava
numa humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de gênero, de
etnias, etc. Como um exilado russo que viveu em Londres durante décadas, ele polemizou com
os “grandes nomes” da geografia britânica do período – a começar por Sir Halford Mackinder.
Mackinder apregoava, de forma “realista” (isto é, em consonância com o que de fato ocorria
com a geografia britânica), que a geografia “deve servir aos homens do Estado e aos
comerciantes”, embora também deva satisfazer “os reclames do sistema escolar”1. Kropotkin,
ao contrário, exorcizava qualquer tipo de serviço para o Estado e principalmente para “os
comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara aversão ao tipo de
geografia que era ensinado nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso
como algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência do conhecimento
– e no princípio de que os seres humanos são iguais por natureza e que as divisões em nações,
classes, gêneros, grupos étnicos ou religiosos, etc., seriam apenas provisórias e tenderiam a se
anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua idéia de que a educação deveria
combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas, de preconceitos ou estereótipos,
qualquer tipo de racismo ou de discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua idéia de
que ao invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a Europa poderia lhes
fornecer seria a ciência moderna, as “leis” da natureza como uma forma de a humanidade
controlar o seu meio ambiente – sem depreda-lo – e construir uma sociedade mais rica e mais
justa. E como um bom seguidor das idéias de Pestalozzi e de Fröbel, Kropotkin advogava um
ensino que não fosse meramente discursivo e sim alicerçado em trabalhos de campo, em
observações da realidade, em uma gradativa construção pelos educandos de conceitos,
valores e atitudes. .
Como avaliar a importância das idéias de Kropotkin para a sua época? E qual seria a sua
(possível) atualidade? .
Sem dúvida que Kropotkin deve ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado
grupo de pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do exemplo da
Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os anarquistas, socialistas utópicos, marxistas –
da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de Élisée
Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da Comuna de Paris de 1871, e leu
com atenção as principais obras “socialistas” desse período, desde as de Marx até as de
Phoudon e Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier, etc. Mas esse grupo, convém
reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía idéias muitas vezes antinômicas. Por
exemplo: Marx e também alguns outros pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de
Kropotkin, não criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo chegaram a
defender as brutalidades e as matanças com o argumento de que, apesar dos pesares, isso
seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o desenvolvimento do
capitalismo e, posteriormente, do socialismo – nessas regiões do globo2. E também o sistema
escolar era visto por uns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista” no sentido de
possibilitarem uma maior igualdade entre as pessoas e a inculcação de novos valores e
atitudes mais igualitários, sendo que para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela
universalização e democratização do ensino – por ele visto como “burguês” – era algo
superficial e até mesmo histriônico3. E por fim Kropotkin jamais professou a crença numa
“classe predestinada” a fazer a revolução, o proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou
os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas que deveriam ser levados em consideração com a
mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o seu equilíbrio que deveria ser respeitado (e
nunca aquele desprezo absoluto pela “natureza em si” que existe em alguns socialistas desse
período), as classes trabalhadoras (no plural), as crianças e os jovens, as mulheres, as etnias
minoritárias e as “raças” tidas como inferiores, os povos estrangeiros, em especial aqueles
mais diferentes de “nós” e dessa forma mais discriminados, etc. Neste sentido, será que
poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo daquilo que a partir dos anos 1970
seria rotulado como a pós-modernidade? .
Sim, o pensamento de Kropotkin tem uma certa atualidade. Quando consultamos um bom
texto sobre como deve ser a educação no século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de
Edgar Morin4 ou então o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a
pedido da Unesco5 – logo notamos que ele sublinha que a educação não deve ser um mero
ensinamento de conceitos e sim uma oportunidade para o educando aprender a aprender, a
ser, a conviver (combatendo assim todas as formas de preconceitos) e a fazer. Mais
importante do que levar o aluno a assimilar um conceito ou mesmo a aprender a escrever
corretamente é faze-lo perceber o absurdo dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para
nele desenvolver atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada tem de
burguês, mas, pelo contrário, deve sim ser visto como um passaporte para a cidadania, que
inclusive deveria ser global ou planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior
herança ou tesouro da humanidade, tal como aparece naquele mencionado estudo da Unesco.
E finalmente o ensino da geografia, como já preconizava Kropotkin no final do século XIX, deve
sim levar o aluno a adquirir um paixão pela natureza e pela sua conservação racional, e isso
sem entrar num atrito cego ou mítico com a ciência moderna, e deve sim ter como uma de
suas preocupações essenciais o mostrar que a humanidade é uma só apesar das diferenças,
que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin falaria em “raças”, mas esse termo era
absolutamente normal na sua época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de
toda a humanidade.
[José William Vesentini]
----------------------------------------------------------
1 Cf. MACKINDER, H.J. “On the Scope and Methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal
Geographical Society, IX, 1887, pp.159-60.
2 Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I,
Lisboa, Estampa, 1974, especialmente pp.47-8 e 103-4.
3 Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, pp.32-3.
4 MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000.
5 DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998.