o quadrilÁtero funcional nas fazendas cafeeiras … · resumo mais importante e duradouro ciclo...

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O QUADRILÁTERO FUNCIONAL NAS FAZENDAS CAFEEIRAS DO SUL DO ESPÍRITO SANTO: ARQUITETURA DISCIPLINAR INCIDINDO SOBRE A PAISAGEM HAUTEQUEST FILHO, GENILDO COELHO. (1); BERNARDO, LUCIANO CORREIA. (2) MARGON, BIANCA DE ALMEIDA. (3) 1. Faculdade Brasileira Multivix Vitória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua José Alves, 301, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-080 E-mail: [email protected] 2. Faculdade Brasileira Multivix Vitória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua José Alves, 301, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-080 E-mail: [email protected] 3. Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Departamento de Arquitetura Av. Fernando Ferrari, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-210 E-mail: [email protected] RESUMO Mais importante e duradouro ciclo econômico brasileiro, o ciclo do café deixou significativas marcas na paisagem rural do país, em especial nos estados do Sudeste. O espaço laboral da fazenda é constituído em volta de um grande terreiro de secagem de café, delimitado pela casa grande construção de maior destaque no conjunto , engenhos para o beneficiamento de café, tulhas, senzalas e demais edificações. Este quadrilátero não era somente funcional, se levarmos em consideração os edifícios que o constituem, ele estabelece principalmente a função hierárquica disciplinar de cada indivíduo na sociedade agrária brasileira do século XIX. O quadrilátero era a representação espacial do sistema social, cultural, econômico e político da época. A paisagem dessas fazendas é fortemente marcada por todos os elementos de poder e controle oitocentista. Mesmo em regiões distantes do centro econômico brasileiro da época, o vale do rio Paraíba, este sistema arquitetônico disciplinar também pode ser observado, como nas fazendas escravocratas de café da região sul do Espírito Santo, objeto deste estudo. Mas não foi a partir das fazendas oitocentistas que o quadrilátero funcional se consolidou no Brasil, pois ele pode ser observado desde os primórdios de nossa ocupação territorial nos aldeamentos jesuíticos, nas praças das primeiras cidades e nos engenhos de açúcar nordestinos. Em todos esses períodos, ele é marcado pelos ícones do poder e controle local: a igreja matriz, a casa de câmara e cadeia, o pelourinho ou a casa grande da fazenda, edificações que se destacam na paisagem local. A partir de levantamentos realizados pelo INEPAC no vale do Paraíba Carioca, pelo IEPHA, em Minas Gerais e pelo IPHAN no Espírito Santo, tendo como recorte 20 fazendas, sendo dez no vale do Paraíba e dez no sul do Espírito Santo, o trabalho discute a constituição do espaço social, laboral e de controle das fazendas cafeeiras escravocratas dessa região, em especial as fazendas capixabas. Além dos autores consagrados da arquitetura como Carlos Augusto Silva Telles, Carlos Lemos, Luís Saia, Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos, o trabalho busca dialogar com o conceito Foucautiano do poder soberano e disciplinar em que o barão ou o coronel, como no caso capixaba, dono da fazenda, delibera sobre a vida e a morte de todos que estão no seu domínio territorial. O

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O QUADRILÁTERO FUNCIONAL NAS FAZENDAS CAFEEIRAS DO SUL DO ESPÍRITO SANTO: ARQUITETURA DISCIPLINAR INCIDINDO

SOBRE A PAISAGEM

HAUTEQUEST FILHO, GENILDO COELHO. (1); BERNARDO, LUCIANO CORREIA. (2) MARGON, BIANCA DE ALMEIDA. (3)

1. Faculdade Brasileira – Multivix Vitória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Rua José Alves, 301, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-080 E-mail: [email protected]

2. Faculdade Brasileira – Multivix Vitória. Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Rua José Alves, 301, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-080 E-mail: [email protected]

3. Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Departamento de Arquitetura

Av. Fernando Ferrari, Goiabeiras, Vitória-ES. CEP: 29.075-210 E-mail: [email protected]

RESUMO

Mais importante e duradouro ciclo econômico brasileiro, o ciclo do café deixou significativas marcas na paisagem rural do país, em especial nos estados do Sudeste. O espaço laboral da fazenda é constituído em volta de um grande terreiro de secagem de café, delimitado pela casa grande – construção de maior destaque no conjunto –, engenhos para o beneficiamento de café, tulhas, senzalas e demais edificações. Este quadrilátero não era somente funcional, se levarmos em consideração os edifícios que o constituem, ele estabelece principalmente a função hierárquica disciplinar de cada indivíduo na sociedade agrária brasileira do século XIX. O quadrilátero era a representação espacial do sistema social, cultural, econômico e político da época. A paisagem dessas fazendas é fortemente marcada por todos os elementos de poder e controle oitocentista. Mesmo em regiões distantes do centro econômico brasileiro da época, o vale do rio Paraíba, este sistema arquitetônico disciplinar também pode ser observado, como nas fazendas escravocratas de café da região sul do Espírito Santo, objeto deste estudo. Mas não foi a partir das fazendas oitocentistas que o quadrilátero funcional se consolidou no Brasil, pois ele pode ser observado desde os primórdios de nossa ocupação territorial nos aldeamentos jesuíticos, nas praças das primeiras cidades e nos engenhos de açúcar nordestinos. Em todos esses períodos, ele é marcado pelos ícones do poder e controle local: a igreja matriz, a casa de câmara e cadeia, o pelourinho ou a casa grande da fazenda, edificações que se destacam na paisagem local. A partir de levantamentos realizados pelo INEPAC no vale do Paraíba Carioca, pelo IEPHA, em Minas Gerais e pelo IPHAN no Espírito Santo, tendo como recorte 20 fazendas, sendo dez no vale do Paraíba e dez no sul do Espírito Santo, o trabalho discute a constituição do espaço social, laboral e de controle das fazendas cafeeiras escravocratas dessa região, em especial as fazendas capixabas. Além dos autores consagrados da arquitetura como Carlos Augusto Silva Telles, Carlos Lemos, Luís Saia, Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos, o trabalho busca dialogar com o conceito Foucautiano do poder soberano e disciplinar em que o barão ou o coronel, como no caso capixaba, dono da fazenda, delibera sobre a vida e a morte de todos que estão no seu domínio territorial. O

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exercício da violência, em especial sobre os negros cativos, se dá pela lógica do tronco e do martírio que é a máxima expressão do poder soberano. Para tanto, o senhor exerce o controle de seus corpos com o objetivo de “domesticá-los”, mas, para domesticar o corpo, primeiro é necessário domesticar a alma, e nesse aspecto, edifica-se um conjunto arquitetônico, a sede da fazenda, contendo todos os ícones disciplinares. Trata-se de uma arquitetura disciplinar, conceito que será discutido no presente artigo.

Palavras-chave: arquitetura rural; Espírito Santo; ciclo do café.

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Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO

O cafeeiro, planta de origem africana, tornou-se conhecido e difundido, com cultivo em grande

escala, principalmente pelas propriedades estimulantes da bebida produzida com seus frutos.

Espalhou-se pela Europa, vindo também para a América, trazido pelos holandeses para o

Suriname; pelos franceses, para a Guiana Francesa; chegando, finalmente ao Brasil.

Atribui-se ao Tenente Francisco de Mello Palheta a importação das primeiras mudas e

sementes de café para o Brasil, vindas da Guiana, no ano de 1727. As sementes de café

foram distribuídas às lideranças políticas na cidade de Belém, no Pará. Embora não existam

registros significativos da produção cafeeira no Norte do Brasil, sabe-se que desta região

saíram as sementes que permitiram a implantação da produção cafeeira no o Rio de Janeiro.

Segundo Bicca (1967), a consolidação da cultura cafeeira no sudeste brasileiro foi

impulsionada pelos estrangeiros residentes na região.

A produção comercial do café no território brasileiro iniciou no período de declínio da extração

do ouro, e afetou diretamente o modelo econômico até então existente. A ocupação do solo

Brasileiro com o plantio do café cresceu, tornando-se o principal produto agrícola nacional, o

“ouro verde” da terra, e transformando o país em um dos maiores produtores mundiais. Neste

cenário, ergueram-se imponentes fazendas, altamente produtivas, baseadas nas relações

entre barões e trabalhadores negros escravizados.

Enormes extensões de mata foram derrubadas, permitindo a ocupação de novas terras onde

o café passou a ser plantado. A região do vale do Paraíba, bacia hidrográfica com 57.000 km²

de extensão, divididos entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, possuía

solo e clima propícios para o plantio, por isso a região se consolidou como o principal centro

cafeeiro do país.

Embora o Vale do Paraíba já estivesse ocupado, no início do século XIX duas correntes

migratórias foram responsáveis pela aceleração de seu crescimento: mineiros provenientes

das Minas Gerais em função da exaustão das minas de ouro; e portugueses, comerciantes da

corte, aristocratas e burocratas, estimulados pelo governo que forneceu sementes e terras

visando a ampliação da cultura que era altamente lucrativa para a coroa.

A partir de meados do século XIX, as terras do Vale do Paraíba já demonstravam sinais de

exaustão na produção cafeeira, por esse motivo, produtores fluminenses e mineiros migraram

para a província do Espírito Santo, instalando-se nos vales dos rios Itabapoana e Itapemirim.

A partir deste processo, surgiram pequenas vilas, que evoluíram para cidades dentre elas

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Alegre, Cachoeiro de Itapemirim, Castelo, Muqui, Limeira, São Pedro de Alcântara do

Itabapoana e Veado, atual Guaçuí (HAUTEQUESTT FILHO, 2011).

Ainda que pequena, se comparada às principais regiões cafeeiras do Brasil, a produção

espírito-santense perdurou para além do século XIX, sendo ainda hoje o principal produto

agrícola do estado. O progresso gerado pelo café dotou a província, em especial a região sul,

de uma rede de infraestruturas composta por hidrovias, ferrovias e estradas carroçáveis que

interligavam as principais zonas produtoras da região.

A FAZENDA CAFEEIRA E O QUADRILÁTERO FUNCIONAL

O planejamento da implantação das fazendas cafeeiras, a escolha do local para

assentamento do sítio e de cada edificação eram definidos a partir do processo laboral que

viria a ser adotado no funcionamento da fazenda (VALVERDE, 1967). Um dos fatores a serem

considerados para a implantação das edificações era a topografia do local – dava-se

preferência a terrenos regulares em áreas menos declivosas e próximas aos leitos de rios,

porém fora do alcance de enchentes. A proximidade de corpos d’agua se mostrava um fator

determinante na escolha do sítio a ser implantado a fazenda.

Principiareis a vossa fazenda edificando primeiro uma casa ordinária para

vossa moradia temporária e tantas quantas forem precisas para acomodar os

escravos e camaradas; mas tudo isto deve ser feito de forma que não estorve

o risco da fazenda. Findo este primeiro trabalho, tirareis o rego que deve

trazer a água para tocar as fábricas e que tereis todo o cuidado que seja

tirada bem nivelada para não estragar o rego. A primeira obra que se deve

fazer é o engenho de serrar, que fará com que a vossa fazenda vos custe

metade do que custaria se não o tivésseis. Logo deveis fazer o moinho, o

engenho de mandioca, e, depois, o de pilões, ou de açúcar, se esse for o

vosso estabelecimento, seguindo-se as senzalas dos pretos, que devem ser

voltadas para o nascente ou poente e em uma só linha [...] as senzalas

devem ser feitas em lugar mais sadio e enxuto da fazenda: é da conservação

da escravatura que depende a prosperidade do fazendeiro (WERNECK,

1978, p. 32).

A fazenda cafeeira no Brasil tem seu modelo referencial no Vale do Paraíba, região mais

abastada economicamente durante o ciclo cafeeiro. De forma geral, apresentam sua

implantação formada por um quadrilátero funcional e diversas edificações pertencentes ao

conjunto da fazenda em torno dele, casa grande, senzala, engenho de beneficiamento, tulhas,

enfermarias, casa do capataz e paióis são as principais edificações que formam este modelo

de implantação adotado majoritariamente pelas fazendas cafeeiras da região. Outras

disposições de implantação eram adotadas quando a topografia era desnivelada, ou quando

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existiam mais de um terreiro. Rocha (2006) compreende a expressão “quadrilátero” como

qualquer forma de quatro lados, incluindo nesta classificação os quadrados, retângulos e

paralelogramos regulares ou irregulares.

O quadrilátero funcional se estabelecia em torno do principal espaço social e de trabalho da

fazenda cafeeira escravocrata, o terreiro de café. Este espaço mostrava-se de extrema

importância para o bom resultado do beneficiamento do produto, era nele que se colocavam

os frutos para secagem após a colheita. Transcendendo sua função laboral, o terreiro de café

possuía importância fundamental na convivência humana das fazendas, sendo “uma

transmutação da praça urbana, acumulando, como aquela, funções diferenciadas: lazer,

trabalho, punições, oração, vigília” (BITTAR, MENDES, e VERÍSSIMO, 2007, p.126).

O princípio básico na adoção do quadrilátero funcional como modelo de implantação não tem

sua origem nas fazendas de café. No Brasil uma das referências primitivas desse modelo,

ainda sem qualquer influência europeia, pode ser observado nas aldeias indígenas.

[…] as aldeias tupis do litoral compunham-se de quatro a sete malocas ou

habitações coletivas, dispostas de modo a deixar uma área central

quadrangular livre bastante ampla para a realização de cerimônias religiosas,

para a reunião do conselho de chefes, ou para cerimoniais de iniciação

(TELLES, 1984, p. 62).

Os primeiros modelos de quadrilátero adotados pelos portugueses no Brasil podem ser

observados nos aldeamentos jesuíticos. O conjunto, que era formado pela igreja e pelo

colégio se estabeleceu como o epicentro da região, tornando-se um elemento de

concentração dos habitantes, ocupando lugar de destaque na implantação (SAIA, 1937).

Em síntese, os elementos principais do núcleo central de qualquer

aldeamento foram os seguintes: no centro da praça quadrada ou retangular,

verdadeiro terreiro abrigando um cruzeiro e o tronco. Numa das faces da

praça, geralmente ocupando um dos cantos, a igreja dominava o conjunto [...]

(PETRONE, 1964, p. 169).

A implantação das casas de câmara e cadeia presentes nas primeiras cidades brasileiras da

segunda metade do século XVI até o final século XIX, seguindo o modelo português, possui

uma localização central nos núcleos urbanos, geralmente em frente à principal praça da vila

onde também eram erguidos outros ícones do poder como o pelourinho e a igreja. Tal modelo

também pode ser compreendido como o quadrilátero do poder local.

Os modelos de implantação adotados nos complexos agroindustriais brasileiros foram

registrados por viajantes estrangeiros, dentre eles o francês Saint Hilaire (1778 – 1853) que

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descreve as características das implantações nos núcleos rurais que visitou. O autor, em sua

primeira viagem no ano de 1819, ao passar pela fazenda de Itajurú, no norte de Minas Gerais,

destaca a existência de um espaço denominado terreiro, que possui edificações dispostas em

torno deste.

As casas estão dispostas à volta de um grande terreiro que tem a forma de

um quadrilátero alongado. Um dos lados é formado pelas senzalas, em

seguida às quais vem um engenho de açúcar [...]. Do lado oposto é o

alojamento do senhor, que só tem um andar [...]. Em seguida a esse edifício

há um muro que separa o terreiro do jardim. Celeiros e armazéns formam um

dos lados do terreiro, e, em frente, está uma parede contra a qual se apoia, do

lado de fora, um alpendre em que se fazem os queijos (SAINT HILAIRE,

1938, p. 190).

Em 1822 durante sua segunda viagem aos núcleos rurais brasileiros, Hilaire observa na

região de Rio das Mortes, hoje Tiradentes, a existência de um sistema comum de

implantação.

As benfeitorias desta fazenda obedecem ao mesmo sistema de todas as

outras desta comarca. Um muro de pedra seca, mais ou menos da altura de

um homem, rodeia em parte um pátio muito vasto, no fundo do qual ficam

enfileiradas, umas ao lado das outras, as casas dos negros, as pequenas

construções que servem de depósitos e locais de beneficiamento dos

produtos agrícolas e a casa do dono. [...] Não devo também esquecer de

dizer que se entra no pátio por uma das portas a que se chama porteira,

também empregada para fechamento dos pastos (SAINT HILAIRE, 1932, p.

54).

A partir da análise dos escritos de Saint Hilaire e também de Rugendas (1802-1858), de Jean

Baptiste Debret (1768-1848) e Charles Ribeyrolles (1812-1860) que circularam por diversas

regiões do Brasil, conclui-se que a existência do modelo de implantação denominado

“quadrilátero” também foi adotado em fazendas anteriores ao ciclo cafeeiro. Em seu estudo

sobre as fazendas de café do Médio Vale do Paraíba Fluminense, Rocha (2006) conclui que a

existência do quadrilátero funcional é comum às diversas unidades agrárias, e podem ser

classificados quanto à existência de edificações em suas faces, quanto à sua forma e quanto

ao seu formato.

Em relação à classificação do quadrilátero funcional, quanto à existência de edificações em

suas faces temos: o quadrilátero fechado, que possui os quatro lados cercados por

edificações, independentemente do número de acessos; e o quadrilátero aberto, que possui

os quatro lados estabelecidos em forma de quadrilátero, entretanto não possui edificações em

um de seus lados. Se levarmos em consideração sua forma eles podem ser regulares, quando

possuem as quatro faces retilíneas, podendo variar em abertas ou fechadas; e irregular

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quando possui um dos lados não retilíneos, com ângulos agudos, na forma de um pentágono,

possuindo ou não edificações em um dos lados. Se considerarmos seu formato, o quadrilátero

pode ser retangular, que são os tipos mais comuns, onde as edificações em torno do terreiro

formam um retângulo com ângulos aproximados a 90º; ou formar um paralelogramo, que são

os tipos mais raros.

Os levantamentos do INEPAC no Vale do Paraíba, IEPHA, em Minas Gerais e do IPHAN no

Espírito Santo permitem discutir a existência de um modelo de implantação específico comum

às fazendas cafeeiras no território Brasileiro. A amostra trabalhada consiste no número de

vinte fazendas, estando na região do Vale do Paraíba as fazendas Cachoeira Grande,

Florença, Mulungu Vermelho, Paraizo, Santa Cecília, Santa Clara, Santa Eufrásia, Santo

Antônio do Paiol, Santo Inácio, São Luís da Boa Sorte. No sul do Espírito Santo, situam-se as

fazendas Harmonia, Independência, Maravilha, Recreio, Santa Rita, Santa Rosa, São Gabriel,

Serra, Taquaral e Verdade.

A partir da análise dos levantamentos estudados, percebe-se que a adoção deste modelo de

implantação pré-estabelecido denominado “quadrilátero funcional” é comum às fazendas

cafeeiras escravocratas na região do Vale do Paraíba, desta amostra. A Fazenda do Paraizo

(figura 1) é um dos exemplos mais claros da adoção deste. Localizada no município de Rio

das Flores (RJ), tem seu registro de fundação datado em 1853. Sua constituição arquitetônica

se dá pela divisão do espaço frontal da sede em duas partes. À esquerda, o antigo terreiro de

café em terra batida, hoje transformado em pomar. Na extremidade superior, ao lado da casa

sede, situa-se o bloco da antiga enfermaria e do hospital e a cozinha dos escravos. À

esquerda deste espaço, junto com a enfermaria, havia uma construção em formato de “O” que

era destinada à senzala dos escravos de eito, ainda que arruinada atualmente, é possível

compreender pela obra de Nicolau Facchinetti (figura 2) a forma deste espaço e seu principal

acesso.

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Figura 1: Casa sede da Fazenda Paraizo

Fonte: Acervo Genildo Coelho H. Filho

Do lado direito da casa sede ainda podem ser observados vestígios de dois terreiros e uma

canaleta central de captação hídrica. Um dos terreiros, com piso original em macadâmia, está

hoje coberto por grama, o outro, ainda hoje, conserva seu calçamento original. Neste mesmo

espaço encontram-se as edificações destinadas ao beneficiamento e armazenamento do café,

denominadas respectivamente por engenho de beneficiamento e tulhas, estes, configuram

um partido em “L”, fechando as extremidades deste espaço. A Fazenda Paraizo possui ainda

outras edificações laborais remanescentes do ciclo cafeeiro, entretanto sua localização não

se estabelece no quadrilátero funcional.

Figura 2: Fazenda Flores do Paraizo, detalhe do óleo sobre tela de Nicolau Facchinetti

Fonte: Acervo Fazenda Paraizo

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A análise da Fazenda do Paraizo (Figura 3) permite observar que a implantação das

edificações pertencentes ao “quadrilátero funcional” e a forma como ele se estabelece

configuram, de acordo com a classificação de Rocha (2006), um “quadrilátero aberto regular

retangular”.

Figura 3: Esquema de implantação da Fazenda Paraizo

Fonte: Próprio autor baseado nos levantamentos do INEPAC

A partir dos levantamentos do IPHAN na região sul do Espírito Santo é possível perceber que

a existência do quadrilátero funcional, nas fazendas cafeeiras escravocratas da região, não se

estabeleceu de forma tão clara como no vale do Paraíba. O sul do Espírito Santo possui

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características topográficas que diferem daquela região, isto se dá pela existência de vales e

montanhas que quase sempre impossibilitam a implantação do “quadrilátero funcional” de

forma clara. Outro fator a ser considerado é que poucas fazendas da região possuíram um

quantitativo considerável de escravos o que demonstra um quadro econômico diferente do

estabelecido na região do Rio de Janeiro.

Um dos exemplos das particularidades da implantação das fazendas cafeeiras escravocratas

no Espírito Santo é a Fazenda Santa Rita (figura 4), localizada no município de Muqui. Por

volta de 1850, Francisco Inácio de Almeida criou a Fazenda Aparecida, que posteriormente,

em 1860, foi adquirida por Gabriel Ferreira que alterou o nome da propriedade para Santa Rita,

sendo o responsável pela construção da atual casa sede que teve início no mesmo ano de

aquisição.

Figura 4: Casa sede da Fazenda Paraizo

Fonte: Acervo Genildo Coelho H. Filho

A fazenda ainda preserva edificações contemporâneas ao auge da produção cafeeira na

propriedade (figura 5), como o curral, que atualmente foi adaptado para utilização como

restaurante. O sistema de aquedutos, que originalmente foi projetado para utilização no

moinho, na serraria e para auxilio nos processos de beneficiamento da produção cafeeira.

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Figura 5: Esquema de implantação da Fazenda Santa Rita

Fonte: Próprio autor

A Fazenda Santa Rita, utilizou-se da topografia acidentada na implantação dos terreiros de

café, no modelo conhecido como tabuleiro. Os três terreiros existentes se distribuem em

níveis sucessivos acompanhando a estrada de acesso à casa sede. Em função das

dificuldades da topografia e da disponibilidade dos recursos hídricos, a fazenda não possui

características claras de um quadrilátero funcional, embora todas as edificações necessárias

à produção estivessem implantadas no conjunto.

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A análise da topografia do terreno permite compreender que o conjunto foi implantado em

região de suave aclive e que suas edificações estão situadas na faixa de menor altitude do

terreno, ainda assim, a região não possui uma extensa área plana, impossibilitando a

implantação dos terreiros em um mesmo nível, desta forma, não há configuração do chamado

“quadrilátero funcional”.

Outro importante exemplar do Espírito Santo é a Fazenda Independência (figura 6), localizada

no município de Mimoso do Sul. Em 1872, o Capitão Leopoldino Gonçalves Castanheira,

vice-presidente da província do Espírito Santo, tomou posse da área em que foi implantada a

fazenda. As obras de construção da casa sede duraram de 1876 a 1881.

Figura 6: Fazenda Independência

Fonte: Acervo Genilco Coelho H. Filho

Na implantação da fazenda é possível perceber a existência de uma delimitação que se

estende do terreiro de café até a lateral da casa sede, hoje gramada, não sendo possível

identificar a existência de pavimentação em pedra, tal qual o terreiro ainda utilizado

atualmente. A existência desta extensão do terreiro permite concluir que, diferente da maioria

das fazendas estudadas no Espírito Santo, a implantação da Fazenda Independência possui

referências à existência de um quadrilátero funcional aberto, entretanto, considerando a

localização das outras edificações do quadrilátero, em sua maioria, hoje demolidas, não é

possível fazer esta afirmação com toda a segurança (figura 7).

A estrada de acesso ao conjunto, que se estende até a parte posterior do terreiro, possui

pavimentação em pedra e assentamento do tipo “pé-de-moleque”, onde possivelmente

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situavam-se outros espaços laborais da fazenda, como podemos perceber pela existência de

baldrames de pedra. O sistema de captação e escoamento hídrico da fazenda também

mantém elementos que possibilitam sua identificação. Acima do terreiro pavimentado e

abaixo do espaço livre ao lado da casa sede é possível identificar os dutos de transporte

hídrico para a lavagem do café. Abaixo do terreiro em cimento, nota-se a existência de dutos

de escoamento que transportam o fluxo de água até o nível inferior abaixo da estrada de

acesso, onde existem mais três dutos deslocados ao lado direito deste espaço. No entorno

das edificações descritas como tulha e curral desativado é possível identificar estruturas de

fundação em pedra, possivelmente utilizadas como base de um conjunto de edificações

laborais ou como delimitação de um outro terreiro de café.

Figura 7: Esquema de implantação da Fazenda Independência

Fonte: Próprio autor

A implantação da fazenda cafeeira no Espírito Santo era determinada, sobretudo, pela

adaptação topográfica necessária na aplicação do modelo deste complexo agroindustrial

importado do Vale do Paraíba. Era no terreiro, normalmente localizado no centro deste

complexo, que se estabeleciam as principais relações sociais travadas na fazenda.

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OS SUPLÍCIOS DISCIPLINADORES

O processo laboral das fazendas cafeeiras no período imperial era, em todo o tempo,

dependente da mão de obra escrava. O tráfico negreiro obteve crescimento extraordinário na

primeira metade do século XIX para atender a mão de obra necessária a essas fazendas. O

sujeito escravizado era um bem de consumo durável, visto que o serviço prestado ao longo de

sua vida compensava o custo inicial de sua aquisição.

Esse extraordinário progresso econômico, o maior que nossa história

registrou até então, só foi possível graças ao trabalho escravo. “O Brasil é o

café; o café é o negro”, sintetizara de maneira magistral Silveira Martins no

parlamento brasileiro por volta de 1880 (VALVERDE, 1967, p. 49).

Na ausência do negro escravizado, a residência do século XIX apresentaria total falta de

recursos para o desenvolvimento das mais simples atividades cotidianas. Tendo o sujeito

escravizado sob seu domínio para as mais banais necessidades diárias, não havia

necessidade de avançar no programa arquitetônico, tampouco de criar artifícios que

desenvolvessem melhores condições sanitárias, por exemplo. O negro escravizado contribuiu

na residência brasileira, rural ou urbana, com a responsabilidade total pelo seu funcionamento,

na cozinha, no esgoto, no conforto ambiental, e no cuidado com os filhos, e o fez aprisionado

e sendo propriedade do homem branco.

A fazenda cafeeira escravocrata se constituía como um complexo agroindustrial independente

de outros núcleos rurais ou urbanos para o seu funcionamento, e assim como outras

organizações hierárquicas, nota-se a existência de um personagem centralizador de todo

poder que busca estabelecer um panorama de vigilância e domínio: o “Barão do café”, que

personifica a ideia de poder limitado na figura do soberano.

O local destinado ao negro escravizado nas fazendas cafeeiras era a senzala, a edificação

mais rústica do conjunto que, embora muitas das vezes fosse caiada externamente, tinha seu

espaço interior extremamente precário, dado o nível de insalubridade dessas edificações.

Pouco se sabe a respeito das edificações destinadas aos negros escravizados nas fazendas

cafeeiras, visto que os exemplares remanescentes se encontram arruinados ou modificados

pela ação do homem e da natureza. Sendo o espaço de frágil arquitetura, compreende-se

então que outros modos de controle, que não o confinamento, se faziam necessários para a

domesticação destes corpos.

A constante vigilância por parte dos feitores e administradores da fazenda era fundamental

para a condução do escravo ao trabalho e para a manutenção da ordem, entretanto, a não

aplicação de castigos seria prejudicial ao funcionamento do cafeeiro (TAUNAY, 2001).

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Varas e chibatas, as correntes e algemas. Há mesmo uma tecnologia da dor

para submeter o sujeito à escravidão. Ao longo da história disciplinar do país,

uma infinidade de instrumentos serviu para capturar, conter, suplicar e aviltar

o homem posto sob o domínio senhorial. Correntes de ferro, gargalheiras que

se prendiam ao pescoço, algemas para pés e mãos, máscara de folha de

flandres para impedir a alimentação, o suicídio ou o furto, anéis de ferro para

comprimir os dedos, a palmatória, os ferros quentes com iniciais, os

libambos, o tronco (LARA, 1988, apud IVIANO, acesso em 24 ago 2016).

Suplício era o destino predeterminado ao sujeito escravizado que, de alguma forma,

representasse risco à soberania do barão. O exercício da tortura nas fazendas cafeeiras

brasileiras estava diretamente ligado à prática de doutrinação do corpo e da alma. Para

Foucault (1996) a punição cultural estabelece-se como o principal meio de repressão e

controle. Sua atuação ocorre através do medo e da memória física do suplício executado,

sempre exemplar.

Na lógica do suplício, os castigos deveriam ser aplicados com moderação, razão e em

proporção ao delito infringido pelo sujeito escravizado e o corpo era sempre a medida. Até

onde aguenta. Deveriam ainda ser executados à vista de toda a escravatura para que assim

servisse de exemplo e intimidação para os demais. Entretanto, a execução dos castigos

físicos aos sujeitos escravizados, não deveria impossibilitar o seu corpo de retornar ao

desenvolvimento de suas funções. Os suplícios desenvolviam acima de tudo, o papel

disciplinante na hierarquia cafeeira. O castigo disciplinador do barão aos seus negros

escravizados não visava à destruição de seus corpos, mas à diminuição da força política do

sujeito escravizado, para que ele apenas se limitasse ao desenvolvimento de suas funções

laborais, otimizando, desta forma, a movimentação econômica da fazenda. A violência

demasiada, quando exercida, destinava-se aos escravos mais velhos ou impossibilitados do

desenvolvimento de suas funções, para que desta forma o exemplo fosse dado sem que

houvesse danos ao processo laboral da fazenda.

O castigo “justo” e “medido” assegurava a dominação sobre o escravo tanto

quanto a distribuição de prêmios e o tratamento amoroso e paternalista.

Tentava-se criar um sentimento de amor e respeito que fosse aceito

positivamente pelos escravos, pois o poder apoia-se justamente no alcance

que consegue ter. Admiração (ou mesmo “desejo”) do escravo pelo senhor

são formas desse poder alcançar (atuar sobre) o cativo (COSTA, 2004).

Os suplícios nas fazendas cafeeiras possuíam como principal característica, o “espetáculo”,

no qual, os sujeitos escravizados exerciam o papel de espectadores do ato que poderia ser a

sua própria sorte, no caso de infrações. O executor objetivava recuperar a soberania do

senhor através da violência, na tentativa de demonstrar a inferioridade do sujeito escravizado.

O castigo, ainda que executado por um funcionário do barão, deveria, na maioria das vezes,

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ser exercido na presença do mesmo, para que a exemplificação do poder estivesse presente

visualmente e não fosse esquecida (COSTA, 2004).

A existência de um feitor ou carrasco, demonstrava a transferência do ódio que a princípio se

destinaria ao senhor, para o executor (FOUCAULT, 1987), estreitando uma relação de

inimizade e reforçando o paternalismo do barão. A visão poética de Bernardo Guimarães no

romance “A Escrava Isaura” ilustra a relação do negro escravizado com o executor de seus

castigos.

– Um raio que te parta, maldito! – Má lepra te consuma, coisa ruim! – Uma

cascavel que te morda a língua, cão danado! – Estas e outras pragas

vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este

voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um

carrasco não carrega com tantos ódios. Abominado mais do que o senhor

cruel, que o muniu do azorrague desapiedado para açoitá-los e

acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o paciente se esquece do juiz, que

lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa

(GUIMARÃES, 1973, p. 78).

A análise do sistema de punição aplicado aos negros por seus senhores durante o período

escravocrata no Brasil caracteriza a prática de indução de suplícios como estratégia do poder,

sobretudo, para manter a ordem na fazenda; a reconstituição da soberania do senhor e a

dominação dos sujeitos escravizados visando otimização produtiva e econômica. A

funcionalidade das práticas de punição senhorial sobre o negro escravizado não eram tidas

apenas como atos de violência e repressão, representaram o anseio de perpetuidade dos

interesses senhoriais.

CONCLUSÃO

A distribuição das principais edificações das fazendas de café em torno de um quadrilátero

funcional, além de ser uma estratégia de otimização do espaço produtivo da propriedade, é

também uma estratégia para manutenção do poder do soberano, em vias disciplinares – algo

desejável no processo de urbanização que cada vez mais se fará presente nos espaços

rurais.

No quadrilátero, cada edifício possui características próprias que não só estão vinculadas a

sua função, mas, principalmente, a seu significado hierárquico. A arquitetura não é feita

apenas “para ser vista [...], ou para vigiar o espaço exterior [...], mas para permitir um controle

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interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram” (FOUCAULT,

1987, p. 144). Nesse contexto, a casa grande é o principal ícone do poder soberano do barão.

O terreiro de secagem do café, centro do quadrilátero funcional, é o local por excelência, de

todo esse controle. Para ele a produção diária era trazida para ser beneficiada e armazenada;

o terreiro também tinha a função de uma “praça pública” onde aconteciam festas, ofícios

religiosos e também os castigos. O tronco, onde os negros eram amarrados para serem

castigados exemplarmente, torna-se, junto com a casa grande, ícone da soberania do barão.

Estando os principais espaços de abrigo, fé, vivência e de poder congregados em torno do

terreiro, é possível melhor exercer a vigilância. “A vigilância torna-se um operador econômico

decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e

uma engrenagem específica do poder disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p. 147).

O castigo é utilizado para a domesticação dos corpos, mas ele não deve inviabilizar as

condições de trabalho do negro. Ele deve ferir mais a alma do que o corpo, servindo de

exemplo para os demais. “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo

e corpo submisso” (FOUCAULT, 1987, p. 26).

Levando-se em conta a amostra estudada, composta de vinte fazendas escravocratas, sendo

dez no Vale do Paraíba e dez no sul do Espírito Santo, podemos observar que esse sistema

arquitetônico-disciplinar claramente utilizado no Vale do Paraíba, também foi implementado

no Espírito Santo. Aí, no entanto, o quadrilátero funcional ganhou características próprias,

principalmente em função das limitações impostas pela topografia, que raramente permitiu

que o conjunto da sede da fazenda fosse implantado em um local plano. Essa dificuldade com

a topografia fez com que a maioria dos terreiros de café fossem implantados em tabuleiros

dispostos em níveis diferentes. Até mesmo na Fazenda Independência em Mimoso do Sul,

maior fazenda de café ainda remanescente da região, o terreiro de café fica no nível da casa e

as demais edificações do quadrilátero localizam-se em planos inferiores, que começam em

cinquenta centímetros e terminam com mais de dois metros abaixo do terreiro.

Outras fazendas como, por exemplo, a Santa Rita em Muqui, apresentaram uma disposição

diferente de organização do conjunto que não configuram um quadrilátero. Mesmo assim,

todas as edificações necessárias ao funcionamento da fazenda se fazem presentes.

Outro aspecto muito relevante, que influenciou na configuração espacial das fazendas

capixabas, foi a área cultivada das propriedades e a disponibilidade de recursos gerados pela

a produção, muito menor do que no Vale do Paraíba. No caso do Espírito Santo, poucas foram

as fazendas que tiveram um número significativo de negros escravizados, por exemplo.

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Embora tais fatores tenham influenciado na organização do espaço funcional das

propriedades capixabas, as práticas de controle, aqui exercidas pelos coronéis, foram as

mesmas utilizadas no restante do país. A casa grande, maior ícone desse sistema de controle,

está sempre implantada à meia encosta, e dela é possível observar todo o processo de

produção, inclusive de boa parte das lavouras, que são plantadas de forma que o feitor e/ou o

coronel possam observar o trabalho do escravo.

Embora tendo seus corpos domesticados pelo medo, os escravos ainda assim apresentaram

resistência ao sistema. Entretanto, ele se manteve até 1888, quando foi assinada a Lei Áurea,

que “libertou” os corpos, mas que preservou outras formas de controle sobre o povo negro.

Como pudemos aqui atestar, a estrutura arquitetônica das antigas fazendas de café ainda nos

conta sua história, sua organização, e sua riqueza – conquistada a partir do sofrimento

daqueles que foram escravizados, e do poder dos seus barões. Estudar Arquitetura é ler

nossas construções, para além de escolas e critérios de beleza ou funcionalidade –

aprendendo a enxergar o cotidiano do ser humano e suas transformações.

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