o processo educativo no orcamento participativo

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  PEDRO DE CARVALHO PONTUAL O PROCESSO EDUCATIVO NO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO: Aprendizados dos atores da Sociedade Civil e do Estado DOUTORADO: Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Educação: História e Filosofia da Educação, sob a orientação do Prof. Dr . Sérgio Haddad.

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 PEDRO DE CARVALHO PONTUAL

O PROCESSO EDUCATIVONO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO:

Aprendizados dos atores da Sociedade Civil e do Estado

DOUTORADO: Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de DOUTOR em Educação: História e Filosofia da

Educação, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Haddad.

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA NADIR GOUVÊA KFOURI – PUC-SP

TD

3709 Pontual, Pedro de Carvalho

P818 O processo educativo no orçamento participativo: aprendizados dosatores da Sociedade Civil e do Estado / Pedro de Carvalho Pontual – SãoPaulo : s. n. 2000.

...f. il. tab. ; 30cm

Tese (Doutoramento) – Pontifícia Universidade Católica de São PauloÁrea de concentração: Educação : História e Filosofia da EducaçãoOrientador: Sérgio Haddad

1. Política e educação. 2. Estado e educação

Palavra-chave: Orçamento participativo – Participação popular – Cidadania – Políticas públicas -Democracia

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CAPÍTULO 1

A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A REDEFINIÇÃO DASRELAÇÕES ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL:

A contribuição das práticas do Orçamento Participativo

1. Introdução

Cresce hoje, no âmbito dos movimentos sociais, das ONG’s, de gestões

públicas democráticas e de parcelas da intelectualidade, a compreensão de que a

proliferação de práticas participativas, a partir das bases da sociedade, vem

implicando uma necessária redefinição das relações entre Estado e Sociedade

Civil. A participação popular é elemento substantivo para possibilitar

efetivamente uma ampliação da base democrática de controle social sobre as

ações do Estado.

Estas práticas participativas geradas tanto a partir das organizações da

sociedade como da ação indutora do Estado criam uma sinergia capaz de alterar

substantivamente a relação entre ambos os atores. Neste processo amplia-se e

aprofunda-se a prática da democracia e constrói-se uma cidadania ativa.

Dentro do longo processo de emergência da sociedade civil brasileira

pode-se afirmar que os anos 80, apesar de considerados como anos perdidos do

ponto de vista econômico, foram anos de importantes conquistas por parte de

diversos atores da sociedade civil, em especial dos movimentos sociais. Estes

movimentos, que se vinham organizando desde os anos 70, fortaleceram-se nos

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anos 80 e imprimiram importantes marcas na Constituinte de 1988, no plano dos

direitos sociais e da criação de espaços de representação de atores coletivos na

elaboração e gestão de políticas públicas. Tais mecanismos, denominados

genericamente conselhos de gestão, foram também inscritos posteriormente em

diversas constituições estaduais e em várias leis orgânicas municipais. Também,

com a nova Carta Constitucional, ocorreu no plano institucional uma

descentralização política e administrativa em que os municípios passaram a ter

que arcar com responsabilidades antes atribuídas ao nível estadual ou federal.

É sobretudo no plano dos governos locais que se desenvolvem hoje as

práticas mais fecundas de realização de políticas sociais eficientes, entendidas

como aquelas capazes de promover uma redistribuição da renda e uma efetiva

democratização da relação do Estado com a sociedade civil.

É também em 1988 que as forças democráticas e populares conquistam

um número expressivo de importantes prefeituras, abrindo um ciclo de governos

locais que apostam fortemente no princípio da inversão de prioridades

(expressando ações que priorizam o resgate da dívida social do poder público

com os setores excluídos) e nas mais diversas práticas de participação popularna elaboração, gestão e controle social das políticas públicas desenvolvidas por

aqueles governos.

Dentre essas práticas, as experiências de Orçamento Participativo

municipal adquirem especial relevância, na medida em que a discussão e

deliberação pela população acerca das prioridades do orçamento público

pretendem possibilitar a prática da inversão de prioridades, da transparência

administrativa, da desintermediação da aplicação dos recursos públicos e

sobretudo alterar substantivamente a forma de relação da população com o

poder público. Ao decidir sobre a peça orçamentária que é elemento chave da

orientação das ações de um governo, espera-se que a população exercite de fato

sua cidadania e, em última instância, alterem-se as relações tradicionais do

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Estado com a Sociedade Civil marcadas por uma profunda herança elitista e

autoritária e pela prática sistemática do clientelismo.

Todo esse processo de redefinição das relações entre Estado e Sociedade

Civil vem provocando a emergência de uma nova compreensão do significadode espaços públicos, da constituição da cidadania, da prática da democracia, dos

padrões de gestão pública e da construção de uma nova cultura política. Para

tanto, a mediação da educação é elemento indispensável e é, por meio dos

aprendizados dos atores, que podemos verificar a eficácia das práticas

participativas como processos educativos que possibilitam a construção de tais

novos significados. Este capítulo pretende situar o contexto teórico no qual vêm

sendo construídos esses novos significados e a contribuição das práticas de

Orçamento Participativo como processos educativos capazes de possibilitar

novos aprendizados aos atores que delas participam.

2. Redefinindo as relações entre Estado e Sociedade

Tomando como referência o campo teórico do Marxismo, é importante

traçar um perfil histórico de como foi a passagem de uma concepção “restrita” a

uma concepção “ampliada” de Estado, pois esta implicou em importantes

alterações com relação às estratégias políticas de transformação e à própria

concepção de uma democracia participativa.

Coutinho (1994) observa que existe uma linha de continuidade na reflexãodos teóricos do marxismo que está baseada na idéia de que a “transição ao

socialismo” resulta da luta política de classes e implica a construção de um novo

tipo de Estado. Para o autor, as concepções “restritas” de Estado caracterizam-se

por se concentrarem em apenas uma ou em poucas determinações na análise do

fenômeno estatal, enquanto as concepções "ampliadas” procuram verificar um

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número maior e mais complexo de determinações para explicar o Estado. É

importante ressaltar, ainda, que o processo de ampliação da compreensão do

Estado não é produto apenas de uma nova leitura (mais rica e mais complexa),

mas é resultante, principalmente, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do

modo de produção quanto da formação econômico social capitalista.

Para Coutinho (1994) a concepção “restrita” de Estado que tem sua matriz

nas formulações de Marx e Engels pode ser assim resumida: o Estado serve

como uma espécie de “comitê executivo” da classe dominante (sua expressão

direta e imediata), um organismo que despolitiza a sociedade civil e se vale

essencialmente da coerção para o exercício das suas funções. Lenin toma como

referência esta matriz compreensiva e, a partir da realidade da Revolução Russa

de 1917, introduz o conceito da dualidade de poderes para fundamentar sua

visão explosiva da revolução. Já em Trotski pode-se observar uma ligeira

inflexão em relação à concepção “restrita”, ao admitir que a correlação de forças

sociais em luta tem uma influência, ainda que relativa, na política levada a cabo

pelo Estado. Outra inovação em Trotski refere-se à visão do movimento

revolucionário como fenômeno processual em que, antes da exacerbação da

dualidade de poderes, há um processo longo de infiltração molecular da classe

revolucionária no interior dos aparelhos do Estado.

Adentrando o campo dos teóricos que desenvolveram uma ampliação da

compreensão do Estado, cabe inicialmente mencionar a contribuição de Rosa

Luxemburgo e Max Adler. Ambos os autores fazem uma crítica à concepção

leninista que opunha à democracia representativa, a democracia dos sovietes,

propondo a “destruição” daquela, a partir da experiência da revolução

bolchevique. Rosa e Adler consideravam incorreta a generalização desta

experiência e propunham a necessidade de uma articulação dos mecanismos da

democracia representativa formal com aqueles originários da democracia direta

dos conselhos e sovietes.

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Mas foi, sem dúvida, nas formulações do italiano Antônio Gramsci que

essa ampliação da noção de Estado encontrou sua expressão mais sistemática,

sempre associada a uma compreensão inovadora em relação à tradição marxista

do conceito de sociedade civil, como veremos adiante neste trabalho.

Na literatura mais recente que discute a relação Estado e Sociedade Civil,1 

pode-se identificar uma vertente que procura dar continuidade a um debate

clássico sobre a dualidade entre ambos (que tem em Bobbio um de seus

expoentes) e outra, ainda mais nova, que coloca a sociedade civil como parte da

constituição de uma esfera pública que se diferencia tanto da ação tipicamente

estatal como das regras estritas do mercado, nascida sobretudo da reflexão

acerca da crise do Estado de Bem Estar Social e do colapso das experiências

socialistas do Leste Europeu. Antes de examinarmos estas referências, vale

recuperar um pouco da trajetória da reflexão teórica sobre o tema.

Na história do pensamento político clássico houve várias concepções que

procuraram dar conta da relação entre Estado e Sociedade Civil, sendo que no

início a discussão girava em torno de qual dos dois se formava primeiro.

É a partir do final dos anos setecentos na Alemanha que se opera a

distinção entre Estado e Sociedade Civil junto com a afirmação do mundo

burguês. É, a partir daí, que o conceito de sociedade civil passa a ser enunciado

como diretamente ligado ao desenvolvimento da sociedade capitalista. É

sobretudo com Hegel e Marx que a relação entre Sociedade Civil e Estado passa

a ser vista como processo histórico e de desenvolvimento orgânico.

Em Hegel, a complexidade da categoria sociedade civil pode sersintetizada como sendo o primeiro momento da formação do Estado (Estado

  jurídico-administrativo), sendo que o Estado se constituiria plenamente no

1 Ver estudos de Avritzer (1993); Bobbio (1994,1995); Borón(1994); Genro 1994, 1995, 1996); Oliveira (1994);Munarim (1999); Santos (1994, 1998); Telles (1994a,b,c).

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momento ético-político em que sua tarefa é procurar a adesão subjetiva de todo

cidadão à totalidade da qual ele faz parte.

Marx no “Prefácio à Crítica da Economia Política” (1859), a partir do

estudo do pensamento de Hegel, chega à conclusão de que o lugar da sociedadecivil é o das relações econômicas, ou seja, a base material sobre a qual se ergue

a superestrutura jurídica e política.

Como afirmamos antes, é fundamentalmente a partir da concepção de

Antônio Gramsci que se desenvolve uma série de contribuições na direção de

uma visão ampliada do Estado. Com relação à sociedade civil, Gramsci opera

uma mudança fundamental em relação à formulação de Marx. Sem perder de

vista a idéia de que as condições materiais são determinantes em última

instância das relações sociais, Gramsci desloca a sociedade civil para o âmbito

da superestrutura (nível político, jurídico e cultural) que em conjunto com a

sociedade política constituiriam o Estado.

Em síntese, enquanto em Marx o momento da sociedade civil coincide

com a base material (em contraposição à superestrutura em que estão as

ideologias e as instituições), para Gramsci o momento da sociedade civil é

superestrutural.

É importante assinalar que as formulações de Gramsci desenvolvem-se

no século XX, coincidindo com um conjunto de modificações que organizam a

moderna produção capitalista e, ao mesmo tempo, com um contexto de lutas

sociais e políticas que significam grande socialização da participação política.

Neste contexto, o desenvolvimento da moderna produção com a grande indústriaprovoca profundas transformações no interior da sociedade civil burguesa tanto

no plano político como cultural. O processo de diferenciação das classes sociais

e a urbanização que acompanharam a industrialização passam a requerer uma

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rede mais complexa de instituições capazes de mediatizar diferentes

representações sociais.

Com o desenvolvimento dos conflitos sociais, as mudanças técnicas na

produção e o crescimento do Estado como aparelho de controle e realização dapolítica, a sociedade civil burguesa passa a construir uma rede de instituições

mais ampla para dar conta da representação da diversidade de interesses sob

diferentes formas: política (conquista do sufrágio universal, parlamentos,

partidos de massa); organizativa de interesses (sindicatos, organizações de

profissionais, associações de moradores) e político-cultural pela da escola

pública ou outras formas de expressão da cultura (revistas, jornais, editoras,

meios de comunicação, etc.).

Assim sendo, para Gramsci, o Estado ampliado é a soma da sociedade

civil (hegemonia) e da sociedade política (coerção). Mesmo sublinhando que a

hegemonia nas sociedades complexas do capitalismo é exercida pela burguesia,

a grande contribuição de Gramsci para a luta política tem que ver com a

possibilidade apontada por ele de que as classes subalternas, por meio de suas

organizações, podem travar no interior dos aparelhos privados de hegemonia aluta pela construção de uma contra-hegemonia antes mesmo de se tornarem

classes no poder. Isto colocou no cerne de qualquer projeto de emancipação das

classes populares a idéia do necessário fortalecimento da sociedade civil e a sua

compreensão como terreno privilegiado da luta político-cultural.

Consequentemente, o Estado deixa de ser interpretado como representante

monolítico dos interesses da burguesia e passa a ser analisado como um “campo

de forças” onde se travam as disputas em torno da hegemonia e da dominação de

acordo com os interesses de cada classe social fundamental em relação à base

econômica material predominante.

Cabe ainda destacar que a formulação mais contundente dessa visão

ampliada do Estado e do caráter processual da transição ao socialismo pode ser

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encontrada nos últimos trabalhos de Nicos Poulantzas. Mesmo admitindo uma

continuidade em relação à essência da concepção marxista, ele apresenta uma

definição sintética do fenômeno estatal, na qual se expressa sua inovação:

O Estado, no caso capitalista, não deve ser considerado como uma entidadeintrínseca mas, como aliás é o caso do capital, como uma relação, mais exatamentecomo a condensação material de uma relação de forças entre classes e frações declasse, , tal como essa se expressa, sempre de modo específico, no seio do Estado.(1990, p.147) 

Outra importante diferenciação introduzida por Poulantzas em relação ao

pensamento de Gramsci é que enquanto este último concebe a luta pela

hegemonia e pela conquista de posições como algo que se processa no seio da

sociedade civil (dos "aparelhos de hegemonia”), Poulantzas vai além e fala

explicitamente numa luta ‘processual’ a ser travada também no interior dos

aparelhos estatais em sentido restrito, ou seja, no que Gramsci chamou de

“sociedade política”.

Por último, em relação às formulações de Poulantzas, cabe enfatizar a sua

contraposição à idéia do duplo poder e de um modelo explosivo de revolução :

Como compreender uma transformação radical do Estado articulando a

ampliação e o aprofundamento das instituições da democracia representativa e dasliberdades (que foram também uma conquista das massas populares) com odesenvolvimento das formas de democracia direta na base e a proliferação de focosauto-gestionários, esse é o problema essencial de uma via democrática para osocialismo e de um socialismo democrático. (1990, p.293)

No debate atual retoma-se com vigor a idéia de uma contraposição entre

Estado e Sociedade Civil. Para Bobbio:

  Na linguagem política de hoje a expressão sociedade civil é geralmenteempregada como um dos termos da grande dicotomia entre Estado/Sociedade Civil. O

que quer dizer que não se pode determinar seu significado e delimitar sua extensãosenão redefinindo simultaneamente o termo ‘Estado’ e delimitando a sua extensão.

  Negativamente por ‘sociedade civil’ entende-se a esfera das relações sociais nãoreguladas pelo Estado entendido restritamente como o conjunto dos aparatos que numsistema social organizado exercem o poder coativo. (1995, p.33) 

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As teorizações mais recentes sobre sociedade civil2 estão bastante

marcadas pela emergência dos novos movimentos sociais a partir dos anos 70 e

pela crise do socialismo real no Leste Europeu no final dos anos 80. Ambos os

processos fizeram ressurgir com força a idéia de uma contraposição entre

Sociedade Civil e Estado, sendo que o fortalecimento da primeira é visto como

condição para se poder redefinir o papel do Estado e a relação entre ambos.

Avritzer bem sintetiza esse movimento recente:

O que torna as revoluções de 1989 peculiares é a percepção de que o fim últimodas revoluções já não é mais a reestruturação do Estado a partir de um novo princípio,mas a redefinição das relações entre Estado e Sociedade sob o ponto de vista destaúltima. (1993, p.213) 

Também Oliveira afirma sobre o processo de democratização em curso na

sociedade brasileira a partir das bases da sociedade:

Tenho a impressão de que estamos vendo no Brasil um movimento em que asociedade redefine, dá novos limites e desenha o Estado... observamos odesaparecimento do poderio do desenvolvimento comandado pelo Estado ouimpulsionado basicamente por ele. (1994, p.5) 

Neste processo de redefinição das relações entre Estado e Sociedade Civil,

opera-se também uma reformulação nas relações entre o público e o privado,

apontando para uma nova compreensão da constituição de espaços públicos.

3. Construindo uma nova compreensão de espaços públicos

Souza (1995), Telles (1994), Dagnino (1994), Daniel (1994), Genro

(1994,1996), Fedozzi (1997)`, Raichelis ( 1998) e outros vêm desenvolvendo as

noções de bem público e espaço público como elementos constitutivos da nova

2 Ver Avritzer (1993); Oliveira (1994); Dagnino (1994); Doimo (1995); Santos (1994); Telles (1994a,b,c,);Carvalho (1997).

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cidadania e utopia democrática e da redefinição das relações entre Estado e

Sociedade.

Souza afirma que a noção de bem público é o critério fundamental para

possibilitar a universalização da democracia e da cidadania:

O público é o que nos permite hoje escapar desse dilema entre privado eestatal, entre mercado e Estado, entre o direito de uns poucos e o de todos. Nessesentido, o público é o espaço da solidariedade, da igualdade, da participação, dadiversidade, da liberdade. Enfim, o público é a expressão da democracia aplicada aoconceito do que deve e pode ser universal. Mas é também um modo de pensar areorganização da nossa sociedade marcada por esta dicotomia entre o privado e oestatal. Não estamos propondo que não haja espaços privados, onde cada pessoa possaexercitar sua privacidade e defender seus direitos. Essa seria uma forma detotalitarismo do social sobre o pessoal, ou individual. Também não estamos propondo aeliminação do estatal, naquilo pelo qual só o Estado pode e deve se responsabilizar,como as questões de segurança, a garantia dos direitos, a proteção contra o abuso do

 privado sobre o público. Estamos propondo que o democrático seja abrangente, que o público seja a forma democrática de existir e equacionar os problemas de todos, emque a cidadania se realiza em toda sua universalidade. (SOUZA, 1995) 

Também a noção de espaço público como elemento constitutivo de uma

nova cidadania e utopia democrática pode ser encontrada em Telles:

  Nestes tempos em que se redefinem as relações entre Estado, economia esociedade, em que a crença em soluções redentoras não mais se sustenta, em que

exclusões velhas e novas se processam numa lógica que escapa às soluções conhecidas,o que parece estar em jogo é uma nova contratualidade que construa uma medida deequidade e as regras da civilidade nas relações sociais....São práticas, experiências eacontecimentos que reatualizam a ‘invenção democrática’ que caracterizou os anos 80,em uma descoberta da lei e dos direitos que se firma e se renova na prática darepresentação, interlocução e negociação de interesses. (1994a, pp. 98-99) 

E, ao analisar o significado das lutas populares por direitos e dos canais de

participação popular afirma que:

Podem ser tomadas como registros de uma Sociedade Civil emergente,

entendendo-se por isso não simplesmente uma sociedade que se estrutura nas regrasque organizam interesses privados, mas uma sociedade na qual as relações sociais sãomediadas pelo reconhecimento de direitos e representação de interesses, de tal formaque se torne factível a construção de espaços públicos que confiram legitimidade aosconflitos e nos quais a medida de equidade e a regra de justiça venham a ser alvo dedebate e de permanente negociação. (TELLES, p.100-101)

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Em outro trabalho, Telles, ao analisar o significado das práticas

emergentes da sociedade civil e a criação de múltiplos canais de interlocução

pública junto ao Estado, afirma:

Se na esfera da economia, o reconhecimento de direitos significa neutralizar osautoritarismos perversos do mercado, na esfera do Estado significa a constituição de  parâmetros públicos que balizem a deliberação política, regulem os modos deutilização dos recursos públicos, estabeleçam as regras do jogo na negociação earbitragem dos interesses envolvidos e permitam, por isso mesmo, neutralizar práticasde corporativismo e clientelismo que até agora vigoraram nas relações entre Estado eSociedade. (...) Essa é a cunha pela qual se definem as diferenças e alternativas emrelação a propostas (e práticas) conservadoras – ao revés de propostas que pregam oEstado mínimo, mas na prática significam a redução do espaço público e a ampliaçãoda esfera dos interesses privados – essas experiências vêm acenando com a

  possibilidade de uma modernização que seja conjugada com sua democratização,através da construção de espaços renovados e ampliados de articulação com a

sociedade civil. (1996, pp.9-10)

Também Dagnino, ao analisar o significado das experiências de

participação popular na gestão pública destaca a transformação das relações

Estado/Sociedade e a sua contribuição para a criação de um novo tipo de espaço

público:

O que essas experiências apontam é exatamente que essa redefinição não é apenas dos modos de tomada de decisões no interior do Estado como também dos

modos como se dão as relações Estado-sociedade. Além disso não parece haver dúvida quanto ao fato de que elas expressam- e contribuem para reforçar- aexistência de sujeitos-cidadãos e de uma cultura de direitos que inclui o direito de ser co-partícipe da gestão da cidade. ... Mais ainda eu diria, que esse tipo de processocontribui para a criação de um espaço público onde os interesses comuns e os

 particulares, as especificidades e diferenças podem ser discutidas ... (1994, pp.110-111) 

Também Daniel, ao analisar o contexto de crise do nacional-

desenvolvimentismo e de disputa pela afirmação de um novo modelo de

desenvolvimento, afirma o significado das práticas de participação popular:

É justamente neste quadro que o tema da participação pode ser concebido comoelemento constitutivo de uma proposta de gestão pública no âmbito de um novo modelode desenvolvimento: não enquanto panacéia, mas como uma das referências essenciaisao alargamento do espaço público e a busca de nitidez nas relações entre o público e o

 privado. (1994, pp.24-25)

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Raichelis, na Introdução do seu trabalho acerca do significado de esfera

pública referente aos canais institucionais de interlocução entre sociedade civil e

poder público, afirma:

  A concepção de esfera pública baseia-se na idéia de que sua constituição é  parte integrante do processo de democratização, pela via do fortalecimento do Estado eda sociedade civil, expresso fundamentalmente pela inscrição dos interesses dasmaiorias nos processos de decisão política. Inerente a tal movimento, encontra-se odesafio de construir espaços de interlocução entre sujeitos sociais que imprimam níveiscrescentes de publicitação no âmbito da sociedade política e da sociedade civil, nosentido da criação de uma nova ordem democrática valorizadora da universalizaçãodos direitos da cidadania. (1998, pp.25) 

Raichelis (1998) apresenta cinco categorias que na sua concepção devem

orientar a analise de uma esfera pública: a) visibilidade social, na qual, as ações

e os discursos dos sujeitos devem expressar-se com transparência não apenas

para os diretamente envolvidos, mas também para aqueles implicados nas

decisões políticas; b) controle social que significa acesso aos processos que

informam as decisões no âmbito da sociedade política, o qual possibilita a

participação da sociedade civil organizada na formulação e na revisão das regras

que conduzem as negociações e a arbitragem sobre os interesses em jogo, além

do acompanhamento da implementação daquelas decisões, segundo critérios

pactuados; c) representação de interesses coletivos, que implica a constituição

de sujeitos sociais ativos, que se apresentam na cena pública a partir da

qualificação de demandas coletivas, em relação às quais exercem papel de

mediadores; d) democratização, que implica a dialética entre conflito e

consenso, de modo que os diferentes e múltiplos interesses possam ser

qualificados e confrontados, daí resultando a interlocução pública capaz de gerar

acordos e entendimentos que orientem decisões coletivas; e) cultura política queimplica o enfrentamento do autoritarismo social e da “cultura privatista” de

apropriação do público pelo privado, remetendo à construção de mediações

sócio-políticas dos interesses dos sujeitos sociais a serem reconhecidos,

representados e negociados na cena visível da esfera pública.

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Como pode ser observado, a reflexão sobre a constituição de uma nova

esfera pública democrática está relacionada com o contexto teórico de repensar

as relações entre Mercado/Estado/Sociedade, de redefinição das relações entre

Estado e Sociedade Civil e entre o público e o privado. Cabe assinalar que a

referida reflexão está fortemente nutrida pelas práticas participativas emergentes

na sociedade civil, pela experiência dos movimentos sociais e pela intervenção

de distintos atores junto aos diversos mecanismos de participação popular e de

interlocução pública junto ao Estado que vêm sendo experimentadas sobretudo

no âmbito dos governos locais

Rivera (1999), ao apresentar a coletânea de artigos do “Dossier: Esfera

Pública, Movimentos Sociais e Democracia”, destaca o crescente interesse

acadêmico pela discussão do conceito de esfera pública, pois permite aludir a

um espaço social em que os cidadãos processam opiniões, emitem juízos,

apresentam demandas ao Estado e recebem e interpretam informação pelos

meios massivos de comunicação. Ao concluir uma breve reconstituição histórica

do conceito, a partir das formulações de Jurgem Habermas, o autor assim

sintetiza a centralidade da noção de esfera pública para o debate atual acerca das

relações entre Estado/Mercado/Sociedade:

Com efeito, o conceito de esfera pública nos indica que a formação de opinião,a criação de identidades, e a constituição de consensos para a ação se produzematravés de processos de interação comunicativa, e que os espaços onde essa interaçãose produz, - a margem das restrições impostas pelo Estado e pelo mercado – têm o

 potencial de converter-se em arenas de exercício da liberdade e de construção de umarelação crítica com os sistemas econômicos e políticos. (1999, pp.34) 

Também Dowbor, na sua análise sobre as transformações em curso das

relações entre Estado/ Mercado/ Sociedade, nos aponta a necessidade de buscarnovos paradigmas: 

Com a crescente compreensão da função do setor público não- estatal, e dasorganizações da sociedade civil em geral, as coisas estão recuperando a lógica.Queremos menos Estado sim, e queremos um setor privado que funcione, mas queremosque tanto um como outro estejam sujeitos ao controle da comunidade organizada. Não

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se trata de ser simplesmente cliente do setor privado, e usuário do setor Estatal, trata-se de ser cidadão. (1998, p.355) 

Genro (1994,1995,1996), ao analisar o significado das práticas

participativas hoje em curso na cidade de Porto Alegre, nos fala da construção

de uma esfera pública não estatal, para expressar a direção mais estratégica paraa qual estão orientadas tais práticas, que visam assegurar o controle público

sobre as ações do Estado e, em última instância, construir um novo tipo de

relação entre Estado e Sociedade Civil.

Genro assim descreve a constituição desta esfera pública não estatal:

Esta nova esfera pública não estatal, que incide sobre o Estado, com ou semsuporte de representação política tradicional, é constituída por milhares deorganizações locais, regionais, nacionais e internacionais, que promovem sua auto-organização por interesses particulares (desde atenção para doenças, luta pelahabitação e pela terra, até entidades de demandas tipicamente comunitárias, etc.) e

 podem ser mediadoras da ação política direta dos cidadãos por seus interesses, sob seucontrole, sem amarrar-se ao direito estatal que regula a representação política.(...)Trata-se de compartilhar uma nova concepção de reforma do Estado, a partir deuma nova relação Estado-Sociedade, que abra o Estado a estas organizações sociais (eà participação do cidadão isolado) particularmente aquelas que são auto-organizadas

  pelos excluídos de todos os matizes, admitindo a tensão política como métododecisório e dissolvendo o autoritarismo do Estado tradicional sob pressão da sociedadeorganizada. (GENRO, 1996) 

Ainda no artigo acima citado refere-se Genro à contribuição das práticas

de orçamento participativo:

O elemento central do poder público é a peça orçamentária e a sua construçãodemocrática e participativa, via uma esfera pública não-estatal, legitimada por contrato político a partir do governo; e esta construção traduz o momento maisimportante de uma co-gestão estatal e pública não estatal, estimuladora de consensosmajoritários, a partir de uma diretriz política irrenunciável: os interesses ‘subalternos’tendem a se tornar os interesses dominantes e a cidade não pode ser mais uma cidade

 para poucos mas uma cidade para todos.

Já Celso Daniel, em debate travado com Tarso Genro em Santo André

(1999) introduz importante distinção no debate sobre esferas públicas

democráticas e sua articulação com os processos de Orçamento Participativo.

Para Daniel, as esferas públicas, digamos assim, mais tradicionais do sistema

democrático dizem respeito àqueles espaços e esferas públicas que são criados a

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partir de mobilizações de agentes da comunidade, dos movimentos sociais, que

colocam em cena pública, no debate público, a questão de novos direitos. Para o

autor, esta é uma questão que diz respeito à própria sociedade, é quase tão antiga

quanto a própria democracia moderna, é algo que deve ser sempre estimulado a

partir das ações de um governo democrático e popular, mas ainda não está

ligado àquilo que corresponde ao Orçamento Participativo propriamente dito.

Para Daniel, existe uma outra modalidade de esferas públicas que não são

totalmente não- estatais. São as esferas públicas que não são puramente não-

estatais, pois elas combinam uma participação da sociedade civil organizada (da

comunidade) com a participação do conjunto do governo. São espaços mistos

em que entram o Estado e a comunidade em nível local, que são justamente osespaços de co-gestão abertos pelas administrações democráticas e populares ou

então arrancados através da força do movimento popular. O OP é uma destas

esferas públicas não puramente estatais, nem não- estatais, mas um destes

espaços de co-gestão.

Fedozzi, ao analisar a experiência do Orçamento Participativo de Porto

Alegre, assim sintetiza o seu significado a partir do modelo de Estado racional-

legal proposto por Max Weber:

Esse processo que pode ser sinteticamente definido como a instituição de umaesfera pública ativa de co-gestão do fundo público municipal, expressa-se através deum sistema de racionalização política, baseado, fundamentalmente, em regras de

 participação e regras de distribuição dos recursos de investimentos que são pactuadasentre o Executivo e as comunidades e apoiadas em critérios previsíveis, objetivos,impessoais e universais. A sua dinâmica instaura uma lógica contratual favorável àdiferenciação entre o “público” e o “privado” e, portanto, contrária às práticasclientelistas que caracterizam o exercício patrimonialista do poder. (1997, p.198)

Já Dowbor assim se refere à importância da participação da população nadefinição sobre a utilização dos recursos públicos:

Em termos simples, é essencial que a decisão do uso e controle dos recursossejam aproximados do usuário final, maior interessado na boa realização da obra ouna boa organização da iniciativa. Quanto menos intermediários e escalões hierárquicosentre o uso final dos recursos e o segmento interessado da sociedade, maior atransparência, a capacidade de controle, a democratização dos processos. Trata-se de

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um dos elementos mais importantes da elevação da densidade organizacional dasociedade. (1998, p.317)

Fedozzi (1997) afirma que o modelo tradicional de relação do Estado com

a população na alocação de recursos públicos é profundamente marcado pelo

privatismo e pelo autoritarismo, podendo ser sintetizado a partir das seguintescaracterísticas:

a) utilização pessoal e/ou privada dos recursos públicos;

b) clientelismo como a prática de “troca” de favores ou ‘barganha”

política, com a utilização dos recursos públicos;

c) acesso privilegiado às decisões por parte dos grupos que representam

os interesses das elites;

d) ausência de transparência administrativa;

e) ausência de mediações institucionais e de controle do poder.

Também para Fedozzi (1997) as práticas do Orçamento Participativo têm

permitido criar um novo centro decisório, num novo espaço público onde as

decisões sobre os recursos públicos são tomadas de forma compartilhada entreos cidadãos comuns e os poderes Executivo e Legislativo no âmbito municipal.

Esta prática procura construir um novo modelo de relação do Estado com a

população, baseado na sua publicização e democratização e que, por oposição ao

modelo tradicional, pode ser sintetizado a partir das seguintes características:

a) Estabelece clara diferenciação entre a esfera pública e a privada, a

partir de uma nítida distinção entre o que é o interesse público e o que

é interesse privado e/ou pessoal;

b) promove o acesso universalizado e público às decisões;

c) promove a transparência na gestão e a prestação de contas;

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d) cria mediações institucionais e instâncias de controle e partilha do

poder.

Este novo centro decisório deveria possibilitar a difícil e necessária

combinação da capacidade de distribuir a renda e socializar a política. Istoporque apenas distribuir renda sem socializar a política é restrito e pode

provocar um certo paternalismo que é prejudicial à afirmação da autonomia dos

indivíduos e da organização de base da sociedade. Por outro lado, apenas

socializar a política, sem mexer na renda, pode provocar um desânimo com a

própria eficácia da luta política e o isolamento crescente das pessoas no âmbito

privado das suas existências.(Genro e Souza, 1997)

As práticas participativas de modo geral e o Orçamento Participativo, em

particular, têm sido considerados como significativa contribuição na

constituição de uma nova concepção de espaço público e na promoção de um

processo progressivo de publicização do Estado e de desestatização da

sociedade. Tais práticas, desenvolvidas sobretudo em governos locais, buscam a

superação de uma visão da relação Estado e Sociedade Civil como polaridades

absolutas em favor de uma visão mais dinâmica de relações de interdependênciacombinadas com o reconhecimento da especificidade e autonomia de cada ator.

4. A emergência de uma nova cidadania: A Cidadania Ativa

Estamos partindo de uma nova compreensão do conceito de cidadaniapara superar os limites da visão clássica do liberalismo. Para tanto, tomamos

como ponto de partida a reflexão de vários autores que se referem à idéia da

construção de uma nova cidadania a partir das práticas emergentes na sociedade

civil e das experiências de participação popular desenvolvidas por gestões

públicas democráticas.

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Dagnino (1994), Santos (1993), Covre (1991), Benevides (1991) e outros

vêm desenvolvendo vários estudos no sentido da construção de uma nova

concepção de cidadania, que extrapole os limites da visão liberal. Procuram

enfatizar a necessidade de uma cidadania plena que se constrói a partir de um

processo permanente de criação e de recriação de novos direitos. Destacam

ainda o importante papel que vêm cumprindo os movimentos sociais na

construção desta nova cidadania e a necessidade da incorporação dos elementos

da subjetividade como indispensáveis à transformação dos valores necessários a

essa nova prática de cidadania.

Benevides propõe a conceituação de “Cidadania Ativa”, que se distingue

da passiva - aquela que é outorgada pelo Estado com a idéia moral do favor e da

tutela - e institui o cidadão não só como portador de direitos e deveres, mas

essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação

política E assim se refere a autora sobre a importância da participação popular:

“Essa cidadania ativa supõe a participação popular como possibilidade de criação,transformação e controle sobre o poder, ou os poderes”. (1991, p.20)

Este conceito de “Cidadania Ativa” parece bastante apropriado aos

objetivos deste trabalho, pois incorpora as dimensões acima enunciadas de uma

nova cidadania e enfatiza a imprescindibilidade da participação popular na sua

construção, assim como a necessidade de uma profunda alteração das relações

entre o Estado e a sociedade na construção de espaços públicos.

Dowbor assim se refere à importância desta prática de cidadania na

construção de uma nova modernidade:

  A modernidade não se conquista com passes de mágica. Implica uma visão política, de que participar na construção do seu espaço de vida, mais do que receber  presentes das “ autoridades”, constitui uma condição essencial da cidadania. Implicauma visão institucional, menos centrada nas “pirâmides” de autoridade, e mais aberta

 para a colaboração, as redes, os espaços para elaboração de consensos e os processoshorizontais de interação. Implica finalmente numa visão centrada no homem, naqualidade de vida, na felicidade do cotidiano, e um pouco menos nas taxas imediatas deretorno. (1998, pp.367-368) 

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As características do modelo tradicional de relação do Estado com a

Sociedade na alocação de recursos públicos, descritas no item anterior deste

trabalho, criaram enormes obstáculos à constituição de uma Cidadania Ativa.

Martins (1994) descreve sob o instigante título “O Poder do Atraso” apersistência do clientelismo e do patrimonialismo como instrumentos de poder

que colocam até nossos dias enormes obstáculos à constituição de uma

Cidadania Ativa em nosso país. Para o autor a propriedade da terra é o centro

histórico de um sistema político persistente. Associada ao capital moderno, deu

a esse sistema político uma força renovada, que bloqueia tanto a constituição da

verdadeira sociedade civil quanto da cidadania de seus membros. Para o autor, o

poder pessoal e oligárquico e a prática do clientelismo são ainda fortes suportes

da legitimidade política no Brasil.

Martins, ao analisar a constituição histórica do clientelismo na sociedade

brasileira, afirma que a política do favor que caracteriza a base e fundamento do

Estado brasileiro não permite nem comporta a distinção entre o público e o

privado. Os escândalos revelados na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

do Orçamento (1993) mostraram que a destinação de verbas feita pelosmembros da Câmara dos Deputados atende, quase sempre, às conveniências do

próprio político, de sua família ou de membros do seu clã político. Conclui o

autor que, apesar da enorme força ainda do clientelismo e do patrimonialismo,

vai se formando lentamente, em setores da sociedade brasileira, uma consciência

cívica de que o funcionário público serve a sociedade e não ao poderoso; o

Estado é um instrumento da sociedade e não a sociedade um instrumento do

Estado.

Fedozzi (1997) aponta o patrimonialismo e o clientelismo que

caracterizam a forma tradicional de relação do Estado com a sociedade brasileira

como mecanismos que impõem restrições à instituição da cidadania.

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Tomando como referência o modelo de Estado proposto por Weber,

caracterizado pela constituição de uma ordem racional legal, assim se refere

Fedozzi aos limites impostos a criação daquela ordem e da cidadania

correspondente:

O antagonismo entre as relações clientelistas e as relações institucionais decidadania equivale à contraposição que se estabelece entre o particularismo da justiçade gabinete (Weber,1992) associado a barganha como estratégia de acesso ao poder 

  público e aos fundos públicos e a existência de regras universais, objetivas eimpessoais- na extensão dos assuntos públicos e no exercício dos direitos individuaisou coletivos. Historicamente, a cidadania significou a troca da ordem legítimadesigual, para uma legitimidade baseada em direitos formalmente igualitários, sendo,

 por isso, uma forma histórica que corresponde à interação Estado - Sociedade típica daordem racional legal. (1997, p.50) 

No capítulo das Conclusões assim se refere Fedozzi à contribuição doOrçamento Participativo em Porto Alegre para a instituição da cidadania:

Pode-se concluir, portanto, que o modelo operacional do OrçamentoParticipativo, como forma de gestão sócio-estatal, vem, até o presente momento e emseus aspectos essenciais, promovendo condições institucionais favoráveis à emergênciada forma-cidadania. Nesse sentido, a sua dinâmica institucional distancia-se do modelo

 patrimonialista. (p.198)

A prática do Orçamento Participativo aponta na direção da constituição de

práticas de gestão pública com as características de poder impessoal, objetivo e

racional como oposição às práticas do clientelismo e, portanto, como condição

necessária à instituição da cidadania.

Do ponto de vista político da relação do Estado com a sociedade, no

Orçamento Participativo busca-se que o cidadão deixe de ser um simples

coadjuvante da política tradicional e passe a ser um protagonista ativo da gestão

pública. A idéia de “tomar conta da sua Cidade” pelo exercício da participação

na discussão do orçamento procura imprimir um sentido muito concreto à

constituição de uma cidadania ativa. O OP, ao propiciar uma relação ativa e

direta entre o governo local e a sociedade civil em relação às prioridades do

gasto social, objetiva uma forma de materializar condições para a construção da

cidadania.

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Genro procura sintetizar a contribuição do Orçamento Participativo no

revigoramento da idéia de cidadania e na mudança da atual forma de relação do

Estado com a Sociedade Civil:

 De uma maneira muito modesta, o orçamento participativo tenta recuperar adensidade da cidadania revolucionária na sua origem. A cidadania que se ancora na possibilidade de que o cidadão exerça seus direitos para mudar a sua qualidade devida. Assim criar uma esfera pública não estatal, de controle, de fiscalização e deindução do Estado, é um elemento imprescindível para enfrentar a impermeabilidadedo Estado atual. (1994)

Genro e Souza, ao analisarem a função educativa exercida pelo

Orçamento Participativo, assim se referem à questão da cidadania:

 Ao democratizar as decisões e, ao mesmo tempo, democratizar as informações

sobre as questões públicas, o orçamento participativo é capaz de gerar uma novaconsciência cidadã. Por meio desta, as pessoas compreendem as funções do Estado eseus limites e, também passam a decidir com efetivo conhecimento de causa. Cria-se,desta forma, um espaço aberto por meio do qual surgem condições para a formação deum novo tipo de cidadão: um cidadão ativo, participante, crítico, que se diferencia docidadão tradicional o qual só se afirma mediante demandas isoladas ou pequenas,exerce sua cidadania por meio de revoltas isoladas e impotentes. (1997, p.16)

Indissociado deste processo de constituição de uma “Cidadania Ativa”, as

práticas de participação popular têm procurado contribuir para o processo de

radicalização da democracia, como veremos no item seguinte deste trabalho.

 5. Ampliando e aprofundando a democracia

A concepção de cidadania acima referida nos remete a uma ampliação e

aprofundamento da compreensão da democracia. A concepção republicanatradicional da democracia está assentada no princípio da soberania popular

exercida através do voto. Esta definição, embora correta, mostra-se insuficiente

diante da realidade criada na prática dos regimes democráticos que não se

preocuparam em criar formas efetivas de “participação igual” ou ao menos

“mais igual’ nas decisões públicas. Também a realidade de enorme exclusão

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social na atualidade tanto em regimes democráticos como autoritários vem

reforçando a necessidade de mudar esse conceito tradicional de democracia.

Trata-se de perseguir um conceito de democracia no qual a conquista do

governo, por meio do voto popular, não esgote as possibilidades de participação

da sociedade. Trata-se, ao contrário, de iniciar um processo que crie dois focos

de poder democrático: um com origem no voto; outro originário de instituições

diretas de participação. Enfim propõe-se a combinação da democracia

representativa com a democracia direta na constituição de uma democracia

participativa.

Silva (1998) afirma que existem duas dimensões fundamentais que

caracterizam esse alargamento da democracia. Primeiro, o conceito de

democracia é expandido para além do seu uso mais corrente referido apenas às

características do regime político, para problematizar também o conjunto das

relações sociais. A segunda dimensão refere-se ao aprofundamento da

democracia nos espaços de tomadas de decisões de modo a construir uma ordem

democrática em que a participação vá além do voto e possa se concretizar

também em outros canais de expressão da vontade política.

Abers, no cap.1 da sua Tese de Doutorado, faz uma importante revisão

das origens da discussão acerca da “Democracia Participativa” na ciência

política moderna para fundamentar os argumentos a favor da participação dos

cidadãos nas decisões da gestão pública. Diferenciando-se dos que restringem

seus argumentos a um aumento da eficiência nas decisões públicas, a autora faz

uma revisão da literatura moderna a partir da perspectiva denominada

“empoderamento” dos cidadãos assim definido pela autora:

Participação não é apenas uma questão de transferência de responsabilidades públicas aos grupos de cidadãos, mas também refere-se ao crescimento do controle dacidadania sobre o Estado e ao fomento da capacidade do indivíduo comum entender edecidir sobre assuntos que afetam suas vidas de modo mais geral (1997, p.9)

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Abers (1997) afirma que, apesar de a temática da participação ser objeto

de teorização desde a Grécia Antiga, cabe destacar as idéias de três autores

anteriores ao século XX pela particular influência que exercem sobre o debate

atual acerca das questões relativas à participação.

O primeiro teórico moderno da democracia participativa foi Jean Jacques

Rousseau (1712-1778) que afirmava que, se os indivíduos são iguais e livres,

então eles não podem ser governados por ninguém mais se não por eles próprios.

No ideal da política descrito na sua clássica obra “O Contrato Social” todos os

cidadãos deveriam participar das decisões relativas a assuntos de interesse geral

e as conclusões seriam estabelecidas por consenso. Para Rousseau tal sistema só

funcionaria sob condições muito especiais de equidade social e autonomia

econômica. As idéias de Rousseau tiveram influência sobre a reflexão moderna

acerca da democracia participativa, sobretudo na sua abordagem comunitarista e

assembleista.

Uma segunda importante influência nas teorias participacionistas vem das

idéias de Jonh Stuart Mill (1806-1873) que, um século após Rousseau, escreve

preocupado com a problemática do Estado – Nação e das sociedades complexas.Mill argumentava sobre a necessidade de governos representativos em grandes

territórios onde seria impossível esperar que todos os indivíduos discutissem

  juntos todos os assuntos relativos aos seus interesses. Ele rejeitava também a

visão positiva de Rousseau de uma sociedade homogênea, afirmando que a

diversidade, a individualidade e os pontos de vista conflitivos são motores do

progresso humano. Mill argumentava a favor da representação proporcional

como antídoto aos efeitos perversos da “tirania da maioria”. Apesar de defender

o governo representativo, Mill também acreditava fortemente na participação

direta nos territórios menores e nos locais de trabalho. Essa experiência,

segundo ele, seria muito importante para o desenvolvimento “moral” dos

indivíduos, promovendo o “espírito público” e a criatividade.

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Uma terceira influência veio de Karl Marx (1818-1883) que concebeu a

participação como uma estrutura de poder popular capaz de substituir o Estado

liberal da burguesia. Marx criticou fortemente a democracia liberal,

argumentando que a igualdade jurídica servia como um verniz de legitimidade

para um sistema que reproduzia desigualdades substantivas e que, por natureza,

era dominado pela burguesia. O Estado liberal-burguês teria que ser superado

  junto com o sistema capitalista que o criou. Para efeito da discussão de

participação, vale destacar a descrição de Marx da Comuna de Paris (1871).3 A

Comuna de Paris envolvia um sistema piramidal, no qual grupos localizados de

vizinhança ou locais de trabalho tomam decisões sobre assuntos que os afetam

diretamente, enquanto enviam delegados para conselhos de base mais ampla,que discutem questões pertinentes a grupos maiores. Parecidos aos

representantes do sistema da democracia liberal, os delegados não deveriam

decidir por seus eleitores, mas apenas transmitir as decisões elaboradas em

instâncias inferiores, sendo que seus mandatos poderiam ser revogados a

qualquer momento em que eles falhassem no exercício deste papel. Marx nunca

explicitou com clareza como o conflito e a diversidade seriam incorporados

neste sistema de participação, pressupondo que os conflitos maiores se

resolveriam através da luta de classes. Diferentemente de Rousseau, Marx

entendia a necessidade de algum tipo de representação de modo a dar conta do

tamanho e complexidade das sociedades modernas.

Gramsci foi o teórico marxista que mais se dedicou à análise da questão

dos Conselhos, sobretudo a partir das experiências dos conselhos de fábrica que

se disseminaram pela Itália nos anos seguintes à revolução bolchevique.

4

Eleenxergava tais conselhos como potenciais meios para a revolução e como

modelo da forma como deveria funcionar a ditadura do proletariado Eles

3 Para obter uma descrição mais detalhada da Comuna de Paris consultar na obras de Marx  A Guerra civil naFrança in Marx, Karl. La guerre civille en France. Paris. Éditions Sociales, 1953.4 Para uma visão mais detalhada da discussão de Gramsci sobre os Conselhos ver: Staccone, Giuseppe. Gramsci;100 Anos Revolução e política Petrópolis, Vozes1991

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cumpririam um importante papel educativo como espaço no qual os

trabalhadores poderiam exercitar o auto-governo. Gramsci viu os conselhos

como protótipos de uma alternativa da forma descentralizada como deveria

funcionar a sociedade socialista. Mas, diferentemente de outros teóricos

marxistas, Gramsci via nos conselhos também um instrumento de preparação

dos trabalhadores nas etapas pré-revolucionárias em que os mesmos poderiam

cultivar capacidades econômicas e políticas que lhes seriam necessárias no

estágio posterior de construção da sociedade revolucionária.

A partir dos anos 60 um grupo de teóricos da denominada Nova Esquerda

(de origem marxista ou liberal-democrática) começa a retomar as idéias de

Rousseau, Mill, Marx e Gramsci, incorporando algumas das suas formulações e

rejeitando outras, na crítica à “democracia realmente existente” e também ao

“socialismo real”.5 Na crítica ao funcionamento dos regimes democráticos

prevalecia o argumento de que a desigualdade econômica e social neles

presentes e as limitações da representatividade social do sufrágio universal e das

eleições ocasionais impedem que os indivíduos exerçam na prática a igualdade

formal dos direitos políticos. As elites controlam o debate público e a maioria

dos eleitores vive atomizada e alijada da vida política real. Neste contexto, os

cidadãos comuns não exercem controle sobre os chamados representantes. Se o

povo quiser exercer controle sobre o sistema político, precisa ter acesso direto às

decisões públicas através das práticas da democracia direta. Tal grupo de

teóricos, reconhecendo a complexidade e diversidade presentes nas sociedades

modernas, defende a necessidade da combinação dos mecanismos da

democracia direta e representativa para assegurar maior grau de equidade naparticipação dos diversos grupos sociais.

De modo semelhante a Nova Esquerda critica o “socialismo real” por não

ter cumprido as promessas de construir um sistema democrático e

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descentralizado e, ao contrário, ter produzido um regime altamente centralizado,

um sistema autoritário governado por uma fechada elite burocrática. No final

dos anos 70 o chamado grupo dos Euro-comunistas 6 passa a enfatizar a

necessidade de democratizar as instituições liberais-democráticas, dando aos

grupos excluídos maior força política nos mecanismos de participação. Eles

também reivindicavam a democratização do próprio Partido Comunista e

criticavam os esforços do Partido em querer controlar as organizações cívicas

autônomas, tais como os sindicatos, movimentos populares e organizações de

vizinhos.

Talvez o maior representante desta corrente de pensamento tenha sido

Nicos Poulantzas que afirmava a importância da democracia direta como

complemento das instituições liberais democráticas e cujas ações são necessárias

para ajudar a construir um maior poder de pressão da classe trabalhadora sobre

as instituições representativas do Estado e para resistir às reações das elites ao

crescente poder dos trabalhadores no interior do aparelho de Estado.

Apesar de diferentes perspectivas de análise, os teóricos da Nova

Esquerda são portadores de várias idéias em comum. Eles propunham umasociedade que preservasse os valores liberais da tolerância, diversidade e

autonomia cívica, ao mesmo tempo que envidasse esforços especiais para ajudar

aqueles que estão em desvantagem por sua condição de classe, raça ou gênero a

obter maior grau de influência sobre o processo de tomada de decisões públicas.

Eles argumentam que o sistema que combine a democracia direta e

representativa é o que melhor condição tem de atingir tais objetivos.

Santos (1993), Benevides (1994), Daniel (1994), Coutinho (1991), Boff e

Arruda (1994), Carvalho (1997,1998) e outros vêm formulando a necessidade de

5 Para uma visão mais detalhada deste debate consultar Carnoy, Martin (1994) cap.6 E stado. Democracia eTransição ao Socialismo p.195-2176 Para melhor compreender o papel dos Eurocomunistas neste debate ver Coutinho, Carlos Nelson (1992), cap2.3 O contexto internacional: a crise do socialismo p.63-72

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uma nova concepção de democracia que possa superar os limites da sua visão

liberal. Afirmam a necessidade de assumir a democracia como valor estratégico,

de estendê-la a todos os campos da vida econômica, social, política e cultural, a

importância de combinar as formas diretas e representativas no seu exercício,

enfim, a necessidade de enraizá-la em todos os âmbitos da sociedade e das ações

do Estado. Trata-se do processo que vem sendo denominado radicalização da

democracia na busca de uma democracia integral.

Neste processo de radicalização da democracia, a participação popular é

elemento substantivo para possibilitar efetivamente uma mudança na relação

Estado/Sociedade em que esta última passe a controlar e a definir o Estado de

que necessita.

Daniel assim se refere ao direito de participação como elemento

indispensável à mudança das relações entre Estado e Sociedade e à ampliação

das formas de exercício da democracia:

 Não se trata de restringir a idéia de democracia apenas ao plano do regime político em sentido restrito, ou às chamadas regras do jogo, mas compreendê-la comoconstitutiva de um sistema social, buscando sua presença ou ausência nas formas de

sociabilidade e de organização do trabalho, bem como nas modalidades de relação doEstado com a Sociedade- âmbito no qual a extensão dos direitos demanda a conquistado direito à participação da sociedade na gestão pública, ultrapassando a merademocracia representativa. (1994 p.23)

Também Coutinho, ao analisar os dois grandes projetos em disputa hoje

na sociedade brasileira (liberal-corporativo ou simplesmente neo-liberal por um

lado e “democracia de massas” ou simplesmente democracia de outro), assim

sintetiza as características desse modelo de democracia de massas que vai sendo

constituído a partir das classes subalternas no Brasil:

Trata-se de um projeto hegemônico que pressupõe a proliferação dosmovimentos sociais de base, a presença de um sindicalismo combativo e politizado (oque não é sinônimo de partidarizado) e a mediação política de partidos

 programaticamente estruturados e socialmente homogêneos (o que não é sinônimo deideologizados ou estreitamente classistas). Precisamente por visar a uma democraciade massas, há aqui o empenho em combater a apatia, reforçando a participação

 política organizada do conjunto da cidadania, condição mesma para o êxito do projeto.

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Esse modo de estruturação política e social certamente reconhece o pluralismo deinteresses mas busca ao mesmo tempo construir uma vontade coletiva majoritária,capaz de articular esses múltiplos interesses por meio da gestação de um espaço

  público onde se combinam hegemonia e pluralismo. ... Essa democracia de massasaparece assim como o quadro institucional no qual profundas reformas de estrutura,resultados da construção de amplos consensos majoritários, podem abrir o caminho- o

único caminho possível e desejável- para a progressiva construção de uma sociedadesocialista em nosso país. (1991, pp.100-101) 

Carvalho (1998) ao analisar as diversas concepções e experiências de

Participação Social no Brasil atual, afirma que os diversos espaços e formas de

gestão participativa tem contribuído para desprivatizar a gestão pública,

alterando os arranjos institucionais formadores de políticas, contribuindo para

desestabilizar tradicionais relações simbióticas entre o Estado e grupos de

interesse, para publicizar e democratizar as políticas sociais. Para a autora, essaarticulação entre democracia representativa parlamentar com novos canais de

participação direta tem gerado uma nova concepção de democracia, alargando-a,

aprofundando- a .Tem construído uma concepção de democracia participativa

capaz de ampliar a democracia por meio de uma efetiva partilha do poder de

gestão da sociedade.

As práticas do Orçamento Participativo promovem o encontro, por vezes

conflitivo, de duas esferas de decisão: uma esfera originária da representação

política já existente e outra que é oriunda de um novo espaço público

proveniente da presença direta das organizações da sociedade civil e dos

cidadãos comuns.

Ampliar e aprofundar a democracia significa criar mecanismos para que

ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e criar novas

mediações institucionais que possibilitem que as decisões sobre o futuro sejamsempre decisões compartilhadas, baseadas no princípio da co-gestão da coisa

pública.

Compartilhar significa dizer que a democracia deve possibilitar que entre

aqueles eleitos pelo sufrágio universal (os representantes políticos) e aqueles

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indicados por outras formas de participação direta (originários diretamente do

movimento social ou cidadãos comuns) sejam acordadas novas formas de

decidir.

Genro e Souza assim destacam a importância deste novo método dedecidir os assuntos referentes à coisa pública:

Este seria um método de decidir e, ao mesmo tempo, de gerar controle sobre oEstado e o governo, criando instituições capazes de gerar políticas que tenham umgrau cada vez maior de aceitação e legitimidade social. Políticas que sejam produto de“consensos” e que emerjam de “conflitos, que, por seu turno, possam abrir a cena

 pública para que transitem – se quiserem – os interesses de todos os cidadãos. (1997,pp.19-20) 

Também Genro assim se refere ao significado mais geral deste

movimento na renovação da representação política e na ampliação da

legitimidade social das políticas públicas:

Este movimento conscientemente orientado por decisão política transformadoraindica, assim, uma co-gestão pública, estatal e não estatal, por meio do qual alegitimidade da representação é permanentemente regenerada pela democratizaçãoradical das decisões, que são devolvidas à comunidade em forma de políticas, açõesgovernamentais, que conferem identidade aos participantes do processo e se ampliamna sociedade, alterando o cotidiano da cidade e interferindo na compreensão políticada sua cidadania. ( 1996) 

No contexto desta discussão, a criação de um novo espaço público não

estatal significa a criação de um novo contrato político pelo qual o Estado se

abre, por decisão dos seus gestores, a uma nova esfera de decisões (direta dos

cidadãos) que, combinada com a esfera da representação política, possibilitaria

um processo de desprivatização das decisões do Estado e de conseqüente

publicização das mesmas.

6. Construindo novos paradigmas de reforma do Estado e degestão pública

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A profunda crise econômica mundial vivida a partir da década de 70, a

progressiva integração mundial dos mercados e dos sistemas produtivos (aspecto

central do fenômeno da globalização) estão na base da grande crise do Estado.

Seu enfraquecimento manifestou-se tanto em relação à disponibilidade de

recursos à sua disposição, como também no tocante à sua capacidade de

proteger a economia nacional da competição internacional A esta dimensão

econômica, soma-se a crise de legitimidade do Estado, originária tanto da sua

incapacidade de responder às crescentes demandas dos cidadãos, como do

progressivo distanciamento entre os mesmos e a máquina administrativa pública.

Para Diniz (1997), no Brasil, esta conjuntura internacional está associada ao

desgaste do modelo de Estado, sob o qual evoluiu a industrialização mediante asubstituição de importações.7 

Este contexto criou as condições para a centralidade que adquiriu a

discussão acerca da necessidade de uma Reforma do Estado e dos padrões de

gestão pública. Na década de 80 tal debate teve como centro o grau de

intervenção que o Estado deveria exercer sobre a economia e especialmente, o

tamanho do aparato estatal suas funções. Foi o auge do receituário neoliberal e

da sua pregação a favor de um Estado mínimo. Na década de 90, as diferentes

análises acerca da crise do Estado de Bem Estar Social, o progressivo

questionamento do receituário do modelo neoliberal vão produzindo

progressivamente uma visão de que nem a lógica estrita do mercado, nem a

lógica puramente estatal dão conta sozinhas da complexidade dos problemas

colocados. Tal debate está em curso, com visões distintas e até mesmo

contraditórias quanto ao tipo de Estado a ser construído e acerca das metas ecritérios que devem orientar as propostas para sua reforma. .

Santos (1998a), na sua exposição no Seminário Internacional “Sociedade

e a reforma do Estado”, defendeu a tese da necessidade de uma reinvenção

7 Para melhor compreensão do contexto desta discussão no Brasil ver Diniz, Eli(1997), cap.5 Em busca de um

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solidária e participativa do Estado. Para o autor o fim do reformismo social

determinou o início do movimento pela reforma do Estado.

Para o autor existem duas fases que marcam o início de tal movimento. A

primeira fase esteve baseada paradoxalmente na idéia de que o Estado éirreformável. O Estado é inerentemente ineficaz, parasitário, predador, e assim a

única reforma possível e legítima consiste em reduzir o Estado ao mínimo

necessário ao funcionamento do mercado. Foi a fase áurea do neoliberalismo. A

segunda fase está baseada na idéia de que o Estado é reformável, idéia que se

assenta em dois pilares fundamentais: a reforma do sistema jurídico e em

especial do sistema judicial; o papel do chamado terceiro setor na reforma do

Estado. Para o autor o terceiro setor é uma designação residual e vaga com que

se pretende dar conta de um vastíssimo conjunto de organizações sociais que

não são nem estatais nem mercantis, ou seja, organizações sociais que por um

lado, mesmo sendo privadas, não visam fins lucrativos e, por outro lado, mesmo

sendo animadas por objetivos sociais, públicos ou coletivos, não são estatais.

Para o autor só uma reforma simultânea do Estado e do terceiro setor, por

via de articulação entre democracia representativa e democracia participativa,pode garantir a eficácia do potencial democratizante de cada um deles face aos

fascismos pluralistas que pretendem apropriar-se do espaço público não-estatal.

Só assim os isoformismos normativos entre o Estado e o terceiro setor – tais

como a cooperação, a solidariedade, a democracia, a prioridade da pessoas sobre

o capital- poderão ser credibilizados politicamente.

Finalizando, conclui o autor que a pujança avassaladora do mercado

impulsionada pelo capitalismo global põe em perigo todas as interdependências

não-mercantis, sejam elas geradas no contexto da cidadania ou da comunidade.

Por isso, para lhes fazer frente é necessária uma nova congruência entre

cidadania e comunidade. É aí que reside a reinvenção solidária e participativa do

novo paradigma; a reforma do Estado no Brasil nos anos 90 p.175-203

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Estado. Este projeto político assenta-se numa dupla tarefa: refundar

democraticamente a administração pública e refundar democraticamente o

terceiro setor.

Já Castells (1998), na sua exposição no mesmo seminário acima referido,parte da idéia da emergência de uma nova forma de Estado denominada por ele

de Estado Rede, como forma institucional que parece ser efetiva para responder

aos desafios da era da informação. O Estado Rede é o Estado da era da

informação, a forma política que permite a gestão cotidiana da tensão entre o

local e o global.

Para o autor, o Estado é, em última instância, em seus distintos níveis, o

principal instrumento de que dispõem hoje os cidadãos para controlar a

globalização em função de seus valores e interesses. O processo de construção

do Estado Rede pode ser sintetizado em torno de 8 princípios de funcionamento

administrativo:

1) O princípio da subsidiariedade pelo qual se procede a uma ampla

descentralização na qual se transferem poder e recursos aos níveis mais

próximos dos cidadãos e de seus problemas em um âmbito em que a

gestão do problema se pode fazer de modo eficaz. Em última análise o

princípio da subsidiariedade também leva a substituir o Estado pela

sociedade e pela empresa em tudo aquilo em que o Estado não seja

necessário;

2) O princípio da flexibilidade na organização e atuação na

administração;

3) O princípio da coordenação que inclui também formas de hierarquia

nas quais se mantêm as regras de subordinação democraticamente

definidas;

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4) O princípio da participação cidadã, sem o qual não haverá legitimidade

e por conseguinte, qualquer forma de intervenção estratégica do Estado

corre o perigo de não ser entendida por seus cidadãos. A participação

cidadã funciona mais eficazmente no nível local, mas os novos

dispositivos tecnológicos (por exemplo Internet) podem estender

formas de consulta e co-decisão a todos os âmbitos do Estado. Sem

participação a democracia vai-se esvaziando de conteúdo para amplos

setores da população, sobretudo para os “sem voz” cuja carência de

recursos materiais e culturais, na ausência de processos participativos,

os condena a serem deserdados;

5) O princípio da transparência administrativa;

6) O princípio da modernização tecnológica da administração;

7) O princípio da transformação dos agentes da administração por meio

da sua profissionalização e salários adequados; 

8) O princípio da retroalimentação na gestão que possibilita

aprendizagem e correção dos erros. 

Daniel (1999), ao discutir os conteúdos da nova agenda local democrática

e popular em oposição ao ideário neoliberal, afirma a necessidade de se

construir um Estado local forte, em contraste com o Estado Mínimo, que seja

capaz de se contrapor ao mercado auto-regulador e, ao mesmo tempo, garantir a

autonomia da sociedade e favorecer os direitos de cidadania. Concretamente,

propõe um Estado local forte em dois sentidos complementares: por um lado ,

capaz de se impor aos grupos dominantes locais e combater as práticas

fisiológicas e patrimonialistas, principalmente através da criação e

fortalecimento das esferas públicas democráticas, ou seja, implantando um

modelo de gestão pública em que haja partilha de poder com a sociedade civil;

por outro lado, forte do ponto de vista financeiro, de modo a manter um fundo

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público de tamanho capaz de responder aos temas de uma agenda local que

possa propiciar o direito à cidade.

Daniel assim sintetiza o sentido mais estratégico das suas proposições

acerca de um novo modelo de gestão e de Reforma do Estado no nível local:

Em suma, a idéia força consiste em tomar como centro o fortalecimento dasesferas públicas democráticas – e, portanto, no plano da disputa de idéias, areferência ao direito à cidade – com base numa gestão pública participativa, emarticulação com a garantia de um fundo público que faça valer – do ângulo material –a perspectiva do direito à cidade. Nesse contexto, a produção de bens e serviço

 públicos – seja sua operação estatal, privada ou mista – calcada no controle social,completa um modelo de gestão pública que contrasta tanto com o estatismo quanto,sobretudo, com o privatismo de inspiração neoliberal, fundando uma nova relação

 público-privado. (1999, p.28)  :

Belchior (1999), ao resgatar o contexto e as caracterísiticas que vem

assumindo tal debate, aponta três dimensões que deveriam ser enfrentadas por

uma Reforma do Estado: econômica ( superação da crise fiscal), administrativa (

reforma da administração pública) e política (reformulação do padrão de relação

entre Estado e sociedade).A questão do controle social adquire maior relevância

neste final dos anos 90, quando a dimensão política passa a ter maior destaque,

diferentemente do início da década quando as dimensões econômica e

secundariamente a administrativa tinham preponderância no debate sobre a

Reforma do Estado.

Também Diniz, ( 1997) ao discutir as diferentes concepções de reforma

do Estado em disputa no cenário atual, afirma a importância de se romper com o

paradigma tecnocrático e de se discutir a Reforma do Estado em estreita

conexão com o tema da consolidação democrática e com o processo de

fortalecimento das condições de uma governabilidade democrática. Para o autor,

tal paradigma tecnocrático é o responsável pelo predomínio de visões

reducionistas acerca da crise do Estado, implicando o reforço de visões

unilaterais no encaminhamento das soluções propostas. Tal paradigma concebe

eficiência governamental em termos de concentração, centralização e

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fechamento do processo decisório, eficácia de gestão em termos de insularidade

burocrática e, finalmente, autonomia do Estado como capacidade de isolar-se

das pressões do mundo da política .Em sentido contrário, mostra o autor, é

preciso lembrar que a eficácia da ação estatal não depende apenas da capacidade

de tomar decisões com presteza, mas sobretudo da adequação das políticas de

implementação, o que, por sua vez, requer estratégias que dêem visibilidade

política às propostas e aos programas governamentais. Sob essa ótica, a criação

de arenas de negociação, a capacidade de articular alianças e coalizões aparecem

como aspectos relevantes da gestão estatal.

Em síntese, ainda de acordo com Diniz (1997), a criação de um novo

paradigma para repensar a Reforma do Estado requer a ruptura com as visões

tecnocrática e neoliberal. Em contraposição, a visão de capacidade governativa

(governance) sugerida pelo autor, pressupõe o reforço dos mecanismos e

procedimentos formais de prestação de contas ao público, por um lado, e, por

outro, a institucionalização das práticas de cobrança por parte dos usuários dos

serviços públicos e dos organismos de supervisão e controle. Para o autor, as

experiências de câmaras setoriais no plano do governo federal, os conselhos

municipais de políticas públicas e as práticas de orçamento participativo são

exemplos de experiências de “local governance” hoje cada vez mais difundidas.

Silberschneider (1998) destaca que, sobretudo num país como o Brasil,

marcado pela tradição patrimonialista na direção dos negócios públicos, as

experiências de OP chamam a atenção para as possibilidades de renovação das

bases de governabilidade do Estado municipal brasileiro. Ao contrário das

experiências de planejamento participativo da década de 70 em que a prática

participativa era de tipo consultivo e dirigia-se para a negociação de ações

pontuais, as práticas do OP pautam-se pela participação com caráter deliberativo

e introduzem no centro das negociações o orçamento público que em princípio

congrega o conjunto das ações governamentais Mais do que a adesão de novos

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atores, os processos de OP passam então a depender do incremento da

accountability8 da administração pública municipal, revitalizando a relação entre

o agente ( burocracia) e o principal ( sociedade) por meio de uma reaculturação

gerencial e produzindo os resultados capazes de resgatar o referencial de

legitimidade do governo que são os compromissos aprovados durante o OP. Para

o autor, tais experiências, bem mais que questões político – partidárias que

suscita, constituem exercícios de redefinição dos parâmetros de planejamento da

ação governamental, envolvendo a participação popular, como via alternativa à

reforma do Estado brasileiro.

O Planejamento Estratégico Situacional9 tem sido a metodologia utilizada

em diversos municípios com o objetivo de melhorar a capacidade gerencial do

Estado e sua eficácia na perspectiva do seu fortalecimento em nível local. Daniel

assim sintetiza a importância do referido instrumental:

O planejamento estratégico - enquanto planejamento da ação de governo-constitui-se em ferramenta poderosa para a previsão, o acompanhamento e o controledo dia -a- dia do governo. A implantação de um sistema de prestação e petição decontas interessa tanto à dinâmica do próprio governo – que, com freqüência não

  possuí informações sobre o que, quando e como está sendo executado naadministração – quanto à possibilidade de controle público dos passos do governo.

  Busca-se com o planejamento estratégico situacional, dar conta do chamadotriângulo de governo, de modo a obter e manter seu equilíbrio. Os três vértices dessetriângulo são o programa de governo, a capacidade de governo ( recursos com que seconta para implementar o programa) e a governabilidade ( grau de "controle" que ogoverno possui em face dos atores sociais, econômicos e políticos locais). Esseequilíbrio é sempre penoso, uma vez que se deseja fazer mais do que as condições dacapacidade de governo e governabilidade permitem. Via de regra, o caminho é reduzir o programa de governo, ao mesmo tempo elevando sua capacidade egovernabilidade. O que permite fazer um acompanhamento e controle quotidiano é aadministração por projetos ( do programa de governo) e por operações ( dacapacidade de governo e governabilidade). O planejamento estratégico tem sido

incorporado a um razoável número de governos democráticos e populares, comresultados bastante desiguais – requerendo, portanto, reflexão crítica e socializaçãoainda incipientes. (1999,p.36) 

8 A melhor tradução para o português parece estar no termo responsabilização do Estado no que se refere àtransparência absoluta na prestação de contas das suas ações. Para melhor compreensão do conceito verCAMPOS, Ana Maria (1990)9 Para uma melhor fundamentação acerca dessa metodologia ver Matus (1972, 1989, 1991e 1993), seu principalidealizador. Sobre sua aplicação concreta em municípios ver Belchior (1999)

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No que se refere ao controle social, trata-se de desenvolver práticas de

gestão pública que envolvam a participação conjunta de governos e de atores

sociais relevantes, através da transparência absoluta na maneira de atuar da

administração e da criação de canais de interlocução e de participação da

sociedade civil que estabeleçam um processo de co-gestão das políticas

públicas. Para que isto se torne possível numa perspectiva de continuidade que

não dependa apenas da vontade política do governante , Daniel aponta a

necessidade de se pensar a reforma administrativa sob tal prisma: .

Se quisermos a participação cotidiana das pessoas na prestação de serviços,na realização de obras, etc, quem é o agente de prestação de serviços é a burocracia

  pública e não o governo de plantão. Isso, portanto, exige pensar profundamente a

reforma administrativa com aquela abordagem voltada ao cidadão e um conjunto deinstrumentos que revolvam internamente a administração pública ,de forma que ela setorne mais aberta ao controle social e à participação. (1996 pp. 32-33) 

Silva apresenta algumas indicações do que vem a ser a reforma do Estado

na perspectiva do controle social e do alargamento da democracia:

Criar mecanismos através dos quais a sociedade possa se informar e controlar as ações estatais; buscar formas de relações mais democráticas no interior damáquina administrativa, ou seja, implementar mudanças na forte e rígida hierarquia

  presente na estrutura das administrações públicas; alterar os entraves jurídico –

burocráticos que preestabelecem, autoritariamente, os critérios de quem tem, e quemnão tem competência para elaborar políticas; ampliar os canais de participaçãosocial no sentido de que o Estado, através das mais variadas formas, possa partilhar oseu poder com a sociedade para elaborar e implementar as políticas públicas. (1998,p.24) 

7. O processo educativo no Orçamento Participativo e osaprendizados dos Atores

Tanto a partir do campo da Educação Popular (EP) como das práticas de

construção da cidadania em todos os níveis, vem-se colocando, como temática a

articulação sinérgica dos processos educativos com a construção da cidadania.

O referencial teórico aqui apresentado enfatiza a função da educação na

construção de uma cidadania ativa e de uma proposta de democracia integral.

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Nos textos do CEAAL (1994), Bengoa (1988), Mejia (1993), Gohn (1992),

Benevides (1991), Arroyo (1993), Boff e Arruda (1994) Castilho e Osório

(1997), todos enfatizam o papel de destaque que a educação cumpre na

constituição de uma cidadania ativa e dos mecanismos de radicalização da

democracia. Enfatizam ainda a importante contribuição que vem da Educação

Popular, sobretudo porque esta alargou o âmbito do educativo para além da

escolarização e desenvolve importante contribuição à constituição e qualificação

de vários atores sociais e políticos principalmente no terreno da sociedade civil.

Uma das contribuições mais importantes da educação popular é o

desenvolvimento de um conceito do educativo que é bem mais abrangente que

as práticas que se realizam no sistema escolar. Como afirma Mejia:

 Neste processo, retiramos a pedagogia do confinamento ao ensino (a que estevesubordinada durante anos) e a devolvemos ao campo da aprendizagem e dos contextosda ação. Ou seja, reconstruímo-la como relações sociais de saber e conhecimento ecomo dispositivos culturais que são aqueles que a tornam operativa. (1993, pp. 7-21) 

Também na obra de Freire, a reflexão sobre a ação pedagógica no interior

dos movimentos sociais, dos partidos políticos, dos governos democráticos e de

outros espaços de sociabilidade política, tem dado consistência à necessidade de

pensar a ação pedagógica num contexto mais abrangente que a escola somente.

Vale destacar, como exemplo, na obra de Freire a importância que ele atribui à

ação pedagógica de um governo radicalmente democrático :

Tudo deve estar visível. Tudo deve ser explicado. O caráter pedagógico do atode governar, sua missão formadora, exemplar, que demanda por isso mesmo dosgovernantes seriedade irrecusável. Não há governo que persista verdadeiro,legitimado, digno de fé, se seu discurso não é confirmado por sua prática, se apadrinhae favorece amigos, se bem duro apenas com os oposicionistas e suave e ameno com os

correligionários. (1992, p.174)

Ao afirmar a existência de outros espaços de produção e transmissão dosaber , a EP parte da premissa da existência de uma pedagogia presente noprocesso das organizações. Assim Serpa, em sua dissertação de mestrado,refere-se às bases pedagógicas do processo das organizações:

Todo movimento social tem uma pedagogia, uma forma de fazer-se implícita ouexplícita, intencional ou espontânea que, articulando princípios, agentes e recursos,

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resulta em aprendizado para os que dele participam. Aprendizado este que se expressanão só pelo saber que produz, mas também pelos valores e comportamentos que gera.(1990 p.184)

A partir do final dos anos 50, no Brasil e, de modo mais geral, na América

Latina, a Educação Popular10 constituiu-se num importante referencial teórico e

instrumental para o fortalecimento de diversos atores sociais e políticos

(sobretudo movimentos sociais) no terreno da sociedade civil, o que tem

contribuído para a busca de uma nova qualidade da relação destes com o Estado.

A partir do início dos anos 90, diversos estudos11 sobre os desafios da

Educação Popular, neste final de século apontam a necessidade de uma revisão

crítica das práticas e concepções até aqui vigentes na Educação Popular à luz

das grandes transformações em curso no mundo e, de modo particular, nas

sociedades latino-americanas. Este debate denominado refundamentação da

Educação Popular  busca redefinir seu papel, suas tarefas, sua concepção

metodológica e criar novos instrumentos para sua intervenção. Deste amplo

campo de discussão destaco, para fins deste estudo, aqueles aspectos referentes

às contribuições da Educação Popular para os processos de construção de uma

cidadania ativa e de democratização da gestão pública em nível local.

Castilho e Osório (1997) discutem a importância da Educação associada

aos processos de construção da cidadania hoje, na América Latina Ao

sintetizarem a abordagem de uma Educação para a Cidadania, afirmam tratar-se

de uma educação voltada ao objetivo global de formar cidadãos autônomos e

críticos. Isto significa considerar a cidadania como uma qualidade social da

democracia e entender que a educação deve orientar-se primordialmente no

sentido do fortalecimento da democracia por meio da criação de capacidades nos

cidadãos para participarem em instituições da sociedade civil, exercerem

associativamente o poder de controle sobre o governo e resolverem

pacificamente os conflitos.

10 Dentre várias obras, ver Brandão (1984), Wanderley (1984) e Hurtado (1993)

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Uma democracia participativa requer da parte dos cidadãos uma

capacidade desenvolvida de julgar criticamente os acontecimentos e transcender

a lógica individual para chegar a pontos de vista universais que lhes permitam

encarar comunicativamente (com outros e outras) os problemas de uma

comunidade. Um cidadão-sujeito desenvolve sua autonomia e criatividade não

no vazio, mas sim no âmbito de uma racionalidade comunicativa. A cidadania se

constrói e se pratica com outros. Dentro desta perspectiva, a ação educativa

objetiva não somente a formação do juízo crítico dos sujeitos individuais, mas

também deve desenvolver suas capacidades comunicativas e cívicas que

vinculam o individual ao universal, promovendo a abertura dos cidadãos às

ações associativas.

Castilho e Osório ao discutirem a temática da Educação para a Cidadania

a partir da ótica da Educação Popular e no âmbito do debate sobre a sua

refundamentação, assim sintetizam sua visão acerca da pertinência da Educação

Popular em relação à temática acima referida:

Uma EP que promova o desenvolvimento de aprendizagens para acompreensão da realidade complexa em que se vive, e a decisão sobre os modos de

intervir sobre a mesma. Neste sentido podemos dizer que a EP é uma pedagogia do público,, da decisão, da construção de um sentido do comum. A EP é ela mesma umaeducação cidadã, uma esfera pública. Ao falarmos em EP nos referimos à criação emdistintos âmbitos ( escolas, bairros, movimentos sociais, famílias) de esferas públicasque permitam que as pessoas se reunam em lugares diversos para falar, intercambiar informação, escutar, fazer negociações

  Do ponto de vista desta teoria pedagógica uma “EP para a cidadania” é metodologicamente deliberativa, ou seja, reconhece que mediante a deliberação dedilemas a resolução de conflitos, a construção de acordos, negociações, etc é possíveldesenvolver formas compartilhadas de compreensão e apropriação de conceitoséticos.

Em resumo uma aproximação atualizada a partir da EP na direção de umaeducação para a cidadania nos permite distinguir a esta como um processo produtivo

 – cultural de elaboração de sentidos comuns, a partir dos dilemas e complexidades presentes na política, na economia e no mundo da vida cotidiana. Esta definição situaa educação para a cidadania como um processo que, sendo de ordem vivencial, estátambém em conexão com as relações de poder presentes na sociedade. (1997 pp42-43) 

11 Entre vários estudos, ver MEJIA, 1993; ALFORJA, 1991; OSÓRIO, 1993. Gadotti e Torres (1994)

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Castilho e Osório, no mesmo trabalho, depois de se referirem a algumas

das principais concepções de educação cidadã e suas formulações pedagógicas,

afirmam que o ponto central é constituir uma pedagogia que suscite a

necessidade de pensar em novos horizontes e orientações para a prática

educativa em todos os espaços sociais. Concluindo sua reflexão, afirmam os

autores acerca dos objetivos gerais de uma educação cidadã;

 A educação cidadã deve contribui ao desenvolvimento de estratégias cidadãsde intervenção nas agendas públicas e à capacitação para o lobbing cidadão; àsações de interesse público e à geração de movimentos cidadãos eficientes e criativos,capazes de trabalhar como redes de atores sociais. De igual modo deve promover aapropriação crítica dos temas emergentes da cidadania, especialmente dosrelacionados com a justiça, de gênero, as relações interculturais e intergeneracionais,empoderamento e governo das cidades e das regiões. ( 1997 p.63) 

Ao me referir nesta pesquisa aos aprendizados decorrentes do  processo

educativo em que estão participando distintos atores sociais, estou abordando o

tema da aprendizagem entendida não como simples adaptação ao que existe, ou

mero acréscimo de conhecimentos e habilidades, mas posta na ótica da concreta

configuração do ser humano ( individual e coletivamente), que constrói e se

reconstrói, se autotranscende através da sua participação em distintos processos

educativos promovidos a partir de diferentes esferas de organização social.

Marques ( 1995), ao referir –se às aprendizagens que ocorrem a partir da

mediação do espaço público e da práxis política, remete-se à importância das

competências comunicativas ( Habermas) na constituição do sujeito autônomo,

criativo, atento às muitas possibilidades em aberto e capaz de atuar num mundo

marcado pelas incertezas e pela complexidade. As pessoas só serão

racionalmente responsáveis pelo seu destino coletivo na medida em que

refletirem sobre seus interesses e necessidades e os submeterem a uma crítica

pública. E a sociedade emancipada depende da institucionalização da

democracia pautada por uma integração mais feliz entre a cultura, a sociedade e

a personalidade singularizada. (p.43)

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Para Marques (1995), o eu competente (e singularmente autônomo)

significa, assim, a capacidade de auto- afirmação de cada qual na posição

singular que ocupa e na coragem de se orientar e se organizar no mundo.(p.48)

Conclui o autor que, nas complexas e multideterminadas sociedades modernas,

multiplicam-se as alternativas hipotéticas e se quebram os grilhões das lealdades

particularistas, exigindo-se aprendizagem da busca do consenso à base dos

melhores argumentos, isto é, daqueles que obtenham o assentimento dos

indivíduos a um entendimento novo, submetido às regras comuns da acareação

crítica. Mas para isso se exigem os sujeitos conscientes de seu próprio processo

formativo, sujeitos que se reconheçam a si mesmos como outros em sua

liberdade, em abertura radical às suas possibilidades e à liberdade de todos.(p.50)

Sawaia, ao analisar o conceito da participação social como questão de

legitimidade subjetiva, afirma que o aprendizado de uma regra não conduz

necessariamente à ação, pois o compromisso político não é uma questão de

opção puramente cognitivo – instrumental . Ele é vivido como necessidade do

eu, como desejo. Mesmo quando o indivíduo age em nome do bem comum, a

ação implica em exercício da motivação individual; portanto, vontade e

afetividade são duas dimensões fundamentais Tomando de Habermas o conceito

de “capacidade argumentativa”, conclui a autora:

Capacidade argumentativa é sentimento de legitimidade para participar daconstrução de políticas sociais de forma que uns não se alienem nos outros,considerados donos do saber. É capacidade de defender as próprias necessidades,respeitando as dos outros, isto é, habilidade de lidar com o desejo próprio e do outro,construindo um nós. Portanto, é exercício de sensação e reflexão para que o sujeito

sinta-se legitimado enquanto membro do processo dialógico – democrático (1997p.156) 

Em seguida conclui Sawaia acerca da participação:

  A ação participativa pode e deve ser local, específica e motivada por interesses pessoais e grupais, mas o horizonte deve ser universal para não se tornar corporativista. Os participantes são singularizações do gênero humano e enquanto tal

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devem orientar suas práticas pela mediação da ética universal, para que ela secontextualize. (1997, p.157) 

Becker ( 1997), em estudo sobre as aproximações e as diferenças nas

concepções de aprendizagem de Paulo Freire e Jean Piaget, afirma que em

ambas as abordagens, a aprendizagem será sempre entendida como o produto deuma relação ativa entre o sujeito e o objeto ( ou entre sujeitos), entre ação e

reflexão, entre teoria e prática; portanto, como uma relação eminentemente

transformadora da realidade. Para o autor as abordagens de Freire e Piaget são a

possibilidade de superação do empirismo associacionista e do apriorismo

gestaltista no campo das teorias da aprendizagem. Em Freire e Piaget

encontramos uma proposta de aprendizagem mediante construções e tomadas de

consciência, ações e reflexões, uma aprendizagem pela práxis construída tanto

pelo educando quanto pelo educador, uma aprendizagem ativa, operatória.

Freire (1997) na sua obra “Pedagogia da Autonomia “ trata da temática da

aprendizagem diretamente associada à constituição da autonomia. Enquanto no

ideário neoliberal a noção de autonomia vem associada ao estímulo do

individualismo e da competitividade, em Freire , está associada a solidariedade,

como compromisso histórico entre homens e mulheres, a uma ética universal doser humano e a uma pedagogia da autonomia.

Assim Freire refere-se ao ato de aprender:

 Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que nãose faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. ( 1997,p.77)

Para Freire, o essencial nas relações entre educador e educando, entre

autoridade e liberdades, é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua

autonomia. Para ele, a liberdade amadurece no confronto com outras liberdades,

na defesa dos seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do

Estado. A autonomia vai-se constituindo na experiência de várias, de inúmeras

decisões que vão sendo tomadas. É nesta perspectiva que uma pedagogia da

autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da

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responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. E conclui

afirmando que é decidindo que se aprende a decidir.

A observação e sistematização de diversas práticas participativas

possibilitou-nos uma visão cada vez mais clara sobre a necessidade da mediaçãoexplícita e intencionada da ação educativa para propiciar uma nova qualidade

política na intervenção dos diversos atores nos espaços públicos e canais de

participação popular.

Silva, Pereira e Pontual (1992), Pontual (1994, 1995), Daniel (1994),

Dowbor (1994), Freire (1992), Tamez e Rolemberg (1995) enfatizam a

necessidade de uma ação educativa planejada e a criação de instrumental

pedagógico capaz de capacitar os diversos atores envolvidos nas práticas

participativas. Trata-se de desenvolver uma Pedagogia de Participação Popular

capaz de contribuir para a construção de novas formas de exercício do poder no

terreno da Sociedade Civil e nas formas de atuar do Estado.

É neste contexto que adquire particular relevância hoje, no debate sobre a

Educação Popular, a temática do Poder Local e de uma pedagogia democrática

capaz de contribuir para a construção de novas práticas de exercício do poder.

Na minha Dissertação de Mestrado (Pontual, 1995) e em artigos publicados

(Pontual, 1994, 1995, 1996, 1998), posiciono-me neste debate reafirmando a

importância da contribuição da Educação Popular na construção de novas

formas de exercício do poder, fundamentalmente a partir do terreno da

sociedade civil, mas também no exercício das ações de governo, no sentido de

que estas estejam constantemente alimentadas e retroalimentadas pela prática

viva dos processos e sujeitos sociais.

Para tanto, apontava naqueles trabalhos já citados, que é preciso educar,

formar, capacitar os diferentes atores que vão criar e exercer essas novas formas

de poder. Apesar de sua reconhecida prioridade de intervenção em relação aos

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atores da sociedade civil, a Educação Popular vem sendo desafiada também a

incidir sobre uma pedagogia democrática das ações de governo.

Dentro desta perspectiva parto da hipótese de que a Educação Popular tem

importante papel no sentido da qualificação (tanto do ponto de vista éticopolítico como de conhecimentos instrumentais) dos movimentos sociais e dos

governos locais para melhorar a sua capacidade de intervenção na elaboração e

gestão das políticas públicas no espaço local.

Neste sentido a sistematização de experiências acompanhadas por este

pesquisador e os documentos que fazem parte do debate promovido no interior

da REPPOL do CEAAL12 apontam novas temáticas e novas ênfases que vêm

sendo incorporadas aos programas de intervenção da Educação Popular:

a) pedagogia democrática para o exercício do governo local;

b) construção de programas de educação para a cidadania em torno da

temática dos direitos e de uma nova ética do bem público;

c) métodos democráticos de gestão e administração das organizações;

d) métodos democráticos de planejamento (estratégico e participativo) e,em especial, sua aplicação ao território e não só às organizações;

e) incorporação ativa da pluralidade de saberes técnicos que a partir da

perspectiva de uma pedagogia libertadora possam contribuir para

melhorar a qualidade e a profundidade dos programas de intervenção

territorial da Educação Popular e dos movimentos sociais;

f) conhecimento instrumental necessário à apropriação dos mecanismos

de funcionamento do Estado e a uma melhor qualidade na intervenção

em relação à formulação e gestão das políticas públicas;

12 A REPPOL ( rede de Educação Popular, Democracia e Poder Local) é uma das redes (composta por ONGS, dirigentesmunicipais, pesquisadores) que compõe o CEAAL Conselho de Educação de Adultos para América  Latina). 

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g) capacitação do funcionário público na perspectiva de sua valorização

como profissional (novas metodologias e instrumentos participativos),

como servidor público e como cidadão;

h) capacitação tanto dos movimentos sociais como dos agentes daadministração para o exercício de parcerias públicas, com “autonomia”

dos atores e uma efetiva prática de descentralização do poder;

i) novos instrumentos de comunicação popular capazes de contribuir para

a construção de novos valores, atitudes e comportamentos dos atores

nos processos e canais de participação popular.

Vale lembrar a questão a que me referi em meus estudos e artigos já

citados, isto é, que todos os processos participativos desencadeados na

construção do poder local provocam sempre novos conflitos ou a agudização

dos já existentes entre os atores que deles participam. Daí a importante

mediação educativa no sentido de “pedagogicizar os conflitos”, possibilitando

que eles ao invés de provocarem desagregação e fragmentação possam

contribuir para a construção de novas práticas de exercício do poder

substantivamente democráticas.

A criação de novas formas e canais de participação popular enfrenta uma

arraigada cultura política elitista e autoritária que não se transforma da noite

para o dia. Há uma lógica, historicamente predominante, na relação da

população com o Estado, impregnada de apatia, clientelismo, submissão,

populismo, cooptação e outros tantos efeitos perversos desta herança cultural.

As experiências em curso têm demonstrado que não é suficiente a criaçãodos espaços e canais de participação, sendo necessário criar as condições para

que esta participação ocorra de fato, capacitando os diversos atores (da

Sociedade Civil e do Estado) para o exercício de uma nova prática de gestão

pública democrática.

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Portanto, a abertura de novas formas e canais de participação requer uma

prática pedagógica explícita capaz de orientar o necessário processo de mudança

de atitudes, valores, mentalidades, comportamentos, procedimentos, tanto por

parte da população como daqueles que estão no interior do aparelho estatal.

Minha hipótese básica é que a potencialidade educativa do Orçamento

Participativo converte-se em processo educativo dos diversos atores envolvidos

(tanto da sociedade civil como dos governos), quando a sua metodologia e

funcionamento incorporam ações pedagógicas planejadas e a criação de

instrumentos capazes de contribuir para novos aprendizados por parte daqueles

atores e orientados na direção da construção de uma nova cultura política.

Diversos estudos sobre o Orçamento Participativo (Pires, 1993; Azevedo

e Avritzer, 1994; Baierle, 1994; Abers, 1997; Fedozzi, 1997; Genro e Souza,

1997 e outros) têm enunciado a “enorme potencialidade educativa” presente na

dinâmica do Orçamento Participativo. Creio que aquela deve ser verificada a

partir dos aprendizados que distintos atores desenvolvem no processo:

aprendizados do exercício de uma cidadania ativa; aprendizados relativos a uma

nova concepção de espaço público, a novos conhecimentos técnico-políticos enovos padrões de comportamento para o exercício de uma gestão pública

democrática. Cabe verificar também a contribuição de distintas metodologias e

instrumentos pedagógicos na criação das condições para que tais aprendizados

ocorram e no desenvolvimento pleno da potencialidade educativa do processo

do Orçamento Participativo.

Pires na sua dissertação de mestrado analisa o caráter educativo dos

Movimentos Populares Urbanos do município de Vila Velha – ES, focalizando,

especialmente, o processo de participação desses movimentos na discussão,

elaboração e fiscalização do orçamento municipal no período de 1984-1992. Nas

suas conclusões destacam-se os aprendizados proporcionados pelo referido

processo de participação popular:

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Contrapondo-se frontalmente aos já conhecidos vícios e práticas da políticaautoritária, centralizadora, clientelista e elitista, o processo de elaboração doOrçamento Municipal com participação popular torna-se um espaço importantíssimodo exercício da democracia real e, como tal, educador e formador da culturademocrática e emancipadora. Esta cultura democrática se evidencia na incorporação,

 por parte dos MP’s, de novas práticas políticas, tais como, reinvindicar com base nas

  prioridades orçadas, tomar decisões em assembléias, supremacia da reivindicaçãocomunitária sobre a individual, valorizar a luta coletiva etc. (1993, p.159) 

Para a autora, nesse processo vai se dando a capacitação técnica para

elaboração e execução do orçamento e a capacitação política para fazer dessa

luta uma forma de avanço na organização popular. Refere-se então aos

aprendizados:

 Assim a população vai compreendendo quais são as competências da Prefeitura,o total de fundos disponíveis, sua origem, seu comprometimento, as disponibilidadesexistentes. Vai compreendendo o processo pelo qual passa o orçamento até suaaprovação e, sobretudo, vai perceber que é preciso uma enorme vigilância na suaexecução. Aprende, também, a identificar os vários interesses em jogo, pois, a maneiracomo se gasta e onde se gasta o dinheiro público é um aspecto fundamental deexpressão das relações entre a Prefeitura e os diversos segmentos sociais. Vaicompreendendo, também, que embora os MP costumem discutir suas reivindicações de

 forma setorizada, localizada, é importante ver a cidade como um todo, conhecendo adinâmica do espaço urbano e interferindo na definições de prioridades coletivas domunicípio. (1993, p.159) 

Alerta no entanto a autora para o fato de que são necessários espaços

específicos de formação e sistematização para possibilitar que taisaprendizagens e conhecimentos novos sejam efetivamente apropriados pelos

participantes. Assim se refere à questão:

 Assim são necessários espaços específicos -- educativos ou de formação- em queesse processo de produção do conhecimento possa ser sistematizado de forma coerentee unitária, numa construção coletiva de um novo saber. Nem sempre o dia–a-dia do

  próprio movimento- cujas reuniões tem sempre as pautas carregadas e cujos  participantes estão sempre apressados e premidos pelas necessidades concretas- permite essa elaboração. Portanto, é fundamental a criação de espaços próprios para

esse fim, debates, seminários , encontros cursos, em que a metodologia seja sempre a partir da relação dialética entre teoria e prática, reflexão e ação.  (1993, p.156)

Azevedo e Avritzer (1994), em estudo sobre as experiências de

Orçamento Participativo em andamento em Belo Horizonte e Betim destacam

alguns dos aprendizados que elas têm proporcionado. Os autores, ao destacarem

a “enorme potencialidade educativa” presente na dinâmica do Orçamento

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Participativo, sublinham o aprendizado do exercício da democracia pelos

participantes do processo, a publicização das formas de decisão do orçamento no

plano da administração e do legislativo municipal, incluindo a incorporação de

uma preocupação com a transparência por parte dos técnicos do governo.

Concluem os autores que esses saldos demonstram que a democracia não pode

ser restrita a um método de escolha dos governantes, mas é necessário que ela se

constitua também como uma prática política permanentemente aberta a sua

própria renovação e ampliação.

Baierle, ao estudar a trajetória recente dos movimentos populares urbanos

em Porto Alegre, afirma a emergência de um novo princípio ético político que

advém da relação dos mesmos com a institucionalidade e da construção de

novos espaços públicos. Ao referir-se à relação dos movimentos com a

administração municipal na dinâmica do Orçamento Participativo destaca:

Foi um processo mutuamente educativo, desafiador. Nem o governo da FrentePopular tinha suficiente clareza em todos os seus segmentos sobre o que queria com a

  participação popular, nem os movimentos tinham magicamente superado suascontradições e sua tendência ao pragmatismo céptico. (1994, p. 11)

Abers (1997), na sua Tese de Doutorado sobre o Orçamento Participativo

de Porto Alegre, destaca importantes aprendizados que aquele processo tem

proporcionado a seus participantes. A autora adota o conceito de “enlarged

thinking” (Benhabib, 1992; Barber, 1984) que descreve a participação como um

espaço em que os indivíduos desenvolvem um senso de comunidade sem perder

o senso dos seus próprios interesses. Ou seja, eles não suprimem seus próprios

interesses, mas desenvolvem “enlarged thinking”, ou seja, uma melhor

percepção de como tais interesses se situam num processo político em que elestêm de negociar com outros que também têm preocupações legítimas. Para a

autora o processo coletivo de construção das regras para a distribuição dos

recursos é parte da construção deste “enlarged thinking”. Nas suas conclusões

aponta a autora que o Orçamento Participativo não só fez crescer aspectos de

cooperação, mas também desenvolveu uma nova cultura política entre os

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participantes. Indivíduos que comparecem aos Fóruns Regionais do OP para

defender projetos localizados das suas próprias áreas passam a conhecer melhor

as necessidades de outras comunidades vizinhas, ganhando ambos um maior

respeito pelas necessidades dos outros. Eles também adquiriram uma melhor

compreensão sobre seus próprios interesses, passando crescentemente a

enxergá-los como relacionados aos interesses de um grupo maior. Este

desenvolvimento da solidariedade teve implicações no problema das

desigualdades, pois encorajou os participantes a atribuírem prioridade aos

problemas das comunidades em situação de extrema carência, mesmo que estas

não tenham conseguido mobilizar um número suficiente de delegados para votar

em suas prioridades. Ainda assim a solidariedade que se desenvolveu nos Fórunsdo OP não substituiu aqueles interesses iniciais que cada participante trazia em

torno das suas próprias necessidades. Na medida em que coexistiram

competição e cooperação, estiveram combinados os próprios interesses e os de

outros. O resultado foi que aqueles fóruns geralmente tomaram decisões que

favoreciam a ambos, tanto os mais necessitados quanto os mais mobilizados.

Genro e Souza (1997), ao analisarem a experiência do OP de Porto

Alegre, afirmam que ela transcende o processo de gestão pública e de

planejamento democrático, resultando num processo político de geração de

consciência e cidadania. Entre os principais aprendizados destacam os autores: a

população aprendeu que existem problemas que ultrapassam a esfera do

município e que, para sua resolução estrutural, dependem de políticas

macroeconômicas, fiscais, definições de outros níveis de poder; a comunidade

compreendeu que não basta fazer emendas aos orçamentos estaduais e da União,mas que é preciso incorporar suas reivindicações nas lutas mais gerais do povo

por transformações estruturais da sociedade brasileira; e, finalmente o processo

de acumulação de experiência no OP faz com que o que era puro requerimento,

demanda, necessidade, mude de qualidade mediante o processo participativo e

adquira natureza política, fazendo do indivíduo um cidadão.

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Já Fedozzi (1997), no seu estudo sobre a experiência do OP de Porto

Alegre, ressalta o esforço que a mesma representa para criar condições

institucionais favoráveis à emergência da cidadania e também que esse processo

traduz-se por mudanças nas formas de gestão sócio-estatal, expressas

principalmente por uma prática sistemática de partilha do poder e por uma

dinâmica institucional baseada em regras e critérios objetivos, impessoais e

universais no acesso aos recursos públicos municipais. Conclui o autor que o

modelo operacional do OP, como forma de gestão sócio-estatal, vem, até o

presente momento e em seus aspectos essenciais, promovendo condições

institucionais favoráveis à emergência da forma-cidadania. Para o autor, esse

processo pode ser sinteticamente definido como a instituição de uma esfera pública ativa de co-gestão do fundo público municipal expressa através de um

sistema de racionalização política, baseado, fundamentalmente, em regras de

participação e regras de distribuição dos recursos de investimentos que são

pactuadas entre o Executivo e as comunidades e apoiadas em critérios

previsíveis, objetivos, impessoais e universais. A sua dinâmica instaura uma

lógica contratual favorável à diferenciação entre o “público” e o “privado” e,

portanto, contrária às práticas clientelistas que caracterizam o exercício

patrimonialista do poder. Ao final das conclusões do seu estudo, o autor levanta

a seguinte interrogação: até que ponto essa experiência não é percebida pelos

indivíduos participantes como mais um episódio de cidadania concedida? Em

outros termos, pergunta o autor, as mudanças institucionais favoráveis à

cidadania, promovidas pelo Orçamento Participativo, estariam também

proporcionando transformações na cultura política dos indivíduos participantes?

Lembra o autor que seria necessário levar em consideração a rica história de

organização e de lutas dos diversos movimentos sociais urbanos de Porto Alegre

e sugere a importância de outras investigações sobre essas questões. 

Este referencial teórico é um ponto de partida para a investigação

proposta, mas deverá ser ampliado e enriquecido com as contribuições das

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próprias experiências do Orçamento Participativo que procuraremos brevemente

descrever no capítulo seguinte. (...)