o processo de joana d'arc

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  • 7/24/2019 o Processo de Joana d'Arc

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    O PROCESSO DE JOANA DARC

    Mesmo presa, a Donzela foi uma ameaa para

    seus adversrios. Eles arquitetaram um

    julgamento falacioso para transformar a enviada

    de Deus em discpula de Sat

    por Philippe Contamine

    "Joana dArc, uma das pessoas de ndole

    mais simples que a histria produziu, est em

    processo eternamente, escreve o acadmico

    Jean Guitton. O inqurito contra a Donzela

    para empregarmos um termo jurdico comeou com a sua estada, que se

    prolongaria por vrias semanas, em Poitiers, na Frana, em maro de 1429, no

    curso das quais os doutos da Igreja e tambm os juristas do Estado vigiavam

    permanentemente seu comportamento, inquirindo-a com perguntas insidiosas

    tanto para tentar atingir sua enorme credibilidade quanto para delinear sua

    personalidade.

    O primeiro veredicto a que chegaram que no havia nada de

    inquietante, nem de suspeito a respeito daquela pastora pouco culta que,

    dizendo-se guiada por vozes, se apresentara diante do delfim afirmando que

    viera para conduzir os franceses vitria. Sua boa-f parecia verdadeira; seu

    projeto era santo. Talvez a Providncia, enfim, tivesse decidido intervir a favor

    de Carlos VII da Frana, um rei considerado muito cristo, e de seus sditos.Certamente, o instrumento dessa interveno poderia surpreender, mas era

    teologicamente admissvel. Era fato assim mostrava a Bblia que o cu se

    interessava pelo destino dos povos e das naes. Logo, no apoiar a iniciativa

    da enviada de Deus que desejava provar a origem sobrenatural de sua

    misso por meio de um sinal perante a cidade de Orlans, sitiada havia seis

    meses pelos ingleses, seria dar provas de ingratido. Parecia absolutamente

    inevitvel, pode-se dizer necessrio, sobretudo num momento de angstia,confiar nela.

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    E o milagre acontece! As palavras da pequena Joana so confirmadas.

    O cerco de Orlans desfeito (8 de maio de 1429) e, logo a seguir, trs outras

    cidades do vale do Loire so reconquistadas. Quando os ingleses so

    derrotados em Patay (18 de junho), a reconquista do reino se acelera e

    Carlos VII, conduzido pela Donzela de Orlans (a partir dessa data, ela ser

    conhecida por esse nome), sagrado rei, na catedral de Reims, no dia 17 de

    julho, em clima de entusiasmo geral. Mesmo depois de tudo isso, as

    interrogaes continuam: que fora se esconde por trs dessas vitrias

    espetaculares?

    A propaganda da Coroa francesa reforou a dimenso religiosa da

    personalidade de Joana. A Donzela foi apresentada como uma profetisa que j

    teria sido anunciada por outros profetas. A resposta veio no mesmo campo da

    religiosidade, o que comeou a traar o destino da pastora guerreira. Um

    tratado em latim, redigido por um acadmico parisiense, sem dvida

    especialista em direito cannico, que foi escrito nas ltimas semanas de 1429,

    nos d o testemunho disso. O objetivo foi responder obra de Jean Gerson

    Sobre uma donzela (De quadam puella, 14 de maio de 1429), onde so

    enumeradas as razes para crer nos propsitos santos de Joana.

    No tratado annimo, as crticas endereadas a Joana so as seguintes:

    vestia-se como homem, tinha atitudes belicistas, falsas profecias, idolatria a

    seu favor e recurso a sortilgios. A cereja do bolo foi apontar como falta de

    respeito s festas religiosas a tentativa frustrada de Joana de entrar em Paris,

    dominada por borguinhes e ingleses, em 8 de setembro de 1429, festa da

    Natividade da Virgem. Tantos motivos levaram esse homem da Igreja a pedir ainterveno da universidade e do bispo de Paris e do Tribunal da Inquisio

    tambm, habilitado a se pronunciar em todos os casos de heresia.

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    EM BUSCA DE CONFISSES

    No surpreende que a universidade, cuja autoridade em matria de

    teologia permanecia incontestada, e a Inquisio, agindo com ela, tenham

    pedido o julgamento de Joana, logo aps sua priso pelos borguinhes em

    Compigne, em 23 de maio de 1430. intil conjecturar que esses dois rgos

    tenham sido forados pelo duque de Bedford, regente ingls na Frana, a

    tomar essa posio. A solicitao de investigao foi iniciativa dessas

    instituies.

    Aps meses de subterfgios e negociaes, a Donzela foi entregue,

    enfim, ao rei da Frana e da Inglaterra. Ela passou a ser sua prisioneira de

    guerra. No seria possvel julg-la, conden-la morte como rebelde, passvel

    de crime de lesa-majestade?

    Claro que sim. Mas o impacto de um processo semelhante seria, sem

    dvida, negativo aos olhos de uma opinio pblica sempre hesitante entre os

    borguinhes e Carlos VII. Decidiu-se ento submeter o pedido das autoridades

    eclesisticas para que fosse feito um processo em matria de f. Por sorte, o

    lugar preciso onde Joana foi presa se situava na diocese de Beauvais, cujo

    bispo, Pierre Cauchon, era tambm um dos pilares da dupla monarquia. Esse

    prelado, dubl de poltico, seria encarregado desse processo da Igreja, que

    ocorreria, por mais precauo, no castelo real de Rouen, que era ocupado

    muitas vezes pelo jovem rei ingls Henrique VI.

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    Pierre Cauchon no era um especialista nesse tipo de processo.

    Ademais, ele sabia quanto o assunto era polmico. O bispo tomaria muitas

    precaues para cumprir a misso que lhe fora designada (desqualificar a

    acusada, neutraliz-la e mesmo elimin-la) e fazer do processo uma obra

    comum dos bispos, abades mitrados, telogos e canonistas, guarnecidos de

    ttulos e diplomas. Era necessrio que a condenao fosse, de certa forma,

    inatacvel no campo do direito, j que, por certo, as acusaes de falta de

    iseno se levantariam.

    Ao lado de Cauchon estavam um inquisidor (Jean Le Matre), um

    promotor eclesistico (Jean dEstivet, chamado o Beneditino) e trs escrives

    pblicos. Certamente, Joana, sozinha, contra esse poderoso tribunal, estava

    longe de ter chances reais de absolvio nesse processo. A isso se somavam

    o rigoroso encarceramento, a falta de um advogado de defesa, testemunhas de

    acusao no identifi cadas, nenhuma investigao de moralidade, e,

    sobretudo, privao de comunho, o que para ela representava um intenso

    sofrimento espiritual. Mas essa era a prtica da Inquisio, que se baseava na

    presuno de culpabilidade. Estar sob veementes acusaes de ser herege

    (como era o seu caso) j era ser considerado culpado por heresia. Uma vez o

    tribunal instalado no castelo do rei, o processo comeou (21 de fevereiro de

    1431).

    A reviravolta aconteceu quando Cauchon e seus assessores

    compreenderam que Joana se recusaria resolutamente a submeter as suas

    vozes e as suas revelaes apreciao da hierarquia da Igreja, sobretudo s

    pessoas hostis e parciais que estavam diante dela. sua maneira, ela osdeclarava incompetentes. Parecia aceitar que seu caso fosse levado ao papa,

    em Roma, ou at mesmo ao conclio geral que deveria se reunir, em breve, em

    Basileia. Reivindicada de maneira explcita, essa insubmisso a fez,

    consequentemente, ser expulsa da Igreja. Ela no passava de um membro

    podre do corpo mstico de Cristo; para a salvao do povo cristo, era

    necessrio arranc-lo. A sua personalidade polmica, obstinada, ajudou

    aqueles inquisidores a transform-la em herege.

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    Essa era a situao em 24 de maio de 1431, dia em que, em praa

    pblica, perto da abadia de Saint-Ouen, extenuada, ela resolveu, enfim, aps o

    desenrolar de uma cena pattica, negar as suas vozes e se submeter Igreja.

    Em seguida a essa aparente abjurao, ela escapou in extremis da fogueira e

    foi reconduzida sua priso para fazer penitncia com po e gua.

    VIGIADA POR SOLDADOS INGLESES

    O caso, na esfera civil, poderia ter terminado por a. Mas, talvez,

    decepcionada por ainda se encontrar presa (a possibilidade de uma priso sob

    o comando da Igreja, menos severa, onde ela seria vigiada por mulheres em

    vez de por soldados ingleses que nutriam dio por ela, a animara a abjurar), ela

    afirmou que seguia ouvindo vozes e, como sinal da sua mudana, tornou a

    vestir roupas de homem, misteriosamente deixadas sua disposio pelos

    carcereiros ingleses.

    Esse acontecimento gerou um segundo processo, mais sumrio:

    cometendo seu erro mais uma vez, ela foi classificada como relapsa. A partir

    da, foi entregue ao brao secular, isto , ao poder real, que a condenou

    fogueira na praa Vieux-March, no dia 30 de maio de 1431. O poderoso

    cardeal Henri Beaufort, bispo de Winchester, tio-av do rei Henrique, assistiu

    ao seu fim. Nos bastidores, ele acompanhou de muito perto o desenrolar do

    processo. Certamente, a dupla monarquia jamais considerou cabvel a

    declarao de inocncia da prisioneira, seguida por eventual liberao. Ela

    causara muitos danos aos ingleses, e o seu potencial de liderana subsistia.

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    Podia-se, por outro lado, questionar a

    posio de Cauchon: ele era apenas um

    executor desprovido de autonomia ou, como

    homem da Igreja, acreditava ser possvel

    que a culpada fosse condenada a uma

    simples pena de priso, com a condio de

    que reconhecesse ter deliberadamente

    enganado o povo, por ter sido enganada

    pelo diabo?

    De incio, o prelado no suspeitou da

    importncia que ela atribuiu s vozes, ou

    seja, ele ignorava a natureza, seno a sua existncia, e no entendia, portanto,

    a tranquila determinao de defender seu rei e assumir a sua misso. Ela podia

    ter negado imediatamente. A resistncia surpreendeu. Aps a abjurao,

    Cauchon se perguntou se ela continuaria a se arrepender, se esse ato no fora

    causado simplesmente pelo medo da fogueira. Com o benefcio da dvida,

    pode-se conjecturar que Cauchon chegou a ficar satisfeito com a abjurao de

    24 de maio.

    UM PERIGO PARA A F E O PODER

    A questo para a dupla monarquia no era apenas conden-la morte.

    Era tambm necessrio convencer a opinio pblica, na Frana e fora da

    Frana, da legitimidade dessa condenao. Cartas foram redigidas, algumas

    em latim, outras em francs, especialmente para o rei do Sacro ImprioRomano-Germnico, Sigismundo de Luxemburgo, o duque da Borgonha, o

    papa e os cardeais. O que essas cartas diziam?

    Aquela mulher, devido grande popularidade, representava um perigo

    para a f, os poderes e a sociedade; ela era cruel e presunosa, consentindo

    que seus seguidores a idolatrassem, por orgulho; estimava-se acima das

    autoridades eclesisticas, mesmo as mais altas, dirigindo-se diretamente aDeus, de quem se julgava enviada.

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    Em um momento, diziam as missivas, arrependeu-se de seus erros, e a

    Igreja, na sua misericrdia, perdoou-a. Infelizmente, essa abjurao era apenas

    um logro, do qual ela voltou atrs. Ento, a Igreja pronunciou sua sentena

    definitiva. verdade que, antes de morrer, na ltima reviravolta do processo,

    ela confessou que as vozes a enganaram e se entregou Igreja, a nica capaz

    de julgar a natureza dessas vozes.

    Nada mostra que essa propaganda tenha atingido o seu objetivo. O que

    pensava Carlos VII, que permaneceu sem reao durante todo o processo?

    Talvez, a seus olhos, Joana no pudesse mais ser controlada e se tornasse

    mais nociva do que til, no caso de uma eventual aproximao com a

    Borgonha; talvez, seus conselheiros eclesisticos tenham-no persuadido de

    que os fracassos sucessivos que ela sofreu desde o assalto frustrado em Paris,

    que ela, alis, tinha previsto, mostravam que Deus no estava mais a seu lado.

    Conhece-se o desenrolar do processo graas redao, em latim, feita

    algumas semanas ou meses aps sua concluso, dos atos (um original mais

    cinco cpias autnticas, das quais trs chegaram at ns). A autoria dessa

    redao de Thomas de Courcelles, um jovem universitrio com um futuro

    promissor, ajudado pelo consciencioso Guillaume Manchon, um dos trs

    escrives. Com esse documento em vrios exemplares (um caso nico), a

    dupla monarquia entendia dispor de um bom dossi, em caso de contestao

    da parte de Carlos VII junto ao papa ou ao conclio de Basileia.

    Certamente, os atos do processo de condenao so o resultado deuma classificao hbil: quase sempre redigidos no estilo indireto, as respostas

    de Joana no so transcritas literalmente contudo, h que se admitir que,

    apesar da forma enviesada, eles refletem tanto o esprito do processo quanto o

    contedo dos dilogos entre Joana e seus juzes. No se pode falar de

    falsidade.

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    UM PROCESSO POLTICO

    Processo religioso ou poltico conduzido por juzes ligados a um partido?

    Tomadas uma por uma, as acusaes contra o tribunal podem parecer

    fundamentadas. A orgulhosa insubmisso de Joana Igreja oficial, isto , aos

    supostos detentores terrenos do poder espiritual, sempre vai pesar contra seus

    acusadores. A Igreja no se pronunciou a respeito das vises nascidas do

    crebro dessa jovem inteligente, porm iletrada, que, talvez, as inventasse.

    necessrio, contudo, concluir que se tratou de um processo poltico: se Joana

    tivesse falado e agido a favor dos ingleses, no seria possvel um processo em

    matria de f. Eles a deixariam agir, ainda que a vigiassem distncia.

    Inversamente, teria sido melhor para ela no ter cado nas mos de um capito

    de Carlos VII, porque a Inquisio tambm existia no reino de Bourges,

    baseando-se nos mesmos princpios dos da Frana inglesa.

    Phi l ippe Contamine, historiador, especialista em Idade Mdia.