o preço da traição
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Bruno acredita que as coisas virão a seu tempo. Argumenta contra as palavras da esposa. O futuro lhes reserva o melhor. O futuro? Nunca chega sem que seja conquistado. Sabe Deus se haverá outra chance.TRANSCRIPT
O preço da traição
Ricardo de Almeida Rocha
O preço da traição
“És nascido de mulher. E eu zombo
de escárnio diante de armas
brandidas por homem nascido de
mulher” (Shakespeare - Macbeth, 5º
ato, cena VII)
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O preço da traição
Uma mulher escultural, belíssima. Os cabelos
escorrem pelas faces em movimentos de pantera. Os
olhos lembram o interior de uma igreja bizantina e,
conforme a luz, mudavam de cor: no verão verdes, no
inverno tendem ao azul. O delicado septo desenha com
o dorso do nariz a Ursa Menor, brilhando como as
estrelas quando ela passa creme facial. O contorno da
boca, delineado com perfeição, compreende lábios
substanciais, intensa e naturalmente vermelhos,
inequivocamente femininos, mesmo quando ela fala
com a energia máscula de que é possuída quando
deseja alguma coisa. Aja, Bruno. Ele está apenas te
usando. Você precisa fazer isso. Ele tem tudo. E quanto
a nós, o que temos? Bruno acredita que as coisas virão
a seu tempo. Argumenta contra as palavras da esposa.
O futuro lhes reserva o melhor. O futuro? Nunca chega
sem que seja conquistado. Sabe Deus se haverá outra
chance.
Graças ao amor que Leslie lhe dedica, Bruno
Molinari livrou-se do peso de uma infância miserável.
Graças a ela, conhecera a felicidade. Contempla-a. Um
voluptuoso sol resplandece. Ele adivinha o cheiro de
seu hálito, e os demais. O tempo não passa para ela.
Parece ter os mesmos quinze anos de quando Bruno a
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viu pela primeira vez. Nunca mais foi o mesmo depois
de passar por ela na rua principal do balneário de
Tundra.
Eram então adolescentes. Ele vivia metido com
uma turma mal vista pela comunidade. Mas Leslie o
compreendia. Filha de um deputado, dava um jeito
para que ele sempre se saísse bem de suas confusões.
Fazendo-se de contrariada, repreendia-o por essas
atividades, mas sutilmente o incentivava a mantê-las.
São a certeza de um dinheiro essencial para que ela
não dependa mais do pai. Sempre apaixonado, não
havia o que não fizesse por ela. Então faça, Bruno. Eu
te conheço. É o que está querendo fazer.
A música chega da rua em acordes lascivos. No
arrabalde, da janela da casa dos Molinari, dá para ver,
na frente de uma loja, junto a caixas de velas e
encartados de incenso, uma imagem de Janaína ao lado
do comércio de material de construção, perto da ponte
velha, entre a colina Efe e o bairro de Ipiranga. O sol
morre numa incisão dourada ao longo do rio, desde a
serra. As águas duplicam a vegetação cerrada das
margens onde dos braços das árvores pendem sinos
amarelos. Longe, o silvo de um navio entrando na
enseada. O vento ondula as águas ali rasas do oceano.
O sol já se pôs, vermelho como a atmosfera da cidade.
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Porque não pode mais agüentar a excitação da
demora, Cláudio Boguski acende um cigarro. Jantara
com Bruno, Leslie e outros amigos, numa grande
confraternização. Recolhera-se ao quarto de hóspedes
para descansar. Foi providenciada para ele uma jovem
bem novinha da zona de prostituição. Agora a fumaça
em seu pulmão atenua ou realça a avidez do
pensamento naquela adolescente a quem chamavam
Margherita. É demais para um homem de sua idade, já
com problemas de coração. O que ela tanto faz nesse
banheiro?
Nada que mereça atenção, queridinho. Ela só
queria ficar bem cheirosa. Está pagando bem, merece.
Dinheiro não é tudo. Venha logo se sente algum
afeto por esse velho. Ele realmente não agüenta mais a
demora.
Mas Margherita demorava. Cláudio se esforçou
então por pensar noutras coisas. Nos novos projetos da
organização da qual era presidente, uma associação
que trocara a filantropia por uma bem ramificada
distribuição de drogas e acompanhantes, uma
sociedade, secreta apenas para o conhecimento oficial
das autoridades.
Com o coração cheio de orgulho, lembrava de seu
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discurso no jantar, com o qual introduzira Bruno
Molinari entre eles. Cláudio o descobrira. Tirara-o da
delinqüência e... Quando enfim retomava o controle,
ouviu a voz de Margherita.
Ela se aproxima e senta em seu colo, beijando e
mordiscando sua orelha. A língua faz uma massagem
lateral no canto da boca do homem que encontra por
dentro do vestidinho um mamilo já endurecido. A outra
mão entrou por baixo, segurando uma coxa.
Subitamente, ela se levanta e começa a remexer os
quadris ao som do ritmo que pela janela entra. Cláudio
contempla, deslumbrado. Margherita pegava a barra
do vestido e lançava para o alto, e suas pernas
apareciam e desapareciam em resplendor de ninfa.
Desabotoou os dois botões do decote e dançou assim
mais uns minutos. A voz de Cláudio se junta ao som
frenético dos trio-elétricos . Venha. Safadinha.
Calma. Ela quer merecer cada centavo e isso
exige preparação. Ele já disse que não se importa com
dinheiro. Quer ver? Tirou três notas de um maço e
lançou na direção dela. Sem deixar de dançar, abaixa-
se e pega as notas. Coloca-as num bolsinho estratégico
entre as flores de algodão. Decerto não há, pensou
Cláudio, entre todas as prostitutas de Tundra, uma
outra mais cruel. Quanto tempo mais vai levar esse
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jogo? Mas não reagia senão com a resposta viril,
porque se agradava dessas coisas.
Ela abre mais o vestido e tira-o por cima, sem
deixar de cuidar do dinheiro ao enrolar a roupa sobre a
cadeira. Rebolando sempre, aproxima-se da cama onde
Cláudio está sentado e senta-se de novo em seu colo.
Os longos cabelos castanhos aos cabelos grisalhos se
misturam. O dedo grosso procura seu lugar. A mocinha
tem um breve estremecimento ao olhar para cima, por
trás dos ombros dele, pela fresta da janela, em direção
ao quarto do casal.
Leslie Molinari fala com o marido, de costas para
ele, observando o movimento no quarto de hóspedes.
Bem, se Bruno está assim tão vacilante, há alguém que
pode agir imediatamente. Espera apenas um sinal. O
rosto inesquecível não demonstra qualquer emoção.
Não! Ele corre até a janela. Não! – agarra a mulher
pelos ombros e a sacode. Mande-a embora! O que
pensa estar fazendo? Leslie perdera todo respeito?
Mande-a embora!
Estava compadecida da fragilidade de seu homem,
um tanto decepcionada. Desculpe, não era a intenção.
Amava-o. Mas precisa agora ser dura. Não gosta de ser
assim. Desculpe, amor. Pensei que pudesse ser difícil
pra você pelo teu envolvimento. E a garota não tem
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nenhum. Mande-a embora, diz ele. Farei o que eu
tenho de fazer.
A mulher segura as mãos de Bruno com carinho,
solta-se, vira-se de novo para Margherita e faz sinal de
negativo. Ele olha para uma e para outra, para Cláudio,
e por fim seus olhos se perdem no vazio. Tudo bem.
Seu amor e seu desejo aos quereres de Leslie se
vinculam. Deixemos pelo menos que ele termine.
Quando Margherita passou pelos seguranças,
Leslie observava. Bem, chegou a hora, disse. Está
iluminada. Cada vez que Bruno se decidia pelas
vontades dela, sentia-se rejuvenescer. Ele já não
lembra como as coisas chegaram a esse ponto. Nem
imagina mais, assim como não pode pensar em desistir.
Não pode culpar a vida sexual perfeita por tudo. Mas
sabe uma coisa, o augúrio que acompanhou todo o
processo. Ninguém pode escapar da própria
consciência. Se nosso coração nos condena, maior é
Deus do que o nosso coração. Quem sabe tenha
acompanhado um devaneio maldoso típico de Leslie e
depois como sempre não conseguiu sair do labirinto
em que ela se sente tão à vontade. Deve ter sido isso.
Agora também não faz mais diferença.
Descem. Leslie põe água para ferver. Bruno
observava pela porta entreaberta a lua no oceano no
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corredor de casas. Pesa em seu espírito o que está por
fazer. Imagina se o pagamento ao cúmplice não poderia
incluir tudo. Se terá remorso e o quanto. Contempla a
própria sombra na parede, com irritação.
Saindo ao pátio, a mulher chama a atenção
imediata dos homens. Haviam há pouco dito algumas
gracinhas para Margherita. O quanto devia ser
deliciosa e coisas tais. Mas agora surge diante dele
uma deusa, na presença da qual a jovenzinha
desaparecia, pulverizada por tanta majestade. Olá
rapazes, diz a deusa. Ela achou que uma xícara de café
viria bem agora. Supõe que estavam um tanto
cansados. Todos bebemos muito e vocês ainda terão de
virar a noite. Era verdade. Eles agradecem. Obrigado,
Leslie. Ela quis saber. E então? Divino, dizem,
desvendando o conjunto transparente de camisão e
pantalona.
Bruno espreita. Olha de minuto em minuto no
relógio até o tempo da bula se cumprir. Estão
dormindo. Sai até o quarto onde Cláudio adormece.
Precisa de pelo menos dez horas de sono. Em casa,
costuma apagar antes que o locutor do telejornal diga
Boa-noite. A porta se abre. Estremeceu. Bruno. Você
me deu um susto, garoto. Acontecera alguma coisa?
Talvez você sinta frio. Ora, garoto, em pleno verão de
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Tundra? Cláudio garantiu que estava bem. Sugeriu
rindo que o pupilo se preocupasse antes com sua linda
esposa ou... Bruno espera que ele continue bem, do
outro lado. A própria barriga do velho sufocou os tiros.
Há terror naquele olhar e fragmentos indiscerníveis
junto ao sangue espirrado. A música continua alta na
rua.
Bruno se detém diante dos homens adormecidos.
Um pouco de água deve ajudar. De fato, começam a
acordar. Então o outro recebe o sinal, atravessa o pátio
e pula o muro. A polícia já está ali. Está feito.
Abraçando-o apaixonadamente, Leslie o beija e então
percebe o sangue. Não poderia ter agido de modo mais
limpo? Ela percebe que começaram uma viagem sem
volta e na verdade não sabe de que serão
transportados para algum lugar glorioso. Ela queria
tanto. Ama-o tanto, quer vê-lo como primeiro dentre os
primeiros, o maior de todos. Observando perplexo o
tremor das próprias mãos, Bruno vê tudo recomeçar...
Castanheiras acompanham toda a orla marítima de
Tundra, praticamente uma continuação da praia de
Dois Anjos. Rente aos recifes de corais, passavam de
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quando em quando os barquinhos com os vultos
inclinados. À direita de quem chega, ergue-se o monte
Santa Lúcia, imponente, assemelhando-se a um vulcão.
Os quarteirões impressionam pelo relevo acidentado,
sobem quase verticalmente. Quem olhe a sudoeste
verá montanhas, verdes algumas, com casinhas nos
cumes; cinzas, outras, de pedra inóspita. O vento
nunca pára de soprar, apenas muda de direção. No
terral, sabe-se que não tardará a chuva. Entretanto, às
vezes, tardavam tanto o terral quanto a chuva. A
viração traz um gosto de mar.
As mulheres de Tundra, que ao longo do ano
ansiosas esperaram a temporada, produzidas, saíam. O
barulho das ondas faz parte do cenário em qualquer
lugar da cidade e, se você dormisse num outro lugar e
durante o sono fosse trazido, pensaria ao acordar,
antes de abri os olhos, que estava chovendo muito.
Calor do fim de janeiro. A primeira fase da
temporada de verão vive seu último final de semana.
Os turistas festejam. Os nativos, em minoria,
enveredam por seus caminhos cotidianos, as
sobrancelhas franzidas sob cenhos agitados. Alguns
gesticulam e falam com os que caminham ao lado,
outros simplesmente falam sozinhos. O verão para os
homens que trabalham num balneário, às vezes de
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terno, enquanto as mulheres seminuas desfilam por
toda parte, o verão faz coisas assim, o calor agita e
não raro transtorna.
A pequenina Tundra tinha alma de metrópole.
Determinadas horas do dia as pessoas se
acotovelavam ao longo da rua principal, sobretudo ao
entardecer, ou indo para as pousadas ou para os
restaurantes, para a Câmara do Comércio, lojas,
prefeitura, ou, como Berebger naquele dia, para o
Grande Hotel. Viera comemorar o êxito de um grande
projeto, agora se preparava. Por ele passam
advogados, políticos, donos de bares, banqueiros,
hienas, macacos, palhaços e tigres. O circo está na
cidade. Um investidor em camisa pólo e calça de
algodão pendurado no celular. Saindo da praia,
musculosos e alegres rapazes de sunguinhas se exibem
com amigas em lycra enfiada. A crente gira a
sombrinha e a católica ginga cheia de compras. Moças
cansadas voltam para casa depois de um dia de
trabalho nos hotéis e outras passam por elas
prevendo-se na mesma situação dali a algumas horas,
as horas da noite. Sim. Lavadeiras, arrumadeiras,
passadeiras e cozinheiras suportam os olhares de
assédio dos turistas que compraram cidade e
habitantes quando alugaram uma casa para o verão.
Quem dera fosse uma homenagem, pensa Isabela. Que
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pena ser apenas devassidão.
O brilho da noite de Tundra tremeluz nos olhos
nervosos de Bruno. Os músicos e cantores dos trios
exercem seus talentos com a mesma naturalidade dos
traficantes e daqueles que nos quiosques marcam
encontros de prostituição infantil. Houve um crime e o
policial tem de tomar providências. Fica para mais
tarde, de madrugada. Combinado.
Estão começando os cultos nos terreiros, casas
simples de pescador. Paira essa estranha energia do
choque entre tradições corrompidas e viscerais – o
Orixá supremo e o Jeová bíblico debatem
acaloradamente e depois se juntam num abraço que se
faz sentir na terra. A luz nascente testemunha a
fantástica mistura de raças, descendentes dos negros
naquela enseada traficados, parentes dos portugueses
que os vendiam, velhos índios, novos alemães, eslavos,
norte-americanos, cafuzos, mulatos, mamelucos,
drogados, devassos, corruptos e beatos.
Embreado na cintilação mística, Bruno de repente
se viu diante da boate do Grande Hotel, envolto na
névoa marinha, rodeado por hostes de vagabundos que
estendiam-lhe a mão, súplices. Com Bruno estava
Zenon, um homem pardo, pacato, de uns 38 anos. Os
pneus trepidam atrás dos dois. O grupo de moças sai
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com estardalhaço. Eles entram. Zenon senta-se ao lado
do balcão e aí fica. Bruno caminha diretamente para a
mesa no canto esquerdo.
A mão dentro do blazer, uma arma. Sente que está
cumprindo o seu dever, o que ele ainda não sabe pode
ser motivo das piores barbáries. Ainda assim, terá sido
esse sentimento de dever uma razão menos indigna de
enlouquecer. Quatro homens sentados sem tempo de
reagir – dois quase o conseguem, mas são fuzilados por
tiros do balcão. A moça que seduzia o homem tomando
uísque, em meio aos próprios gritos na tentativa de
escapar, uma bala perdida a colheu na jugular, aloja-se
na cartilagem. Cai. Verte agora o sangue que anuncia a
entrada da morte.
Um homem sai correndo sem desvios para a casa
de Cláudio Boguski no jardim Marli, defronte ao
parque de diversões. Embarcados de um navio
liberiano apareciam num e noutro lado da cidade.
Leonardo Seul entra e resfolegando interrompe a
reunião. Cláudio fazia cálculos, determinava nomes e
datas. Parou. Meu Deus, Leo; o que houve? A
testemunha se unge da alegria subserviente dos
bajuladores (se arrependerá muito por esse tipo de
coisa mais tarde). Não era mais preciso fazer planos
quanto a Lieyder Berebger. Ele e os que com ele
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estavam acabam de ser mortos por Molinari.
E onde está ele? – Fugindo. Todas as polícias atrás
– Polícia é problema de pobre. Somos a autoridade,
garoto. Problema para Cláudio eram os fiéis a Berebger
que não estavam com ele – Serão fiéis a um cadáver? –
Tudo é possível. Vá, encontre Bruno antes e diga-lhe
que apenas se mantenha vivo. Daremos um jeito nos
seguidores do traidor.
Raiou o dia. Molinari e Zenon escapam pelo
amanhecer. Vão a pé, sem um destino. Pretendiam, de
fato, apenas sobreviver até as coisas esfriarem.
Estavam atentos a qualquer um que se assemelhasse
ao estereótipo. Berebger queria o controle do tráfico,
da prostituição, da Câmara, dos concursos de trovas e
da garota-verão. Molinari não podia permitir. Cláudio
era como um pai para ele. Você conhece esses caras? –
perguntou Zenon. Oito homens recostados em dois
carros com as portas abertas. Seriam homens de
Berebger? Zenon remata que não ficará ali para
descobrir. Tanto um quanto outro sentiam uma certeza
súbita, de que aquela fuga ia ao encontro da dor, e que
a dor haveria de ser essencial para o resto de suas
vidas, que os capacitaria para compreender um ao
outro.
No minuto seguinte escutam o som de motores.
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Enveredaram por ruelas, despistando os
perseguidores. Porém Tundra não é tão grande. O país
inteiro na verdade é pequeno quando se trata de
homens visados pela Sociedade, ainda que por uma
facção dela. Uma porta entreaberta. Entreolham-se e,
silentes, concordam. A deliciosa mestiça lá dentro sorri
para eles. Por aqui, diz ela. O oluô os espera.
Desconcertados, entram no aposento.
Não é de todo uma situação desconhecida. Bruno
lembra-se da tia. Uma mulher estranha. Inspiração de
fantasias, mas muito estranha. Agora na fumaça de
incenso devem surgir imagens, velas, charuto e
cachaça. Ou um velho sentado à mesa e nada além de
conchas de búzios espalhadas. Fique à vontade, meu
filho. Sentou-se. Zenon permanece de pé, vigiando
pela janela. Portanto Bruno pensava estar acostumado
com o rito, mas nunca teve contato direto. Na verdade
não se preocupa tanto assim com o futuro. Não tirava
da cabeça era a mulata que os recebeu. Não tia, não é
que eu não acredite nessas coisas.Mas não posso me
concentrar. A senhora não percebeu que não sou mais
um garoto? A irmã de seu pai era realmente atraente,
não bonita; mas aquela mulatinha... Não imaginava
que devotas podiam ser tão lindas. Seja como for, nada
que se comparasse à sua mulher. O que reserva afinal
o seu destino?
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Grandes coisas. Pelo menos no futuro imediato.
Mas você não suportaria ouvir tudo agora. É assim tão
terrível? Dependerá de como venha a administrar os
acontecimentos. Diga, pede Bruno. Quando estiver
preparado. Quanto? O velho não levará em conta a
ofensa. Na verdade a maioria tornou o dom um
comércio. São mais ofensivos do que sua insinuação. O
velho não quer dinheiro? Trabalhou a vida inteira. Não
precisa daquele dinheiro. Guarda o bolo de notas. E o
que quer? Que Bruno fique quieto. Enfadado com o
médium, faz menção de sair. Desculpe, mas preciso ir.
Você será grande. Han? O mais querido e também o
principal. Conquistou um lugar. Mas não se deixe levar
pela ambição. Era como se Zenon não estivesse ali até
que falou. Vamos. Não corremos mais perigo. E quanto
a você, Zenon, seu destino será trágico. Ah sim? Era
verdade, mas haverá uma compensação. Seu filho
herdará o lugar que você jamais terá.
O filho? O velho realmente nada sabe. Não há
oferenda no mundo que desvie Benévolo de seu
caminho. É um jovem e promissor advogado. Jamais se
meteria naquele tipo de negócio. Não enquanto eu
estiver vivo. É o próprio Zenon quem está dizendo...
Vamos, diz Bruno ao perceber que a profecia abalara o
companheiro. Vamos embora. Estão saindo e trocam
um longo olhar com a jovem mestiça. O babalaô não
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erra, diz ela. E pensa no que profetizou no dia anterior,
que Isabela teria um filho de olhos verdes como os de
Bruno. Escute-o.
Mais do que por amor ou por desejo casou-se
Bruno com Leslie Henning. Precisava de uma
companhia para enfrentar o mundo e cumprir as coisas
que estavam além dele, apesar de serem seu dever.
Porém com o correr do tempo, ela percebeu uma face
dele que não conhecia, ou pensava desconhecer: a
determinação, a vontade férrea. Então, não seria
correto dizer que ele era de todo dependente. A
ascendência de Leslie sobre ele não é absoluta, mas
um conjunto de signos que só funcionam em sentidos
específicos.
Mas estremecia diante dela, como para um bebê a
presença materna, por mais contínua que seja, será
sempre extraordinária; esse bebê terá contudo seu
próprio caminho ao crescer. Essa devoção da parte do
namorado punha a nu uma timidez que a
marginalidade não destruiu mas exacerbou. Era um
homem meigo demais, apaixonado demais, bondoso
demais, precisava dela demais – e, como ela também o
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O preço da traição
amava demais e é preciso harmonizar a vida do casal
num mundo hostil, tomou para si esse dever de ser a
sua força. E para não deixar de amar seu homem, fazia
com que os méritos coubessem sempre a ele. Porque
ela o acendia, mas ele era o fogo.
Quando Bruno disse que iria à boate acabar com
Berebger, Leslie concordou e lhe deu todo apoio, sem o
qual ele possivelmente não teria ido. Não por ter ela
qualquer coisa contra o rival de Cláudio. Pelo
contrário, admirava todos os que se rebelavam, os que
não se submetiam, era a sua filosofia de vida: não
dobrar-se diante de ninguém, não fazer qualquer coisa
apenas porque todas as pessoas faziam. Ademais, não
gostava de Cláudio, jamais gostara. O que fizera um
dia pelo menino Molinari fizera com o intuito
conseguido, a gratidão eterna de alguém cheio de
potencial como Bruno, um jovenzinho rebelde,
inseguro, disposto a fazer qualquer coisa contra a lei
que não o protegera de uma infância infeliz. Agora
Leslie passava momentos de angústia sem saber como
as coisas haviam transcorrido. Esperava o marido,
ansiosa. Onde estaria?
Outro lado da cidade. Os homens enviados por
Cláudio encontraram Bruno e levaram-no ao patrão. No
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O preço da traição
interior de um aposento luxuoso e sombrio, Cláudio
Boguski discursa para um pequeno séqüito. Você foi
achado nas ruas negras da madrugada de Empatia
atrás de droga e trazido para nosso seio. E se mostrou
digno de confiança – falava mirando diretamente o
rapaz, mas logo ampliou o olhar para todos – Nossa
sociedade é algo de que um homem possa se orgulhar
em ser membro. Debatemos o futuro da humanidade;
vigilantes, retiramos de seu convívio os que não
merecem fazer parte dela. Somos uma família que
gosta das coisas boas da vida. Gostaríamos que todos
fizessem parte, mas nem todos estão preparados.
Berebger é uma prova viva do que estou falando.
Um dos homens comentou e todos riram. Uma
prova morta.
Cláudio prossegue: Queremos que floresça a
fraternidade. Pretendemos influenciar as nações no
sentido de nossa filosofia de vida baseada nessa
fraternidade. Temos tutano, somos a medula da
sociedade. Bem-vindo, Bruno Molinari.
No quarto da casa de Bruno, distante cerca de 10
minutos de carro (20 de bicicleta, quando Bruno
trabalhava como mensageiro), Leslie pensa em
Cláudio, na terrível influência que exerce sobre seu
homem. No quanto Bruno o admirava, àquele ponto, de
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matar por ele – matar, o que definitivamente não lhe
era uma coisa fácil. Tinha horror a sangue. Desmaiara
ao presenciar o parto do único filho do casal, que ainda
com poucos dias de vida, morreria. Leslie não gosta de
Cláudio, não gosta nada de Cláudio. Fala de família, de
comunidade futura, livre das mazelas do presente –
como era capaz de tal descaramento? Não são uma
família, mas uma boiada num curral. Estavam unidos
sim, mas não por livre vontade. Por medo. Por medo
uns dos outros e de não saberem viver uns sem os
outros – de encarar uma outra forma de vida que deles
exigisse o que não poderiam: ser apenas o que cada
um era. Estão viciados numa falsa idéia de
comunidade, de sociedade, de família, e desconhecem
quem são em si mesmos. São uma instituição, uma
organização, uma sociedade: não pessoas.
Sem nossa sociedade secreta, o que seríamos?
Quantos fomos ajudados por irmãos quando estávamos
à beira da ruína? Quantos salvos da miséria pela
caridade fraternal? E agora, os que foram salvos, são
eles próprios instrumentos de salvação! Quem está
livre da violência e da desumanidade do mundo?
Poderíamos ser mortos por esses tantos desgarrados
que andam, loucos, por aí. Teria sido assim comigo se
não fosse a iniciativa desse bravo rapaz. Sem que
ninguém mandasse, ele decidiu cortar o mal pela raiz.
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Entretanto deveriam observar que, além dos rebeldes,
ninguém fora ferido no atentado da boate. Bruno tivera
esse cuidado, mas, evitando o olhar de Zenon, não
pode nesse momento deixar de pensar na mulher do
balcão.
Alguém avisa. Senhor, aqui estão alguns dentre os
que chamou. Entram os homens de Berebger. Não se
assuste, meu caro Molinari. Eu os mandei vir aqui.
Queria lhes falar. Não podiam ser tão insanos como
aquele perdido. Escutariam. Porque acima de você
estão os interesses de nossa sociedade, mas abaixo de
mim agora você é o primeiro, herdeiro de meu lugar e
da gestão de nossos negócios. Ouviu-se um burburinho
respeito. Cláudio falara. Bruno sorriu discretamente.
Mais tarde, ao descer no elevador, Bruno estava nas
nuvens. Cláudio falara. Ter o dom da profecia é algo
extraordinário. Desde o princípio simpatizara com
aquela gente. Embora o velho nada fizera além de
verbalizar o inevitável.
Quando Bruno chegou em casa, Leslie dormia
profundamente. Tem um primeiro impulso de acordá-la,
compartilhar a alegria. Ecoam em seus ouvidos as
palavras de incentivo de seus empregados, homens
que Cláudio lhe destinara para segurança pessoal. A
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agitação convulsiona sua alma e ver sua mulher,
nereida branca em pala de renda sem abotoamento,
não era calmante. Leslie dormindo ama a si mesma.
Está de lado, a barriga desvendada numa tonicidade
adolescente. Os braços recolhidos mostram loiras e
brilhantes tenuidades; a pele nos joelhos,
insolitamente clara, hidratada como a terra na chuva.
Dá a volta na cama. À janela, significante visão
posterior. Desvia os olhos para uma réstia de mar ao
longe, suspira forte. Aproxima-se enfim da cama e
senta-se. Leva a mão por dentro, seguindo o sulco até
espalmar largos carinhos. Seus feixes nervosos enviam
uma mensagem confusa, de amor ou animalidade.
Espreguiçando-se, desperta sorrindo. Percebe a
mão, vira-se, percebe o desejo, sinal do controle que
exerce. Rejeita esse pensamento. Assim, não o poderia
amar. E adora amá-lo. É o melhor da vida. As carícias
fazem com que ele se esqueça da sua ascensão.
Beijaram-se longamente. Ardor ilimitado, mãos
licenciosas, busca de posições.
A vida de Bruno seguirá o rumo que Leslie indicou,
da pequena necessidade doméstica aos grandes
projetos para o futuro, tudo passava por um leito largo
de cimento, como costumavam ser as camas em
Tundra, absolutamente resistentes. Ali estão surgindo
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novas idéias, novas formas de buscar a existência
ideal, o sentido das coisas e um sentido de fazer as
coisas, assim ou de outro modo. Novas formas de vida
através da mágica de estarem juntos.
Depois do amor, Bruno conta a respeito do velho.
Oluô? O que é isso? Um tipo de médium, de babalorixá.
Não sei se o nome é esse, mas o que importa é que
acertou em cheio. Sim. Impressionante como. Vivera ali
a vida inteira naquela cidade de macumbeiros, sem
nunca se sensibilizar com essas coisas. E agora, porque
a predição foi tão agradável, resolveu acreditar...
Leslie está enganada. Bruno argumenta que nem
acreditara na hora, mas o velho acertou, é um fato.
Quando Cláudio morrer, eu serei o primeiro.
Vaso ruim não quebra fácil, meu menino. Bruno
não entende a implicância de Leslie com relação a
Cláudio. Ele é um homem bom. É como um... pai para
você. Isso. Ela sabe. Não, não sei. Exceto que você
quer se convencer disso. Ele me ama como a um filho.
A gente ama embora as pessoas a quem amamos
tenham falhas. Cláudio ama Bruno porque, quero dizer,
porque você fez isso, porque fez aquilo. Nunca embora
tenha feito alguma coisa. Como por exemplo o próprio
Berebger. Foi fiel durante tanto tempo, Errou uma vez
e se tornou anátema. E quem arriscou a pele para
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eliminá-lo? O que é estar acima dos demais estando
abaixo de Cláudio? Você permanece serviçal, só que
agora com a inveja de todos. Só há uma maneira do
que ele disse ter alguma utilidade prática.
Bruno têm o ar de um menino a quem roubaram
seu doce. E qual é? Sendo o mais alto abaixo dele
quando ele não existir mais. Essa hora vai chegar. Já
chegou, se você quiser. Leslie se põe de pé num salto,
levada por uma sensação estonteante, abrasadora.
Teriam enfim as coisas que sonharam ao se casar.
Lembra?
A fronte de Bruno está banhada. Sem captar
exatamente do que se trata, procura ponderar sobre o
que a mulher diz, pela análise de sua frieza ao falar e o
envolvimento das suas palavras naquela aura plena de
concupiscência. Quando se casaram, nada tinham além
do amor. E os planos... Viagens à Europa, uma casa
isolada nas montanhas e uma mansão na praia, cheia
de mantimentos e amigos o tempo todo, visitas que o
tivessem na mais alta conta social. As recordações se
encadeavam. Maquinalmente aspira as duas carreiras
que acabara de dispor no espelhinho, um hábito que
Leslie abominava; mas dessa vez ela não reclamou.
Fez-lhe um carinho longo enfiando os dedos a partir da
nuca, levando-o a um arrepio. Filha do futuro que
Ricardo de Almeida Rocha 28
O preço da traição
subitamente descortinara, ela anda com as palmas das
mãos e os joelhos sobre a cama. Beija-lhe o peito nu,
beija-lhe a barriga, o amor por Leslie preenche toda
minha existência.
Enquanto ela usa os lábios e a língua para lhe
transmitir mensagens celestiais, Bruno pensa que não
resistiria se a perdesse, se perdesse um corpo tão
forte e um espírito tão surpreendente. Pressentia com
temor uma possível separação. A divergência quanto a
Cláudio será capaz de causa-la? Vibrando, deixa-se
conduzir a um êxtase cheio de dilemas.
Bateram à porta.
Bruno enfia a cueca e vai abrir, Leslie vai aonde
sua nudez não possa ser vista por quem está batendo;
basta chegar à janela. Olha e vê Margherita passando
na rua, toda faceira como sempre. Invejou-a. Teve pena
dela. Tão menina assim, pelas ruas, em camas
nojentas... Leslie chegara em Tundra aos dezesseis
anos. Queria se livrar da presença do pai moralista que
em casa se transformava, sobretudo dentro do quarto
da menina. Talvez a vida correta que pregava fosse tão
enfadonha que ele precisava de um estímulo a mais
para excitar-se. Mesmo depois de vários namorados,
Ricardo de Almeida Rocha 29
O preço da traição
Leslie jamais ouvira de nenhum tantas obscenidades
como quando das visitas do pai durante as noites. Pior
quando começou a menstruar. Ela lhe implora uma
trégua, mas ele não a poupa, exige mudanças.
Extrapolou, pensara ela. Tomou coragem e contou à
mãe. Se ela não acreditou ou sempre soube, o fato é
que Leslie, se não tinha prazer em ficar, foi convidada a
sair de casa, porque pessoas não se tornam boas por
serem pais, assim como a idade não traz
necessariamente sabedoria.
Sozinha, veio de Pai-Bó, numa carona que a iniciou
na prostituição. Tentaria mudar de vida quando
chegasse em Cascatinha. Lá o mercado de trabalho era
bom. Conheceu um rapaz em Tundra, um médico, que
em poucos dias de namoro lhe propôs o casamento.
Estando ela em muitas dúvidas, pois não o amava
embora não desgostasse de todo de sua companhia,
aceitou o convite para lhe dar uma resposta durante
um jantar na casa dele. Com que então minha princesa
ainda não decidiu? Por favor, não se ofenda, mas acho
que é melhor a gente continuar amigos. Você está me
dizendo que todos esses dias me fez de bobo? Claro
que não. Gosto muito de você, só que
não...Interrompida. Ele avança com fúria, rasga-lhe as
roupas entre bofetadas. Violenta-a cirurgicamente.
Ainda quase tão fora de si como nos terríveis
Ricardo de Almeida Rocha 30
O preço da traição
momentos sob o corpo do médico, Leslie o espera
numa tarde depois do trabalho. O que é, está querendo
mais, doçura? Como resposta, a faca na mão de Leslie
desceu-lhe no meio dos olhos. Quando ele levou as
mãos ao rosto, a faca movimentava-se de baixo para
cima entre as suas pernas.
Fugia pelas ruas de Tundra em pleno carnaval,
quando viu Bruno. Graças às amizades dele na cidade,
cada vez mais influentes, seu crime jamais seria
julgado. Quando se sentia deprimida, pensava: aquele
era o corpo de seu pai e chegava quase a passar do
horror à felicidade. Ouviu? Leslie! Não, querido... O
que foi? Cláudio pedira que ela fizesse um jantar bem
gostoso, ele viria. Dará a honra de jantar aqui em casa.
Leslie diz que precisavam comprar alguns fogos. Ah,
querida... não devia ser assim sarcástica. Você é tão
ingênuo... Não percebe que ele o humilha? Apenas usa
você. E não quero viver ao lado de um homem que se
deixa usar assim. Molinari estremeceu.
Ela disse que até faria o jantar. Desde que lhe
servissem a morte de sobremesa. Estava louca. Se
você fizer isso, me submeto com você a essa
humilhação – continua Leslie como se não tivesse
ouvido o comentário –, que um outro homem mande
sua mulher cozinhar para ele. Não vê? Só faltou pedir
Ricardo de Almeida Rocha 31
O preço da traição
um prato especial. Ele pediu, disse Bruno cabisbaixo.
Não acredito! – com gestos largos, Leslie levou as mãos
à cabeça. O que ele quer? Chuleta de boi na grelha.
Com ou sem pimenta? Com pimenta e champignon.
Envergonhado e constrangido, ele a viu dar uma
gostosa risada.
Ao chegar precedido por seus homens, Cláudio se
movimentava pelo jardim. Não chegava a ser uma
figura que impusesse respeito, não era autoritário.
Tocava as pessoas pelos flancos, como a cavalos, que
logo se punham bem domados. Suas ordens eram a
bem dizer carinhosas. É isso que Leslie mais teme.
Agora ele toca nas pétalas das calêndulas, abelha
polinizando o desejo que se sentia por meio das flores
que ela havia plantado, aspirando-a, ouvindo a água do
chuveiro e imaginando-a nua. Diante de Bruno, agora
materializa-se também a presença dela, com os
cabelos efetivamente molhados. Ao vê-la, pensamentos
lascivos levam Cláudio a uma histeria interior mal
disfarçada. Deixa cair um olhar sutil ao decote,
retornando pudicamente aos olhos dela, lagos de pura
obscenidade, obras de arte, como podia ser que a dona
deles escolhesse alguém tão insignificante como Bruno
para esposo? Ela poderia ter príncipes, reis... Ela o
Ricardo de Almeida Rocha 32
O preço da traição
poderia ter, sim, a ele, Cláudio.
Leslie fora feliz naquela casa, lá conhecera a paz;
eis que agora alguma coisa a incomoda, e tem decerto
a ver com Cláudio, com a maneira sem cerimônia como
ali se comporta. Uma casa precisa ter a alma de seus
moradores e não conhece a alma daquele Bruno
subserviente, ela, que o sabia de cor, todas as
peculiaridades de seu caráter, todo acento de sua
personalidade, firme como a casa, dependente apenas
da casa e do que havia no entorno, os cavalos
pastando ao redor, o café e a cereja, as coisas que ela
sabia o marido atentava com quase devoção, as aves
praianas e os morcegos das frutas, a fala dos coloridos
pássaros repetidores, choramingando por causa de um
tempo que parecia se perder desde que conheceram a
segurança da proteção da Sociedade.
À mesa fumega o rosbife, retinem os talheres.
Cláudio já lhe dissera que estava linda? Sorrindo, com
vontade de derramar o vinho não no copo mas naquela
careca nojenta, responde que sim, que ele já lhe dera a
honra de ouvir aquilo. A carne está deliciosa. Cláudio
lambe os beiços. Bem temperada, tenra, perfeita, diz,
olhando de soslaio o colo de Leslie, que não se pinta
mas gosta de decotes. Os outros homens igualmente
se fartavam. Macarrão importado acompanha o prato
Ricardo de Almeida Rocha 33
O preço da traição
principal, salpicado de milho e atum. A carne de fato
muito tenra Leslie se esmerara em bate-la, levando
para cozinhar o tempo certo, tudo cronometrado, para
que todos ficassem satisfeitos. A aparência dos pratos
fez água na boca de todos, Fora um dia difícil. Ninguém
relaxara. Agora, com a adesão dos homens de
Berebger conseguida, estão todos exaustos e famintos.
A adesão dos homens de Berebger... os mesmos
que pela manhã seguiam Bruno e Zenon pelas ruas
batidas de Tundra. Ali estão dispostos a seguir as
ordens de Molinari quando por alguma razão Cláudio
não estivesse para dá-las. O corpo de Berebger nem
esfriara estirado no instituto médico legal em Empatia.
Bruno entende aquilo como o maior dos elogios e se
põe realizado, Leslie nem chegou a ficar por demais
chateada com isso como se fosse, digamos, uma
ausência que alimentaria de saudade o seu amor
quando o amado voltasse a si. Os homens mastigam a
carne quente e macia como se não houvesse amanhã,
como se todo destino estivesse ligado à voracidade
com que se lançavam ao prato.
Ricardo de Almeida Rocha 34
O preço da traição
Quando limpavam os lábios com guardanapos que
apenas mulheres mais atentas perceberiam
encardidos, Cláudio falou. Deixem-me arrazoar um
pouco mais sobre esse rapaz cuja existência nos deixa
um pouco mais tranqüilos. Temos alguém com tanto
zelo assim pelo nosso bem e pelo bom andamento de
nossos assuntos, temos Bruno Molinari. Mais tarde,
todo já se haviam retirado, mas Cláudio deve ficar. Foi
veementemente convidado, embora nem fosse
necessária tanta insistência de Leslie para que
passasse a noite na casa de seus anfitriões. Entendeu
o recado. A cadela...
Bruno diz a Zenon que, sabe, estava pensando
Ricardo de Almeida Rocha 35
O preço da traição
naquela ulorixá. É corrigido: Ialorixá, senhor vice-
presidente. Tudo bem. Mas antes de tudo eram amigos.
Deixe de bobagem. Falam, é claro, da filhinha-de-
santo, da pretinha gostosa? Ela dissera que Bruno
levasse em conta o que o velho profetizou. Mas disse
também que se ele próprio não cuidasse de si,
nenhuma adivinhação viria em seu socorro. A cidade
dorme no silêncio cansado de outra noite bêbada.
As folhas das árvores farfalham à brisa da manhã.
Bruno Molinari, o que ele pensa ser e querer e os meios
que achava lícito para alcançar as coisas pretendidas e
aquele outro ser dentro dele, que Leslie deixava claro
amar tanto, entram enfim num anunciado impasse.
Sente-se doente daqueles males cuja convalescença
será quase sabática, quebrará rotinas e nas revelações
pertinentes a essa quebra sábias decisões serão
tomadas. Não sabe dizer se está melhor ou pior,
decerto diferente, entorpecido, atilado, tem um corpo
quase paralelo às vicissitudes de seu ser, como se
sonhasse, como se estivesse mais desperto do que
nunca, com os olhos mais abertos ou mais fechados
que jamais.
Os que dançaram, e a madrugada atravessaram,
estiram agora seus corpos em qualquer lugar da praia,
fornicam na encosta da Colina Efe ou se arrastam em
Ricardo de Almeida Rocha 36
O preço da traição
busca de um quiosque na sobrenatural busca de um
sentido para tudo, sem rumo exceto o próximo trago
de crack ou a quimera das macumbas, com olheiras
fundas que apontam para o vazio das sete-dias
coruscando na treva geral. Às 7:30, Carlo Guisem
estava batendo à porta de Bruno.
É um homem grisalho de 55 anos, ainda bastante
forte para a sua idade. Sua convicção é una, não hesita
jamais entre duas situações. Não vê nada além do que
vê. Mantinha-se havia 10 anos fiel a Cláudio Boguski,
ainda que certamente teria, caso o quisesse, apoio em
uma disputa pelo poder máximo da sociedade secreta.
Uma nuvem trouxe preocupação e angústia para o que
sonhava acerca do futuro. Surgiu daquele limbo
desagradável uma tepidez tediosa que tinha poder de
deslocar a alma dentro dele. Tinha uma mulher e uma
filha que adorava. Participara do jantar do dia anterior
mas não partilhava do entusiasmo do velho amigo por
aquele jovem Molinari, um marginalzinho de rua. Bom
dia. Cláudio está esperando pelo senhor.
Bom dia. Que entrem, por favor. Leslie iria falar
com Bruno para chama-lo. Lentamente confuso, o
homem habita uma realidade intermediária que o
assusta. De onde vem, de que parte dos
acontecimentos ou talvez de que parte dele mesmo?
Ricardo de Almeida Rocha 37
O preço da traição
Quando ela se afasta, Carlo desaprova silenciosamente
o olhar que em seus seguranças tinha Leslie por
objeto. A filha, Hilma, a invejava. Ela acredita nos
astros e nos presságios, amadurecida por um
imaginário em que a ternura maior não é manifesta e
os melhores dons da bondade se mostram na
penumbra. Não vou não pai, prefiro ficar em casa. Na
verdade, não sei se me interesso por alguma dessas
coisas da Sociedade. “Vou falar com Bruno para...” –
arremedou o pai.
Bruno. Aparece e diz que o sigam até o quarto de
hóspedes. À porta, eis um dos guarda-costas estirado
no chão. Parece que se matou, pensa Bruno. O
desespero de acordar e ver o amado patrão
assassinado. Mas logo adiante escutam os soluços
incontrolados. Era o outro homem da segurança
pessoal de Cláudio. O quê? Quem? Como? Não há o
que dizer com clareza num tal momento incerto e
angustiante! Poderia dizer que adormeceu e quando
acordou um homem fugia pulando o muro, podia
observar o quão desfigurado estava o rosto de Cláudio
nesta terra ignota e fria. Podia ainda dizer que ao
despertar viu seu parceiro dormindo, mesmo com todo
esse imaginado movimento. Mas não quer falar. Não
quer ouvir. Não quer acreditar que seu benfeitor não
existe mais. Nem cogitou que as suspeitas cairiam
Ricardo de Almeida Rocha 38
O preço da traição
sobre ele. Não cogitou sobre nada. É um homem
desgraçadamente silencioso.
Mas como dormiram ambos? O que era uma falha
evidente no plano de Leslie, simplesmente passou
despercebido. Como dissera a eles quando foi servir o
café, haviam bebido, estavam cansados, e no fundo
ninguém poderia imaginar que a casa de Bruno seria
invadida com esse intuito. Bruno, agora um ser escuro,
que mal consegue enxergar as razões que o levaram
àquilo, não tem consciência do que aconteceu, é
sincero quando grita e chora e amaldiçoa. Ah, como
suportará esse traidor? Maldito! Matara tantos para
preservar o padrinho, e de que adiantou?
Leslie a um canto analisa a atuação do marido.
Não chega a se entusiasmar. Dirige-se a ele e o abraça
com força. Calma, querido. Calma, repete, soletrando
ao ouvido de Bruno, energicamente, entredentes.
Apesar de suas hesitações, descontrolar-se assim não
lhe era próprio. A própria Leslie quase vê seu próprio
ânimo abalado. Não se culpe assim.
Para o inferno! Que todos estivessem a caminho
do inferno! Ajoelhou-se diante de Beneti, o segurança
silencioso, agarrou-o pelo colarinho, bateu com a
cabeça dele no chão. Assassino! Ele fala a verdade.
Seja quem for que tenha matado meu padrinho, pensa
Ricardo de Almeida Rocha 39
O preço da traição
Beneti, ela fala a verdade. A culpa é de meu sono. Sou
eu o culpado. Assassino miserável! Zenon lança para
Leslie um olhar indefinível. Vai até o amigo e o agarra
contra si. As lágrimas de Bruno continuam, vertidas
sem resquício de hipocrisia.
Durante o funeral, a figura imponente de Leslie
chama sobre si todas as atenções. A seu lado, Bruno
Molinari é contemplado com pêsames. Todos os que o
faziam, antes de sair, desviam olhos mais ou menos
sutis para a mulher. O que devo fazer? pergunta-se
Carlo. É como se Bruno fosse realmente o filho.
Observa que até o pessoal de Cascatinha, todos
estavam com ele. Prevê que será o próximo. A
sociedade teria um final melancólico.
Não. A mulher dele, Zelhia, diz que não. Impedi-lo-
iam. Mas não tinham como provar que Bruno é o
assassino. Ela sabe que sim, que é ele, que não podem
provar. E não é o momento de saber coisas assim. Carlo
sugere que se afastem. Apenas para dar um tempo,
para que o próprio Bruno em sua ambição desmedida
acabe por decair aos olhos daqueles que agora o têm
como deus. Aconteceria sem dúvida. Agora sente-se,
Zelhia, você precisa descansar. Percebe o quanto
aquilo está afetando a mulher e na mesma proporção
Ricardo de Almeida Rocha 40
O preço da traição
de seu amor por ela odeia Bruno. Por outro lado, caso
se afastem, despertarão suspeitas. Mas ele insiste e
diz Vamos. Logo esse bastardinho terá corda suficiente
para se enforcar.
Sentada na capela, pairando como uma divindade
sobre os mortos, Leslie passeia o olhar pelos
presentes. Faz observações com que mais tarde
oriente Bruno. Ele está preocupado com Zenon, que
trouxera seu filho à cerimônia e o apresentava a todos
com orgulho. Esse é Benévolo, meu filho, recém-
formado, um advogado brilhante para eventuais
necessidades que você possa ter, dizia, sabedor de que
ali todos eram clientes em potencial, capazes de pagar
uma fortuna pela manutenção de suas aparências, e
volta e meia precisavam pagar uma fortuna para que
um advogado lhes mantivesse as aparências de
honestidade e respeito.
À noite, com a esposa, Bruno comenta com mal
contida ira. Você viu como Zenon exibia seu filho a
todos? Conquanto esteja tensa e aborrecida, ela sente
que antes de qualquer coisa precisava acalmar Bruno.
À beira da cama, tira-lhe a calça com dedos ágeis,
ajoelhada prepara-o e senta-se em seu colo. Mesmo
alheio ele fica imediatamente preparado. Ela mexe-se,
perfeita. Imagina-o observando-a por trás. Ele tem um
Ricardo de Almeida Rocha 41
O preço da traição
filho, diz entre os próprios gemidos; você, uma mulher.
Agora deitado, as pernas dobradas permitindo que os
pés cheguem ao chão, ele não sente o que sente e não
ouve a mulher. Nós é que devíamos ter um filho para
ser louvado no meio de todos, monologa.
Leslie não para, abre mais, depois fecha as
pernas, sempre mexendo-se, girando em torno do
desejo dele, saindo e voltando, e saindo de novo. Aos
poucos ele se deixa envolver; senta-se e ela se inclina
e recua, apóia-se no beiral da cama, ajoelham-se quase
ao mesmo tempo, ela ainda apoiada. Agora a situação
é outra, ela sente o calor da barriga dele, o que irá
permanecer por esses próximos dez minutos, com os
devidos intervalos de afastamento, até que sentiram
as contrações, as dela sugando-lhe a virilidade.
Esgotado, suspira com força ao encontrarem-se queixo
e nuca. Relaxou de uma só vez os músculos retesados,
soltando-se de costas na cama. Com a voz da mulher
em seu ouvido, deixa-se ninar e adormece.
Chegou à janela do quarto e vê um cachorro
caminhando ao longo das árvores que marginam a rua.
Carrega um filhote de um pelo muito liso e brilhante.
Ao perceber a presença à janela, começa a rosnar.
Bruno apanha a arma e dispara sobre o cão que cai no
Ricardo de Almeida Rocha 42
O preço da traição
macadame, enquanto seu filhote foge ganindo. Na rua
alguém apareceu e apanhou o animalzinho no colo,
olhando recriminadoramente para o homem à janela.
Súbito, ele atira bem no meio do rosto de Bruno, que
sente a queimação da bala entrando entre a boca e o
nariz.
Sobressaltado, ele acorda e acorda a esposa,
contando-lhe o sonho em meio à respiração
entrecortada. Diz que vai agora mesmo no terreiro
saber o que isso quer dizer. Não será preciso, querido.
Está claro. O cachorro é o melhor amigo do homem,
como Zenon é seu melhor amigo, mas será realmente?
Trouxe seu filho para debaixo da sua janela, para o
nosso convívio, exibindo-o. Você não gostou, é claro,
naturalmente que não, pensa Bruno, o justo seria um
filho nosso beneficiado ao ser alçado ao lugar de
Cláudio. Ele sabe disso e se colocou numa posição de
ameaça. Lembra do que ele disse, quando sua
liderança era apenas uma profecia? Bruno lembra, é
claro. Quando disse sobre a moça estar certa, ele disse
que eu me cuidasse. Depois ninguém mais falou a
respeito do sonho. E ambos desdenharam da parte
final em que o filhote é acolhido por alguém que
dispara contra Bruno.
Ela disse. É claro que você não vai se atemorizar.
Ricardo de Almeida Rocha 43
O preço da traição
Eu jamais me deixo atemorizar, respondeu ele. Eu sei,
Bruno. E, acrescentou, sabia também que essa pessoa
é quem deveria se cuidar, pois você não irá permitir
que pensem em intimida-lo assim depois de usar sua
influencia para fins pessoais. Bruno disse: Ninguém me
intimida ou usa. Ela disse que bem o sabia. E quando
você irá cuidar do caso, querido?
Do que ela está falando? O que está acontecendo
comigo? Alguma coisa aconteceu, não há mais como
retornar no tempo. É a encruzilhada. O que concordei
em começar, quero realmente terminar? Cuidar do
caso? Com a morte de meu padrinho percebi o peso de
todas as mortes que carrego, como se esse assassínio
em particular a todos representasse. Claro. Agora
mesmo. Cuidar do caso. Nestor! Vá ao sítio de Zenon
dar-lhe um recado.
Para chegar, o mensageiro tem de tomar dois
ônibus e pegar carona numa carroça, cerca de hora e
meia. Zenon prefere assim, morar bem longe do
centro. Cultiva em pequena escala hortaliças e mantém
uma baia de porcos, que atingem 6 meses de vida e
entram na época da reprodução, coincidindo com a
colheita, quando sob os olhos de Zenon os empregados
arrancam as brotações que curam à sombra. Ali, na
terra, em meio aos animais, caminhando entre as
Ricardo de Almeida Rocha 44
O preço da traição
malváceas, Zenon se esquecia da vida, dos negócios
ilícitos, e da saudade da mulher, precocemente
falecida. Se, ademais, seu filho, que detestava a roça e
a vida longe da cidade, concedia em ficar um tempo
com ele, como então, e passava as férias com o pai,
Zenon Deckhorn sentia-se um homem plenamente feliz.
Levando a mensagem na ponta da língua, o garoto
atravessa o Ixixe. Um dos empregados, apesar de
Zenon dizer que estava tudo bem, que o garoto era
conhecido, não tira os olhos do menino até que partiu.
O filho pisa no pasto. Pergunta ao pai o que era.
Molinari quer que a gente vá lá almoçar, respondeu
Zenon preparando o piquete para as porcas passarem
o período de aleitamento. Quando o filho sentia assim,
esse calor, dava importância; costumava valer o
estranhamento como de resto para isso servem as
intuições. Mas permanece ainda uns momentos
amassando distraidamente um tufo de forrageira. É,
Bruno quer conhece-lo melhor. Isso enche Zenon de
orgulho. Ficou impressionado. Mas como poderia, se
não trocaram duas palavras? O problema com o filho
eram as cismas, pensa o pai. Então lembra de como
não conseguia deixar de olhar para Leslie e imaginou
que eram outras as razões de Bruno. Confessou-o ao
pai. Ora, não, não. Imagina se ele fosse entrar em
conflito com todos os que olham para ela. Por outro
Ricardo de Almeida Rocha 45
O preço da traição
lado, que o rapaz nem pensasse bobagens. Aí sim
poderiam ter sérios problemas. O amor desse homem
pela esposa é algo quase doentio. E agora ele é o
principal, tem poder de vida e morte. Mas vai ser muito
bom se você cair nas graças dela, ela tem total domínio
sobre Bruno. Patrão! Patrão! A gaiola de gestação está
pronta. O senhor não quer ver? Estou indo!
Pai e filho mal pregaram o olho naquela noite, mas
todos os empregados do sítio dormiram felizes. Zenon
se lembrou de quando pedia carona quando Carlo
parou para ele. Na casa de Cláudio, outro jovenzinho
come sofregamente na cozinha. Já o filho sonhava com
gabinetes ministeriais e púlpitos. Não deveria ser
difícil viver da satisfação dos próprios interesses,
desde que apenas tivesse o cuidado de dar outro nome
a ladrões e assassinos. Quando amanheceu, Zenon
acordou o filho. Depressa, depressa. Os pássaros
estavam cantando e era a canção do sucesso de
Benévolo. Vamos!
Partiram pois pela manhã, na direção do meio-dia
em Tundra, do almoço na casa de Bruno Molinari.
Benévolo Deckhorn havia acabado de dizer a seu
pai. Ocorrera uma mudança tão intensa nas feições de
Ricardo de Almeida Rocha 46
O preço da traição
Bruno desde que se lembrava dele, que mal o
reconhecera. É natural. Zenon dispusera-se a tudo
relevar para não criar um clima impropício entre os
membros da sociedade que haviam aceitado a
liderança de Molinari. Quando se viram da outra vez,
Benévolo era um menino, hoje um homem. Parecera
mais que isso. O filho falou por falar. Era-lhe
conveniente acreditar no que o pai queria acreditar.
A manhã torna-se escura. O ribombar dos trovões
secos parecem ameaças de Deus. A convulsão dos
elementos se dá em trevas densas e terríveis. Pesadas
nuvens pairam no céu. Os torsos de pai e filho
instintivamente se enrijecem. O carro parece atolar no
rastro fundo. Subitamente o cheiro de pólvora se
misturou ao cheiro da chuva. Tiros de todos os lados. A
luz dos relâmpagos reflete nas metralhadoras. Zenon
tomba, jorrando sangue. Benévolo grita pelo pai que,
supliciado, pede ao filho que fuja. Zunidos sobre suas
cabeças. Chorando, ferido no braço e na coxa, saindo
do carro e se lançando no rio, o rapaz obedeceu.
Maldito Molinari. Os ventos que agora uivam sobre
meu cadáver levarão a voz de minha vingança... Mas
antes que chegasse a ser um cadáver, lembrou-se da
dor e soube que o atentado não fora obra de seu
amigo.
Ricardo de Almeida Rocha 47
O preço da traição
Nos tilintares e na música, sobrelevando-se em
fendas e ombros num soustache, Leslie em seu solene
caminhar move-se deslumbrando os presentes. A casa
dos Molinari destacava-se, iluminada e barulhenta,
mesmo num lugar como Tundra na temporada, sempre
resplendente e ruidoso. Na casa ao lado, em outra
festa, era comemorada uma arrecadação de 7 milhões.
No outro vizinho, apenas quem prestasse muita
atenção ouviria uma voz em murmúrio no que parece
uma oração. No Bosque de Marli, roda a roda gigante.
Sombras das serras sobre o rio correndo para o sul, a
lua polia as pedras da ilha. Volantinas típicas
prenunciam o carnaval. Latas de cerveja e cacos de
garrafas atapetam os caminhos da vila que seria a
sensação daquele verão de 1996. Os comerciantes
exultam, a noite desce e a cidadezinha fervilha. O mar
busca o lixo dos turistas quando amanhece e os
quiosques fechados anunciam no cheiro de urina em
suas laterais o sucesso da temporada que se abre. O
sudeste sopra soberbo em meio a uma floresta de
antenas parabólicas na pacatíssima vila de pescadores.
A silhueta de Leslie toma conta dos convivas quando
de súbito todos se voltaram para Bruno. Está cansado
de festas, diz ele com voz arrastada. Leslie abraça-o,
afasta-o para um canto, pergunta o que está havendo.
Ricardo de Almeida Rocha 48
O preço da traição
Outras pessoas se aproximaram. Ela diz que não era
nada. Ele está trabalhando demais. Quer fazer por
merecer o lugar de Cláudio à frente da Sociedade e às
vezes exagera. Está apenas cansado. Quer verificar
pessoalmente os mínimos detalhes de tudo. Está
apenas cansado. Está é bêbado, murmura alguém.
Carlo aproxima-se, paternal. Você está exagerando no
álcool e no pó... A tradição determina que não se
envolvam diretamente com essas pragas.
No quarto, Leslie ajuda Bruno a deitar-se e ia tirar
a roupa dele quando se levantou novamente. Pede que
se deite, ia fazer uma massagem, logo se sentiria
melhor. Ele respondeu que se deite ela. Vai dar uma
volta. Sai e bate a porta atrás de si.
Evita a sala onde estão os convidados. Chega
molhado no terreiro. Regressam seus olhos ao primeiro
dia em que ali esteve, à devota mestiça. Cheira a
ervas. O velho profetizara uma filha para ela. Mas era
tão jovem... Dezesseis? Talvez nem isso. Leslie tinha
quinze quando a conheceu. Sem dinheiro para filtros
solares, estava queimadíssima. Passando por Isabela,
Bruno entrou no aposento bruxuleante. O que queria?
Por favor, o senhor tem mais alguma coisa para mim?
Ricardo de Almeida Rocha 49
O preço da traição
O oluô se enternece, o que está completamente
fora de seu papel. Suas ambições são desmedidas, diz
o velho, mas seu coração é sensível. Não é esperto,
antes tende à sabedoria dos planos a longo prazo. Tudo
isso não é boa combinação. O coração sai ferido e a
ambição frustrada. Quem escutasse atentamente
poderia escutar ao longe o bramido do mar sob o
lânguido sol de fevereiro. As águas subiam lentamente
cobrindo os recifes em frente ao pé de Tamarindo.
Pequenos caranguejos agitados iam de um lado para o
outro nas cavidades de musgo, o cheiro nauseante será
abafado pela maré. Os atabaques naquela noite
estavam calados mas se ouvia o ritmo de palmas. Um
riso triste marcou o rosto de Bruno, Isabela retribuiu-
lhe. O sorriso dela era alvíssimo, muito lindo. O sinal
que tinha na virilha impressionou-o quando da
delicadeza que o gozo em sua língua derramava.
Chove ainda. Chega em casa. Abre a porta e divisa
a figura branca na escuridão do fim do corredor.
Esperam você na sala, diz ela. Vá, querido, parece que
os empregados têm uma notícia importante. Ele teria
perguntado se era a respeito de Zenon, da razão de
não ter vindo à festa. Mas ela parecia muito cansada.
Tudo bem, diz, volte para cama, amor. Parece doente.
Ricardo de Almeida Rocha 50
O preço da traição
Na sala, Leonardo disse que não se preocupasse
mais com Carlo. O quê? Quando Cláudio estava vivo,
Bruno velava por ele. Agora, nós, os homens que
herdara de Cláudio, velamos por você. Do que estavam
falando? Bem, haviam cuidado de Zenon, disseram.
Não, não era assim que Bruno resolvia seus problemas.
Alguém dentre eles sabia como resolveu quanto ao
próprio Cláudio. O homem que pagou para ser visto
pulando o muro teria dito algo à polícia antes de ser
morto? Batendo no peito com vigor e desespero Bruno
mandou que jamais agissem dessa maneira. O que
afinal haviam feito?
Naquele mesmo momento, a empregada bate à
porta do casal. Chama. Dr. Carlo! O seu leite! Carlo diz
Obrigado, abrindo a porta. Estou enjoado. Virando-se
para Zehlia diz que foi a comida daquela ordinária da
mulher do Molinari. Ah, mas justamente por isso um
leitinho cairia bem; se você não quer, eu quero. Oi
Maria, com licença; oi, mãe, queria lhe mostrar o
vestido que comprei. Hum, que lindo, Hilma! Obrigado,
Maria, pode ir. A empregada desce as escadas. Volta á
cozinha e pega a maleta. Fecha a porta devagarzinho.
Os galhos pendentes da primavera alaranjada passam
em seu rosto, ferindo-a. Ela passou a mão no lugar,
olhou o sangue no dedo e transtornada meteu-se no
táxi que a esperava na esquina do sobrado.
Ricardo de Almeida Rocha 51
O preço da traição
Barulheira de coisas arremessadas, quebradas.
Bruno e seus homens correm, imaginam algum tipo
imediato de vingança. Mas era Leslie. Fora de si,
gritava. Estava cansada, cansada! Passava a mão sobre
a mesa, derrubando tudo. Não agüentava mais ter a
responsabilidade de tudo, cuidar de tudo, não
agüentava mais. Aproximando-se dela, Bruno pergunta
carinhosamente o que estava havendo. A fúria de
Leslie era como a fúria de uma divindade. O que estava
havendo? Ora. Os olhos dela estão quase saindo das
órbitas. O que há é que se Bruno fosse um pouquinho
menos dependente ela não precisaria ficar tomando
conta de tudo nos mínimos detalhes. Não estou
entendendo, querida. Que detalhes? Tudo estava
manchado de sangue. Estava tudo imundo.
É apenas vinho. E os pratos da festa não haviam
sido lavados. Calma, querida, diz ele e pede a Leonardo
que providencie a limpeza. Tudo bem, Bruno. Que ele
não se preocupasse. “Tudo bem, Bruno. Não se
preocupe”. Leslie imita a voz e trejeitos de Leonardo.
Bruno fala que ela precisava relaxar. Também está
cansado. Chama-a com um piscar de olhos. Vamos para
a cama. Também precisa relaxar. Ela diz que não a
aborreça. Vá para o inferno!. Está cheia dele, cheia!
Ricardo de Almeida Rocha 52
O preço da traição
Cheia de tudo. Só quer um pouco de paz. Só quer
voltar no – desmaia – tempo...
É um alívio. A manhã entra pela janela. Tudo o que
tiveram de passar até chegar naquele ponto de
conforto material e status. A escuridão da noite. E
Leslie, sua força, começa também a mostrar sinais de
que sua alma sentiu a acusação. Resta então manter
ele o equilíbrio, chamar para si o controle das coisas.
Temia. Foi um consolo ver a manhã. Momentaneamente
dissiparam-se as angústias.
Desce, deixa a esposa dormindo. Barulho de café
sendo servido. No noticiário da TV, a morte da mulher
de um respeitado empresário das região. Não falam em
envenenamento. Por que não, senhor? Abra à imprensa
o caráter desse safado. As palavras do empregado mal
passam a máscara de dor em que se tornara Carlo.
Enfim abre bem os olhos antes de encarar seu
interlocutor, pensa na situação, há gente bastante a
seu lado contra Molinari. Não preciso da imprensa, diz.
Pensarei em Bruno quando aquela cadela tiver pagado
gota a gota o sangue de minha Zehlia. Porque jamais
acreditou que qualquer coisa, boa ou má, pudesse sair
de Bruno, sem haver saído antes de sua mulher.
Ricardo de Almeida Rocha 53
O preço da traição
Alguém falou entre os que estavam na reunião de
emergência, respeitavam a dor de Carlo mas estavam
ali para salvar a Sociedade, que com todas aquelas
mortes, depois de décadas, ficou exposta. O último
símbolo logo estaria na página de algum suplemento
de cultura. Carlo entendia também assim. Mas vou
acabar com aqueles dois porque são eles que podem
nos expor. As pessoas esquecem; a imprensa é
manipulável. O que exatamente tem em mente,
senhor? Gostaria que esta reunião definisse as
posições de cada um após a morte de Zenon, para que
não haja desentendimentos depois, apenas isso. O
resto, deixem comigo.
Matar Molinari seria uma confissão. Mas se a
mulherzinha dele se acidentar, será apenas uma
coincidência. E sem ela, ele estará morto. Quero que
ele sofra. Depois terá tempo de morrer.
Alguém sugere que o rapaz, o filho de Zenon,
poderia ser muito útil. Diziam que fora morto numa
emboscada com o pai, replica outro. A história de que
desviara dinheiro e fugira só podia ser trama de
Molinari. Pela primeira vez em muito tempo apareceu
algo vagamente parecido com um sorriso no rosto de
Carlo. Entrando na sala, Com licença, senhores, disse o
jovem. E deu os pêsames ao viúvo. Quem era? O que
Ricardo de Almeida Rocha 54
O preço da traição
queria? Estava ali para confirmar o assassinato de
Zenon. E quanto ao filho? Não me reconhecem?
Recebe Carlo Gielsen em seu sofrimento distintas
mensagens. Considera a situação, pausando o
julgamento ora no ódio por Bruno; ora no desejo de
possuir sua mulher. Mas o monstro é aparentemente
intocável. Toda a região sul está com ele, e agora tem
também o apoio de Empatia. Irrita-se. Senhores!
Estavam ali para se organizar. Não devem levar e,
conta apenas as perdas pessoais. Cláudio deixara-se
levar, quis administrar os negócios com o coração e
teve o fim que teve. Quanto a acabar com o maldito,
deixem comigo, repetiu, como se não tivesse visto e
ouvido a entrada de Benévolo.
Um pensamento correu a sala. Não havia
testemunha de que o assassino de Cláudio fora Bruno.
Agora tampouco, pelos detalhes fornecidos por
Benévolo, não se pode cravar que o atentado contra
Zenon fora obra dele. Assim, dá para desconfiar do
próprio Carlo, pois tudo obviamente aponta para
crimes de Bruno, obviamente demais. Afinal, Carlo já
nutria aquele ódio pelo rapaz quando Cláudio estava
vivo.
Como a intuir as desconfianças, Carlo propõe que
Benévolo seja elevado a principal após a morte de
Ricardo de Almeida Rocha 55
O preço da traição
Bruno. Uma homenagem a seu pai e uma prova da
ausência de interesses escusos da parte de todos ao
colocarem um neófito no maior cargo entre os
membros da Sociedade. Um espelho na parede frontal
da casa de Carlo testemunhou a reunião. Finda, tudo
estava perfeitamente planejado para após a queda de
Bruno Molinari. Através da janela entrava sibilina a
viração, trazendo o barulho do mar. Os homens saíram,
unidos em torno de seus ideais. Boa tarde, senhores.
Tenham todos uma boa tarde.
Um final de dia sombrio, silencioso, parece que a
magia se foi da vila de pescadores, levando a alegria
das ruas e carregando dum peso imenso de tristeza o
coração de Bruno Molinari. Durante toda a tarde as
nuvens caminham negras e baixas pelos céus de
Tundra. Nunca gostou daqueles dias entre a temporada
de janeiro e o Carnaval. A cidade parece o purgatório.
Lembra-se do Carnaval em que conheceu Leslie, Sentia
o mesmo sufocamento, misto do acre salino das
matinais da Casa das Freiras e dos ocres oráculos
saídos dos exaustos matizes atrás da colina Efe. É bem
de manhã, o sol ainda não nasceu. Ouvia os cânticos,
olhava os céus, e a viu, celestial como as laudes.
Nuvens brancas se espalham pelo céu limpo como se
Ricardo de Almeida Rocha 56
O preço da traição
tivesse sido varrido por um buquê de açafates que
agora se grudam no azul. Leslie despontou com o
brilho das pérolas. Nem o notou. Estava mesmo
decidida quanto ao jovem médico. E Bruno ainda tinha
de ser grato ao canalha: não fosse ele, noutras
circunstâncias, nada resultaria de sua abordagem,
perguntado a ela por que chorava.
Um homem vazio. No alpendre, sente plena a
opressão, tomado por infernal melancolia. Pobres de
nós, murmura ao entrar no quarto. Leslie não está na
cama. Os dois corredores que levavam ao pátio
percorridos e ali encontra Leonardo, que gentilmente o
impede de prosseguir. A mulher, andando de um lado
para o outro, fala sozinha. Ah, minha bela o que
conseguiu afinal? Onde chegou? Quem irá agora
admirar sua força ou babar diante de sua beleza, linda
doida? Bruno não pode protegê-la, nem se fosse o
Imperador, quanto mais como chefe duma
organizaçãozinha que só reina às margens fedorentas
desse rio. Ele... ele era... aquele homem... um velho
bom... podia proteger você, seu poder dependia muito
mais de si mesmo do que do cargo que ocupava, como
sói acontecer. Uma vez, ah, uma vez chegou e de fato
disse isso. Iria me proteger... haha... Não queria que eu
abandonasse Bruno, mas apenas lhe prestasse uns
favores de vez em quando... Velho danado... Venha
Ricardo de Almeida Rocha 57
O preço da traição
agora... Sei que está escondido por aqui. Hei Cláudio!
Tudo bem! Estamos combinados! Só uns favorezinhos
de vez em quando!... Sei que o Bruno não vai se
importar, pois para ele você é como um pai... Nada
demais portanto em compartilhar nossas coisas com os
pais... Cláudio!...
Bruno puxa o ar até o mais profundo de si. Fecha
os olhos. O suspiro é patético, Leonardo teve pena.
Uma lágrima quis rolar mas segurou. Murmuram...
Deus...
Leslie volta agora, os olhos postos num chão que
só ela vê. Não. Cláudio não iria protege-la. Só mima-la
um pouco. Mas isso Bruno também faz, do jeito dele. E
afinal, é ele a quem ela ama e isso deve ter algum
valor. Ama... Que amor louco... De onde veio? Para
onde a levará? Suas formas magníficas transbordando
pela camisola transparente, senta-se sob a castanheira
no centro do pátio, bem ali onde servira o sonífero aos
guarda-costas. E quem a ama afinal? Possivelmente, só
mesmo a sua morte...
Num rompante, Bruno não suportou mais, nem
sabia por que deixara que a cena se prolongasse tanto.
Força a passagem por Leonardo. Acordar alguém que
está andando e sonhando, a pessoa pode ter um
ataque. Pára. Decide. Agradece pela preocupação e
Ricardo de Almeida Rocha 58
O preço da traição
fidelidade do empregado, não a merece. Pede que
passe no escritório no dia seguinte. Bruno vai deixar a
Sociedade. Acertariam as contas. Talvez Leonardo seja
a pessoa ideal para ficar com o meu lugar, quem sabe
devolver os propósitos originais da organização, se é
que existiram de fato, os idéias dos “pedreiros”.
Bruno vai mesmo embora.
Está delirando mais que ela, senhor. Não,
Leonardo, amigo, não estou. Talvez alguém como
você... uma fruta colhida no pé. Eu já estava na
estrada, apodrecendo. Quem sabe você possa dar à
Sociedade o sentido verdadeiro de justiça, de religião,
de caridade. O tráfico, o jogo, a prostituição – essas
coisas degeneraram o que era para ser uma família. É.
Amanhã resolveriam isso direitinho. Agora deixe-me
leva-la para o quarto.
Depois de deitar a esposa, Bruno fica
contemplando-a por instantes. Que ela permaneça
assim, serena e branca, estendida sobre a cama, seu
rosto inundando o quarto de serena beleza, fazendo-o
sentir a paz de espírito da penumbra; que ficasse
assim, ali com ele, até o dia nascer. Olhar para ela traz
a lembrança de um tempo melodioso. Leslie é a coisa
mais bela que seus olhos já haviam visto, a vida
começou quando ele a viu, ele nasceu quando a
Ricardo de Almeida Rocha 59
O preço da traição
conheceu, a seu lado ele não tinha mais medo, ela era
a sua coragem – estendeu a mão e tocou a sua fronte
suada. Ela o olha com olhos alheios.
Ele lhe diz que ela parece melhor. Sabe o que
vamos fazer? Vamos para longe daqui, para bem longe,
recomeçaremos a vida em outro lugar, em Santa Vasta,
que tal? Dariam uma bela festa, dessas que ela tanto
gosta. Construiriam uma casinha. Dizem que lá existem
boas escolas. E nós vamos precisar de um lugar bom,
com boas escolas, porque longe desse ambiente
viciado de Tundra você logo ficará grávida de nosso tão
sonhado filho. Nas sextas vamos ao teatro, nos
sábados aos bailes, nos domingos ao circo. Ou
simplesmente ficaremos em casa, longe do mundo.
Estava pensando em uma casa na cidade e um
sitiozinho nos arredores. Quem é você? Sou eu, Bruno.
Bruno? Alguém falou que a gente ia dar uma festa.
Sim, uma festa. E a quem convidariam? Teremos
verdadeiros amigos.
De madrugada, Bruno acorda sobressaltado. Ouve
barulhos estranhos vindos do banheiro. Apanha sua
arma, vai até lá. Leslie esfrega a pia em que se haviam
lavado, dias antes, do assassínio de Cláudio. Falava
sozinha, olhando o vazio, perdida em algum mundo
muito distante. Estranho para Bruno vê-la assim, a
Ricardo de Almeida Rocha 60
O preço da traição
sempre altiva Leslie, agora ali ajoelhada, esfregando e
esfregando, também o piso, enquanto cantava uma
canção ininteligível. Pára de cantar e começa a se
orientar em relação ao som, como fazem os cegos. A
chuva começa a tamborilar no telhado. Sorri e
recomeça a tarefa a que se propôs, cantando a sua
canção.
Finalmente Bruno consegue adormecer na cama,
depois da noite horrível ao lado de Leslie no banheiro.
O chamamento de Leonardo das escadas agora em
cérebro com um tantã repercute. Desce. Recebe o
envelope.
Os cartões nas mãos trêmulas mostram desenhos
representando Leslie varada pela concupiscência de
Gielsen, em meio a lençóis encharcados de sangue.
Grandes, exagerados glúteos falciformes, seios de
traço grosseiro imitando úberes expostos a bocas
desavergonhadas e ávidas; junto ao rosto todo tipo de
falos esperavam diante de um ricto vulgar que a Leslie
real jamais esboçaria. O último cartão é o mais óbvio,
coxas abertas e negras no meio e o perfil de alguém,
cujo nariz era de um, a testa de outro e a barba de um
terceiro.
Bruno voltou ao quarto e abraçou a mulher,
catatônica. Decorrem alguns segundos. Silêncio
Ricardo de Almeida Rocha 61
O preço da traição
asfixiante. De algum modo, intuiu que seus homens
haviam sido subjugados ou fugido. Espera ouvir a voz
que efetivamente ouve, afinal. Molinari! O grito de
Carlo é pautado pela coragem dos que tem controle de
uma situação. Manda Bruno aparecer. Venha! Diz estar
ali sozinho, que agora é um caso pessoal. E entra pela
sala com seus homens, silenciosos, fechando o cerco.
Venha – insiste, num quase orgasmo. Chegou o
momento. Não vê a hora de pôr as mãos na mulher do
inimigo. Delira ao imaginar. Continua falando. Bruno,
Bruno. Amava tanto a Leslie... Como pudera traí-la com
uma negrinha? Fora também ingrato para com seu bom
profeta... Ah, falando nisso, aqui está. Sua garantia de
glória. Ouve-se o som de um corpo caindo no assoalho.
Bruno teria vomitado se tivesse visto o velho. Deixem-
nos sair – pediu. Podiam ficar com tudo. Por favor.
Leslie está muito doente.
Muito doente? Está brincando. Sem dúvida, só
pode estar brincando. Esqueceu de que minha mulher
está morta? Morta! Porque em sua insanidade você
ordenou o meu assassinato!
Não é verdade. Somente soube do atentado
quando já não podia impedir. Quer mesmo que eu
acredite nisso? Seu medo é assim tão grande? É
verdade. Você jamais diz a verdade, maldito! É
Ricardo de Almeida Rocha 62
O preço da traição
verdade, pleiteava Bruno, senão como os inocentes, ao
menos como os ignorantes. Sim, determinou Carlo, é
muito grande o medo dele. Isso. Tema pelas suas
abominações! Trema. Porque traiu a todos que o
amavam. Bruno olha para Leslie. Já estou pagando
muito caro por meus crimes, diz. Que o deixassem para
o julgamento de Deus. Carlos chama para si a ação de
Deus; e é a condenação à morte, morte lenta, dolorosa.
Humilhante. Assim seria a de Bruno. Assistindo a
violação da mulher que, segundo a própria negrinha,
ele amava mais que a própria vida, violada por todos
os homens de Carlo. Eu mesmo a darei por inaugurada.
Ninguém tocará em Leslie. Quem tentar estará
assinando sua sentença de morte. Por que tanta
confiança? Carlo joga o conteúdo do saco que tinha nas
mãos e o assoalho ecoou dum eco macabro. A
gargalhada ecoa por toda a casa como se fosse um
prolongamento do eco. Olhando a meu redor, não diria
que você é tão grande como o velho disse. Muito
menos querido e principal apenas por obediência a
nosso verdadeiro guia, que infelizmente se enganou
grandemente. Irritando-se, Carlo ergueu a voz. Agora
chega, apareça de uma vez ou vou busca-lo!
Aquele ruído. Deus. Pobre devota. Por alguns
instantes, Bruno imagina como chegaram até ela.
Ricardo de Almeida Rocha 63
O preço da traição
Decerto também a tinham estuprado antes de mata-la.
Que morte hedionda deve ter sido. E agora falam de
justiça. Por que fizeram isso com dois inocentes? Ele
pensa que matamos também a negrinha e pensando
bem deveríamos. Ela porém safou-se e não tiveram
tempo de a procurar. Ao juntarem-se a Bruno, diz Carlo,
deixaram de ser inocentes. Pode me matar – dissera o
oluô antes de morrer – mas ninguém poderá fazer mal
alguma ele. Ao longe, Gielsen ouviu o som de
atabaques. Podia ser que o velho tivesse feito algum
tipo de trabalho, sabe-se lá, uma invocação. Pareceu
sim uma invectiva, um transe. “Ninguém pode fazer
mal a Bruno”. Mas, sorri, o fogo não é alguém.
Ao sinal, as velas junto às cortinas. Antes que as
labaredas crescessem e subissem, saíram. Em
segundos a casa dos Molinari transforma-se num forno
macabro.
***
O fogo, alastrando-se, crepita. As janelas, como
bocarras de um dragão enfurecido, sopram as chamas;
o vento cospe- as para o céu. De longe se vêem as
colunas da fumaça negra e densa. Causa náusea nos
Ricardo de Almeida Rocha 64
O preço da traição
poucos transeuntes próximos o cheiro das pesadas
nuvens. Agora as paredes, incendeiam-se sob calor
infernal. O prédio caía em grandes pedaços abrasados,
de papel. Os móveis são pulverizados. Uma voz chama
Bruno.
Em meio às labaredas, preparado para morrer com
Leslie nos braços, uma luz de esperança na fidelidade
de Leonardo. Onde está? Na janela que dá para o
corredor, é a única chance. Todas as armas estão
concentradas na saída do quarto e janelas para a rua.
Bruno nada vê. Segue a voz alta e nítida. Num ponto do
muro oculto pela fumaça dos homens de Carlo, a mão
de Leonardo está estendida. Bruno se equilibra com
dificuldade. Leslie sorri em seus sonhos. É colocada
nos braços do amigo, que cambaleia. Estão
encharcados . Os olhos vermelhíssimos ardem, as
bocas secas crestam, a sede se faz forte. Uma rajada
abriu no fumo espesso uma clareira pela qual foram
vistos. É o fim. Não têm mais chances.
O tempo em que as armas foram desviadas é
bastante para a substância mal-cheirosa e bendita
oculta-los novamente. Não os deixem fugir, brada
Carlo. Os tiros produzem um som muito agudo que se
prolonga segundos após as balas atravessarem a
nuvem. Os homens correm pelo fio do muro, Leslie
Ricardo de Almeida Rocha 65
O preço da traição
novamente no colo do marido. O estrépito é
ensurdecedor. Atendendo sinais de Leonardo, Bruno
salta para a casa vizinha, imitando o amigo. O casal
caiu no piso, arrancados do assombro do fogo. O que
Isabela faz ali? Bruno a olha como se ela fosse um dos
espíritos que costuma invocar. Moro aqui – diz ela.
Bruno portanto é um péssimo vizinho.
E aquele barulho? Pobre querido babalaô,
torturado e decapitado. Quanto a ela, fugira. Mas que
interessa agora? Precisam sair dali. Leslie mantinha o
ar de nobreza, mesmo desmaiada dentro da camisola
suja de fuligem e manchada de sangue. Na frente,
Isabela fez com que os dois homens a seguissem pela
trilha da mata da colina atrás da casa.
Na jarra de centro na mesa da sala escura, em pleno meio-dia no Ipiranga, a pequena flor balança à entrada de uma lufada de vento mais forte. Não muito longe dali, empregados da prefeitura de Tundra ainda trabalham para remover os escombros do grande incêndio. “Encontramos você nas ruas, Benévolo, fugindo de um criminoso, e o trouxemos para nosso convívio porque você pareceu digno de confiança, como seu pai. Uma pausa solene. “Esperamos muito de você, de sua liderança. Em todos tivemos oportunidade de armazenar seu grau de estudos. Assim, as expectativas de todos são de que tenhamos em você a mais produtiva presidência, segundo os ensinamentos de nossa tradição. E temos absoluta fé de que você,
Ricardo de Almeida Rocha 66
O preço da traição
como seus conhecimentos e inteligência, nos abrirá novos caminhos. Que você não se deixe seduzir pela ambição como aquele que vos precedeu, porque a ambição não faz qualquer sentido entre nós. Nossa Sociedade é algo de que um homem pode se orgulhar em pertencer”. Carlo ergue o brinde antes de concluir. “Somos uma família”.
O trio-elétrico saía da cidade. Meninas se faziam mulheres nos quartos. Os comerciantes, amigos de todos, se repetiam. O terral varria entre os quiosques. Os passageiros se aglomeravam em torno do motorista do ônibus. Os bagageiros eram fechados com estrondos. O burburinho aumentava entre as poltronas. O ar sugou a porta e a suspensão testou-se à saída, jogando os passageiros para o alto. Um fio cinzento seguiu o veiculo na manobra. O novelo carbônico flutuou no ar, dissipando-se segundos após.
O ônibus agora flui pela beira-mar. As crianças botam as cabeças na janela. Nos apartamentos, homens de short e mulheres de biquínis, encostados no parapeito, viam a dourada mancha fumarenta se apequenando, deixando para trás a temporada, o carnaval, as festas, os rituais, Iemanjá e Nanan, o Cristo dos crentes e também Jeová, a alegria, a AIDS, a luxúria, a maconha, madres, gaivotas e sátiros, baralhos e barbáries, colas e cocas, o lixo nas ruas e a expectativa do ano que vem. No hotelzinho na entrada de Empatia da Conquista, Bruno diz a Leslie que coma mais uma colherada. Ah, mas ela não quer mais não.
Precisa se alimentar.
Estou bem, de verdade.
Ricardo de Almeida Rocha 67
O preço da traição
Recostada em três travesseiros, sua voz pelas
paredes ecoa como um pássaro rouco. Os braços
erguidos. Os cabelos negros em desalinho caem como
uma cortina entreaberta. Sua palidez ilumina o meio-
dia. O olhar azul efloresce e tange em Bruno um nervo
de felicidade. A camisola de organza apenas realça sua
nudez, entre o marrom e o vermelho nas auréolas,
abissal no umbigo, e dum escuro desejo nos cabelos
que se enrolavam entre as coxas, que o movimento
feito quando se ajeitou para que Bruno desse a colher
que insistia deixa à mostra em sua magnitude. A última
colherada.
Agora chega mesmo. Ela vira o corpo num gesto
dengoso, enfia o rosto nos travesseiros. A camisola
sobe um pouco mais, refletindo a idade das lâmpadas
na pele de tauxias. Bruno engole em seco, a respiração
suspensa. Um gaviãozinho voou histericamente à
janela. Tudo bem, não insistiria mais. Colocou o prato
na cabeceira, incapaz de desviar o olhar. Quer saber o
que eu queria?, diz ela. Ele queria mesmo saber do que
ela precisava? O perfil, um horizonte onde os
crepúsculos se escondiam. Os dedinhos dos pés se
afastaram uns dos outros retornando ao normal em
seguida. A respiração dela ondula o tecido sobre o
corpo e a de Bruno se entrecorta nas batidas do
coração. Ela ainda estava doentinha, não devia pensar
Ricardo de Almeida Rocha 68
O preço da traição
naquilo.
Doentinha? Leslie ficou muito séria. Vira-se e
encara. Doentinha? De súbito, começa a rir, leva os
braços na direção de Bruno, trazendo-o sobre si. Ele
sentiu o corpo e foi vencido pela força que ela não fez
ao enlaça-lo com as pernas. Não parece mais haver
realmente nada que não fosse excessivamente são em
sua mulher. Leslie sentiu a reação que provocara e
seus dedos deram-na à luz. Não havia resistir, se é que
por um momento ele tivesse pensado em resistir. As
mãos de Leslie, há quanto tempo não as sentia. Na
verdade, as últimas mãos que percorreram seu corpo,
desnudando-o, não foram as dela. Uma pontada
inexorável no coração. Os últimos lábios que o
beijavam como agora, que o engolfaram assim, não
foram os dela. Assim? Não... Assim nenhuma mulher no
mundo saberia. E, se era o mesmo tipo de ato que o
extasiava, parecia uma outra coisa, um outro tipo de
momento, um outro gênero de movimentos, não existia
no mundo mulher igual à sua Leslie, àquela em quem
deleitava-se num prazer bruxo, sua amada Leslie
Molinari.
Alguns dias depois, ao som do vento que
encrespava as águas noturnas de São Lombardo,
Ricardo de Almeida Rocha 69
O preço da traição
Leonardo e Bruno conversam diante do hotel. Eu me
criei em Naus, Bruno, e lá pretendo morrer. Vim mesmo
só me assegurar de que vocês estão bem. Estavam,
sim estavam muito bem. Graças a ele, a Leonardo.
Querido amigo. Mas Naus... Tinha certeza? Leonardo
tinha toda a certeza sim, Bruno podia ficar tranqüilo.
Eu imaginei um futuro de paz também para você. Agora
por minha causa, você será perseguido. Que glória
maior num mundo como este mundo? Ouviram que
estava chovendo. Despediram-se. Não mais se viveriam
neste mundo.
Epílogo
Do alto do púlpito, o pastor conclamou os
membros de sua igreja. Que ninguém se engane! Sua
voz soava alta e nítida, como alguém que quer se fazer
ouvir em meio ao estrépito de um fogo. Diz o
Apocalipse no Capítulo 22, verso 15, que é terrível o
fim dos que se prostituem e dos adeptos da magia. Ao
dizer isso – observou – não pensava nas mulheres nem
aos adivinhos, mas nos que se entregam à ambição
desmedida, que podem fazer qualquer coisa em nome
de um objetivo qualquer de pura vaidade e aflição, aos
Ricardo de Almeida Rocha 70
O preço da traição
assassinos por motivos torpes, aos que amam a
mentira e a praticam, aos que induzem seus irmãos ao
mal.
É preciso acabar com esse homem, diz Benévolo.
Hilma diz que nesse caso ele se transformaria num
mártir. O pior que pode acontecer, você não acha? Por
outro lado, fala sobre um meio de destruí-lo sem matá-
lo, mais adequado. Aí estará realmente morto. Hilma
se consiste num trunfo para Benévolo. Amante
deliciosa, principal acompanhante, e ainda ardil
perfeito para manter Carlo de mãos atadas no caso de
ele pensar que pode fazer comigo o que fez com Bruno.
Reflete sobre as palavras dela. Cumpria de fato dar um
jeito nesse pastor, que não só é incorruptível, como
pior, veio do seio da Sociedade, sabia demais. Durante
algum tempo pensou-se que ele não propagava o que
sabia porque pretendia fazer chantagem. Quando
foram aborda-lo a respeito e voltaram com aquela
resposta, que ele não os denunciava por ter muitos
amigos entre os membros e ter esperança de vê-los
regenerados, Benévolo resolveu que não havia solução
senão matá-lo.
Aí, Hilma vem com essa conversa. O que pretende
exatamente? Ah, simples. Ela seduziria o pastor, ele
ficaria desmoralizado com o escândalo e perderia sua
Ricardo de Almeida Rocha 71
O preço da traição
autoridade. Tudo então voltaria às boas. Tudo bem,
assente Benévolo, tentando controlar o ciúme. Não
tinha ciúme de Hilma com gringos velhos e tolos, mas
um homem com aquela firmeza de caráter era de fato
um rival a temer. Quando ela está indo, pergunta à
amante quando. A filha de Carlo diz que pode ser nessa
mesma noite. O que lhe afiança o sucesso, ora,
confiava em seus dons, Benévolo não?
Oh, sim. Ele conhecia. Temia às vezes em vez de
estar usando-a contra o pai, estar sendo manipulado
por ela, talvez pelos dois. Quem pode saber? Carlo é
um velho moralista, desses de quem se pode esperar
tudo.
Apesar de ter dúvidas a respeito, se conseguiria
seduzir o pastor e, se conseguisse, se não havia algo
melhor a fazer da proeza do que entregá-lo à perdição
– uma vida ao lado de um homem assim não seria a
remissão dela e provavelmente a felicidade? – Hilma
entregou-se à preparação de sua visita. O que fazer se,
por exemplo, se apaixonasse? Um pensamento que
jamais a abandona, mas tampouco a domina. Veste
uma delicada blusa de viscose, de alcinhas. Liga os
botões às casas com visível prazer diante do espelho.
Não haveria de ser ignorada mas precisa ser discreta.
A saia listrada é bem comprida, nos calcanhares.
Ricardo de Almeida Rocha 72
O preço da traição
Admira-se com prazer jovial. Solta os cabelos. Imagina
ao sair qual dos pretextos deverá usar para ficarem a
sós.
O mais constrangedor é que tudo ocorreu
conforme planejara. Leonardo completamente
deslumbrado. Não pode lhe negar um aconselhamento.
Mesmo à filha do homem que tentara matá-lo. Seu
espírito se fortaleceu muito depois do incêndio e atrás
de alguém que ele pensou que fosse aguardava-o
quem ele era realmente, graças a Deus, um homem
íntegro, que não se atreverá mais a pecar contra seu
Deus. Hilma foi tocada também naquele dia. Desde
então sente-se uma pessoa melhor. Jamais imaginou
poder agradar-se de si mesma àquele ponto – estava
feliz, vibrante, perfectível. A estranha perspectiva de
santidade a tornara realmente alegre. Harmonizara-se
a seu temperamento leonino a doçura de estar diante
de um homem a quem podia obedecer e respeitar. Está
realmente linda, não é mais uma ilusão estética.
Branda ao falar, esperançosa ao sentir.
Quando os homens invadiram a igreja, antes de
morrer, Leonardo imaginou que fora apanhado numa
armadilha, mas não amaldiçoou a jovem, antes ergueu
uma prece por ela. Porém Hilma nada teve a ver com o
atentado, e participou também na condição de vítima.
Ricardo de Almeida Rocha 73
O preço da traição
O pai não sabia que ela estaria ali. Morreu feliz,
redimida. Estava amando pela primeira vez na vida,
pela primeira vez na vida seus olhos podiam ver.
Durante todo o tempo de seu pastorado, enorme
foi a influência de Leonardo. Para com os seus
seguidores vindos do candomblé, superior ao próprio
Oxum na Baia das Naus, até o dia em que foi morto,
numa noite de tempestade.
Quando tempos mais tarde soube do crime,
durante as cheias da primavera, Bruno vivia uma vida
pacata, criando gado e cultivando cacau nos arredores
de Santa Vasta, nem muito perto nem muito longe das
águas barrentas do rio. Mantinham ali uma escola com
oficina e computadores para os filhos de seus vizinhos,
por quem eram muitíssimo queridos. Estavam dando a
previsão do tempo e logo depois veio a notícia. Ele
acabara de fazer o cheque para a família da moça da
boate. Sabe que uma vida não tem preço, mas sente-se
obrigado a fazer isso. Agora, senta-se junto ao rebanho
sobre a forragem, prestando uma homenagem ao
amigo Leonardo. Encaixada no verde lá embaixo, a
casinha sobe no orvalho, refletida pelo pequeno lago.
Naquele exato momento, gritam seu nome. Há um
tom diferente na voz da esposa, um tom decididamente
diferente. Quem poderá ser? A moça deseja vê-lo. Aos
Ricardo de Almeida Rocha 74
O preço da traição
poucos a figura toma forma. Leslie tem o cuidado de
não insinuar nada mas o cãozinho avisa em latidos
aflitos. Quieto, MacBeth!
A visão de Isabela é ainda deslumbrante, embora
pareça cansada, e até poderia se dizer mais alta,
naturalmente é o ângulo e o plano de fundo, mas seja
como for é impressionante essa efígie materna, esse
fantasma vívido, Deus do céu!... Num mesmo olhar
captou a deusa, a razão de viver, a energia vital em
forma humana. Quando aperta a mão da mulata, treme
um pouco. Não iria escapar desse dia. Então agora
vamos ver o que pode ser feito. Quem era aquela
criança? A irmã morreu, a sobrinha ficara sem ter quem
a criasse. Ah, sim. O casal lamentou. A profecia, é
claro.
Sabendo que Isabela vinha se estabelecer em
Santa Vasta, Molinari apressou-se em apresenta-la a
seu capaz, um homem íntegro, trabalhador, só faltou
dizer o melhor partido do lugar, um homem bom e
forte, elogiado desmesuradamente pelo patrão
enquanto suplementava o capim com uréia e sal.
FIM
Ricardo de Almeida Rocha 75
O preço da traição
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No. 9.610 de 19 de fevereiro de 1998
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