o porco de erimanto

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Livro de contos de A.M. Pires Cabral

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Page 1: O porco de Erimanto
Page 2: O porco de Erimanto

O PORCO DE ERIMANTO E OUTRAS FÁBULAS

Page 3: O porco de Erimanto

Título: O porco de Erimanto e outras fábulas© A.M. Pires Cabral

e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010Todos os direitos reservados

ISBN: 978-972-795-299-1

Page 4: O porco de Erimanto

A.M. Pires Cabral

O porco de Erimantoe outras fábulas

Cotovia

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Índice

Memória justificativa p. 9

Os degraus da morte 11

O porco de Erimanto ou Os perigos da especialização 87

O homem que vendeu a cabeça 100

Homens e sombras 116

Catarse 140

As visitas do senhor director 159

Desidério 175

Nunca fiando 223

Senhor da sua morte 235

O tio Florindo ou Os malefícios da poesia 244

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Memória justificativa

Quase todos os contos reunidos neste volume e sob estetítulo foram publicados em 1985 num livro intituladoO homem que vendeu a cabeça.

Acontece que esse livro, editado pela Nova Nórdica, umaeditora efémera, praticamente não chegou a entrar nos circ u i t o sc o m e rciais, pois a editora logo desapareceu sem ter pro v i d e n-ciado, ao que julgo, a distribuição, e a tiragem de 2.500 exem-p l a res deve ter apodrecido nalgum armazém, sido guilhotinadaou vendida a peso — não fui informado de qual terá sido o seud e s t i n o .

Acresce que todos os contos de O homem que vendeu acabeçaforam reformulados, sempre de forma considerável eem alguns casos de forma profunda. Acresce ainda que junteiaos contos de então três novos contos.

Todos estes factores reunidos autorizam a considerar opresente volume como uma obra independente de O homemque vendeu a cabeça, e consequentemente a alterar-lhe otítulo. Para marcar bem as diferenças, escolhi o título de umdos contos que não estavam presentes na edição de 1985:O porco de Erimanto e outras fábulas.

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Os degraus da morte

La cabro de moussu Seguin, que se battégue touto laneui emé lou loup, e piei lou matin lou loup la mangé.

Alphonse Daudet, Lettres de mon moulin

SO U D E S D E N O V O grande frequentador e clientede alfarrabistas. O cheiro do papel velho dos livrosembriaga-me, e com esta doce embriaguez lhe per-doo as alergias que me causa. Mas devo pre v e n i r,por uma questão de honestidade, que não são tantoos alfarrábios em si mesmos que me atraem —embora sempre tenha cobrado grande prazer da lei-tura do bom Português de outras eras — mas aquiloque é possível encontrar entre as suas páginas. Istoé, tudo o que há ou pode haver — e a incert e z asobre se haverá ou não reduplica o prazer do jogo— lá dentro, para além do texto do autor e da partepuramente mecânica, isto é, aquela que coube àtipografia.

Refiro-me, por exemplo, a anotações à margem,feitas a propósito ou a despropósito por alguém queleu aquele livro, discordou ou concordou, e registouos seus comentários ao lado das frases que lhos ins-piraram. Tenho encontrado apostilas deliciosas,como a que se me deparou num tratado breve deteologia de 1865: Este auctor é bastantemente asno.

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Mas não me refiro apenas a esse tipo de notasdestinadas a iluminar, corroborar ou corrigir otexto. Também simples apontamentos de ocasião,que nada têm a ver com o teor do livro, rabiscadosnalguma página à falta de haver outro papel à mão:um endereço, por exemplo, ou um número quepode ser de telefone, uma soma de várias parcelas,uma sigla enigmática, ou mesmo uma assinatura deposse simples ou mais arrevesada, como esta de1812 que descobri numa Nova Grammatica da Lin-gua Inglezade Agostinho Neri da Silva: Este Livrohé de Joaquim Jozé Ribeiro da Villa da To rre deMon.vo roga a q.m lho achar ou furtar que lho torne aentregar alias ao Inferno o irá pagar.

É também para mim fonte de grande expecta-tiva poder encontrar, perdidos entre as páginas dosvelhos livros, papéis de diversa ordem, fotografias,restos de flores, geralmente violetas — o mesmo édizer, restos de paixões —, bem como outros teste-munhos menos convencionais, como alfinetes ouentão aqueles inconfundíveis pêlos púbicos queencontrei certa vez numa vetusta Imitação da Vida eme fizeram imaginar que alguém — quem sabe seuma freira na solidão da sua cela —, com aquelelivro na mão, deve ter vivido momentos de desejointenso, acaso satisfeito pecaminosamente.

Num velho sermonário do séc. XVIII, de títuloquase tão extenso e indigesto como o próprio con-teúdo — obra do Venerável Padre Jerónimo de

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S ã oRosendo, da Companhia de Jesus — apare c e u --me certa vez um papel deveras interessante. Erauma folha de costaneira dobrada em quatro, há játanto tempo que, quando a abri, se rasgou pelosvincos da dobra. Estava manuscrita num bastard i-nho muito re g u l a r, que inculcava mão ilustrada,p rovavelmente a do próprio padre que adquirira ol i v ro e apusera no frontispício, a tinta sépia, o seunome — P.e Joaquim de Lima Catalão — e umadata, decerto a da aquisição — 6 de Março de 1834.A folha continha o que me pareceu ser uma minuta,ou melhor, alguns tópicos desgarrados para um ser-mão. Li-a de uma ponta à outra, com esta minhabalda de v o y e u rinsaciável. Ali se faziam piedosasconsiderações sobre a morte, estado ao qual seascende por uma escada de muitos e mui trabalhosose s c a l o e n s, isto é, degraus.

E quando li isto, Basílio, lembrei-me de ti.

SI T U E M O S O S A C O N T E C I M E N T O SN O T E M P O: 12 deJaneiro de 1969. Acabas de levantar na tipografia asprimeiras provas da edição amável que sempre tedecidiste a fazer dos poemas do Louco e dispões-tea corrigi-las com os resíduos de visão que te restam,os óculos grossíssimos assestados, assustados deprazer sobre as folhas que seguras a quinze centí-

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metros dos olhos — doutra forma não poderias ler— e mergulhas de cabeça no mel ensanguentado, nalâmina quente-fria de versos como estes:

setenta cargueiros não transportam tanta dor a dor vitrificada no silêncio das esferas agudas garanto-vos o céu está superpovoado é frio e não vem longe o dia da emigração maciçarumo a lugares mais quentes

ou seja, o génio do Louco que te cabe revelar aomundo num grande boom!, assim o esperas. Nuncaantes tinhas visto provas tipográficas, são estas asprimeiras, e ama-las com os resíduos de amor que terestam, assim mesmo cheirando ainda à tinta gordado prelo, sujas de insensatas dedadas do tipógrafo.E impacientas-te contra as gralhas que sobrevoam,pousam, besuntam de guano, debicam o texto dignode melhores bicos. Gralhas soezes, P y rrh o c o r a xp y rrh o c o r a x, em poemas que parecem falar deoutras aves mais nobres, ainda que as não nomeiem,aves mais nobres e rapaces, águias-de-bonelli,milhafres, falcões, coisas assim, aves heráldicas e rís-pidas:

treme a asa não de misericórdiatreme de fome de justiçatreme o membro dotado de estratégia de sanguehá um rumor de voo picado sobre a presaa milhares de pulsações num único minuto

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Estás no teu quarto, sentado à secretária ondetu próprio escreveste alguns poemas, oh nada distoque agora lês, nada desta força cósmica e desta glo-riosa insensatez, e forças a esperança, com os resí-duos de força que te restam: os jornais e revistas daespecialidade hão-de falar de ‘acontecimento edito-rial do ano’. E serás tu, pobre poeta menor, que esta-rás então no olho do furacão, darás entrevistas, serásadmirado.

Apetece perguntar como manténs o fogo, ape-sar de tudo. Responderias, eu sei, eu sei, que háalgures uma brasa oculta que guarda latente no seuinterior o princípio do fogo, brasa de que fias, comos resíduos de fé que te restam, a tua re d e n ç ã o .Assim responderias, eu sei: os costumados pólos dasnossas discussões de algum dia. Que não repetireiaqui. Porque antes me apetece recordar, e assim

A VIDA CORRIA, BASÍLIO?A vida corria. Isto é: a vida correria. Não fosse

aquele estúpido apalpão nas coxas possantes dacriada, ela correria mansa e sempre igual como até.Repara: nem sequer estarias agora indisposto contraum tipógrafo inocente, i lustrado de menos parapoder cortar a eito na caligrafia caprichosa doLouco, muito menos nas suas sinuosidades interio-

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res. Sim, a vida correria, insípida talvez nos seussabores quotidianos, mas doce e meiga e nunca dife-rente, a paz antecipada do caixão. Mas tentou-te acoxa da criada. Impulso mais absurdo! Pois nãotinhas ao alcance da mão, Basílio, dois quarteirõesmais adiante, o busto contente de Maria Clara todasas noites até às dez, hora do recolhimento e do boa--noite formal, e, nos dias de os pais irem ao cinema,depois de vendares com uma nota de cinquenta osolhos malévolos do mano Carlinhos, vigilante venal,até um pouco mais do que o busto? Precisavas detrincar outra maçã? Que amarela cobiça te tentounas coxas da Emília — de resto a criada menos ape-tecível de quantas a Dona Dulce tivera ao seu ser-viço? E a Dona Dulce tinha dedo para escolhercamafeus, se tinha!

Lembras-te bem: viúva precoce, por necessi-dade e vocação vira-se forçada a receber hóspedesna sua casinha de três andares da Rua Fern a n d e sTomás. Mas a memória impoluta do defunto Elias,grande rezador e frequentador de cursos de cristan-dade, — memória nunca assaz carpida — presidia acada momento vivido naquela casa. Dona Dulceenvelhecera recebendo hóspedes, gente solitária etantas vezes, sabe Deus, precisada de uma atençãoextra de uma criada. (Não era o teu caso, que tinhasa Maria Clara para as precisões ligeiras de cada diae frequentavas mensalmente uma casa na RuaEscura para as precisões mais severas.) Ah, mas a

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patroa ufanava-se de que a sua casa era de respeito,jamais tolerara atrevimentos e, conhecedora dosardis com que Satanás acomete as virtudes, contraeles se precavia. Como? Escolhendo sabiamente asempregadas. De algumas só ouviste falar, estiveramantes de te vires hospedar, mas tinham deixadofama. O elemento masculino da pensão re c o rd a v aainda a Alice, estrábica e de lábio leporino; a Sânciade rosto felpudo como um ursinho de peluche; aGlória e os seus oitenta e sete quilos. Do teu tempo,recordas a Assunção, sem dentes incisivos, toda elacaninos e baba. E depois veio a Emília, a Emíliarobusta como um hipopótamo, a cara de hipopó-tamo também. Com estas escolhas criteriosas,curava a Dona Dulce da castidade das próprias e dados senhores hóspedes, certa de que a maldade, eladizia a maldade, dos homens para com as mulheresdecresce ao mesmo passo que sobe a fealdade dasditas. Escolhidinhas a dedo. E depois uma vigilân-cia! A Dona Dulce era muito lida na Bíblia. Vigiai,p o rque o demónio, como um leão que ruge, anda àvolta de vós. Além do robusto conselho da Bíblia,tinha pés de gato e uma suspicácia sem fundo: eraubíqua, rondava sempre silenciosa como um fan-tasma, tudo presenciava, e criada abusada era criadadespedida, porque um dos seus axiomas era que aculpa dos atrevimentos masculinos era sempredelas. A Emília, causadora involuntária da tua per-dição, viera tomar o lugar da Assunção, uma pobre

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rapariga de Ta rouca, que foi despedida quando aD o n aD u l c esurpreendeu o Sr. Sales a tentar violá--la, indiferente ao resfolegar desdentado dela — res-folegar que parecia de aflição mas afinal se veio aa p u r a r, por ulteriores e insuspeitos testemunhos,que resfolegava sempre que se encontrava naquelassituações, devia pois ser de gozo e não de resistênciaou súplica, de modo que aquilo assim nem se podiachamar bem uma violação. Lembras-te? Chamasteporco na altura ao Sales, e andastes de relações friasdurante uma semana. Dão vontade de rir os teusescrúpulos de então; não passavam de hipocrisia,como depois se provou com a Emília. Logo a Emí-lia, que, francamente, Basílio, só com doses cavala-res de afrodisíacos.

Porquê então? Seria talvez a tentação do frutop roibido pelo próprio aspecto. Ou o engodo peloinsólito. Talvez as duas coisas; talvez tenhas pensado“que gosto terá uma gaja horrenda e tão ciosamentevigiada?” Ou talvez fiasses da sua fealdade insuspei-tadas culminâncias eróticas; pois não é verdade quedonde se não espera salta a lebre?

Segue-se que lhe apalpaste as coxas, na sequên-cia de um breve namoro em que a infeliz foi cedendo,talvez mais da honra, da surpresa e do sentido dodever do que de puro agrado. Na manhã fatídica,pediste uma toalha lavada, pretexto para a atrair aoquarto, e ainda ela não transpunha o limiar da porta,já tu, zás, lhe mandavas um senhor apalpão pream-

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bular ao coxame. A rapariga torceu-se, re g o u g o ub revemente, como que disposta a tudo. Mas —teriam rangido nos gonzos os portões de Citera?Porque a Dona Dulce rondava e, de olho de lince,não lhe escapou a proeza, e logo ergueu um dedoexpulsador para a desgraçada, que protestava “ foiele que me acometeu, senhora Dona Dulce, eu nãoqueria, foi ele que me acometeu”. Debalde, pois apatroa era inflexível em tais pontos: ele não a teriaacometido se ela não lhe tivesse dado licença paratanto, e por isso não convinha ao serviço.

— Rua! Imediatamente!E, voltando-se para ti:— E o senhor Basílio, com franqueza!Esta leve admoestação significava que estavas

perdoado. Ora, se havia coisa que o teu amor-pró-prio não consentia eram admoestações, mesmo jus-tas, como no caso. E — ainda hoje te pesa disso aconsciência — em vez de defenderes a rapariga, cha-mando a ti a responsabilidade do lance, vociferaste,defendeste o carácter salutar de apalpões e simila-res, insinuaste que o que a Dona Dulce tinha era dorde cotovelo por não ter sido ela a levar o apalpão —coitada da senhora, com sessenta e sete anos, Basí-lio, que maldade! —, acusaste em tua fúria a santamulher de usar cinto de castidade mental desde opassamento do devoto Elias, enfim, despejaste osaco. E a Dona Dulce não teve remédio senão,debulhada em lágrimas de vexame, te apontar tam-

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bém a porta da rua. Se não estavas bem, mudasses--te. Expulso tu também, atrás da criada, imagina,Basílio, daquele estupor.

E eis-te, bom homem, a braços com o pro b l e m aimediato: arranjar nova pensão. Que atrás não vol-tarias, nem pedirias perdão, nem ficarias mais umdia debaixo daquele tecto puritano, eras org u l h o s odemais para isso. Foi então a hora do arre p e n d i-mento: caro te estava o apalpão! Porque melhoraposento do que em casa da Dona Dulce nãoencontrarias em parte nenhuma: mimos de mãe fra-cassada, chá e torradas com mel às vezes ao serãoque eram de enlouquecer… Ah, não se re p e t i r ã o .O i n f e rno confunda a criada! E aí te temos, de malana mão, é um modo de dizer, interrogando-te sobreum novo lugar.

— Ainda hoje venho levantar as minhas coisas— disseste secamente, e saíste para o trabalho.

Para cúmulo, na re p a rtição, onde a notícia jáchegara pela boca desbocada do Seabra, entraramcontigo. O Te o d o ro, o Santos, o Bern a rdo, o Lucas,detrás das suas secretárias atafulhadas de carimbose papelada em impasse, cobriram de ridículo osteus assomos eróticos. “ Inveja, dor de corno” , con-trapunhas tu, e sorrias, entre lisonjeado e afl ito.Valeu-te o Godinho, um camaradão, que conheciaa cidade de ponta a ponta, lugares suspeitos e tudo,e a quem constara que na Rua da Constituição,n ú m e ro tantos — ele sabia mesmo o número —

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uma tal Dona Rosalina também recebia hóspedes,com geral satisfação dos utentes. Casa também derespeito, boa cama e pequeno-almoço no quart o ,q u e rendo o hóspede.

— O preço? Ó pá, isso não sei, só telefonando.E o telefone? Vejamos, deve vir na lista. Trrrim.

Do lado de lá, a Dona Rosalina em pessoa confirmaque tem um quarto vago, mas

— É melhor passar por cá.

O M A S S A LTAVA À V I S TA, na verdade. Era umburaco na parede — como é que diabo um buracodaqueles aparecia ali assim naquele lugar? —, umburaco perfeito, completo, que varava a parede delado a lado, do tamanho aproximado de uma moedade cinquenta escudos — ou seja, suficientementegrande para se poder espreitar através dele, umburaco mesmo a matar para um v o y e u r. Se aomenos no quarto do lado morasse uma gaja boa…Enfim, a seu tempo se veria, e esta simples expec-tativa era por si só aliciante. Mas o caso é que estra-nhaste o buraco em tal lugar e interpelaste sobre elea Dona R o s a l i n a .

— Pois é — disse ela, com vontade de mudar deconversa. — Aquilo não é nada. Foi um hóspedeque cá tive em tempos que o fez. E só não deitou

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a parede toda abaixo, porque eu me pus a pau. Erameio doido.

Para te distrair do buraco, chamou-te a atençãopara os confortos: as vistas desafogadas da janela, aproximidade do quarto de banho, a Praça do Mar-quês a cinco minutos a pé. Mas o que tu queriasmesmo era saber mais sobre o buraco e já agoras o b re o tal sujeito que era meio doido — sempretiveste uma curiosidade danada por loucuras, para-nóias, desaparafusamentos mentais, comport a m e n-tos desviantes. Razão por que franzias o cenho, e jul-gava a Dona Rosalina que era de desagrado, quandoera mesmo só de curiosidade.

— Era meio doido — tornou ela. — Ou doidoi n t e i ro. Um dia meteu-se-lhe na cabeça penduraruma… uma coisa na parede e, para espetar o prego,fez para ali aquele buracão. Estas paredes antigas detabique, já se sabe, esfarelam com facilidade… Eradoido. Os últimos três meses, ficou-mos a dever.D e s a p a receu sem dizer água-vai. Ainda tenho nosótão dois caixotes cheios de papéis dele, papéis eoutras bugigangas. O diabo o leve. Agora aquilo —falava do buraco — não lhe dê cuidado. Querendo,põe-se-lhe uma rolha. Mas com toda a franqueza lhedigo que não vale a pena. O senhor do quarto aolado (“Bolas, é um macho!” , pensaste com desa-lento) é uma jóia de pessoa. Não é criatura paraandar a espiolhar a vida de ninguém, acredite. Poresse lado, pode o senhor ficar tranquilo.

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Afadigava-se em te sossegar, porque temia o teucenho carregado, sem poder saber que o carregavasde entusiasmo e que os olhos que punhas no buraconão eram carrancudos, não, mas deslumbrados egulosos.

— Diz então a senhora que o tal sujeito era meiodoido…

— Doido completo! — proferiu com convicção.— Senão veja: para espetar um prego… Se ele nemdormia de noite!

— Ah, não?— Não cerrava olho, só escrevia, escrevia…— Diz que tem os papéis dele no sótão. Podem-

-se ver?— Se fizer questão…— Pode ser que interessem, quem sabe.— Ora, borracheiras! Que há-de aquilo ser? Se

eu lhe digo que era doido! Passava a santa noite ae s c re v e r. De repente, dava-lhe para ouvir música,punha o rádio aos berros, e já ninguém podia dorm i r.Outras vezes passeava no quarto, atrás e adiante,atrás e adiante, dando cada espirro que até pare c i acoisa má. Os outros senhores estavam-se sempre aqueixar do barulho. E a luz que ele gastava? Olhe —tomava ares confidenciais, a coisa prometia, Basílio—, eu nunca contei outro tanto a ninguém, mas achoque ele devia ter pacto com o demónio!

A esta voz, Basílio, demonólogo amador, desteum salto e disseste, para a espevitar:

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— Que me diz?— Contado não se acredita! Aqui para nós, que

ninguém nos ouve, sabe o que é que ele queria pen-durar na parede?

Não sabias, claro, nem ias responder “um vio-loncelo, um draga-minas”, embora ela te concedessetempo bastante para imaginares a coisa maisextraordinária. Mas como adivinharias?

— Uma caveira, calcule!— Não pode ser!— Uma caveira. Costumava tê-la em cima da

mesinha de cabeceira, ali, no lugar do candeeiro .Credo, eu até engalinhava com aquilo, coberta companos pretos como a coca dum frade, os dentes arre-ganhados como a fazer caçoada da gente. Um dia,deu-lhe para a pendurar e, olhe, tanto martelou quefez aquele lindo serviço que ali está.

— Uma caveira… — sonhaste alto.— É verdade. Que Deus me perdoe, que eu

nem gosto de falar nisto, mas uma criada que cátivemos jura que o viu por mais de uma vez, peloburaco da fechadura, a adorar a caveira, com muitasvénias e rapapés. Outra vez foi visto com a caveirana mão, a arengar numa língua muito arre v e s a d a .(“Hamlet!”, pensaste.) Pensando bem, até foi umasorte ele ter-se ido embora, mesmo ficando a dever,como ficou, os três meses. Preferi ficar com o quartovago. Só a luz que gastava!

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Uma vez mais, julgou ler desagrado na tuafronte.

— Se calhar, assustei-o com esta história…— Qual! Essas coisas não me assustam. Se quer

que lhe diga, até acho uma certa piada. E qual era omodo de vida do sujeito?

— E quem o sabe? Parece que escrevia, pelomenos papéis deixou à farta. Uns hóspedes diziamque era poeta, outros que escrevia para os jornais.Mas escrever não é modo de vida para ninguém. Erararo sair do quarto, às vezes até queria que lhe trou-xessem cá o comer. Era um martírio para lhe fazer acama e arrumar o quarto. Às vezes, só à má cara. Ascriadas era serviço que até nem gostavam nada defazer. Mas olhe, já se foi, o diabo o leve.

“Se calhar até levou”, pensaste, mais tarde diriasdisso que fora uma heresia, enquanto a Dona Rosa-lina se enxugava do muito calor, aquela pobre eignorante Dona Rosalina que desprezou e insultou,ralhou para lhe poder fazer a cama, sabe Deus a quegénio, e que no fim se dava por satisfeita por ele seter ido embora, mesmo ferrando um calote de trêsmeses — só porque incomodava os hábitos porcinosdos outros hóspedes, assarapantava as criadas comos seus bibelôs pouco convencionais, recitava Sha-k e s p e a re arrebatadamente e gastava talvez umpouco de luz a mais. Doido? Doido, não. Louco, tal-vez — que é uma coisa muito diferente. Doido…Vai-se a ver e é bem capaz de ter sido um génio, des-

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tes que vivem à maneira de Kafka uma vida obscura,um génio escorraçado pela inospitalidade da pen-são, pelo prosaísmo lorpa dos hóspedes demasiadoocupados com os assuntos pendentes nas respecti-vas re p a rtições para lhe poderem sequer avaliar ae n v e rgadura, incapazes de todo de enxergar umcentímetro fora da secretária. Também tu eras fun-cionário público, é certo, mas que diferença! Via-senos teus versos o espírito limpo e sonhador, oh!nada de refocilar trinta e seis horas semanais emtorno de circulares e portarias, para exigir depois,no quarto de pensão, o aconchego e o repouso queo Louco perturbava com os seus usos que não eramdaquele mundo.

A Dona Rosalina, enxugada do suor, insistia nãosei em que passo do que já dissera anteriorm e n t e ,completando:

— Com respeito ao buraco, se o quarto lheagrada, não lhe dê cuidado. Põe-se-lhe uma rolha.Que, de resto, como eu digo ao senhor, não vale apena. A minha casa, toda a gente sabe.

Pois, pois, era de respeito e limpa, a comidacaseira, nada de ovos e frangos de aviário, as criadashonestas, nada desse gado que às vezes por aí se vê,p rontas a enfiar-se na cama do primeiro hóspedeque as catrapisque, pois, tudo isso, tu sabias, cos-tuma ser sempre assim, mesmo que depois se verifi-que que afinal é tudo exactamente ao contrário,merda e desmandos por todo o lado, comida enla-

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tada, criadas putas como galinhas. Que te importavaafinal tudo isso? Estavas habituado a esse discurso e

Meu grande tonto, mais te importava a viagemalucinada que já fazias, pé quedo e fantasia móvel,ao mundo sideral do Louco, seduzido pelo buraco,pelos papéis milagrosamente salvos de algum des-tino menos limpo, pela atmosfera irreal do quart o— não, jurarias que não era alucinação: re s p i r a v a --se ali, sim, algo de religioso, um ar como tempe-rado pelo hálito místico do anterior ocupante. Queadmiração, nem todos os dias um espírito fratern otopa com vestígios de alguém que se furta à ro t i n a ,e s c revendo, dormindo de dia, viajando à noite àroda do seu quarto, como tu, Basílio, tanta vez,i n t e rrogando caveiras (— E a caveira, também estáno caixote? — Credo, não! A caveira, levou-a comele. Só lá tem papéis, cartas e alguns objectos miú-dos: um isqueiro, uma esferográfica, coisas assim.— É pena.), revelando-se inábil para a tarefa rasteirade espetar um prego, consumindo luz que bastepara escandalizar uma dona de pensão, o que aténem é difícil, convenhamos, fazendo erguer coro sde protestos vis dos outros quartos, oh, cala-te,velhota, não gabes mais o quarto, não é por tu gaba-res o quarto, a comida, as criadas, que eu fico; jádecidi, fico mas é pelo Louco e pela sua grandeza epelos seus papéis, nem ponhas nenhuma rolha noburaco, qual o quê, assim mesmo testemunha elo-quente e viva é que eu o quero e quererei.

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Meu pobre amigo. Como podias, em hora detanto júbilo e transporte, saber que o buraco viria aser a tua perdição, a mastigação fria e desapiedadade ti, o afundares-te num pélago sem nome nemidade, o fim, como podias?

Combinaste com a Dona Rosalina algumas miu-dezas, pediste uma estante para os livros, exigisteque os caixotes do Louco fossem trazidos para oq u a rto, condição sine qua non, recomendaste umavez mais do buraco, prometeste vir dormir já nessanoite e vieste.

A DO N A DU L C E A F I N A L era só repentina. Ti n h aaqueles assomos, mas logo lhe passavam, era umaexcelente senhora, à parte lá as manias com as cria-das. À hora a que foste recolher as tuas coisas jáestava arrependida. Trabalhou ali também o seufraco por ti, que podias ser seu filho, e quem sabe selá por dentro não eras mesmo, porque também háfilhos que não saem das entranhas, ou donde julgasque provinham as torradas com mel ao serão? Veioà fala contigo, disposta a contemporizar com as tuasfraquezas (com as da criada não).

— A gente às vezes diz coisas. Eu também podiaestar ofendida.

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— Quem lhe pega? Ofenda-se — disseste, escu-sadamente grosso, recebendo troco na liquidação daconta.

— O que lá vai, lá vai — disse ela, água ao cantodo olho. — O senhor fique e não se fala mais nisso.

Coitada da Dona Dulce. Uma tão óbvia eansiosa bandeira branca, agitada assim tão defrontedos teus olhos, esteve a ponto de te enternecer. Seriaaliás a atitude mais conforme ao teu coração deágua. Mas havia o buraco, Basílio, e o bafo doLouco, e os seus papéis e cartas. Que podias fazer?Recusaste as tréguas. Dona Dulce enxugou diversaslágrimas muito fungadas ante a tua obstinação epressa, e fez questão de não receber o dinheiro dotelefonema com que chamaste o táxi, um último,desesperado agrado de mãe.

De táxi tinhas de ir, que a mala pesava tonela-das, e havia aquela coisa dos livros, quatro caixotesdeles, com que contavas impressionar os demaishóspedes da Dona Rosalina e atrair para ti a fama deintelectual, juntamente com a admiração invejosa dequem não lê, nunca leu mais do que decretos e des-pachos e portarias, e quando muito novelas deCorín Tellado e os casos do dia dum matutino qual-quer. Havia ainda o relógio de mesa, velho sonho deinfância pago com o primeiro ordenado de escritu-rário-dactilógrafo, e a estatueta. Isto é: os teus tesou-ros, as primeiras conquistas da tua independênciaeconómica. Que em casa de teu pai não havia um só

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l i v ro, nem relógio. Guiava-se o velhote pelo sol nopegar e no despegar de cada dia de trabalho e pelab a rriga na hora de comer, e até foi uma alegriaquando lhe saiu um relógio, meio escangalhado,numa rifa; só então soube ao certo às quantas andava,e isto enquanto o relógio não se escangalhou detodo. Quanto a livros, verdadeiramente talvez nemsequer soubesse o que eram ou para que serv i a m .P o b re homem, o seu fi lho mais tarde comprariametodicamente um relógio de mesa, uma bonitapeça de metal amarelo, adornado com uma figuri-nha feminina seminua de arco na mão e aljava aoombro, mais uma corça e alguns galgos raivosos apersegui-la, adquirido em sete prestações mensaisna relojoaria do bairro. E compraria também muitoslivros, alguns dos quais ainda hoje por abrir, e vin-garia desse modo a memória afrontada do pai, vá-selá saber porquê.

De táxi, portanto. O qual acabou por se perdernas malhas de um grande engarrafamento, para gáu-dio do motorista, que via o taxímetro tic-tic, e paraconsequente desespero teu, que também vias o taxí-m e t ro tic-tic e, sobretudo, ardias em apetites derever o templo. Tanto assim que, mal chegado, pou-sada a mala e demais pertences, te roçaste com ter-nura pelo buraco e quase o beijavas.

— Quem te teria feito? — murmuraste, empleno êxtase. — Que génio aqui morou, entre estasquatro paredes? Poeta? Místico? Filósofo?

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Não avançaste mais nas conjecturas, porque, fir-mando a vista no buraco, deste com um olho fria-mente tranquilo a observar-te do lado de lá! Nemmais, nem menos: um olho, e esse olho olhava-tesem espanto, não obstante os teus êxtases caricatos,olhava-te simplesmente, como se tivesse sido postoali justamente para olhar e nada mais.

Ardias em apetites, disse eu há pouco? Pois per-mite que brinque, levando um pouco além o esforçoretórico: esse olho foi o balde de água fria sobre atua combustão. A qual, aliás, nenhuma água extin-guiria, porque, eu não estava lá para ver, mas adivi-nho: vermelho de vergonha e raiva, ardias em maiorincêndio agora. Quem seria o fulano? Tentaste verde quem se tratava, encostando o teu próprio olhoao buraco, mas, fosse quem fosse, escapulira-se detal forma rente e cúmplice com a parede, que nemsombra dele. Arfavas.

— Com que então uma jóia, hã? — berraste, aboca colada ao buraco, a fim de te fazeres ouvir semreservas no quarto contíguo. — Parece que começa-mos mal, meu caro senhor!

Para o que não obtiveste resposta.

E A RESMUNGAR “uma jóia, uma jóia”, justamentecomo quem quer proclamar o contrário, te entre-

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gaste à tarefa de dispor as coisas a teu gosto e modo.O toque pessoal, em que sempre caprichavas, a vin-gar a solidão de um escalavrado galo de Barc e l o s ,muito atrás na memória. Assim: o candeeiro, bonitapeça, e o rádio de pilhas, sobre a mesinha de cabe-ceira, justamente onde, pensaste com enlevo, hou-vera em tempos uma caveira; os livros, por rigorosaordem alfabética de autores, na estante que a DonaRosalina recuperara de algures e mandara meter aum canto; a roupa nos gavetões da cómoda e noguarda-fatos; o relógio, toque máximo de requinte,s o b re a mesma cómoda, juntamente com dois outrês passe-partoutsde gosto duvidoso; os artigos dabarba, mais o desodorizante, o after-shavee o sham-poo, descobertas recentes, na estantezinha de vidrosobre o lavatório. Que mais? Ah, as aguarelas, resta-vam as aguarelas, pois. Aguarelas, Basílio? Bem, poraguarelas as tinhas, a essas folhas de papel almaçoonde tu mesmo distribuíras umas pinceladas de corbarata, nervosas e abstractas, “ com raça” , dizias,julgando teres produzido obras de arte. Então poisas aguarelas onde ficam? Vejamos: uma, re p re s e n-tando presumivelmente um rosto e colo de mulher(Maria Fernanda, Maio de 1966), sobre o leito,como os crucifixos das velhas celibatárias; que noleito quiseras tu ter tido, e nunca tiveras, o original.Outras três, possíveis paisagens, na parede defronte,colocadas em degrau, muito giro, inspiração direc-

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tamente colhida de uma página da Schönen Wöh-n e n. Finalmente a marinha, ora bem, a marinha,

— Eureca!Ideia genial. Porque o olho de há momentos,

obsidiando-te a memória com a sua metálica frieza, tealterara um tanto as intenções com respeito aoburaco. Mesmo durante a arrumação das coisas,nunca te conseguiras furtar à incómoda sensação dee s t a res a ser observado ou, pelo menos, de poder sê--lo a qualquer momento, a capricho do vizinho dolado. O buraco transformava-se afinal no periscópioda tua intimidade. Pois sim, mas ali tinhas o ovo deColombo, a solução a um tempo prática e decorativa,o sucedâneo nobre da prosaica rolha alvitrada pelaDona Rosalina, o útil casado com o agradável: aa g u a rela, colada nos cantos com fita-cola, tapando oburaco, restituindo-te a privacidade ameaçada.

— Mas que bem! — fez a Dona Rosalina, citadaa que viesse ver a perfeição da obra. — Mas que boaideia o senhor teve. Assim já não é preciso tapar oburaco. Sim senhor, está tudo muito bonito. Ena,tanto livro!

— Alguns — condescendeste, com falsa modés-tia. Mas o olho, pá, diz-lhe do olho. — Bom, DonaRosalina, quando me conhecer melhor verá que nãosou absolutamente nada do género de andar comqueixinhas. Nunca fui. Mas não vejo maneira deocultar que há pouco surpreendi o cavalheiro dolado a espreitar pelo buraco.

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Nada a poderia ter surpreendido mais. Abertaem espanto:

— O senhor que me diz?!— A senhora ouviu. A bem dizer ainda não

tinha pousado a mala, já havia um olho a coscuvilhardo lado de lá.

— Não é possível!— Como não é possível?! — tornaste, abespi-

nhado.— Não é possível, já lhe disse — repetiu, pere m p-

t ó r i a .— Mas se eu vi com os meus próprios olhos!— Já lhe disse que não é possível, senhor.

O senhor Gusmão trabalha nos Correios até às oitohoras. Nunca chega antes das oito e meia. Ainda nãosão sete horas. Já vê que não pode ser.

— Então era o diabo por ele. Porque lá quealguém espreitou, disso não tenha dúvidas.

— Fosse quem fosse, o senhor Gusmão é quenão. Ainda não chegou a casa, isso lhe garanto eu.Quer ir verificar? E que tivesse chegado (que nãochegou)? O senhor Gusmão, espreitar pelo buraco?Nem pense. O senhor viu-o, conheceu-o?

— Vi um olho e presumo que, segundo todas asprobabilidades, além do olho, o resto do corpo esti-vesse também.

— O olho?! E reconheceu-o só pelo olho?O s e n h o r, se calhar, ainda nem conhece o senhor

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Gusmão! Não pode ser, acredite. Se ele ainda nãochegou…

P rocuraste ver as coisas com calma. Pensandobem, que provas concretas tinhas contra o empre-gado dos Correios, o qual, como a Dona Rosalinaaventara, de facto nem sequer conhecias? Nãopoderia ter sido antes uma criada, que esta casta degente é sempre amiga de coscuvilhar, morm e n t equando se trata de hóspedes novos, e tem, a favore-cer-lhe o vezo, acesso às chaves de todos os quartos?

— Vejamos. Se a senhora me diz que ele aindanão chegou, o caso muda de figura. Mas eu nãos o ua t reito a alucinações. Que alguém espre i t o u ,e s p re i t o u .

A pergunta que ela foi fazer!:— De que cor era o olho?— Ora abóbora! — ribombaste, e adeus calma,

adeus paciência. — Não é possível ver-se a cor deum olho que nos espreita do lado de lá dum buraco.Não se pode ser minucioso a esse ponto, DonaRosalina! Vi um olho e basta, e posso garantir- l h eque não era, por exemplo, um nariz ou um calca-nhar, essa não está má!

— Calma, senhor, não se excite, nem fale alto,que ninguém é surdo, e aqui na pensão não temos ohábito de gritar. Voltando ao olho. Só se fossealguma criada. Mas estranho muito, que elas

Pois, pois, as criadas honestas, a comida caseira,a velha ladainha, bem sabias, bem sabias. E desta

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f o rma te vias de novo envolvido em percalços decriadas. Vê a ironia: por causa de uma criada,bateste com a porta ao sair de casa da Dona Dulce;por causa de outra criada, estás agora em vias deconflito com a Dona Rosalina. Logo no primeirodia! Bolas para as criadas!

E a patroa falava, falava:— Uma criada, ainda vá que não vá. Um hós-

pede novo, para mais um rapaz ajeitadinho como osenhor… Agora o senhor Gusmão, espreitar peloburaco? Se ele soubesse que o senhor pensou sequerisso dele… — e calou-se, velhaca, deixando-te pro-positadamente na dúvida sobre o que faria o talGusmão, no caso de saber.

— Seria bom, então, que advertisse as criadas.— Pois está visto. Lá nisso tem toda a razão.

Agora o senhor Gusmão! Se ele soubesse… Ai, seele soubesse…

CO M E S T E P O U C O, BA S Í L I O. Como comerias? Nãoque te assustassem por aí além as insinuações daDona Rosalina sobre o mau génio do Gusmão, quealiás, limpavas tu a boca do derr a d e i ro gole de vinho,ainda tiveste ocasião de ver entrar na sala de jantar;e, por Júpiter, era mesmo um gigante temível, segu-ramente mort í f e ro contra quem quer que tivesse o

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infortúnio de o irritar. Mas, enfim, não era disso queo apetite te falecia; tinhas mesmo esquecido passa-geiramente o incidente. E a comida, reconheceste,não era má de todo, caseira e abundante, nisso nãomentira a Dona Rosalina. O fastio procedia antes daânsia de te encontrares de novo a sós no quart o ,agora sim, a tombos com a papelada do Louco. Porisso comeste pouco, recusaste uma chávena de cafée subiste as escadas duas a duas. Uma vez no quarto,trancaste-te por dentro, cioso da privacidade doritual que apetecias e te havia de levar, noite fora,em amoroso diálogo com a verdadeira lucidez que,aos olhos do vulgo, é loucura estreme.

Mas: horror! Olhando instintivamente o sítio do buraco,

gelou-se-te o sangue, as pernas claudicaram, rolousobre ti o horror rotundo dos grandes lances trági-cos. E isso porque (horror horror horror!) imagine--se: do quarto do lado, alguém, servindo-se porven-tura de um lápis, de uma chave de parafusos ouapenas de um dedo longo, tinha perpetrado um ras-gão na aguarela!

A próxima coisa de que te lembras, Basílio, é dete veres na cozinha, a praguejar, lívido de cólera eespanto, sedento de sangue, alvoroçando patroa ecriadagem:

— Dona Rosalina! Venha ver! Ande, venha ver!A procissão que ali se armou! Porque não só a

Dona Rosalina, como a cozinheira e a respectiva aju-

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dante, mais uma velhota que passava todos os diaspela pensão, depois do jantar, a recolher os restos decomida para os cães, um electricista que morava nasredondezas e estava a fazer um biscato num electro-doméstico, as duas criadas, a de dentro e a de fora,e ainda os hóspedes todos, incluindo o Gusmão dosC o rreios, toda esta gente foi ver, contigo à fre n t emarcando a cadência militar, tremendo de indigna-ção e tremendo.

Mas foram ver o quê, se ninguém perc e b i anada? Foi preciso tu, Basílio, de dedo enérg i c o ,d e s i g n a res a mutilação. Que ainda assim custou aver, que o rasgão, na verdade, não era demasiado ecomo que se dissimulava na própria mancha daa g u a rela. Mas era um rasgão, bolas, e inutil izavauma obra de arte. E devassava uma alcova. Era umrasgão bárbaro e despótico, um duplo crime.

Assim o não entendeu a Dona Rosalina, queexclamou, enxofrada:

— Credo! E é preciso fazer tanto barulho porcausa daquilo?

Não garantes ter dito coisa sensata com que lherebatesses a leviandade, pois reconheces que estavascego e gago demais para tanto. Mas crês ter tentado,aliás baldadamente, porque

— Quem o ouvisse havia de julgar que tinhacaído o tecto do quarto — proferiu ainda ela, tran-quilamente, obviamente aliviada de outros legítimostemores.

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