o poliencantamento do mundo por meio das organizações

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Lucas Casagrande O Poliencantamento do Mundo por meio das Organizações Imediatistas Porto Alegre 2018

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Lucas Casagrande

O Poliencantamento do Mundo por meio dasOrganizações Imediatistas

Porto Alegre

2018

Lucas Casagrande

O Poliencantamento do Mundo por meio dasOrganizações Imediatistas

Tese de Doutorado apresentada ao Programade Pós-Graduação em Administração da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul, comorequisito parcial para a obtenção do título deDoutor em Administração na área de EstudosOrganizacionais.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Escola de Administração

Programa de Pós-Graduação em Administração

Doutorado

Orientador: Prof. Dr. Ariston Azevêdo

Porto Alegre2018

CIP - Catalogação na Publicação

Casagrande, Lucas O Poliencantamento do Mundo por meio dasOrganizações Imediatistas / Lucas Casagrande. -- 2018. 151 f. Orientador: Ariston Azevêdo.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Escola de Administração, Programa dePós-Graduação em Administração, Porto Alegre, BR-RS,2018.

1. Imediatismo. 2. Perspectivismo. 3. Anarco. 4.Organização Imediatista. 5. Encantamento do mundo. I.Azevêdo, Ariston, orient. II. Título.

Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

À Marcos e Helena.

Agradecimentos

Esta tese não teria sido possível sem uma rede de apoio de pessoas queridas que,por um lado, deram insumo à imaginação e, por outro, ofereceram suporte emocionalmesmo nos momentos mais terríveis.Foram mais de quatro anos nos quais as experiências me fizeram me sentir agradecido atantos, os quais destaco agradecimentos:À banca: Rene Seifert, Fábio Meira, Rogério Faé e João Crubellate.Agradeço à Carla Bianchini, companheira incansável.Agradeço ao CNPq pelo apoio.Aos amigos e parceiros intelectuais, Guilherme Câmara, Felipe Borges, Carlos Oviedo eNilo Freitas.Aos amigos companheiros de 329, em especial Guilherme Bucco e Pablo Guedes.Aos meus pais, Marcos e Helena.Aos professores pelos aprendizados, ensinamentos e discussões, em especial à MarianaBaldi, Maria Ceci Misoczky, Rafael Flores, Fernando Dias Lopes, Takeyoshi Imasato, SueliGoulart, Rosimeri Carvalho da Silva, Rogério Faé, Ronaldo Bordin, Paulo Abdala, DanielLacerda, João Luiz Becker e Raul Enrique Rojo.À Christine Schröeder, Vanessa Daniel, ao Fausto Piovesan, Rafael Koff e Mateus Waechter– amigos para todas as horas.Aos colegas Martin Zamorra, Luiza Damboriarena, Igor Medeiros, Carla Netto, HenriqueVieira, Paulo Cerqueira, Caroline Capaverde, Jaqueline Silinske e Bruno Lessa.Ao Thiago Antunes, incansável no seu zelo com o PPGA.À Catarina Moreira, Orhie Precious Akponah e Martyn Morton, amigos além-mar.Aos colegas de representação discente.Ao Coordenador do PPGA, Walter Nique, promotor da democratização do programa.Aos companheiros e companheiras de ocupação.Ao Paulo Capra, brilhante amigo e autor da imagem que ilustra a terceira parte desta tese.Aos companheiros de tantas outras organizações imediatistas.Ao Prof. Martin Parker, que me orientou no período de sanduíche em Leicester.E, especialmente, ao Prof. Ariston que confiou e me outorgou toda liberdade necessária e,mesmo assim, me acompanhou neste longo processo.

A vida vai, a vida escapaOs dias marcham ao tédio

Partido de Vermelhos, Partido de GrisalhosNossas revoluções são traídas.

Trabalho mata, trabalho pagaTempo é comprado no supermercado

O tempo pago não é retornadoJuventude morre de tempo esgotado.

Os olhos, feitos pro amor,São reflexos do mundo dos objetos.

Sem sonhos e sem realidadeSomos condenados às imagens.

Os alvejados, os famintosvem a nós das profundezas do passado.

Nada mudou, tudo começae termina na violência.

Que queimem os antros de padresOs ninhos de mercadores, dos policiaisNo vento que dissemina a tempestade

Os dias festivos serão colhidos

As armas apontadas pra nósContra os chefes serão voltadasSem mais líderes, sem Estado

que lucram dessa batalha.

(canção pré-68 de Raoul Vaneigem em arranjo por Francis Lemonnier)

ResumoEsta tese tem como problemática a de como se organizar sem sujeitar a própria vontade àordem. Tal questão teórica se assume pertinente aos Estudos Organizacionais enquantopossibilidade de crítica à Administração gerencialista, mas também a toda ciência dasorganizações que se fecha no formalismo normativo. Se nega o método na forma ensaís-tica. Critica-se a formulação burocrática do Estado em um primeiro momento, buscandoseus críticos anarquistas, tais como Proudhon e Bakunin. Mas estes ainda entendiam oEstado como um ente externo. Aponta-se que tal diagnóstico deriva de um entendimentoiluminista. Por isso se recorre à crítica ao essencialismo nos termos de Nietzsche. Sob talepistemologia, não há verdade que preceda a realidade. Por outro lado, se nega o relati-vismo pós-moderno. Assim, vislumbra-se um perspectivismo que pressupõe a realidadecomo derivada da vontade de poder. A verdade é, assim, decorrente de relações de poder.Sob tal pressuposto, se analisa a ocorrência do desencantamento do mundo nos termosde Weber. Esse é compreendido como fruto da racionalização e da perda de sentido. Odesencantamento, então, é tomado como a sujeição do indivíduo aos intérpretes da verdade,as autoridades. Historicamente se dá pela formação da religião, com os intérpretes do alémmundo (os clérigos), para, com a secularização, consolidar-se no Estado. Tipifica-se taisautoridades enquanto enunciativas e institucionais. Essa formação da autoridade é a baseorganizativa do mundo moderno desencantado. Isso é, também, a base da mediação davida, que atribui a entes externos a valoração (seja moral, seja econômica) das relações edas experiências. Dessa forma, se reconceitua o Estado enquanto ente de mediação que sepretende total. Tal ente transforma o indivíduo em ser. O desencantamento é entendidocomo o processo histórico que transmuta o indivíduo criador em Homo miserabilis quepossui necessidades, conceito de Ivan Illich. Como alternativa e contraposição a esteprojeto se apresenta as Organizações Imediatistas. Trata-se do conceito de Hakim Beyque descreve organizações que não visam sua própria perenidade ou crescimento, mas simque são meios para exercício da vontade dos indivíduos que as constituem. Tal conceito édescritivo da realidade quando se observa, na realidade, organizações como os encontros, osprojetos coletivos horizontalizados e as zonas autônomas temporárias. Ao mesmo tempo, seargumenta que tais organizações existem e que compõem uma máquina de guerra, conceitode Deleuze e Guattari, contra as estruturas hierárquicas. Para isso, devem ser alheias àmediação e evitar a cooptação pela representação total, necessitando serem desapercebidas.Tais organizações não possuem um modelo, sendo plurais, evitando o decalque. Nestamultiplicidade, argumenta-se que se possibilita um poliencantamento do mundo.Palavras-chave: Imediatismo. Perspectivismo. Anarco. Organização Imediatista. Encan-tamento do mundo.

AbstractThis thesis has, as question, of how to organize without subjecting the own will to theorder. Such a theoretical question is pertinent to the Organizational Studies as a possibilityof criticism to the Managerial Administration, but also to all the science of organizationsthat encloses in the normative formalism. The method is denied in the essay form. Thebureaucratic formulation of the State is criticized at first, seeking its anarchist’s critics,such as Proudhon and Bakunin. But they still understood the state as an external entity.It is pointed out that such diagnosis derives from an Enlightenment understanding. Thatis why criticism of essentialism is used in Nietzsche’s terms. Under such epistemology,there is no truth that precedes reality. On the other hand, postmodern relativism is denied.Thus, we can see a perspectivism that assumes reality as derived from the will to power.Truth is thus the result of relations of power. Under this assumption, we analyze theoccurrence of the disenchantment of the world in Weber’s terms. This is understood asthe fruit of rationalization and loss of meaning. Disenchantment, then, is taken as thesubjection of the individual to the interpreters of truth, the authorities. Historically, it isdue to the formation of religion, with the interpreters from the other world (the clerics), inorder to consolidate themselves in the State through secularization. Such authorities aretypified as enunciative and institutional. This formation of authority is the organizationalbasis of the modern disenchanted world. This is also the basis for the mediation of life,which attributes to external entities the value (both moral and economic) of relationshipsand experiences. In this way, the State is reconceptualized as a mediation entity that isintended to be total. Such a being transforms the individual into being. Disenchantmentis understood as the historical process that transmutes the creative individual into needs-obsessed Homo miserabilis, Ivan Illich’s concept. As an alternative and contrapositionto this project are presented the Immediatist Organizations. It is the concept of HakimBey that describes organizations that do not aim at their own perennial or growth, butrather are means to exercise the will of the individuals that constitute them. Such aconcept is descriptive of reality when one actually observes organizations such as meetings,horizontalized collective projects, and temporary autonomous zones. At the same time, it isargued that such organizations exist and make up a war machine, a concept of Deleuze andGuattari, against hierarchical structures. For this, they should be unrelated to mediationand avoid cooptation by total representation, needing to be unseen. Such organizations donot have a model, being plural, avoiding the decal. In this multiplicity, it is argued that apolyenchantment of the world is possible.keywords: Immediatism. Perspectivism. Anarch. Immediatist Organization. Enchantmentof the world.

Lista de ilustrações

Figura 1 – Não à burocracia. Fonte: Cartaz de maio de 68 (MHEREB; CORREA,2018) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Figura 2 – Retorne à Verdade... Fonte: adaptação sobre cartaz de maio de 68.(MHEREB; CORREA, 2018) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

Figura 3 – Organizações Imediatistas nos vácuos da estrutura social. Fonte: Capra(2008) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

Lista de abreviaturas e siglas

AIT Associação Internacional dos Trabalhadores

CCTV Closed-circuit Television

CMS Critical Management Studies

CSN Companhia Siderúrgica Nacional

EO Estudos Organizacionais

IAC Instituto de Artes Contemporâneas

IS Internacional Situacionista

MIBI Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista

TAZ Temporary Autonomous Zone

TGS Teoria Geral de Sistemas

Sumário

1 APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

I EM DIREÇÃO A UMA TEORIA ANARQUISTA NOSESTUDOS ORGANIZACIONAIS 17

2 EM DEFESA DA IMAGINAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Em contraposição à ciência normal, se vislumbra um esforço teórico ensaístico. Não há

método prévio. Inspira-se na metáfora de Hermes.2.1 Ciência é Poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202.2 Hermes, o ensaísta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

3 O PRESSUPOSTO LEVADO A CABO: O QUE É A ORGANIZAÇÃO? 32A Administração faz parte de um intento moderno de racionalizar e desencantar o

mundo. Tal intento se constitui a partir de uma ausência do questionamento da autoridade,a legitimando. Tal ausência leva a conceitos restritos de organização que refletem uma visãodesencantada e autoritária da realidade e a promovem.3.1 Dominação e Organizações Formais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

4 ESTADO E CAPITAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55A propriedade dos meios de produção é a base para constituição da relação de Estado

e Capital. Estes são intrinsecamente ligados e formam uma estrutura de dominação. Proudhone Bakunin são a gênese do pensamento anarquista moderno.4.1 Contra o Estado, Contra a Ortodoxia . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

II POR QUE O ESSENCIALISMO É TÃO PERIGOSO AOSESTUDOS ORGANIZACIONAIS? 69

5 VONTADE DE PODER, VERDADE E MORAL . . . . . . . . . . . 71Todo ato humano é fruto da vontade de poder. Mesmo o discurso técnico e mesmo o

discurso científico são frutos da necessidade humana de se expandir sobre os demais por meioda constituição do que é a verdade. Dessa forma, não há verdade que preceda o poder.

6 RACIONALIZAÇÃO E DESENCANTAMENTO DO MUNDO: AOBSTRUÇÃO DO DEVIR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

O desencantamento do mundo se dá pela sua racionalização em oposição ao devir.Cada vez mais, o mundo deixa de ser criação da vontade de poder do indivíduo e a relação se

inverte: o indivíduo passa a se tornar objeto do mundo.

7 DO AUTORIZAR À AUTORIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92O desencantamento advém da aceitação de autoridades. A autoridade advém do ato

autorizativo, que com as religiões ocidentais se torna uma autoridade enunciativa (aqueleque intermedeia deuses e humanos). A ciência e a racionalização progressiva do mundoinstitucionaliza tais autoridades em organizações formais, possibilitando o último estágio dedesencantamento do mundo por meio da autoridade institucional.

III A ORGANIZAÇÃO IMEDIATISTA 99

8 O ANARQUISMO ONTOLÓGICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101A visão anarco se afasta da concepção essencialista de verdade e naturalista do

homem enquanto ser cooperativo. A suposta ordem natural do mundo é nada mais que umainterpretação. Ao se interpretar que há uma ordem, se proclama a mesma, passando a se imporsobre os demais. Em contraposição a isso há de se considerar que o mundo é inerentementecaótico, sem atribuir conotação moral a este pressuposto.

9 ESTADO, MEDIAÇÃO E IMEDIATISMO . . . . . . . . . . . . . . . 108O Estado passa a ser entendido não só como a estrutura estatal externa à sociedade, mas

como uma totalidade que tudo medeia por meio da representação da verdade. É o Espetáculo.O indivíduo torna-se objeto do Espetáculo sistêmico, onde suas vontades são substituídas porsuas necessidades.9.1 O Homo miserabilis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

10 A ORGANIZAÇÃO DESAPERCEBIDA . . . . . . . . . . . . . . . . 119Frente à mediação total, ao Espetáculo, a organização imediatista deve estar desaper-

cebida sob pena de cooptação ou destruição.10.1 A Organização para além do Estado: As Organizações Imediatistas 12310.2 Experiências Imediatistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

11 CONSIDERAÇÕES FINAIS E NOVAS POSSIBILIDADES . . . . . 135

REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

12

1 Apresentação

Esta tese é parte de um esforço teórico de compreender como indivíduos se organizammas, acima de tudo, faz parte de um empreendimento de pensar como poderiam seorganizar. Para isso, esboço aqui um ensaio que visa refletir sobre como se organizar deforma horizontal, como ser parte de um ente coletivo coordenado sem que para isso sesujeite a este mesmo ou a outros. Recorre-se a ideia de imediatismo – enquanto o que nãoé mediado e, ao mesmo tempo, o que é imediato.

Digo que é parte de um esforço porque o doutoramento que patrocinou estatese foi um empreendimento para além do documento que segue. Foram anos de lutacoletiva em prol da autonomia discente frente a práticas de subserviência, dominação eexploração. O curso de doutorado foi, de minha parte, uma práxis constante de libertaçãoe de autonomização do pensamento. E, para isso, a despeito de um mar de fiscais daverdade e conformantes do pensamento alheio travestidos de doutos, houve ilhas d’onde agenuína reflexão pôde florescer. Essas ilhas, desapercebidas pela hierarquia, organizaçõesimediatistas para mim, são também objeto desta tese – mas são, mais ainda, inspirações.

A problemática desta tese é de como se organizar sem se sujeitar, semsubsumir a própria vontade na ordem expressa sobre si – seja essa ordembaseada em uma crença no transcendente, na essência da verdade a priori, ounos seus representantes sociais, as autoridades. Para isso, se afastará da concepçãode organização burocrática do Estado, entendido como o pilar fundamental da organizaçãoformal, em um primeiro momento, buscando seus críticos anarquistas, tais como Proudhone Bakunin. Após, se demonstrará como algumas limitações de tais críticos podem sersuperadas com contribuições perspectivistas como a de Nietzsche. Ao fim, argumenta-seque autores atuais tais como Hakim Bey, ao incorporarem o exposto nas seções anteriores,possibilitam pensar organizações libertárias a partir da ideia de imediatismo.

Apresentarei, em um primeiro momento, a problemática e o meio que usareipara endereçá-la. Ambas são fruto de um interesse pessoal, mas também frutos de umanecessidade circunscrita no seu momento histórico. É por isso que o nome do primeirocapítulo é “Em defesa da imaginação”: frente ao crescimento autoritário e às ameaçasque o carregam em seu seio, há de se resistir sim, mas há de se respirar ares menosinebriados pela política que busca no Estado a solução aos problemas sociais. Da mesmaforma, o cientificismo objetivista produz um ciclo de soluções objetivas que resolvem velhosproblemas e, ao fazê-los, criam novos. Aqui, contraposto a isso, viso emergir da asfixiaansiogênica da política estatal, alheio aos métodos pré-definidos da ciência normal, tomadopor uma verve ensaística e buscando atributos divinos em Hermes, antigo deus grego da

Capítulo 1. Apresentação 13

comunicação.

No momento subsequente coloco foco na crítica aos pressupostos organizacionaismainstream. Tal momento faz-se relevante como antevisão e resposta à qualquer crítica aum deslocamento em relação ao campo de Estudos Organizacionais. É onde estabeleço acontrariedade frente à ideia de organização enquanto sistema técnico ou enquanto meiosocial de eficiência. Ao fim deste capítulo, pretendo demonstrar que as organizações formaismodernas estabelecem sistemas de dominação, de forma que afasto a hipótese de pensarem um argumento calcado nas teorias organizacionais mais usuais.

Frente a isso, recorro à visão anarquista clássica de Proudhon e Bakunin paraconceituar Estado, sua relação com o capital e, com base nessa problematização, tratar debuscar soluções. Como veremos, se por um lado tais autores permitem uma crítica radicalnecessária, por outro podem ser insuficientes em suas proposições. A alienação social nãopode ser superada pelo conhecimento, tampouco o Estado ruirá progressivamente pelailuminação da razão dos seres.

Neste ponto esta tese encontrará uma interrupção, a que chamo de Parte 2. Nestaparte irei discutir as questões epistemológicas da tese. Mas não faço isso por capricho:ocorre que os pressupostos epistemológicos criam crenças que possibilitam diferentestipos de viver e, por conseguinte, organizar. Assim, voltarei meus argumentos contra oessencialismo, doutrina dominante na ciência, sem com isso me alinhar a visão relativista.Advogarei ali por um perspectivismo inspirado em Nietzsche.

Tal perspectivismo permite uma teoria que não aceite a premissa de um ser sujeitadoa Deus e sua transcendência; às instituições e suas normas; à verdade e sua interpretaçãomoral por parte das autoridades. Essa sujeição do indivíduo ao estabelecido por outremé, argumento, a base do desencantamento do mundo. O resultante do processo históricoocidental a que Weber conceitua não é só uma perda de sentido e de paulatina e progressivaracionalização: é também uma delegação da própria vontade à autoridade, ao interpretadordo mundo, ao clérigo, ao chefe de Estado, ao cientista, ao intérprete da verdade.

Argumento que a consolidação desses intérpretes do mundo necessita da crençaepistêmica da verdade enquanto única. O problema do essencialismo e da crença nestaverdade é que, no entanto, ela não é algo alcançável. Cria-se um oxímoro: há uma verdadeúnica, mas esta não é acessível a todos que, por sua vez, a experienciam de forma distintaentre si. Frente a isto o mundo passa a ser mediado por aquele que mais se aproximada verdade. Passamos a autorizar alguém a interpretar a realidade. Do ato autorizativonasce a autoridade enunciativa: é ela quem enuncia a verdade. Esta é a base do que depois,institucionalizado, torna-se a autoridade que entendemos no senso comum: o chefe, osuperior hierárquico.

Com este arcabouço (perspectivismo anti-essencialista, desencantamento do mundo

Capítulo 1. Apresentação 14

e formação de autoridades) constituo a base de uma revitalização do anarquismo, ilustradopelo pensamento de Hakim Bey. Mas esta se dá de forma indireta, em especial a partir dadécada de 1960. Com a influência do pensamento situacionista, do pensamento de IvanIllich e de Deleuze e Guattari, surge um anarquismo que visualiza não só uma luta contraa dominação e à autoridade, mas uma luta pela libertação das vontades.

Sob tal visão, o anarquismo não é mais só uma corrente prescritiva da realidade,mas também uma descrição teórica do mundo. Trata-se de observar a realidade não emtermos de ordem, mas sim na aceitação de que o mundo é caótico. Isto é um pressupostoque se finca como oposto aos ideais de beleza asseada, de sociedade de seguros, de ordemimposta. É o oposto de uma visão burocrática, que tenta dar segurança normativa a umarealidade que nunca oferece garantias ou certezas.

Aqui, argumento que o Estado deixa de ser o ente separado da sociedade que impõeuma ordem e se torna um ente abstrato que medeia a vida. Essa mediação advém dacrença essencialista, onde outorgamos às instituições a valoração (seja ética, seja econômica,seja das nossas próprias vontades) de tudo com que nos relacionamos. Deixamos de sercorpos desejantes, deixamos de ser indivíduos únicos, e nos tornamos partes de um sistemasocial. Substitui-se, historicamente, a vontade, o desejo, pela necessidade. Tornamos-nos oHomo miserabilis, seres domesticados por um sistema que nos medeia e que acabamos porintrojetá-lo.

O conceito de Estado então se torna relativo à instituição que tudo medeia. É contraisso que a crítica anarco se volta contra. Tal conceito é permeado pelos apontamentossituacionistas de que o Espetáculo1 medeia e coopta tudo em seu favor. As característicasdeste Espetáculo são incorporadas, então, à ideia de Estado.

Mas esta é a estrutura hierárquica, que tudo medeia, baseado em um discursoessencialista que tenta sempre se impor. Mas se há dominação e cooptação por conta dahierarquia social, há também o devir e a criação que advém dos indivíduos. Mas esse devirse dá de forma pulverizada, descentralizada, num corpo sem órgãos, em uma vida criadora.Não é o apelo institucional, a revisão do Estado, a melhoria da mediação. É a máquina deguerra que opera em pontos que aparecem para logo depois desaparecer. Frente ao Estadoenquanto dominação e mediação, argumento que a resistência ocorre nas organizaçõesimediatistas.

Tais organizações se articulam em um rizoma. São desapercebidas pelo Estado – esó podem existir enquanto tais. Na medida em que, dado o tempo, todas organizaçõestendem a ser cooptadas pelo sistema de representação total, a única fuga é a linha deescape da efemeridade. Mas este não é o único motivo que tais organizações tendem aser de curta duração: elas também o são porque entre a fragilidade do indivíduo e a da1 O conceito de Espetáculo será tratado na terceira parte desta tese.

Capítulo 1. Apresentação 15

organização, a segunda é preferível à primeira. A organização não é só um meio para umfim, tal como a revolução ou a produção. A organização é a constituição do próprio fim: éo locus da experiência, do exercício da vontade, da libertação das paixões.

Por isso, argumento, a organização que se posta frente ao sistema de representaçãototal é a organização imediatista. É aquela que possibilita a vida não mediada, aexperiência plena e, ao mesmo tempo, não se prende a uma necessidade de perenidade. Talorganização não advém de uma verdade externa ao indivíduo, não sistematiza a realidadealheia à experiência. Ela não possui um modelo, não produz um decalque: ela é diversa,plural, cada uma distinta da outra, cada qual sujeitada à vontade dos seus participantes(que são únicos). Em seu seio, ela possibilita um novo encantamento – que não é umúnico modelo, que não é um retorno ao primitivo, mas um perspectivismo múltiplo. É umreencantar polimórfico, é um poliencantamento.

Parte I

Em Direção a uma teoria Anarquista nosEstudos Organizacionais

18

Nesta primeira parte da tese, é construída a problemática. Para isso, em um primeiromomento se questiona o método, a ciência e a escrita. O método ensaístico possibilita comque não se fale pelo outro e que não se considere o outro como tal. Tal método, enquantotexto, se conforma sob uma visão hermética, na qual a experiência e a imaginação, tantodo autor quanto do leitor, se tornam parte da tese. Tal postura, inspirada na ideia deum Hermes enquanto comunicador subjetivo, possibilita uma ética do desapercebimento.Dessa forma não se busca uma tese objetiva, tampouco se busca uma tese que desveleos segredos de organizações libertárias. Não se trata de desnudar práticas libertárias àsestruturas de poder, mas sim de suscitar a imaginação contra a hierarquia.

Em um segundo momento se discutirá o que é a organização e o que a mesmapode ser. Se partirá dos clássicos da área de Estudos Organizacionais como ilustrações doautoritarismo. Neles, podemos perceber o intento de consolidar a verdade como essencialnas organizações e a razão econômica como única possibilidade. Assim, a Administração,área em que os Estudos Organizacionais se situam, é fundada sob um projeto modernohierárquico.

Tal projeto cria e legitima o que se entende modernamente como organização.Assim, se problematiza a questão das organizações formais e a burocracia sob a crítica deIvan Illich. Com isso, se retomará a crítica de Proudhon e Bakunin ao Estado, à autoridadee ao capital. Ao final, a partir das discussões e vivências de Proudhon e Bakunin, seobserva que o problema antiautoritário necessita rever a questão da Verdade sob pena denão se superar o Estado. Tal questão é o elo com a segunda parte desta tese.

19

2 Em defesa da imaginação

O interesse do pensamento anarquista – a de constituição de organizações semautoridade – ainda é um objetivo pouco explorado no meio acadêmico de estudos organi-zacionais. Há várias explicações para isso e duas delas são costumeiramente citadas depronto: a de que anarquistas são normalmente arredios às instituições formais tal comoa Universidade; e de que a própria constituição universitária -– que separa o autorizadoprofessoral do não-autorizado expectador — impede, por natureza, essa interlocução 1.

Em seu manifesto por uma ciência anarquista, Graeber (2011) observa que, emboraa academia esteja repleta de teóricos marxistas, o anarquismo ainda parece uma filosofiapouco difundida 2. Ademais, quando citado, é comum que seja de forma não admitida e,por vezes, envergonhada. Mesmo nos estudos críticos da administração, há pouca difusão ediscussão do pensamento anarquista, ao passo que o marxismo possui uma tradição teóricaconsolidada na área.

A ideia de se organizar de forma anarquista suscita uma série de preconceitos(sendo o mais comum de que isso é uma contradição em termos), além de uma série detemores (afinal, não há falta de mártires anarquistas). Mas há um fator adicional: aopasso que a teoria marxista foi criada, propriamente, por um doutor, por um acadêmico, oanarquismo sempre foi relacionado mais a uma atitude do que a uma tradição científica.Note, ainda, que as subdivisões marxistas sempre partem de autores (e, muitos deles, chefesde Estado!): Leninismo, Maoísmo, Trotskismo, Gramscianos, etc, ao passo que as disputasanarquistas se referem sempre a distintas práxis: anarcossindicalistas, plataformistas,anarquistas ontológicos, cooperativistas, mutualistas, etc. (GRAEBER, 2011). Assim,é quase paradoxal que, embora as correntes anarquistas se definam precisamente pelassuas práticas ou princípios organizacionais, tais questões são costumeiramente renegadasa um segundo plano justamente na área acadêmica que se propõe a estudar práticasorganizativas, os Estudos Organizacionais.

Este suposto paradoxo parece encontrar uma explicação fácil na ideia de queanarquistas querem ações e se rebelam contra teoria. Mas há de se procurar muito atéachar um anarquista anti-intelectual. Ao invés de uma ausência de reflexividade teórica,1 De fato, parece que poucas instituições sobreviveram tão incólumes durante tantos séculos quanto a

Universidade. Sob este aspecto, não causa estranheza considerarmos que uma crítica radical se pensefora de uma instituição conservadora.

2 David Graeber está falando de um contexto distinto deste aqui (antropologia anglófona, sobretudo),mas seus apontamentos são surpreendentemente aplicáveis ao contexto dos Estudos Organizacionaisbrasileiros. Sua comparação com o marxismo é decorrente do fato desta tradição teórica se postarcomo o mainstream crítico. No caso dos Estudos Organizacionais (ou dos estudos críticos), o contextobritânico é uma exceção: o anarquismo lá já é difundido na área, mas sua abrangência parece resistir aatravessar o Mar do Norte.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 20

é possível que a dificuldade acadêmica em relação às práticas anarquistas é de que elasnão constituem uma teoria unificada e que não possuem uma ortodoxia — e isso não sãofalhas, mas sim características intencionais 3.

2.1 Ciência é PoderMuito da resistência anarquista à Universidade reside na crítica à uma ciência

que transforma tudo em espetáculo4. Black et al. (2006), em um ataque ao chamadoao academicismo de David Graeber (2011), apontam a impossibilidade do conhecimentoobjetivo ser utilizado para liberação ou contra a dominação. De fato, parece claro quetodo conhecimento sempre pode ser apropriado por aqueles que possuem os meios parafazê-lo. Não causaria estranheza, por exemplo, que uma pesquisa sobre uma organizaçãoanarquista fosse apropriada pelos órgãos repressores da mesma. Nada poderia ser pior auma organização de liberação radical que sua revelação à luz da ciência tradicional.

Tomemos o exemplo do povo de Madagascar que Graeber (2011) pesquisou, osTsimihety: Durante um longo período de tempo, até o século XIX, eles viviam em umaregião dominada por uma monarquia local, os Sakalava. A relação deles com o reinado erade uma constante fuga do poder, de uma recusa à aceitação do reinado, de forma que suaprópria identidade se dava em torno disso. O nome, Tsimihety, se referia à ausência derespeito e deferência ao rei — o vocábulo significa literalmente “aqueles que não cortam ocabelo” — uma vez que seus vizinhos, os Sakalava, raspavam a cabeça em sinal de luto acada morte de um monarca. Sob o olhar ocidental, o povo Tsimihety seria considerado umpovo anarquista, marcado por uma organização social avessa a autoridades, horizontal eigualitária.

O que torna o exemplo interessante é o fato de que a estratégia do povo frenteàs investidas monárquicas de seus vizinhos se caracterizar a por um constante processode logro, fraude e fuga. Os Tsimihety não confrontavam seus potenciais conquistadoresde forma direta, mas nos termos de uma metáfora bélica, o que poderia se chamar deuma tática de guerrilha. Esta, se apresentava sempre como uma cooperação que, naverdade, era falsa. Mais tarde, quando os franceses colonizaram a ilha, os Tsimihety seapresentaram como parceiros das novas autoridades, mas tudo que fizeram foi furtar epilhar o regime colonial, fugindo sempre que o exército francês lhes imporia uma pena.Após furtar materiais e fugir, se apresentavam novamente ao regime colonial sob outrosnomes e sob a mesma falsa pretensão de serem aliados e, assim, podiam lograr novamenteas forças francesas. Tal povo sobreviveu e, até hoje, possui uma fama fraudulenta, ao passo3 Se por vezes a falta de uma ortodoxia torna a discussão anarquista pulverizada, por outro há de se

sentir contente com a ausência de discussões sobre o que um determinado autor “quis” dizer, ou sederivações teóricas e práticas são fiéis a uma autoridade enunciativa.

4 Conceito será discutido na terceira parte da tese.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 21

que o exército francês voltou pra casa.

Caso houvesse etnólogos naquela época vivendo entre os Tsimihety, poder-se-iapresumir que, mesmo com a melhor das intenções, seus estudos relevariam aos francesesa estratégia furtiva do povo e, quiçá, até mesmo como identificá-lo. Da mesma forma,torna-se necessário notar que o estudo objetivo, claro e científico das organizações sociaisque vivem nos vácuos do poder oferece ao Estado, às corporações e a qualquer aparatorepressivo ou cooptativo, uma presa fácil. A ciência é um instrumento de conhecimentoaberto e, como tal, um instrumento potencial do Estado.

De fato, mesmo Graeber (2011), advogando uma antropologia anarquista radical,percebe que as possibilidades insurrecionárias devem ser, necessariamente, invisíveis aopoder. A totalidade não é uma questão objetiva e real, mas imaginária. Imaginarmo-nosdesatrelados do sistema totalizante do capital é necessário para que alternativas floresçam.No entanto, um resgate histórico feito a posteriori dos fatos narrados inspira e reafirmapossibilidades de se organizar. É um alimento para imaginação. Desta forma, há uma linhatênue ao se estudar organizações anarquistas: elas não podem ser reveladas e, ao mesmotempo, a afirmação de suas possibilidades e potências é necessária para sua existência.Mas mesmo superado este problema de uma necessária existência velada, notam Black etal. (2006), a mera separação entre pesquisado e pesquisador torna o primeiro um objetoque se perpetua enquanto tal, reproduzindo uma falsa autenticidade de status de objetocientífico outorgada pelo pesquisador.

Contra isso, o argumento de Graeber (2011) é de que há uma necessidade deconstruir um imaginário insurgente. Sob tal pretexto, a pesquisa pode prover um “bemimaginário” necessário para consolidação de consensos contra o poder instituído. Este bemimaginário é necessário em momentos de crise (que não são poucos em uma sociedadecapitalista) para consolidação de transformação radical.

Embora tal argumento seja sedutor – de fato, é necessário que haja alternativasimaginadas, mesmo que provisórias ou parciais –, a ideia de estabelecer um Outro, emantítese ou contraste a si mesmo, acaba por criar uma armadilha essencialista: Black etal. (2006) lembram que o Outro é sempre aquele a ser controlado e manipulado – ele é oobjeto, o sujeito que foi reificado.

Isso nos leva ao debate que influenciou autores anarquistas correntes como Graeber eBlack: o movimento situacionista de Vaneigem (2012) e Debord (1997). Enquanto o segundopercebera que a sociedade capitalista se apropriava de todas experiências (sob forma deespetáculo, ou seja, de representação), trazendo-as para sua totalidade representativa, oprimeiro afirmava que a revolução não era um feito facilmente percebido e total, masjustamente aquilo que foge ao notável, que foge da totalidade.5

5 Este debate será retomado posteriormente. Por ora cabe notar as implicações para o fazer acadêmico.

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Tal debate parece apontar a impossibilidade da revolução, satirizada por Black(2006a) como um mero conceito astronômico de girar em torno do próprio eixo para retornarao ponto inicial. Assim, o que resta é uma espécie de fuga, em forma de vida (em oposiçãoà sobrevivência que é sujeição às condições econômicas). Esta só pode ser realizada naefemeridade situacional constante – porque é esta que altera as estruturas sociais, que alteraa totalidade. A revolução não pode tomar forma em um aparato racional, em assembleiasde trabalhadores, ou no cientificismo moderno que separa objeto de investigação do sujeitopesquisador 6.

Vaneigem (2012) sugere que a separação entre o Eu e o Outro é baseada em umessencialismo sádico (nas palavras de Nietzsche (1984), na “metafísica dos verdugos”).Naturalizamos o sofrimento ao essencializar a condição humana (historicamente, primeirona transcendência religiosa, depois no naturalismo cientificista) e, assim, aceitamos aautoridade e a hierarquia. A hierarquia só pode se cristalizar em relações de separaçãodo trabalho e de reificação do outro. Dessa forma, note-se, fazer uma ciência que separeobjeto a ser estudado do pesquisador só é possível se aceitarmos as premissas hierárquicas.Em oposição a isso, o Eu pesquisador é também o Eu pesquisado – sem essa admissãoinicial, qualquer ideia de colocar em xeque o princípio da autoridade e da hierarquia caipor terra de antemão.

Esta superação da separação de papéis fundamentais humanos é a base de umagrande influência anarquista da atualidade: o situacionismo. O termo deriva da ideia deque se deve suplantar os papéis atribuídos socialmente por uma pluralidade de atividadeshumanas, dando vazão à vontade e à potência. Sob o ponto de vista situacionista, não fazsentido pensar que pessoas possam ser reduzidas a suas atividades produtivas (o artista, oengenheiro, o pesquisador, o professor), mas que elas possam e devam atuar de formasdistintas em distintas situações. Assim, o pesquisador é professor que também é artista,mecânico, engenheiro e ativista. Não cabe mais estudar o Outro, mas sim a si mesmo nassituações. Ao cientista, ao acadêmico, nada cabe mais do que despir-se do autoritarismodo especialista (DEBORD, 2011).

De fato, esta relação entre Eu e o Outro é a base de qualquer pensamento autoritário.Sob este aspecto, o velho argumento da efemeridade da organização frente a totalidade docapital só pode ser entendido como uma fuga à aceitação, como um fatalismo prostradotravestido de crítica total. Se, por um lado, não é possível falar da organização anarquistatratando-a como um objeto de estudo objetivo ou positivo, por outro, tratar a representaçãoda totalidade como a impossibilidade de relações libertárias é a pantomima da crítica.

Dessa forma, a solução frente à alienação social não é a educação objetiva. Frenteà incapacidade humana de compreender e atuar socialmente, não é possível imaginar que6 Isso não é uma defesa de métodos qualitativos tais como a etnografia. Tais métodos, apesar de alguns

manifestos em contrário, não suprimem o cientista que encontra o Outro e o estuda.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 23

uma explicação lógica e objetiva solucione, mas vivências plenas, experiências não-mediadase a pluralidade situacional podem demonstrar seus potenciais.

A objetividade científica não é, assim, um instrumento de libertação, mas sim ummeio do mercado e do Estado para tudo incorporar, que busca tudo cooptar, tudo dominar.A ciência enquanto uma visão iluminista de conhecer objetivamente o Outro e objetificá-loé um empreendimento de poder.

2.2 Hermes, o ensaístaO problema filosófico tratado por Nietzsche (2007a) na metáfora da eterna batalha

discursiva entre Apolo, deus grego da razão e patrono da modernidade, e Dionísio, deusgrego dos excessos hedônicos, omite um terceiro filho de Zeus, o irmão esquecido: Hermes,o deus da magia e da comunicação.

Na atualidade, Hermes é lembrado por uma característica que lhe era muito própria:o hermetismo. A comunicação suprema não é aquela que torna possível a todos tudoentenderem, mas aquela que oculta seu significado, por um lado, e o revela, de outro.Hermes, assim, “é o malandro que leva ao engano, o tremendo que ecoa por meio da palavraquebrada. Hermes é político e embaixador — patrão da inteligência e da criptografia, [...]a interface entre ‘essas outras formas’ e o político” (BEY, 1997).

Hermes era também aquele que traduzia a vontade humana na providência divina– ou seja, era o portador da magia, aquele que proferia aos deuses a vontade humana. Masmesmo Hermes, enquanto metáfora, não sobrevivera ao produtivismo. Com o adventodo Império Romano e a incorporação dos deuses gregos, Hermes foi traduzido (e traído)em Mercúrio. A estátua de Hermes, exposta hoje em dia no Museu Nacional Romano,representando um homem nu em uma pose que denota um eloquente orador, se transformana imagem de Mercúrio com sandálias aladas e uma bolsa.

Mercúrio não é mais um comunicador hermético, não é mais um portador da magia.Mas ele podia ser, sim, o funcionário do mês dos correios do Império Romano. Era ele quecarregava as ordens de Júpiter (que era Zeus traduzido) aos demais. Se, em uma sociedadereligiosa, Mercúrio trazia aos humanos a vontade divina, em uma sociedade secular suafunção seria trazer ao mundo social as leis naturais.

Era sua benção que possibilitava que as ordens de César viajassem longos percursosdo vasto império para encontrar a obediência de centuriões. Ao contrário da subjetividadee da incerteza mágica de Hermes, Mercúrio era objetivo, claro, rápido e racional.

A magia grega fora capturada pelo produtivismo imperial. O outrora deus misteriosotornara-se eficiente e passível de ser substituído por máquinas (um avião cargueiro empatano critério “alado” com Mercúrio, mas leva mais cartas que sua bolsa). Mas mais importante

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do que isso: a técnica não pode ser encarada como algo separado dos interesses que acriaram. A bolsa de Mercúrio, que substitui a eloquência de Hermes, é uma ferramentaque possibilita a eficiência da dominação – e não uma eficiência vaga, neutra.

A ciência moderna é um empreendimento que nasce entre Apolo (e sua razão) eHermes transfigurado em Mercúrio. Juntos, produção de razão e comunicação eficientepossibilitam a criação de um imaginário coletivo produtivista e desencantado. A mensagemobjetiva (a imagem, por exemplo) é um atentado à imaginação e, ao mesmo tempo, uminstrumento autoritário. Possibilita a ordem, a dominação em detrimento da imaginação.Neste sentido, os movimentos iconoclastas no decurso da história humana podem serinterpretados como um anarquismo incipiente.

Hermes, em oposição a uma razão objetiva, é o mensageiro mágico que revela nasubjetividade, não só no espaço da razão. Sua atividade se dá entre Apolo e Dionísio, naintersecção do que é e do que pode ser, do devir e do ser. Seu hermetismo não é só umacomunicação asséptica, mas sim a comunicação construída no próprio processo. Requera participação da imaginação do interlocutor. Ao contrário da imagem, o hermetismoiconoclasta permite que o receptor faça parte do conteúdo e construa junto o significado –um significado único para cada interlocutor.

Afinal, toda e qualquer representação da realidade é relativa às experiências. Omapa de uma cidade não é a cidade, mesmo que sua escala seja 1:1. E se por acaso umdesavisado acredite que o oposto pode ser verdadeiro, tenderia a crer que a cidade não énada mais do que vias, ruas e avenidas.

Uma tese hermética só pode ser ensaística por necessidade de coerência com suasbases epistemológicas. Mas também o é em contraposição a uma ciência que se apresentana conformidade modelística. Tudo que não se quer é um apanhado teórico, do que jáexiste a priori, aplicado a um objeto específico, e que nada mais faria do que reforçaro esboço teórico inicial. Contrapor a uma ciência instrumental da autoridade é se fazeravesso a uma atividade recursiva e tautológica. Esta nada mais faz do que reforçar a teoriapela própria escolha e interpretação do objeto.

Entendo ensaio aqui nos termos de Meneghetti (2011, p.321): “um vir-a-ser consti-tuído pela interação da subjetividade com a objetividade dos envolvidos”. Não se trata desupor uma pretensa objetividade da representação da realidade: suponho que a mesmanão possa existir. Ao atribuirmos uma objetividade à realidade, estamos, na verdade,atribuindo nossa própria subjetividade e advogando em prol dela, sob a suposição de que éobjetiva. É o que Cooper (1976) chama de enquadramento: atribuímos objetividade a uma

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realidade complexa, tal como geômatras pitagóricos7 atribuem proporções áureas8 a tudo,inclusive a fotografias. O ensaio é uma forma objetiva que possibilita o reconhecimentodessa subjetividade. Essa tese visa a eloquência de Hermes, não a logística eficiente deinformações de Mercúrio.

A tese ensaística se constrói em torno dos argumentos e seus méritos, objetiva areflexão e o argumento teórico, e não à metodologia e sua conformidade. Não se quer criarum modelo reprodutível ou uma receita prescritiva da realidade. Ademais, a tese ensaísticaabre espaço à contraposição à ciência normal 9, afastando-se da busca pelos fenômenoscomo resultantes de uma essência. Dada a defesa do devir, da verdade que não existede antemão e a uma negação da ciência normal, a tese ensaística oferece a opção maisadequada. Adorno (1986) já denunciava, em sua defesa do ensaio teórico, que a corporaçãoacadêmica só acabava por permitir aquilo que se vestisse como permanente, como leiuniversal. Nietzsche (1967) ironizava essa prática, que acabou se tornando o cerne daciência moderna, como a tendência de mumificação da realidade: tentar obter aquilo queé recorrente, rotineiro e imutável de uma realidade que é, em suma, um grande e complexoprocesso em constante mutação. Pior ainda, ao privilegiarmos o que é recorrente, acabamospor reforçar isso na realidade, tornando a realidade paulatinamente mais imutável. Aodescrevermos a realidade, a profetizamos. E ao profetizá-la, a realizamos.

Ora, se o objetivo do empreendimento é a defesa da imaginação, é o escape dahierarquia, o alheio à autoridade, não se pode buscar a conformidade. Não se pode quererque centuriões sejam eficientes no decalque de mundo de César. A tese, por meio doensaio, é Hermes que se nega a ser capturado pelo espetáculo, que se nega a fazer parte darepresentação do total.

Aqui, não cabe a busca pelas leis universais. Não se visa a razão do mundo deApolo que gera o torpor do desencanto do mundo. Contra a naturalização de leis naturais,contra a aceitação do mundo tal qual, o que interessa é dispor a vontade no mundo – e nãoexplicar como a vontade do mundo se dispõe no indivíduo. Tampouco cabe a descrição7 Embora Pitágoras e seus asseclas tenham sido muito importantes para o desenvolvimento da matemática

e mais especificamente da geometria, a Escola Pitagórica introduziu um elemento religioso até entãonovo no que podemos considerar como sociedade ocidental. Tratava-se da crença mística de quetoda realidade poderia ser explicada objetivamente por meio de números, antecipando em muito ocientificismo moderno e sua crença objetivista.

8 A própria ideia de que as proporcionalidades de Fibonacci explicam a vida e até mesmo o Universoé fruto de uma crença moderna objetivista. Atribuir alguns usos de Fibonacci naturais, somados aalgumas coincidências e subsumir que isso explica tudo é um discurso facilmente observado comofalacioso. No entanto, as crenças por trás desse discurso são as mesmas de quando se atribui leissociológicas e objetividade modelística à realidade.

9 Ciência normal aqui é entendido nos termos Kuhn (2011), na qual o paradigma dominante da ciênciacontém procedimentos que devem ser atendidos pelos seus praticantes para comprovação e verificaçãodos fenômenos, tais como um conjunto de métodos. Os paradigmas também contém em si objetivos eproblemáticas entendidas como legítimas e relevantes, de forma que a ciência normal também normatizao que é válido cientificamente. Note-se que, curiosamente, o próprio livro que deu origem ao conceitode “ciência normal”, aqui utilizado, é ele mesmo um ensaio.

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minuciosa de uma estrutura do mundo, nem de um modelo que possa ser replicável. Abusca neste trabalho é justamente o oposto: do que foge, do que não se curva às pretensasleis sociológicas, do que tangencia a racionalização progressiva do mundo. De fato, comoMeneghetti (2011) e Adorno (1986) afirmam, o ensaio como produção acadêmica evocauma liberdade de produção intelectual. Tal liberdade não pode ser tolhida por meio deâmbitos de competência pré-definidos: afinal, se o ensaio é uma busca errante e que sepretende criativa pelo inusitado, pelo novo e pelo devir, delimitar sua área de atuação éuma maneira perniciosa de lhe impossibilitar.

A tese ensaística, assim, se contrapõe, no limite, ou se esquiva, no mínimo, de serparte de uma ciência normal, de ser fruto de uma área pré-determinada e um conjuntode métodos pré-estipulados. Foge à ideia de criação de hipóteses, teste e comprovação. Oensaio possibilita um transitar entre diferentes campos teóricos. Se “a verdade” fosse, defato, o objetivo finalístico daquilo que se intitula ciência, então qual o sentido da separaçãodesses campos? Se qualquer questão levada a seu último mérito sairia do próprio escopodelimitativo do campo, então qualquer ideia de verdade se restringe e, por consequência,se impossibilita. O ensaio possibilita uma reflexão mais aprofundada, sem que se torture arealidade até que a mesma diga o que se quer ouvir. Não se trata de torturar a naturezapara que esta revele seus segredos, tal como Bacon teria10 prescrito em sua defesa dométodo científico. Ocorre que nós somos parte integrante do que estudamos e, mesmoque as práticas masoquistas e verdugas sejam aceitas no ofício acadêmico, torturar a nósmesmos é, na melhor das hipótese, anódino.

A ciência normal parece estabelecer um rito de escrita que desprovém de qualquersentido a forma e a palavra. Estas se tornam secundárias à suposta verdade, somenteum meio insípido para seu alcance. Aparentemente, quanto mais insosso, melhor. Quantomenos autoral, mais genérico, mais científico. Afinal, a tese, sob este olhar, nada maisseria do que um apanhado de papéis na bolsa de Mercúrio. Mas se há aqui de se contraporà autoridade, há de se contrapor também à sua forma também. A eficiência de comando é,também, a eficiência da ciência social. Não à toa que a matemática, enquanto linguagem,parece se estabelecer como forma suprema da ciência normal. Em Adorno (1986, p.19),“para o instinto do purismo científico, qualquer impulso expressivo presente na exposiçãoameaça uma objetividade que supostamente afloraria após a eliminação do sujeito”, seconstituindo em um profundo e danoso dogma. A tese ensaística ainda hoje parece terpouca aceitação, a despeito de ser a forma de escolha de tantos respeitados teóricos, taiscomo Nietzsche (1984) e Simmel (1979)11.10 Há um debate sobre se Francis Bacon teria, de fato, dito isso. Embora seja provável que o mesmo

nunca tenha dito, a presente referência se faz não ao autor, mas sim a uma ideia científica bastantedifundida.

11 O segundo tornou-se, inclusive, um detratado de Durkheim, por conta de seu suposto diletantismo, ouseja, sua expressão ensaística alheia aos métodos padronizados.

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Para Adorno (1986, p.27), “o ensaio [...] não quer procurar o eterno no transitório,nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório”. Tudo que pode ser objetosocial é, em última análise, objeto histórico, porque só existiu tal qual naquele momento. Aideia da criação de uma hipótese para generalização daquilo que é observado no específico,para posterior comprovação ou falseamento, decorrência do pensamento cientificista, é aquirefutada. Não se busca o generalizável ou as regras comuns ao mundo, pois tal só podeexistir nas ciências sociais no momento em que ignoramos tudo que ali não se enquadrae salientamos tudo que faz sentido em nosso modelo. Formamos um modelo por meiode meias verdades, ao trazer à tona o que queremos, excluindo o que não queremos etransformando em fundo o que pode ser principal (COOPER, 2015).12

O ensaio é, sim, um empreendimento sujo, maltrapilho, bagunçado, caótico (ME-NEGHETTI, 2011). Afinal de contas, o ensaio não parte de uma separação do mundoprático da teoria, mas assume como axioma que o experienciado, o vivido, é sobre o que sereflete. Assim, não cabe discutir se há conformidade ao pensamento de um autor, evitandoatribuir um status de autoridade enunciativa intocável; mas sim se o pensamento se dispõena realidade (ou, ainda, se pode se dispor).

Ninguém há de crer que as melhores reflexões nascem em uma sala asséptica como acadêmico sentado a pensar em seus afazeres de forma metódica. Tampouco que taisideias necessariamente brotam de salas coloridas, com pufes múltiplos, com coworkerssorridentes que distribuem confeitos e refrigerantes. Como lembra Nietzsche (1984), só épossível pensar caminhando, vivendo – do contrário, nada além de niilismo pode prosperar.O bom pensamento nos atordoa nos momentos mais impróprios. A contradição aparece nasvivências mais explícitas. É o oposto dos ideais de ordem, de beleza asseada, de uma ciênciapautada por valores cristalizados por toda eternidade. Essa ciência, tão bem exemplificadapor figuras como Durkheim, é um braço discursivo de uma cultura repressiva. Nos termosde Nietzsche (1984), é a mumificação da realidade: se enaltece aquilo que se identifica, nãoraro enganosamente, como comum nos diferentes tempos e se supõe que isso equivale auma essência.

Tal essência é, socialmente, nada mais do que um poder tão bem enraizado que sepassa por natural, constituindo não só o que se chama de uma falácia de apelo à natureza,mas também o erro de supor que (a) existe uma essência e que (b) esta é passível deser descoberta. Um exemplo recorrente dessa mumificação é o pressuposto estatal: suporque o ser humano só pode existir coletivamente se mediado13 por um Estado, por um12 Muito embora, conforme Nietzsche (2007b, p.64) salienta, “todo conhecimento surge por meio de

separação, delimitação e abreviação; não há conhecimento absoluto de uma totalidade!”, de forma quenão devemos tomar o todo pela parte, é mister assumir “lutar por uma verdade é algo totalmentedistinto de lutar pela verdade”(NIETZSCHE, 2007b, p.62).

13 Mediação aqui não é relativo ao ato de conciliar duas ou mais pessoas ou indivíduos. Trata-se damediação entre a experiência e o indivíduo, ou seja, de todo aparato que se interpõe entre a realidadee nossa percepção (BEY, 2014a).

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poder institucionalizado enquanto uma série de regras, mesmo que não escritas, bem comoum aparato repressivo que siga tais regras. A visão de sociedade enquanto partes bemdelimitadas, tal como expressa por Durkheim (1977), acaba por corroborar um discursode manutenção de regras sociais e de uma dominação. Dito de outro modo, o disseminadopressuposto científico de uma essência, nas ciências sociais, faz crer que existe algo nonosso modo de viver social que é assim porque o deve e, dessa forma, não deve ser alterado.É um discurso, voluntário ou não, advertido ou não, de proteção do status quo.

Se Hermes, na metáfora aqui empregada, é aquele que leva ao mundo a vontadehumana de forma enigmática, Mercúrio é aquele que traz de Júpiter as ordens do mundonatural. Mercúrio é aquele que revela a essência a qual não se pode fugir – a vontade deDeus depois transmutada em leis naturais. Uma ciência que se pretenda radical só podeser enunciada em oposição a um naturalismo, no hermetismo mágico ensaístico. Trata-seda disposição da vontade no ato de pesquisar –– e não da disposição das leis naturais narazão do pesquisador.

Nesse sentido, não se advoga aqui por métodos qualitativos, por etnografias, en-trevistas em profundidade, observações participantes, etc. Se uma ciência radical14 devesubsumir a separação entre pesquisador e mundo (negando a composição de seres reificadosem forma de outros), a reforma qualitativa com que a ciência se deparou nas últimas déca-das é só uma captura, por parte da ciência normal, do pensamento radical. A organizaçãoalternativa é tratada como um conjunto de informações a ser explorado e, ao final, pode-seironicamente fazer a pergunta: “Quais políticas públicas tais organizações demandam?”.Sob a negativa do Estado, uma corporação pode então se questionar sobre a possibilidadede patrocinar tais belas formas de se organizar e adicioná-las ao seu endomarketing esua propaganda televisiva. No final, a organização alternativa, sob o inquérito reificadorde uma ciência supostamente crítica e qualitativa, é ofertada às estruturas de poder. Aciência qualitativa pode, ao final, ser nada mais que um braço da representação total queapropria o outro em proveito do espetáculo.

Conforme será discutido mais adiante, parte integrante do problema desta tese é aconfiguração social estanque formada por um projeto moderno amparado na objetivação,racionalização, desmagificação e perda de sentido: o desencantamento do mundo. Umafaceta disso é o que Adorno (1986) aponta como separação entre arte e ciência. A consciênciada totalidade da criação artística e da criação técnica, como algo uno, só poderia se dar,para ele, por meio da mediação intelectual. Esta, por sua vez, só pode ocorrer alheia aosramos, setores, campos e seus métodos. Neste sentido, se há um método empregado aqui,este é a ausência de método que antecede o esforço intelectual.

Desta forma, a problemática desta tese é de como se organizar sem14 Utiliza-se a ideia de uma “ciência radical” enquanto o ato acadêmico de refletir e tentar promover a

transformação social no sentido da libertação humana de seus algozes e de suas autoridades.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 29

subsumir a própria vontade à ordem expressada sobre si – seja essa ordembaseada em uma crença no transcendente, na essência da verdade a priori, ounos seus representantes sociais, as autoridades. Para isso se afastará da concepçãode organização burocrática em um primeiro momento, buscando seus críticos anarquistas,tais como Proudhon e Bakunin. Após, se demonstrará como algumas limitações de taiscríticos podem ser superadas com contribuições anti-essencialistas como a de Nietzsche.Ao fim, argumenta-se que autores atuais tais como Hakim Bey, ao incorporarem a críticaanarquista aliada ao anti-essencialismo, possibilitam pensar organizações libertárias pormeio da ideia de imediatismo.

Feyerabend (2011) demonstra que, mesmo grandes descobertas das ciências naturais,como as que Galileu15 protagonizou, foram alheias a um método pré-definido. Conforme oautor, o que se tem por ciência (que nada mais é que produção de conhecimento) é um“empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário emais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem”(FEYERABEND, 2011, p.31). A realidade é complexa demais para ser transformada emum modelo, em um decalque. E, quando isso ocorre, a finalidade é a de captura do total,de sujeição do outro.

Se simplifica a “ciência” pela simplificação de seus participantes: primeiro,define-se um campo de pesquisa. Esse campo é separado do restante dahistória e recebe uma “lógica” própria. Um treinamento completo em tal“lógica” condiciona então aqueles que trabalharam nesse campo; tornasuas ações mais uniformes e também congela grande porções do processohistórico. Fatos “estáveis” surgem e mantêm-se a despeito das vicissitudesda história. Uma parte essencial do treinamento que faz que tais fatosapareçam consiste na tentativa de inibir intuições que possam fazer quefronteiras se tornem indistintas. A religião de uma pessoa, por exemplo,ou sua metafísica, ou seu senso de humor (seu senso de humor natural,não aquele tipo endógeno e sempre um tanto desagradável de jocosidadeque encontramos em profissões especializadas) não podem ter a menorligação com sua atividade científica. Sua imaginação é restringida, e atésua linguagem deixa de ser sua própria. Isso se reflete na natureza dos“fatos” científicos, experienciados como independentes de opinião, crençae formação cultural (FEYERABEND, 2011, 33-34).

Salienta-se que o campo de conhecimento não é entendido como pré-definido.Este trabalho poderia estar inserido no campo da administração, ou no campo dosestudos organizacionais ou, ainda, no campo dos estudos críticos da administração. Masqualquer um desses está em constante mudança. A administração, por exemplo, é restritaa um entendimento dentro de uma lógica de hierarquia e autoridade, que é passível dequestionamento e que, uma vez que se deslegitime a crença na hierarquia, perde qualquer15 A questão não é, de forma alguma, restrita a Galileu. Outra figura mítica do suposto “método científico”,

Giordano Bruno, advogava em prol da arte e da ciência conjuntamente (BRUNO, 2012). Bruno foiqueimado pela inquisição católica, mas seu pensamento até hoje é deturpado na defesa do método,como no seriado Cosmos.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 30

sentido. De certa forma, a administração parte de um dogma: a fé de que a autoridade e ahierarquia são legítimas. Autoridade, como nos lembra Ricoeur (2008), parte do ato deautorizar alguém a agir em seu nome (por isso ‘autoridade’, que advém de ‘autorizar’). EmWeber (1999), a dominação, fenômeno em que a autoridade se circunscreve, só pode existirpor meio de sua legitimação, ou seja, a crença de que aquilo é legítimo, é correto ou édesejável. Se administração parte de uma ideia de administrar outrem, tal campo só podeser entendido como um pressuposto dogmático — o dogma legitimador da dominação. Emúltima análise, qualquer campo possui pressupostos que são tão passíveis de questionamentoe desconstrução que torna o campo, como um todo, passível de redefinição.

O mundo16 é, na verdade, mais caótico e complexo do que tendemos a descrevê-lo.No momento em que falamos da constelações no céu, não estamos descrevendo a realidadepropriamente, mas o que proclamamos ser a realidade. É particularmente curioso quemesmo o conceito de firmamento (que é o que de mais fixo existiria) seja referente a umagama de estrelas explodindo, se mutando e se deslocando a velocidades inimagináveis — atal ponto que o que vemos é tão diferente da realidade que pode sequer existir mais. Asestrelas estão tão longínquas que o tempo de sua luz chegar até nós pode ser suficientepara sua existência cessar. O que vemos são nada mais que fantasmas de outrora.

De fato, a inquietação incipiente que moveu a construção desta tese é relativaà aceitação de autoridade e consequente constituição de hierarquias organizacionais (esociais). O ato autorizativo, base da autoridade e do problema referido, é um ato quevisa questões objetivas17 . A eficiência, por conseguinte, não é uma questão neutra, masé a faceta desejável da autoridade. Da mesma forma, o texto objetivo é autorizativo dequem o proferiu inicialmente. Por isso o ensaio não é só um meio possível e, sim, o meioapropriado.

Este ensaio também é um esforço hermético. Afinal, o desencantamento do mundoé derivado do processo de criação de autoridades e hierarquias. Na ânsia pelo eficiente, sesubmete a si mesmo a uma suposta verdade prévia. Mercúrio, enquanto mensageiro dessaverdade, é a metáfora da comunicação (científica e racional) de tal verdade. Em oposiçãoa isso, o hermetismo ensaístico permite o exercício da imaginação. O mundo, a totalidadesocial, é percebido e experienciado. E se assim o é, cabe a nós, tal como a Hermes, lograros espíritos da autoridade, os deuses do capital, os cetros do poder.

O objeto potencial18 aqui advogado, no caso a organização sem autoridades, porvezes denominada de insurreicionária, revolucionária ou convivial, só pode existir nosespaços vagos da dominação, nas rachaduras das estruturas de poder. Como tal, só pode16 Entendo mundo como a totalidade, como o todo que nos contém. Como este todo é percebido, o

mundo é um conceito subsidiário da visão de mundo, ou de uma cosmovisão.17 Isso será discutido mais a frente.18 Potencial aqui diz respeito ao reino das possibilidades. É o objeto hermético fruto da imaginação e da

experiência.

Capítulo 2. Em defesa da imaginação 31

ser experienciado, jamais descrito em nome de outrem — por isso hermético. A organizaçãolibertária só pode existir se estiver desapercebida19. Trata-se da ideia de entender o“objeto” não como o outro, mas como um sujeito, como parte integrante do Eu. Por issonão é invisível, como Smith et al. (2015) argumentam como estratégia de tais organizações,mas desapercebido, como Bey (1997) argumenta baseada numa ideia deleuziana de não serpercebido. Por isso, Hermes é quem nos acude em prol de uma postura, ao mesmo tempo,ética, com o que é estudado, e coerente, com o que é proposto. O ensaio hermético éao mesmo tempo uma postura iconoclasta e uma defesa da imaginação.

19 O uso da palavra “desapercebido” se dá como tradução do termo “unseen” de Bey (1997).

32

3 O Pressuposto levado a cabo: o que é aorganização?

Todo conceito bem delineado é um preconceito contra as possibilidades do vir-a-ser(NIETZSCHE, 2007b). Tal problema se faz presente, em especial, quando vamos para alémda discussão e do estudo das organizações formais. Como poderíamos separar organizaçõesdaquilo que não o é? Tal questão é respondida frequentemente com a ideia de que se nãoproduz bens (tangíveis ou intangíveis) e não é formal, não é organização. Mas como épossível que um grupo de pessoas reunidas não produza nada? O que diferencia um grupo deamigos tocando instrumentos musicais de uma banda fazendo uma turnê bem remunerada?O que diferencia um churrasco de amigos de uma churrascaria? Ora, todos os exemplosrequerem um processo organizativo. Todos os exemplos, também, produzem (experiência,serviços, etc, ou seja, bens intangíveis). Se há uma busca por um novo encantamento domundo, há de se considerar que a produção não pode ser somente aquilo que é repetido,massificado, em linha. A produção, enquanto propriedade de uma organização, deve serentendida enquanto poiesis, enquanto a capacidade de produzir criativamente.

A diferença estaria na duração? Se sim, caímos na arbitrariedade de delimitarmosum tempo mínimo para considerarmos uma organização — porque seriam dois dias e nãodois meses ou duas horas? Da mesma forma aqui podemos rever pressupostos usuais, sejamdo senso comum ou acadêmicos, assumidos acriticamente: provavelmente organizaçõesde curta duração tem um potencial de criação proporcional maior do que duradourasorganizações.

Curiosamente, é costumeiro no pensamento acrítico que organizações começam aser entendidas como tais uma vez que uma autoridade se forme, mesmo que sem qualquernorma escrita. Mas se voltando contra o que se toma por dado, o que se toma por óbvio, sóse pode entender a organização e o organizar uma vez que se questione a autoridade comoelemento necessário à organização. Afinal, autoridade pressupõe dominação – e dominarimpede o próprio processo de se organizar. Esse entendimento parece-me raro, mesmo nosestudos críticos de Estudos Organizacionais. A autoridade é entendida como pressupostoorganizacional, o que leva a uma delimitação conceitual não só restrita, mas legitimadorada dominação, da autoridade e da exploração. Em que pese esta tese, trata-se de pensar oorganizar alheio a esta delimitação.

No mainstream acadêmico da administração, mesmo estudos, tal como o de Mayo(1945), que consideraram aspectos informais, acabam por chamar organizações alheiasao formalismo funcional de “grupos informais”, de forma a destituir de legitimidade adiscussão dessas organizações, que muitas vezes acabavam por atuar como resistência

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 33

à organização formal. Tal discurso levou a administração (e os estudos organizacionais)a considerar como organização legítima somente aquilo que Weber (2015, p.20) chamade “organização capitalista racional do trabalho (formalmente) livre”. Ao limitarmos adiscussão a um escopo tão reduzido, limitamos também as possibilidades do debate e, porfim, a resignação se torna a única postura crítica aceitável — a última fuga.

Organizações não-formais com frequência são consideradas não-organizações, gruposinformais, junções de pessoas, etc. O conceito de organização normalmente parte da ideia daempresa (organização formal que visa lucro) para, a partir disso, problematizar e teorizar.Não raro que organizações são consideradas, com frequência, sinônimas de empresa. Masessa aproximação serve a interesses muito específicos, conferindo legitimidade (acadêmicae teórica) somente ao que está dentro desse escopo bem reduzido. Tal aproximação deconceitos parece ter cedido espaço para uma aproximação com organizações do terceirosetor e estatais, mas ainda parece resistir no formalismo. De forma geral, o conceito deorganização só parece válido se for legalmente conferido de legitimidade, o que praticamentetorna a administração e os estudos organizacionais sucursais do direito.

A comparação da sociedade com um corpo — mais normativa do que descritiva— não conseguiria ter essas características para si sem apelar para um reducionismo. Aoaceitar o ideal de uma ordem social garantida pelas instituições, o funcionalismo tevede igualar normas a valores e tornar natural a apropriação de uma classe dirigente dasorientações culturais de uma sociedade. Afinal, se a sociedade é um corpo com órgãos,há de se ter o cérebro e este deve ter primazia sobre os demais órgãos. Isso demandarialevar a sério as alegações mais megalomaníacas e ilusivas de todos aqueles que tivessemno comando do Estado, encabeçando este “corpo social”, não importando se o projetocosmológico por eles defendidos não corresponde, de fato, ao desejo dos “órgãos”, a umavida que valha a pena ser vivida pelos demais.

A visão funcionalista, a de corpo com órgãos, certamente tem espaço para aadministração no seu rol de órgãos, que são metáforas para funções. À administração cabejustamente o papel de gerar conformidade no restante dos órgãos ao cérebro ou, em termosseminais (FAYOL, 1990), a de coordenação e controle. March e Simon (1993) separamgrupos compostos por seres humanos de organizações, justamente pela especificidade queessas possuem de serem coordenadas através de um sistema central, tal qual os organismosbiológicos. A administração, assim, seria só uma ferramenta de classes sociais abastadas,não fosse sua forma travestida de ciência neutra — que lhe confere uma legitimidadeartificial baseada num discurso de ingresso restrito. A administração, dessa forma, se reduza um ramo de conformidade da vontade da maioria à vontade de uma minoria dominadora.O problema não é que a administração seja parcial em seus intentos, mas que os mesmosse travistam de vontade unânime e científica enquanto, de fato, sejam representativos deuma parcela dominadora e minoritária. Como Rojo (2016) afirma,“Assim como a medicina

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 34

não é neutral em face da vida ou da morte, a sociologia não pode ser neutral em face daliberdade”.

Assim, não reconheço a administração ou os estudos organizacionais como ciência.Reconhecê-la como ciência parece-me em demasia um elogio auto-proclamado e umaestratégia baseada em procedimentos de controle e delimitação do discurso — “Eu proclamoa verdade empoderado pela ciência”. A postura aqui assumida, além de opção intelectual,é condizente com uma epistemologia anti-essencialista, perpectivista e amoral: a verdade énada mais que uma representação do poder. Dessa forma, os estudos organizacionais só sãovistos como um campo (de estudos e de disputa). Nesse campo se opera uma infinidade dediscursos que não só reproduzem o mundo, como o criam. Em termos de Foucault (1996),os EOs compõem uma ordem do discurso, que se apropriam de um discurso científico comoestratégia de exclusão e de controle.

Retomando o corpo (com órgãos), a sociedade vista como um decalque de umametáfora corpórea deve ter uma ordem estabelecida, papéis e funções rigorosamente cum-pridos, uma dominação acima de qualquer questionamento (tal como do cérebro no corpo).Ao produzir-se um decalque, produz-se o outro, decalca-se o que é externo a quem o faz e,assim, se modifica o outro. Produz-se também operacionalizações sem questionamentos(e, se alguns indivíduos fariam parte do cérebro, outros seriam incorporados ao sistemaexcretor desse corpo), e assim por diante. O corpo, com seus órgãos, como metáforapara a sociedade é, por um lado, o sonho comteano da sociologia como último degraude uma ciência determinista e, por outro, o primeiro estágio do fim da história. Seria ofim dos conflitos, o início de uma unificação social plena onde todas vontades são uma e,principalmente, uma vontade única se reproduz em todos.

Como destacam Deleuze e Guattari (1972) o “corpo coletivo” é o enorme organismodiferenciado, ordenado e hierarquizado. É uma máquina social a tentar constantementeaprisionar nossas máquinas desejantes. Uma de suas células base é a família nuclear,contribuindo para socializar e domesticar o indivíduo, ajudando a delimitar o lugar quecada ser deverá ocupar no Estado, contribuindo para recalcar o desejo, para produziro Édipo, para produzir corpos dóceis, letrados, capazes de seguir e reproduzir padrõespré-datados. Dessa forma, esse corpo é um projeto de sociedade que oferece uma segurançade pertencimento em troca da liberdade.

Essa imagem é brilhantemente demonstrada na ficção distópica de Moore e Lloyd(1990)1, onde os órgãos sensoriais humanos se transformam em órgãos sensoriais derepressão, extensões naturais de um cérebro, de um dominador. Ali, os próprios sentidosseriam uma extensão da razão, símbolo metafórico do devir submetido à dominação. Operfeito corpo com seus órgãos bem distribuídos, assim, é o totalitarismo perfeito: não háescapatória frente a dominação plena, já que todos os sentidos se destinam a manter um1 A adaptação cinematográfica deixou de lado as metáforas sensoriais presentes na obra original.

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 35

sistema racional recursivo. Esta sociedade com órgãos, moderna e funcional, opera comoum aparelho de repressão sobre a nossa vontade.

O fetichismo organizacional funcionalista deu origem a um pensamento que Motta(1986) chama de tecnoburocracia: a ideia de que não só podemos estruturar e funcionalizartudo, inclusive reduzindo o indivíduo a isso, mas que eventualmente tudo estará dentrode um grande esquema formal e funcional. A legitimação para tal pensamento advém deuma lógica racionalista e utilitarista, teleologicamente voltada ao crescimento econômico.Deriva disto que toda discussão organizacional se pauta pela eficiência e produtividade —valores inerentes a essa ideologia tecnoburocrática. Tal ideologia, para o autor, é fundadana necessidade de crescimento econômico promulgada por autores como Taylor (1970).

Taylor, base daquilo que se entende por ciência da administração, por sua vez,produz um pensamento que nasce do interesse da classe dominante. O ethos protestante éum meio discursivo utilizado pela administração para traduzir os interesses das altas classessociais em uma operacionalização pelas baixas classes. O taylorismo é, assim, a base técnicapara a atualização da burocracia. Fayol (1990), por sua vez, insere elementos de controlemais rígidos, buscando na disciplina militar uma maior formalização das organizações. Oconceito de organização, em ambos, embora não definido explicitamente, era restrito àorganização industrial (TRAGTENBERG, 2006).

Tal restrição do conceito de organização é decorrência do objetivo dos autores, quecomo Tragtenberg (2006) evidencia, é a dominação das classes superiores (burguesas), adisciplina2(perante essas classes) e o produtivismo (como discurso legitimador).

Essa tecnoburocracia produziu não só uma realidade profundamente questionável,mas também um aparato intelectual nas universidades e centros de pesquisa. Donaldson(2005), proeminente que é na área de Estudos Organizacionais, e defensor que é dofuncionalismo, afirma que, quando jovem, foi profundamente influenciado por autores deficção científica, como Isaac Asimov. O estilo de escrita leve, o otimismo quanto ao futurotecnológico do mundo e o utopismo social deste autor, de fato, tornam a leitura bastantemarcante para qualquer jovem — como o também foi para mim. Mas não é possível ler odiálogo final do livro mais famoso do autor sem um pingo de amargor:

— Mas suas palavras significam [...] que a humanidade perdeu o direitode decidir sobre o seu próprio futuro.— Na realidade, a humanidade nunca teve tal direito. Sempre esteve àmercê de forças econômicas e sociológicas que ela era incapaz de compre-ender à mercê dos climas e das fortunas da guerra. Agora, as Máquinascompreendem essas forças; e ninguém poderá conter as Máquinas, porqueelas cuidarão dessas forças [...], tendo à sua disposição a mais poderosade todas as armas: o controle absoluto de nossa economia.

2 Disciplina aqui é entendido em termos weberianos: “a probabilidade de encontrar obediência parauma ordem por parte de um conjunto de pessoas que, em virtude de atitudes arraigadas, seja pronta,simples e automática” (WEBER, 1999, p.43).

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 36

— Que coisa horrível!— Talvez você deva dizer: que coisa maravilhosa! Lembre-se de que, afinal,de agora até o final dos tempos, todos os conflitos são evitáveis. Deagora em diante, apenas as Máquinas são inevitáveis. E isto é tudo —declarou a Dra. Susan Calvin, erguendo-se — Vi tudo desde o começo[das Máquinas], até o fim [da História], quando servem como baluartes,postados entre a humanidade e a destruição (ASIMOV, 1972, p.295-296).

O contexto do diálogo acima é de que, frente à situação de conflito social, as“Máquinas” encontram a melhor alternativa produtiva e, ao fazer isso, resolvem os problemassociais — sem que, para isso, as classes sociais sejam alteradas ou que os desejos individuaissejam atendidos. A solução técnica ótima, a eficiência última (maior produção por menortempo dispendido), é o único problema social a ser solucionado e, dado isso, uma vezestabelecido métodos para computar todas variáveis, não haverá mais conflitos. A ideiada melhor forma e do fim dos conflitos sociais por meio do aumento da produtividaderemonta Taylor (one best way e fim da necessidade dos sindicatos).

Gostaria, ainda, de salientar a deferência que se utiliza para com a interlocutora.Ela não é uma qualquer: ela é a autoridade enunciativa chamada de doutora. O papelque lhe é atribuído é o de uma espécie de sacerdotisa da natureza, trazendo a nós apalavra da ciência. Tal como o clérigo religioso é a interlocução de Deus com os humanos,o cientista se tornou a interlocução da natureza conosco. Essa desmagificação do mundoe a transferência da vontade, como legítima, do indivíduo para a estrutura do mundo(primeiro personificada em Deus, depois na natureza), é o próprio desencantamento. E queterrível é a descrição de Asimov do desencantamento final como a solução dos problemas.

Tal ilustração reforça o que não objetivo com esta tese: não se trata de umtrabalho que busca maior eficiência, maior produtividade, maior estruturação, ou resoluçãode conflitos e manutenção do status quo. Problematizo como essa busca leva ao desencan-tamento do mundo por meio da racionalização e legitimação da autoridade. Além disso,busco entender como o mundo, apesar de progressivamente desencantado, produtivista,racionalizado e estruturado, ainda produz espaços de fuga, resistência, novas experiências,e o devir — por maior que seja o esforço de tornar o decalque do mundo no mundo em sie decretar o fim da história.

As teorias organizacionais geralmente partem de Taylor (1970) para se situar. Parao autor, organização era sinônimo da indústria capitalista moderna, e a administraçãoseria a ciência de lidar com as organizações. O problema não está particularmente no autor,mas sim na reprodução de seu trabalho como se desse conta do mundo. Decorre destepensamento que organizações devam ser tratadas como indústrias a serem administradase, por consequência, a teoria organizacional se torna reduzida a uma aplicação específica.

Para ele, as empresas tomariam o lugar da vontade individual. Ao ser humano,cabe tomar parte em um papel delimitado em uma empresa. O mundo, assim, seria regido

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 37

pela produtividade, onde a cada um caberia provar seu valor, na medida em que possaproduzir, no grande esquema industrial, mais: “No passado o homem estava em primeirolugar; no futuro, o sistema terá a primazia” (TAYLOR, 1970, p.23).

Tal abordagem é costumeiramente criticada por sua visão mecanicista, onde ohomem não só produz a engrenagem como é, ele mesmo, uma. O lugar-comum da críticaaqui é visualizado em Chaplin (1936) se transformando gradualmente em uma espécie derobô repetidor de tarefas. Embora clichê, a imagem se propagou justamente pela força quetal crítica formula a uma visão reducionista das organizações.

Selznick (1984, p.5), fundador da teoria institucional (ou velho institucionalismo),afirma que o mais “notável e óbvio”, ao conceituar organizações, é “seu sistema formal deregras e objetivos”.3 Tal conceituação remonta um estruturalismo funcionalista. De umlado, tudo tem que fazer parte num esquema bem montado e modelado de realidade - aestrutura formal. Por outro lado, cada parte dessa estrutura tem de ter sua função — talcomo o corpo com seus órgãos, onde “o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns àmédia dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que temvida própria”, forma uma “consciência coletiva”, um corpo social (DURKHEIM, 1977,p.50).

Para Blau e Scott (1979), existem alguns níveis — sequenciais e escalados — decoletividade: o agregado (indivíduos juntos sem relação entre si); o grupo (indivíduosjuntos com relações sociais entre si); a organização social (indivíduos juntos com relaçõessociais entre si pautados por um sistema de crenças, orientações compartilhadas e culturacomum); e organização formal (indivíduos juntos com relações sociais entre si, cultura,crenças e cultura compartilhada e, que ademais, possuem um propósito explícito, umobjetivo, conjunto). Ademais, para os autores, esse “propósito explícito é o critério quedistingue a nossa matéria de estudo da organização social em geral” (BLAU; SCOTT,1979, p.17).

Para esses autores, o problema é que dentro de organizações formais existemorganizações informais (que são restritas às características de, no máximo, seu conceito deorganização social). Tal visão deriva da teoria dos sistemas abertos, tal como conceituaçãode Parsons (1973), reconhecendo que organizações existem dentro uma das outras eem intersecção. Na lógica do autor, as organizações informais que existem dentro dasorganizações formais devem ser levadas em consideração, mas não por sua própria existência,mas sim porque afetam os objetivos da organização formal. Tal constatação e lógicadecorrente remonta o estudo de Hawthorne. Em suma, se deslegitima uma ‘organizaçãosocial’ em prol da ‘organização formal’ para que, ao final, a primeira só possa ser legítima3 Ainda, para o autor, o “termo ‘organização’ sugere um certo despojamento, um sistema enxuto de

atividades conscientemente coordenadas, no-nonsense. Trata-se de uma ferramenta dispensável, uminstrumento racional projetado para fazer um trabalho”(SELZNICK, 1984, p.5).

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 38

uma vez que trabalhe para a segunda. Sob este ponto de vista, uma resistência do grupoou da organização social à organização formal é vista como algo a ser superado, uma vezque o grupo não possui legitimidade para fazer isso. Ao grupo, neste sentido, só lhe cabegerar motivação e ferramentas de maior produtividade em prol da organização formal, sobpena de se deslegitimar caso não cumpra com essas expectativas. Nesse sentido, se reificaa organização e se transfere o âmbito da vontade do indivíduo para à organização informalpara, ao fim, transferi-la à organização formal. Ao final e no extremo da lógica, tem-se quea organização formal possui uma vontade legítima (chamada geralmente de objetivo), aopasso que os indivíduos podem participar dessa vontade, contribuindo para execução damesma.

O conceito de Blau e Scott (1979) parte da teoria parsoniana e mantém sua categoriada análise que é a de sistema social. Este se caracteriza por ter indivíduos em interrelaçãoorganizados por uma cultura institucionalizada ou pressupostos compartilhados. A açãodos indivíduos, aqui, é coordenada culturalmente. Tal conceito de sistema social é a basedo conceito de organização social de Blau e Scott (1979) — que, por sua vez, já é maisamplo que o conceito de organização formal. Este último conceito é declaradamente o queos autores entendem como objeto legítimo de seus estudos.

A visão de Parsons, através da teoria dos sistemas abertos, importa concepções dasciências naturais. Aproxima, por exemplo, uma organização a um organismo vivo e, assim,as células ou as partes desse organismo aos seres humanos associados. Como declaradopelo autor, suas premissas partem de Durkheim — não à toa que o sistema social maisamplo, a sociedade, seria o corpo, ao passo que os sistemas internamente o vão compondo.Diferentemente, no entanto, de Durkheim, o sistema social é menos estruturado que osórgãos (a cultura nunca pode ser totalmente substituída pelas normas), é aberto, possuipotencialmente infinitos níveis (sistemas dentro de sistemas) e uma intersecção constanteentre sistemas (um indivíduo está em vários sistemas ao mesmo tempo, ao passo que umacélula não está em vários órgãos).

Mas em concordância com Durkheim, Parsons (1973) afirma que a unidade maissignificativa para análise nas estruturas sociais não são as pessoas e suas ações, mas opapel que estas possuem ou adquirem. Tais papéis são determinados pela estrutura dosistema e suas funções. A função integração, por exemplo, é uma função típica dos sistemassociais que introjeta o papel no indivíduo, substituindo sua individualidade por aquiloque este deve exercer no sistema social: “Uma sociedade não pode subsistir a menosque ela perpetue um sistema de ação eficiente, em sua forma modificada ou tradicional,por meio da socialização dos novos membros” (PARSONS, 1973, p.55). Assim, torna-semister para o autor a substituição das paixões e vontades individuais pelos papéis a seremdesempenhados.

Como Motta (2001) demonstra, a noção de homeostase, conceito que substitui a

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 39

fixidez organizativa de teorias (como científica e a clássica) anteriores à teoria de sistemasabertos, acaba por manter o objetivo da organização acima dos objetivos individuais,fazendo com que a organização tenha de se adaptar ao ambiente, ao externo, para semanter em equilíbrio. Ao final, como o autor afirma, a organização homeostática acabatendo de mudar para, de fato, não mudar. Como o autor argumenta, embora tal teoriase propague como neutra e técnica, na verdade é uma teoria com forte cunho ideológico,ao introduzir mitos na realidade organizacional. O objetivo, retirando do indivíduo suavontade, é o objetivo dos dominadores sobre os dominados. As teorias administrativasmainstream, tal como a Teoria Geral de Sistemas, acabam por servir como um moteideológico em forma de aspiração da classe dominada em ascender e se tornar a classedominadora, formando um estamento social intermediário que serve de amortecimentopara a dominação: a tecnoburocracia. Trata-se de uma ideologia que se crê e se propagapor meio de um discurso de sua suposta neutralidade (por isso o técnico) para formar umaparato dominador (por isso o burocracia).

O autor critica Amitai Etzioni por ser porta-voz da transformação do burocratarepetidor de tarefas em um intermediário que mantém a dominação com maior autonomia,ou seja, para “formar administradores dotados de autoridade profissional, isto é, não apenasburocratas, mas tecnoburocratas”(MOTTA, 2001, p.85). Etzioni (1967) também se afastadas organizações informais ao delimitar o conceito: para ele, o início das organizações, emtermos históricos, se deu com as grandes obras chinesas ordenadas pelos seus imperadoresou as pirâmides egípcias encomendadas pelos faraós. Os termos que o autor utiliza paradefinir organizações chegam a ser tão restritos, que o mesmo afirma que o próprio Estadoe seus órgãos regulamentadores são organizações secundárias. Nesta conceituação maisrestritiva, o conceito de organização teria as seguintes características:

1) divisão de trabalho, poder e responsabilidades de comunicação, quenão são casuais ou estabelecidas pela tradição, mas planejadas intenci-onalmente a fim de intensificar a realização de objetivos específicos; 2)a presença de um ou mais centros de poder que controlam os esforçoscombinados da organização e os dirigem para seus objetivos; esses centrosde poder que controlam os esforços combinados da organização e osdirigem para seus objetivos; esses centros de poder precisam, também,reexaminar continuamente a realização da organização e, quando ne-cessário, reordenar sua estrutura, a fim de aumentar sua eficiência; 3)substituição do pessoal, isto é, as pessoas pouco satisfatórias podem serdemitidas e designadas outras pessoas para as suas tarefas. A organi-zação também pode recombinar seu pessoal, através de transferência epromoções. (ETZIONI, 1967, p.10)

A tríade que forma o conceito de Etzioni é particularmente chocante: ela demonstraum profundo viés na direção do autoritarismo, da reificação da organização, do produtivismoe de uma visão particularmente utilitária do mundo. A crítica aqui pode corresponderaos seus pontos do tripé: a) divisão do trabalho já pressupõe trabalho. Embora uma

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 40

organização obviamente crie algo, esta criação não é necessariamente fruto do trabalho— pode ser fruto do lazer, do amor, da própria relação ou da ação humana. Ademais,pressupor a necessidade da divisão do trabalho é adicionar o componente mediador ealienante; b) a necessidade, por base conceitual, de um ‘centro de poder’ é uma visãofruto de uma ideologia profundamente comprometida com as classes superiores. Maisapavorante é a conexão que o autor faz entre a necessidade da separação de classes e oobjetivo, presumido, de maior eficiência. Isso demonstra sua devoção reificadora, já quea organização teria um objetivo acima dos indivíduos que a compõem: a eficiência; c) asubstituição de pessoal novamente evoca a organização como uma entidade desconectadados indivíduos que a compõe: se trata de um ser com existência própria, que substituiquem a forma sem que isso a transforme em outra coisa. Para que isso ocorra, é necessárioque os objetivos sejam da organização, e não dos seus indivíduos. Estes assumem papéisutilitários dentro da mesma, essenciais que são para execução do objetivo organizacional,mas em nada essencial à existência individual deles próprios na organização. Ademais,elencar tal característica como central ao conceito de organização denota uma necessidadesubjacente de demonstração de poder e de autoridade. A conceituação de Etzioni (1967)é tão limitada que ele exclui ’unidades sociais’ – tais como grupos de amigos e famílias– do conceito de organização, pelo fato de não poderem substituir indivíduos facilmentesem se desfigurar. Dito de outra forma, organização só o é, para o autor, quando há umaprofunda alienação (divisão do trabalho vertical e horizontal) e a introjeção de papéis nolugar de subjetividades individuais.

Etzioni, Parsons, Blau e Selznick têm em comum um problema conceitual, que éa ideia de que o objetivo no sistema (organização) está acima das vontades individuais,tornando-se objetivo imposto e/ou introjetado em todos membros de uma organização.A vontade é preterida ao se estabelecer o objetivo organizacional como válido, e assim adominação ocorre amparada em uma desconsideração ao querer individual. Uma concepçãoantagônica a esta de organização poderia se encontrar em Fourier (1841) e seus falanstérios,que não tinham qualquer outro objetivo a não ser a possibilidade de convívio social para,a partir dele, dar vazão às paixões e vontades individuais.

Outro problema é que, em geral, os autores supracitados costumam por ter organi-zações formais (tais como o Estado e as empresas) como instância mental ao descreveremseus conceitos de organização. O teorizar vem de reboque das preocupações práticas, quesão as preocupações de organizações formais e, frequentemente, empresas. Blau e Scott(1979) parecem perceber isso, mas ao fazerem o mesmo, acabam por empunhar a bandeirade que só tipos específicos de organização — organizações formais — são objetos de estudodos estudiosos das organizações. É quase como se um astrônomo dissesse: “Há todo o tipode planeta, mas somente os rochosos são passíveis de estudo dos astrônomos”.

Barnard (1956) parece ter uma conceituação de organização mais aberta. De acordo

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com ele, uma organização seria um “agregado integrado de ações e interações tendo umacontinuidade temporal” (BARNARD, 1956, p.112). Ele rejeita a tese de que a organizaçãoé um conjunto de pessoas que tem um objetivo em comum e, no lugar, estabelece queuma organização é composta de pessoas que contribuem para um propósito comum. Adiferença é sutil, mas essencial para o argumento do autor referente à necessidade dosexecutivos, ou seja, de uma alta casta organizacional que se coloca entre os investidorese os funcionários, e que objetiva que estes trabalhem a serviço daqueles. A distinçãoestá entre objetivo e propósito: enquanto objetivo é algo racional, consciente, explícito eplanejável, propósito é mais abstrato, ambíguo e um tanto subjetivo. Por exemplo, umgrupo de pessoas pode ter como objetivo viajar a um local, o que é algo bastante específico,enquanto que seu propósito poderia ser algo mais amplo como conhecer diversas culturas.A sutileza é que ao termos como propósito o norteador característico da organização, e nãoo objetivo, torna-se possível coordenar as pessoas em torno de algo mais abrangente. Adefinição deste propósito, em Barnard (1942), é uma das funções do executivo, bem comoa criação de um senso de coordenação que torne possível o atendimento deste. O autorreconhece que há organizações formais e informais, e que ambas existem em constanterelação. A formalização, aqui, se dá em uma função de eficácia crescente, necessitandoainda assim da informalidade para manutenção da coordenação e comunicação interna.Assim, a organização informal está contida na organização formal. Na medida em que secomplexifica e que necessita ganhar contornos mais específicos, bem como propósitos maisclaros, a informalidade cessa frente ao seu negativo.

Em algumas questões, as ideias de Barnard pode ser vistas como antecessoras àteoria dos sistemas abertos. Tanto organizações dentro de organizações quanto intersecçõesentre distintas organizações já eram visualizadas pelo autor. Barnard (1956) cita umexemplo pessoal de que, ao executar um trabalho (redigir uma carta), ele estava cumprindovários propósitos de várias organizações: provendo para sua família, bem como produzindopara sua empresa. Os propósitos dependem de cada organização (gerar bem estar emocionale dar amparo é um propósito familiar, ao passo que gerar produção e lucro são propósitosempresariais). Para o autor, é necessário entender os pontos de vista que governam ocomportamento humano. Tais influências são compostas pelos sistemas sociais no quaisas pessoas se inserem. Embora a palavra papel não surja aqui, Barnard está justamentese referindo ao papel que as pessoas exercem em distintas organizações. No entanto, suaconceituação parece mais relacional e menos funcional do que a de Parsons, deixando oconceito mais aberto: “Em última análise, uma organização é uma composição de atoscooperativos. [...] A [minha] ênfase em caracterizar distintas organizações e rotulá-las nãodeve nos levar a excluir casos de atos cooperativos.” (BARNARD, 1956, p.118)

Neste ponto específico, faço coro a Barnard. Dado que não conhecemos todaspossibilidades do mundo e dado que o mundo não se apresenta com possibilidades finitas,não podemos instituir que organização é só o que conhecemos como tal. Neste sentido,

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organização, aqui, não é restrito a objetivos pré-definidos; não possui objetivos para alémdos interesses dos indivíduos envolvidos; não possui duração nem tamanho mínimo; nãopossui pré-condição de formalização legal, contratual ou de outra forma. Organização é umato cooperativo que envolve pelo menos duas pessoas. Mas, de forma distinta à Barnard,não entendo que exista necessariamente uma introjeção de papéis ou de uma influência depropósitos. Na verdade, desconfio que é possível que uma organização exista e que umato organizativo e cooperativo exista, sem que nunca exista um propósito comum — oque não significa dizer que não há propósito individual. Várias pessoas podem fazer atoscooperativos sem que nunca tais atos tenham o mesmo propósito para cada um.

Mesmo Weber (1999) não conceituou “organização” como um “conceito sociológicofundamental”. Conceituou “associação”, “empresa”, “união” e “instituto” ou “instituição”4.Associação (Verband, que também pode ser traduzido como “federação”), seria uma relaçãosocial na qual a ordem seria mantida por um dirigente com ou sem quadro administrativo.Ademais, uma associação poderia ser autônoma ou heterônima (não sofrendo ordensexternas ou sofrendo); autocéfala ou heterocéfala (que o dirigente da associação é nomeadointernamente ou externamente, respectivamente). Note-se que tais subdivisões restringema possibilidade de uma horizontalidade, de um organizar alheio a autoridades. Tal conceito,embora não seja explícito, parece se referir a organizações formais estatais ( cita comoexemplos a organização estatal do Canadá, do Império Alemão e de um regimento militar).(WEBER, 1999, p.39-40)

Já empresa5 (Betrieb), é conceituada como uma ação contínua que persegue finsdeterminados e incluiria, em seu rol conceitual, atividades inerentemente políticas oureligiosas; ao passo que União seria a associação de empresa formada por pessoas queoptaram por fazer parte da mesma; e instituto (ou instituição, dependendo da tradução,Anstalt) é uma associação que seus regramentos regem toda ação dentro de seu próprioâmbito, tal como o Estado. Os últimos dois (união e instituição) são extremos opostos: ainstituição nos inclui sem nosso consentimento, ao passo que a união, em termos ideais, sóse estabelece com nossa participação (WEBER, 1994; WEBER, 1999).

O conceito de “organização” só aparece, de forma menos declarada e explícita,no capítulo referente aos tipos de dominação, momento subsequente das conceituações4 Na tradução de Weber (1999) se tem “instituto”, enquanto que na tradução de Weber (1994) o termo

utilizado é “instituição”5 Tanto na versão mexicana da Fondo de Cultura Económica (WEBER, 1999) quanto na versão

brasileira da UnB (WEBER, 1994), Betrieb é traduzido como empresa. Entendo que tais traduçõesparecem enveredar para um sentido não originalmente intencionado, já que o sentido literário dotermo é de “operação” (ou, ainda, “empreendimento”) e a conceituação de Weber é justamente o queentendemos, comumente, como operação. Ademais, o conceito subsequente apresentado no texto deWeber (Betriebverband, junção de Betrieb e Verband) fica traduzido como “associação de empresas”,mas é conceituado tal como uma associação de operações ou empreendimentos: “uma sociedade comum quadro administrativo continuamente ativo na execução de determinados fins” (WEBER, 1999,p.42).

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fundamentais. Tal conceito é particularmente revelador de uma ontologia weberiana:

Em todas as formas de dominação, é vital para a manutenção da obedi-ência a existência de um quadro administrativo e de sua ação contínua edirigida à realização e imposição das ordens. A existência dessa ação é oque se designa com a palavra “organização”. Para ela, por sua vez, é deci-siva a solidariedade (ideal ou real) de interesses do quadro administrativocom o soberano. (WEBER, 1999, p.212).

O que é revelador, aqui, é justamente a ideia tão costumeira de que organização,enquanto atividade ordeira, é: 1) algo organizado por indivíduo(s) (no caso, o quadroadministrativo); 2) partem de ordens dadas, não de uma ordem criada conjuntamenteem coletivo; 3) é hierarquicamente assimétrica, ou seja, há quem mande, quem obedeça equem tenha, como objetivo, assegurar que essa divisão assim o permaneça. Essa classeintermediária, que serve de instrumento ao “soberano” na consecução de suas ordens,ou seja, no ato de assegurar sua dominação e, assim, mantendo a mesma, é o quadroadministrativo. Se o exercício do administrador é descrito em Weber, o é da forma maisdetratável possível, mas não menos fidedigna: é descrita como o próprio ato de manter ostatus quo.

Weber (1994) acaba por delinear que as organizações se equivalem à organizaçãoburocrática da dominação, de forma que a própria solidariedade é uma solidariedadeàs leis, as normas, ou seja, onde o poder se legitima por uma dominação racional-legal.Possuem mais ou menos as seguintes características (na medida em que a realidade nuncase equivale ao tipo ideal): competências fixas ao funcionário, pois assim este pode se focarem suas atividades de conhecimento pleno; e poderes de mando fixados, bem como os meioscoercitivos de empregar seu poder também fixados por normativas e regras. O central aquié a ideia de que regras (ou leis no caso do Estado) asseguram a autoridade dos poderesinstituídos como o próprio funcionamento administrativo da organização. Se por um ladotal tipo de dominação parece ser um avanço sob um mando despótico (aproximado daautoridade tradicional), já que mesmo a autoridade no topo da pirâmide hierárquica possuirestrições ao uso de seu poder; por outro lado mesmo uma autoridade despótica possuirestrições cotidianas que não se estabelecem claramente, mas são sempre passíveis dereinterpretações e de disputa dentro da organização. Dito de outra forma, se por um lado aorganização burocrática estabelece limites à autoridade, por outro estabelece possibilidadesque se tornam sacramentadas por meio de um texto quase sagrado — a lei, a norma.

A descrição de Weber do que é organização remete a uma visão de mundo quealude à modernidade. O mundo atual — o mundo capitalista — é tomado por organizaçõesformais, pelo aparato administrativo burocrático. Por vezes, a ideia da burocracia comomediadora nas organizações é tomada como ultrapassada (seja por conta de computadores,que suprimiriam o papel, seja por conta de novos métodos administrativos que se supõempós-burocráticos), mas a realidade é que o mundo se acostumou tanto à formalização de

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processos, à autoridade racional-legal e as regras tomando o lugar do político que, emúltima análise, a formalização se tornou o padrão — qualquer outro tipo de dominação oude processo de decisão é alternativo a esse padrão. (GRAEBER, 2015)

Os malfadados fluxogramas, representações visuais de processos burocráticos, nãosão mais pendurados em quadros expostos aos funcionários. O processo foi internalizado detal forma que sua representação foi automatizada por sistemas que impossibilitam a fugado processo pré-determinado. A reclamação da morosidade burocrática, comum aos rançoscotidianos de todos nós, cedeu à facilidade de cumprir com as determinações normativasformatadas digitalmente.

Não se trata aqui da crítica costumeiramente levada a cabo por gurus da adminis-tração e pela direita política, na qual a burocracia atravanca os caminhos do mercado comsua lentidão estatal. Na verdade, a burocracia estatal é o outro lado da faceta de mercado,uma dominação estatal amparando e legitimando a dominação do capital. Graeber (2015)demonstra que o aparato burocrático do Estado e das corporações é intrinsecamenteconectado e mutuamente necessário. Toda a ideia de contratualização, na qual o libera-lismo clássico se baseia, necessita de um enxame de funcionários públicos, notariais, delegislações, normas, regras, contratos, regências sobre os mesmos e etc. Cria-se o mundoda legalidade justamente em prol de um mercado livre, o qual o autor zomba:

Esse aparente paradoxo — de que políticas de governo que pretendemreduzir a interferência do Estado na economia na verdade acabam porproduzir mais regulamentações, mais burocratas, e mais polícia — podeser observada tão regularmente que eu penso ser justificável tratar issocomo uma lei sociológica geral. Eu proponho chamar isso de “a lei deferro do liberalismo”. (GRAEBER, 2015, p.20)

A crítica às organizações formais e a burocracia que essas invocam não parte dopressuposto de que a opção é o mercado — pelo contrário, um alimenta e necessita dooutro. Um pressuposto de mercado é que os investidores possam confiar em seus contratos(o que demanda um intermédio burocrático, além das próprias regras formalizadas) epossam fazer previsões futuras (que demanda não só a regulamentação, mas uma defesado status quo, a impossibilidade de mudanças). Nesse sentido, entendo que muito daquiloque é percebido como disfunções da burocracia, tal como em Merton (1968), ou seja,considerados erros e descaminhos cotidianos, são, de fato, o próprio âmago burocrático. Aideia de que a burocracia atende a funções (e, por isso, possui disfunções) assume comopressuposto de que a mesma objetiva eficiência quando, efetivamente, ela produz umaparato instrumental para dominar. Por isso estancar e cristalizar6 o mundo não é um6 Utilizo “cristalizar” como uma metáfora referente a um processo social de fluxo contínuo que, por meio

de diversas ferramentas como a burocracia, se estrutura em relações sociais estanques dificultando amudança social.

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efeito colateral da administração burocrática, mas o próprio projeto intencional que seutiliza da burocracia como ferramenta.

Embora o argumento de Graeber (2015) possa por vezes descambar para a recla-mação do cotidiano do formalismo burocrático7 , o âmago parece-me acertado: vivemosem uma era da burocratização total.

A visão weberiana de que a organização pressupõe uma ordem imposta é o pontoque quero me ater: se trata de uma visão de mundo particularmente voltada a ideia deque existe a necessidade de autoridade, dominação, ordens e imposição para manutençãode uma sociedade organizada. Parte de uma ideia conservadora de que a hierarquia é umanecessidade natural do homem — e que porque a mesma existe, a mesma deve existir. Ora,a ordem8 , de fato, só pode existir uma vez que não é imposta. Do contrário é uma ordemfrágil, uma cristalização momentânea de uma relação social assimétrica represando conflitospor vir. No momento em que é necessário que um grupo de pessoas obrigue que um outrogrupo obedeça, tal ordem é tão frágil quanto a falta de consenso da mesma. Cedo ou tardeesta ordem cairá. Nesse sentido, entendo que uma organização, enquanto um conjuntode atividade coordenadas, pode tanto ser hierárquica quanto, melhor, horizontalizada,auto-organizada. Nesse sentido, podemos dizer que a concentração de autoridade é frutoda falta de articulação necessária a uma organização.

Os teóricos acima expostos possuem um comprometimento com as empresas (e,no caso de Weber, um comprometimento reflexivo em relação ao Estado), e acabam porreduzir organizações em maior ou menor grau a firmas e organizações formais. No entanto,os EOs também possuem vozes dissidentes, exemplificadas pelo coletivo Organização ePráxis Libertadora (2014, p.274-275), que acaba por situar a organização em um espectrototalmente distinto: “organização é a expressão de processos e práticas orientadas pelarazão estratégico-crítica para realizar a ação transformadora”. Neste conceito, esvazia-se, por um lado, o aspecto formal e produtivista da organização. Mas ao se fazer isso,introjeta-se um aspecto racionalista e crítico que visa um objetivo pré-determinado (a açãotransformadora). Sem dúvida o conceito possibilita uma visão de mundo mais ampla, mas7 Embora seja argumentável que a chatice do formalismo cotidiano seja um sintoma da progressiva

burocratização da vida moderna, como de fato o autor afirma ao se utilizar de casos anedóticos, me éclaro que mesmo na ausência do formalismo cartorial diário, a burocracia pode se apresentar constantee forte. Mesmo na ausência de papéis, ou formulários eletrônicos, o mundo pode se estabelecer emuma espécie de distopia tecnológica burocrática, onde toda palavra empenhada pode se sacramentarpor meio de formas mais sutis de sintomas burocráticos como reconhecimentos de impressões digitais,CCTV’s que tudo registram, e assim por diante. Em todo caso, acho importante que em prol deuma crítica criteriosa, nos afastemos dos sintomas incômodos do dia-a-dia. Embora ninguém duvideque a papelada seja um problema da vida moderna, a questão é mais profunda: se trata de umprojeto de dominação pleno, de cristalização da sociedade e das organizações em torno de regras, dacontratualização do mundo.

8 Contraponho aqui o conceito de ordem a coerção: a ordem é o estabelecimento de uma relaçãoharmônica, onde os diferentes indivíduos agem de uma determinada forma em relação uns aos outros,porque assim o querem. A coerção, opostamente, é uma relação de dominação em que uma ou maispartes age de forma alheia a sua vontade.

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ainda se atém a primazia da organização sobre a subjetividade (por meio do objetivo),bem como a um caráter racionalista de mundo. Ora, uma organização onde seus membrosbusquem o prazer momentâneo, alheio a uma estratégia racional crítica, ainda assim éuma organização. Se o conceito do coletivo amplia o leque por um lado, por outro mantema sujeição do devir ao racional.

Dessa forma, delineio aqui o que entendo por organização. A organização não é algoque existe objetivamente a priori. Um aspecto central a ser considerado é o conceito deenquadramento. O que entendemos por organização é, na verdade, o que proclamamoscomo organização. Fazemos isso ao delimitarmos um sistema social e ao atribuirmoscaracterísticas distintas que o definem. Com isso, proclamamos: isto é uma organização!Por isso, aquilo que chamamos de organização é nada mais do que uma fotografia de umdado momento. A realidade, por trás da fotografia, é complexa e processual. Assim, aorganização é a simplificação do processo de organizar. Organização é uma categoriaanalítica e não um objeto real. Trata-se do enquadramento que damos à realidade,pois na prática as interações entre indivíduos são constantemente mutáveis.

Organizar, por sua vez, é o ato de criar, de poiesis, de forma cooperativa, que parteda vontade dos indivíduos. Como Parker, Fournier e Reedy (2007) afirmam, é um ato deestabelecer uma ordem, mesmo que temporária — o que não deve ser confundido com aautoridade de estabelecer ordem sobre e para os outros.

Cooper (1976) faz uma crítica a ideias de disciplinas e de campos delimitados. Taisdelimitações são, para o autor, limitações criadas por uma forma estrutural de pensamento.Tal forma se contrapõe a uma visão processual, que por sua vez privilegia o devir, ofluxo e a mudança. Substitui-se, aqui, o contexto pela situação; a racionalidade pelarelacionalidade; e a produção pela experiência. “Cuidado com a sedução da forma per se;é aí que mora nossa ruína” (COOPER, 1976, p.1015).

As organizações, dessa forma, são nada mais que enquadramentos da realidade.Cooper (2015) afirma que o enquadramento tem duas funções: a de excluir, ao colocarfora da moldura certas mensagens e informações; e a de destacar ou sobressaltar, aotrazer outras mensagens para o primeiro plano. Além disso, a moldura do enquadramentoserve propriamente como um conjunto de instruções para o interlocutor. O que estáenquadrado está sujeito, tal como nas fotografias, ao enfoque e a posição: em primeiroplano se estabelece na linguagem o foco principal, ao passo que o fundo se estabelece comonecessário, mas não central. Atrai-se a atenção do interlocutor para o que está em primeiroplano, dentro do enquadramento. Se a beleza está nos olhos de quem vê, a organizaçãoestá no olhos de quem proclama. Sua existência parte de uma perspectiva, não existepor si, a priori.

Conforme o autor, a objetificação da realidade reduz, esquematiza, dogmatiza eclassifica. As complexas dinâmicas sociais são tomadas como pontos fixos, reduzidas até a

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total insipidez. Tal esforço, comum ao meio acadêmico, serve para conservar proclamaçõesopressoras e limitadoras, restringindo a criatividade e o devir. Em nível ontológico, talcrítica parte de um rompimento com qualquer ideia de essência kantiana. A objetividadeé um conceito incoerente uma vez que tomemos que os objetos e seres só existem emsua relacionalidade, não tendo quaisquer características intrínsecas. Assim, não só oenquadramento (framing) é um ato discursivo, mas um ato que forma a realidade. Nãoé como se as coisas possuíssem uma essência que captamos limitadamente, formandouma espécie de gap entre essência (o que realmente é) e fenômeno (o que nos pareceser, categorizado pelo ser cognoscente). Isso, como será discutido adiante, gera umarelativização do conceito de verdade e, por conseguinte, do que se entende por mundo. Omundo, então, não é mais uma estrutura objetiva, mas um processo em constante mutaçãoe totalmente relativo.

3.1 Dominação e Organizações Formais

But in the years since the neoliberal project reallyhas been stripped down to what was always its essence:not an economic project at all, but a political project,

designed to devastate the imagination and willing.David Graeber

Illich (1975b, 1975a, 2007, 2010) visualiza as instituições modernas como âmagodo problema humano, da desumanização da sociedade. Sua crítica se volta às principaisinstituições modernas: a escola (vista como um rito que introduz o aluno à sociedadedo consumo e uma destruição do pensamento próprio); a saúde institucionalizada (vistacomo uma outorga do corpo a um outrem e a uma instituição burocrática); o mercado (arepresentação máxima da degradação do humano não só através do consumo, mas tambémda própria produção); o Estado (o protetor do status quo); etc. O autor se vê perante oque chama de “um esforço de minha parte no sentido de questionar a natureza de algosupostamente certo. [...] As instituições criam certezas e, se tomadas a sério, as certezasentorpecem os ânimos e algemam a imaginação” (ILLICH, 1975a, p.9).

Para Illich (2007) a institucionalização leva, inevitavelmente, a três consequências:à poluição (consequência direta da racionalização contumaz do mundo, a desmistificação,ao aumento da eficiência e a desconexão entre necessidades reais e produção); à polarizaçãosocial (levada a cabo pela criação de corporações de ofícios e da criação de um espíritoidentitário ligado às instituições, expresso no seu pior quando o CREMERS reivindica leisque vão em interesse contrário à saúde, por exemplo); e à impotência psíquica (que se dápela consequência da objetificação do ser humano nas organizações e na transformaçãoda vontade em função ou papel). O desencantamento aqui é exemplificado pela própria

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institucionalização do mundo, decorrência da legitimação da autoridade: “Departamentos debem-estar reivindicam um monopólio profissional, político e financeiro sobre a imaginaçãosocial, estabelecendo padrões para o que é proveitoso e o que é possível” (ILLICH, 2007,p.8-9; grifo meu). A institucionalização transfere a autonomia do corpo para a dominaçãoda organização formal9.

Não é nenhum exagero afirmar, como faz Pey (2001), que a escolarização de ummodo geral se configura em um grande dispositivo de poder em funcionamento. Umdispositivo que vai repetindo rotinas de pensamento e formas de agir, que vai atualizandonormas e leis, que vai construindo uma sociedade onde só se permite pensar dentro do quefoi até então pensado, que só permite aos indivíduos agir dentro dos limites do que foi atéentão realizado.

Um ponto central aqui é a crítica ao trabalho em Illich (2008), que atrela a ideologiado pleno emprego (esta também, como a escola, uma vaca sagrada da direita e da esquerdaconforme ele) à ideologia desenvolvimentista. Tal ideologia teria sido desencadeada na eracontemporânea pelo Plano Marshall10. Conforme lembra Illich, as discussões pós-guerrana Europa possuiam vozes distoantes ao plano de Truman, e a discussão em torno dodesenvolvido se dava efetivamente - em oposição ao estabelecido objetivo desenvolvimentistainstaurado nas sociedades atuais. De uma forma geral, o autor critica duramente a sociedadeque tornou o trabalho e o desenvolvimento seu objetivo-fim, criando um imperativo socialde superprodução que, em última análise, é descartado não gerando qualquer valor social11.O desenvolvimentismo, ideologia que boa parte da esquerda acabou por abraçar a partirda segunda metade do século XX, é fruto também de uma visão de conciliação de classessociais, pois visa auferir maiores ganhos de capitais a classe social dominante ao passo quepossibilita pequenos ganhos salariais à base da pirâmide social12.9 Enuncio “formal” aqui enquanto aquilo que é relativo à norma ou ao procedimento. Organização formal

é, assim, aquela que se relaciona em decorrência do previsto em normativa.10 O Plano Marshall também é conhecido como ’Programa de Recuperação Europeia’ e consistiu em um

plano encabeçado pelos Estados Unidos para reconstrução econômica dos países aliados da Europa nosanos subsequentes à II Guerra Mundial. Tratava-se de um dos pilares da Doutrina Truman, freando aexpansão da então União Soviética.

11 Essa discussão, hoje em dia praticamente enterrada, é o plano de fundo com o qual inicia GuerreiroRamos (1981) sua proposição da nova ciência das organizações. Para isso, ele retomou o grande nome dareconstrução econômica britânica pós segunda guerra, John Maynard Keynes: a reconstrução ocidentale o subsequente foco no econômico sobre o social deveria ser algo temporário, período o qual se “fizessede conta, para nós mesmos e para todo mundo, que o certo é errado e o errado é certo; porque o erradoé útil e o certo não é” (KEYNES, 2010 apud RAMOS, 1981, p.1)

12 Como a experiência brasileira recente demonstra, tal projeto desenvolvimentista de conciliação declasses sociais pode produzir efeitos benéficos por um certo período de tempo, mas rui frente a uma criseeconômica maior. A campanha sob o slogan “Não vou pagar o pato” encampado pela CIESP/FIESP,que mais tarde culminou com o apoio ao impeachment da então presidente Dilma, demonstrou isso:havia um pacto nacional entre diversos setores sociais que se beneficiavam de um crescimento econômico.Quando este se tornou inviável de manter, o topo da pirâmide se nega a pagar pela crise e advogapelo fim de direitos sociais, de congelamentos orçamentários e de reformas constitucionais com vistas apassar a conta para as classes baixas.

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Embora o Plano Marshall seja um projeto americano destinado primariamenteà Europa pós-guerra, o Brasil viveu em uma época concomitante um processo, emboramais incipiente, moldado no mesmo sentido. A CSN surge ainda durante a segundaguerra mundial com o objetivo de ser um pilar no projeto desenvolvimentista do Estadonovo. Interessante notar que sua criação contou com o financiamento americano, que sebeneficiava do aço produzido tão importante para o momento de guerra, mas que tambémdemonstrava interesse na criação de novos mercados para seus produtos. Antes mesmodisso, conforme Bastos (2006) salienta, o governo Vargas procurou, por meio de tentativae erro, formas de traçar um plano desenvolvimentista para o Brasil. Além do incentivoà indústria, nasce aí, no país, a ideia de emprego às massas, o que demandou a criaçãoda legislação trabalhista (CLT). O desenvolvimentismo brasileiro não ficou restrito à EraVargas, mas sim se tornou uma bandeira que correu desde a direita até a esquerda —passando por Juscelino Kubitschek, João Goulart, a ditadura militar e retomado maisrecentemente, com um pequeno hiato histórico, pelo governo Lula e Dilma.

“Fazer a economia crescer” se tornou a base política e econômica do ocidente.Boa parte dos noticiários e jornais se dedicam a analisar a performance do PIB e nãoraro as discussões entre partidos políticos parecem centradas em quem consegue melhoresresultados na expansão econômica. Tornou-se consenso que a única forma de atingir umasociedade minimamente justa é por meio de um crescimento econômico sem pausas, queacarretaria em benesses sociais como o pleno emprego. Em última análise, parece queé um objetivo de comum acordo que nosso tempo deve ser utilizado o máximo possívelna produção (o que, dado a burocratização das organizações modernas, a separação edecorrente alienação e mediação do trabalho, significa uma vida plenamente mediada). Como nota Zerzan (1994), em seus estudos antropológicos sobre a pré-história, emtermos de tempo livre, o homem atual vive significativamente menos tempo que o homempré-histórico.

O mundo contemporâneo possui como pressuposto básico a ideia de que o aumentoprodutivo é o objetivo socialmente compartilhado entre todos nós. Dessa forma, o discursodesenvolvimentista se utiliza de um falso pressuposto (aumento produtivo, abundânciamaterial) para estabelecer o poder de uma parcela social sobre as outras. Pressupõeque a racionalidade pode dar vazão às vontades humanas — mas nietzschianamentefalando, a vontade de poder precede a racionalidade. Trata-se do eterno adiar do desejo,a transferência das paixões para o futuro, as condicionando no presente a um eternotrabalhar mais, se comportar melhor, a uma docilização dos corpos. A isso, Nietzsche(2008) apontava como projeto de Apolo na sociedade, utilizando-se do deus mitológico daGrécia clássica. Contraposto a isto, apontava a necessidade de um projeto de Dionísio,o deus da embriaguez, do excesso, do hedonismo. Apolo e Dionísio são dois lados damesma moeda, são duas figurações sociais da vontade de poder. Um se estabelece pelaracionalidade, o outro, justamente pela ausência desta. Para Nietzsche, a vontade de poder

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busca o prazer (e não os ganhos materiais), e o prazer só pode se dar ao se suceder naexpansão própria do indivíduo — na situação em que a vontade de poder é realizada.13

O mundo racional estabelece organizações formais e modelos estanques que impedem ofluxo da vontade de poder. O prazer e o desprazer, como resultantes da vontade de podersucedida ou frustrada, dão lugar a uma pasteurização do indivíduo em mundo asséptico— em prol da ausência de desprazer, abnega-se das possibilidades de prazer. O devir dálugar a um mundo previsível; o risco dá lugar ao planejamento; o irracional dá lugar aoracional14 .

Poderia se contra-argumentar a isso utilizando a ideia weberiana de que a dominaçãoé a probabilidade de impor sua vontade. Sob esta perspectiva, o dominador se estabelececomo aquele indivíduo que pode se expandir mais frequentemente que os dominados,mantendo o aspecto da sua vontade de poder intocado — mesmo que reduzido a umapequena parcela social, estes dominadores. No entanto, a própria dominação é resultante davontade de poder — esta busca se estabelecer como o dominador e não como o dominado.Assim, o prazer cotidiano da expansão individual por meio do poder dá lugar a prazeres deexpansão reduzidos a formas legais: a obtenção de um cargo que possibilite a dominação,a criação de normativas que estabeleçam o indivíduo em uma posição de dominação,etc. A obediência na organização racional-legal é uma frustração da vontade de poder.Como Nietzsche (2008) afirmava, a vontade de poder só pode suceder em seu objetivode expansão individual contraposto a outra vontade de poder. A vontade não pode servisualizada na crença nas normas (pode, sim, na sua criação), não pode existir em ummundo estanque, ou em uma organização cristalizada por uma estrutura formal.

Assim, o problema central aqui é uma sociedade pautada por organizações formaisque se baseiam numa modelagem racional (do racional, enquanto projeto do ser, para arealidade, enquanto mundo aparente), tornando previsível e estanque a realidade. Trata-seda problematização de um mundo esterilizado, que impossibilita a inocência do devir15.Nesse sentido, a instituição escolar parece central à constituição desse mundo. Illich (2007)dedica boa parte de sua obra à crítica à escolarização institucionalizada. Para ele, esta é abase de uma sociedade cristalizada em instituições. A formação escolar formal destrói asinúmeras possibilidades de autodidatismo e cria organizações identificadas com uma linhade formação escolar que possuem como interesse central a manutenção de regalias sociaisaos seus membros. A profissão não mais é uma decorrência de hábitos e necessidadessociais, mas de formações escolares. Dessa forma, gera-se um conflito social crescente,que de um lado encontra os profissionais licenciados e de outro, as necessidades materiais13 O contrário do prazer, a antítese do objetivo humano, não é a dor, mas sim o desprazer. A dor é uma

categoria física, ao passo que o desprazer é a frustração da vontade de poder. É o indivíduo cedendo avontade de poder alheia em detrimento de sua própria.

14 Este tópico será aprofundado mais a frente.15 inocência do devir é um termo utilizado por Nietzsche para se referir a ideia de que o devir, por

definição, precede a moral e, portanto, não pode ser caracterizado como certo ou errado: ele é inocente.

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e imateriais da sociedade. Ilustrativamente, suponhamos que em um dado momentoconsensuemos, talvez inspirados em Ivan Illich, que enquanto sociedade, devemos abolir aescola institucionalizada. A pergunta subsequente que gerará toda uma série de conflitosé: e o que fazer com todos professores e profissionais da área que passaram décadas seespecializando para trabalhar em algo que não vai mais existir? O mesmo exemplo podese dar para qualquer tipo de profissão atestada pelo sistema de ensino formal. A escolacristaliza a sociedade em necessidades que podem não mais existir (se é que um diaefetivamente existiram). É, de fato, um poder conservador que reage a toda necessidadede mudança e impede que novas formas de associação, conhecimento e produção possamvir a existir. Aqui, um sistema de verdades atribui-se supremacia em sua racionalidade,que molda o mundo tal qual.

A institucionalização do conhecimento também permite a criação de uma classe(ou quiçá de um estamento) tecnocrata que se apodera do Estado, distanciando-o depossibilidades sociais. Isso afasta a comunidade das decisões coletivas, utilizando-se doaparato institucionalizado do Estado e o discurso da formação escolar. Ao fim a escolaautoriza os que lhe foram submissos a lidar com certos temas em contraste a humilhaçãodos demais16. O indivíduo é humilhado a tal ponto que mesmo seu corpo lhe foge aoseu cuidado, sendo delegado a um terceiro autorizado pela instituição escolar (o médico).Para Nietzsche (2008), a vontade de poder, força motriz de todo indivíduo, se demonstraenquanto vontade de verdade, gerando uma formação discursiva que se estabelece nadominação: a instituição escolar supõe que existe algo como a verdade e que, portanto,devemos ensinar esta verdade, a despeito das vontades dos indivíduos, das tradições locais,dos consensos sociais.17 O discurso atrelado aqui é que há uma melhor forma de fazerqualquer coisa, ou seja, há algo que se não for puramente a verdade, mais se aproximadela — e deve-se empoderar aqueles que melhor conhecem esta verdade. A escola, paraIllich (2007), é a nova igreja: é o ritual básico da sociedade industrializada. A teologia dossacerdotes foi substituída pela ideologia dos professores. Trata-se, conforme ele, da vacasagrada tanto da esquerda quanto da direita.

Podemos visualizar o sintoma do problema que Illich aponta nas corporações deofícios na realidade brasileira. Por exemplo, uma classe de médicos que boicota o serviçode assistência à saúde e se vale de toda sua força para evitar que um quantitativo maiorde médicos possam atender a população; uma classe de engenheiros e arquitetos quemarginaliza os que não possuem sua escolaridade formal – e que restringe a validade16 Um sistema que produz humilhação constante é, também, central para a reprodução da exploração por

meio da mediação necessária para a alienação que estrutura o reinado Estado-Capital.17 Um sintoma mais agudo disso é a terrível tendência que os países periféricos possuem de importar

ideias, soluções para problemas sociais, projetos econômicos e até o urbanismo dos países centrais.Um exemplo é a questão cicloviária: embora inúmeros municípios brasileiros sejam, desde o processode industrialização dos mesmos, tomados por ciclistas, o discurso da bicicleta só se tornou políticapública a partir do momento em que houve uma importação de projetos urbanísticos europeus. Atéentão, andar de bicicleta era pouco desenvolvido; a partir daí, se tornou sustentável, saudável, etc.

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das obras de engenharia a esta formação; uma classe de trabalhadores do direito que,por benefícios e poderes conquistados e auto-atribuídos, gera escassez artificial de seutrabalho e nega à população o acesso equânime à justiça. Jornalistas que lutam pelarestrição da liberdade de expressão - salvo a sua classe profissional. Administradores quequerem lhe garantir o monopólio de organizar por meio da lei ou de editais de concursos.E assim por diante. Em geral, essas classes valem de seu próprio suposto conhecimentoúnico, sua atribuição de conhecedores da verdade na sua área de atuação, para reivindicardireitos exclusivos - reservar o mercado, a saúde, a justiça, a liberdade de expressão. Isso étotalmente compreensível frente à realidade em nível pessoal: não raro estes profissionaischegam à sua terceira década de vida ainda em processo de escolarização formal. Nestelongo processo, sua própria identidade é moldada de tal forma que o indivíduo não seexperiencia mais como si, mas como alguém que passou por décadas de formação parafinalmente ser — sua identidade é a de um médico, de um engenheiro, etc. O ensinoinstitucionalizado e formal efetivamente lhes roubou uma parcela significativa de suas vidase negou-lhes possibilidades criativas. A tragédia corporativista dos dias atuais não é só umaquestão política: ela é o resultado de uma sociedade institucionalizada, profundamentemoldada pela escolarização formal.

A questão central que uma sociedade cristalizada por organizações formais e umadominação racional gera é a impossibilidade de novas experiências. É um problema que seengendra em um mutualismo unidirecional: de um lado, a dominação racional estabeleceuma verdade (a verdade da ciência normal, a verdade da necessidade da super-produção,a verdade da razão como objetivo inequívoco) e, de outro, as organizações formais tomamo tempo do indivíduo e impossibilitam que o mesmo possua novas experiências. Essasnovas experiências são fatores centrais na produção de novos sistemas de verdades para oindivíduo, que são, por sua vez, necessários para romper com uma vontade de verdadeestabelecida, que por sua vez impossibilitam romper com a dominação estabelecida. Aequivalência de vontade de verdade e vontade de poder não é uma mera abstração filosófica:ambas operam sobre o indivíduo da mesma forma, se consolidam igualmente. O devircalcado nas inúmeras possibilidades que a existência pode produzir é reduzido até se tornarinexistente, pois o mesmo necessita de novas verdades, necessita de uma sociedade que setransmute, que flua, que não se finalize em um projeto único de dominação. Se as verdadessão múltiplas e só podem se consolidar relacionalmente, assim também é o poder, ao passoque a dominação racional pressupõe a ideia de uma melhor forma, de uma escala evolutiva— do aparente à coisa-em-si; do falso à verdade; da experiência ao racional; do desperdícioà super-produção; do trabalho livre ao trabalho mediado e alienado.

Como Illich (1979) salienta, cerca de 90% das palavras ouvidas por um indivíduono começo do século eram transmitidas somente a ele, enquanto que somente o restanteera em igrejas, escolas, rádio, e outros locais onde se recebia uma palavra destinada àmultidão. Atualmente, tal distribuição do diálogo individualizado praticamente se inverteu:

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 53

o indivíduo se submeteu às organizações formais, a uma mídia que suprime a subjetividadeindividual, à aquilo que Huxley (2006) chama de overorganization: uma tendência detornar a sociedade o mais racional possível, suprimindo a individualidade em favor deuma suposta funcionalidade social instrumentalizada por meio de organizações focadas naprodução, no crescimento econômico nas quais o indivíduo é transformado em não mais queseu papel, despido de sua subjetividade. Curiosamente, a problemática de Huxley, emboratenha sido discutida por autores como Wrong (1961) nos anos 1960, hoje parece poucodiscutida, embora suas profecias distópicas sejam tão acuradas que, por vezes, parecem-nosindiferentes, tamanha a dificuldade de nos imaginar em uma situação distinta.

A formalização e a subsequente cristalização das organizações não é só uma questãoorganizacional, mas também um problema do indivíduo. Simmel (2005) já notava nocomeço do século XX, a indiferença, a apatia, o tom blasé dos habitantes das grandescidades: “O espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil.[...] chegou-se,na relação dos elementos da vida, a uma precisão, a uma segurança na determinação deigualdades e desigualdades, a uma univocidade nos acordos e combinações”(SIMMEL,2005, p.580).

Para Illich (2008), a solução frente ao problema da vida dedicada à superproduçãoinócua, da vida fazendo sentido só na efemeridade do consumo e da institucionalizaçãoda vida social passa por uma visão convivencial. Remontando Fourier, Illich vislumbrauma sociedade que abandona o trabalho e escolhe atividades de subsistência, deixandode lado a dualidade retroalimentadora produção/consumo e tornando seu objetivo socialo próprio convívio por meio da paixão, dos desejos e das vontades individuais. A vidatoma uma dimensão plural - não só a produção, mas o convívio, o lazer, o lúdico, a vidasocial e a vida privada. “Aí, a guitarra conta mais que o disco do fonógrafo, a bibliotecamais que a escola, a hortaliça mais que as estantes de supermercado” (ILLICH, 2008,p.63). Neste sentido, o autor (ILLICH, 2010) se inspira nas sociedades de subsistência erompe com a visão eurocêntrica18. Para ele, a inspiração não deveria advir das sociedadesditas desenvolvidas, mas sim em harmonias, tais como as indígenas na América do Sul,ainda existentes19. Assim, a subversão da lógica que o autor critica se dá em duas frentes:na desconstrução do desenvolvimentismo e no câmbio do vislumbre de sociedade, ondeaquelas sociedades que supostamente deveriam aprender com as que foram bem sucedidas18 Embora chame aqui de eurocêntrica, talvez o mais correto seria chamá-la de anglocêntrica, já que,

para Illich, a ideologia do desenvolvimentismo industrial advém do Reino Unido, adquirindo grandeforça com os EUA, especialmente após o Plano Marshall, o qual serviu-se de oportunidade para incutirna Europa continental tal ideologia sob uma dupla faceta, de um lado como salvação, de outro comoespólio ideológico de guerra.

19 Uma outra questão aqui seria se após a produção de Illich, marcadamente até a década de 1970,poderíamos ainda falar na existência de sociedades ditas de terceiro mundo alheias à ideologiadesenvolvimentista. Creio que um sintoma desta mudança dos tempos pode ser visualizada na própriaterminologia que as define: não são mais subdesenvolvidas ou de terceiro mundo, mas sim ‘emdesenvolvimento’

Capítulo 3. O Pressuposto levado a cabo: o que é a organização? 54

são, na verdade, as sociedades que deveriam inspirar.

Dessa forma, cabe-nos buscar alternativas a um projeto de dominação racional etotal que, amparado na racionalidade plena, oferece, em troca, um mundo materialmenterico. Por certo o indivíduo deve criar e produzir, mas sem que, para isso, seja submergidoem um sistema total de produção mediada, de desconexão social e desubjetivação.

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4 Estado e Capital

Se há uma estrutura hierarquizante que condiciona a vida humana, esta pode sechamar de Estado. O conceito de Estado é central no pensamento anarquista. Tal conceitoé usualmente entendido, sob este ponto de vista, como um aparelho hierarquizante a sercombatido. Proudhon (1849) pensava o Estado como a “constituição externa do podersocial”. É o ente externo à sociedade que separa o que cada um pode fazer (poder). Suaconceituação não era só afirmativa de uma ideia como também se opunha a ideia de queo Estado estava imbricado na sociedade, sendo-lhe inerente. A questão, afirmava, nãoera se o governo se daria de forma feudal, por uma realeza, por aristocratas ou por umademocracia. O problema é que, independentemente de quem seja o governo, o Estadoproporciona uma separação entre quem manda e quem obedece. Assim, pouco importa seo critério de formação de governo seja beleza física, carisma, poder coercitivo, tamanhodas propriedades ou quantidade de ouro guardada.

O pensamento de Proudhon é fundante de muito do que se chama de anarquismohoje, sendo considerado o primeiro autor a proclamar-se anarquista. Por anarquismo, oautor conceituava a ideia de erradicar todo e qualquer tipo de autoridade. No entanto,Proudhon percebera que tal objetivo é nada mais que um “limite extremo do progressopolítico”, um horizonte ao qual nunca se alcança.

Conforme já apontado no início desta tese, um dos motivos pelo qual os anarquistastem uma certa dificuldade de se proliferarem academicamente é que, ao passo que osmarxistas sempre tiveram suas bases científicas em sua ortodoxia, os primeiros anarquistasnão constituíram uma base inicial tão clara. No século XIX, Proudhon parece ser o únicoa constituir com maior afinco uma teoria social e econômica. Mas sua crítica, emboraescancarando o problema do Estado e da propriedade, parece se enfraquecer na medidaem que caminha para proposições.

Proudhon (1988) parte de uma concepção radical de Estado, o considerando umente de manutenção da escravidão humana. O pensamento radical do autor parte de umaxioma básico: a diferença entre tomar horas da vida de uma pessoa, por meio de ordensque a coajam a fazer algo que de outra maneira não faria, e uma sentença de morte, éuma mera questão de magnitude. Tira-se da vida alheia –– no primeiro caso, um pedaço,no outro, toda ela.

Baseado em tal axioma, chega-se a ideia de que a escravidão é um assassinato.Com base nisso, o trabalho assalariado torna-se um crime – afinal, rouba-se parte da vidaalheia e, em troca, se oferece pouco mais do que a chance de subsistência. De igual forma,remontando ideias que Proudhon (1969) atribui a Rousseau, ninguém deveria obedecer

Capítulo 4. Estado e Capital 56

uma lei que não consente. Percebera que o voto universal legitimou as leis que oprimem ospróprios cidadãos. Supostamente, sob a lógica do sufrágio universal, todos fazemos parteda criação das leis que nos regem – por mais que isso seja, na prática da representatividadeinstitucional, uma ideia absurda. Assim, se legitima o Estado pela integração social.

Cabe salientar que a estratégia estatal de integrar todos para se legitimar éapropriada pela administração privada. Senão, vejamos a proposição de resolução deconflitos de Follett (2003): podemos fazer uma pessoa fazer algo, contra sua vontade, pela(1) coerção; (2) barganha ou (3) integração. No primeiro, tal qual o Estado faz com seuaparato repressivo, temos uma solução rápida, mas onerosa a longo prazo. Na segundaopção, há altos custos envolvidos, já que há possibilidade de negociação. A terceira opção éo estratagema estatal: jogar a batata quente para o andar de baixo, dando opções limitadas.Tal qual a democracia que se legitima na própria integração de todos por meio do voto,Follet percebera que as organizações privadas poderiam conseguir ganhos de produtividade,diminuindo o conflito, por meio da outorga dos problemas aos operários.

A propriedade, para Proudhon (1988), só poderia estar relacionada com o trabalhodo indivíduo – aquilo que foi produzido por alguém somente pode ser apropriado por este.No entanto, sob a égide do Estado, a propriedade se centra nos meios de produção e nãonos frutos do trabalho. Dessa forma, o Estado inverte a lógica da sociedade. Sob o Estado,os meios de produção são privados, tal como a terra, enquanto que a propriedade produzidapelo trabalho é apropriada por meio da mais-valia do trabalho coletivo. A mais-valia édividida entre as autoridades do trabalho: os proprietários dos meios de produção e oEstado. Assim, um necessita do outro para manter a dominação sobre o trabalhador1.

A propriedade, para o autor, só poderia se dar como antítese estatal: o fruto dotrabalho deve ser privado, enquanto que os meios de produção devem ser da sociedade,utilizados por usufruto2. Assim, em oposição a ideia de que a “propriedade é um roubo”,o autor propõe que a propriedade pode ser a representação da liberdade por meio dotrabalho. Para isso é necessário que a propriedade seja restrita aos frutos do trabalho enão aos condicionantes do mesmo. A ideia de Proudhon então, seria de que todos meiosde produção deveriam ser coletivos (em oposição a estatais, visto por ele como umaapropriação privada), ao passo que os frutos do trabalho deveriam ser privados, de formaa evitar a exploração do trabalho alheio.

A questão da propriedade é central também para entender a relação do Estado como Capital. Um meio de produção pode estar sob a posse de uma pessoa (ou um grupo),pois este necessita mantê-la sob sua guarda enquanto a utiliza. No entanto, o Estado é o1 O conceito de mais-valia é secundário na obra de Proudhon, sendo por vezes substituído pela ideia

sarcástica de erro de cálculo sobre o que é produzido de fato.2 Em minha interpretação, embora Proudhon utilize a palavra possession, traduzida em português como

possessão, sua descrição do que isso seria deixa claro que se trata de um usufruto.

Capítulo 4. Estado e Capital 57

que possibilita que a posse se transmute em propriedade, tornando o que é justo 3 em umaapropriação eterna. Assim, a propriedade torna-se central na relação de exploração, umavez que “por propriedade, o autor designa o capital sob sua forma fundiária, industrial oufinanceira; em suma, todo valor que, no regime de propriedade, pode trazer ao proprietáriouma renda independente da atividade ou ociosidade” (MOTTA, 1980, p. 79).

Dessa forma, propriedade e sociedade são auto-excludentes, uma vez que tudo queé apropriado e mantido por um dono, um proprietário, exclui-se do uso social. Por isso,também, Estado só pode existir como externo à sociedade: tal conceito só pode se dar naoposição ao que é social, ao que é coletivo, ao que é de todos, já que, por definição, é oente que dá manutenção à existência da propriedade. Assim, observa Proudhon (1988),entender o Estado como natural é entender que o homem não é social.

A propriedade é um roubo não por uma mera questão moral, mas porque aorganização do trabalho pressupõe uma cooperação, enquanto o proprietário remunerapela soma do trabalho. O exemplo do autor é que um determinado obelisco, necessitandotransporte, requer 200 homens para trabalhar coordenadamente durante um dia. Ocapitalista remunera seus trabalhadores individualmente, fazendo crer que seu trabalho foio de empregar uma força individual (a de 1/200 do trabalho total). Ocorre que qualquerum desses trabalhadores não faria o mesmo serviço trabalhando 200 dias a mais sozinho,o que faz com que o valor agregado da coordenação dos trabalhadores seja recolhidopelo capitalista. O que faz com que alguém possa se apropriar do valor decorrente dacoordenação entre os trabalhadores é a propriedade – por isso ela é um roubo (PROUDHON,1988), mas, acima de tudo, é a autoridade que confere o status dos meios de produçãocomo propriedade privada.

Mas, se por um lado, a propriedade dos meios de produção é um roubo, por outro, apropriedade dos bens de consumo é objetivo de boa parte do trabalho e, assim, acabou porpromover uma função de desenvolvimento econômico histórico (PROUDHON, 1988). Estadialética que opera exploração de um lado, e produção de riquezas, de outro, demonstraforças opostas que constituem a totalidade. A divisão do trabalho opera no sentido deaumentar a produção e excedentes ao mesmo tempo em que precariza o trabalhador,alienando-o, em sua relação de poder com o Estado e com os capitalistas. Afinal, asorganizações acabam por atuar como forças mediadoras que aumentam a produtividadepara além do mero somatório do trabalho desenvolvido. Esse excedente resultante dacooperação é objeto de investigação e um desafio prático, constituindo o grande objetode estudo dos Estudos Organizacionais, como Motta (1980) salienta. Afinal, é míopetratarmos o campo de EO meramente como a produção de conhecimento com vistas amaximização da produção (tal como Taylor).3 Justo, para Proudhon (1988), seria poder fazer usufruto (possession) dos meios de produção, estando

estes disponíveis a todos e não pertecendo à ninguém.

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Proudhon notara que a negação da natureza social do homem só serve para que,ignorante sob sua condição, lhe seja imputado uma relação de exploração. Na busca peloconforto material, a divisão do trabalho torna-se necessária na medida em que a forçacoletiva maximiza os resultados do trabalho. No entanto, a individualização da relação detrabalho e a alienação do trabalho fazem com que o excedente coletivo possa ser apropriadode forma privada.

É provável que, embora Proudhon seja pouco consensual nos dias de hoje nos movi-mentos anarquistas, a ideia de que a autoridade, por meio do Estado, crie os mecanismosnecessários para que os meios de produção possam ser apropriados privadamente (e, porconsequência, gerando mais-valia privada), é a base de boa parte da crítica anarquista,dos primórdios até o presente. Em oposição a toda forma de estatismo, Proudhon (1998)afirma que há uma separação entre o que é comum e o que é estatal. O que é estatal ésubmetido a uma autoridade, tal qual o que é privado. Assim, pouco importa se o dono daterra é um proprietário privado, um rei ou o secretário-geral da assembleia do povo – oprincípio da autoridade se mantém intacto.

Cria-se um problema desafiador: é possível se organizar sem criar hierarquias ouautoridades? A resposta seria de um sistema social que coletiviza os meios de produção, queseriam regulados por usufrutos (“possessões” na terminologia do autor); e torna privadoos frutos do trabalho, que poderiam ser comercializados no mercado. Embora o autor noteque o fracionamento do trabalho é a base da sua exploração, sua proposição é a de umaautogestão que mantem tal fracionamento (PROUDHON, 2018).

Na verdade, muitas das críticas à Proudhon se centram nos movimentos de criarações concretas. Ocorre que, ao criticar a ideia de utopismo, o autor passa a empreenderideias aplicáveis aos problemas que apontara. Um problema claro de Proudhon, que serepete em Bakunin e que, aparentemente, é influência do primeiro no segundo, é a ideiade buscar leis universais naturais e crer que delas podemos depreender como viver.

Embora Proudhon tenha sido o primeiro a considerar-se anarquista, Bakunin foiseu amigo que se colocou em meio ao movimento dos trabalhadores. Por conta do seu focomais prático, por vezes Bakunin é considerado como quem deu o pontapé inicial anarquista(por exemplo, Rosa Luxemburg (1971) considera Bakunin como o primeiro anarquista).Em sintonia com Proudhon, Bakunin (1970a) lembra que pouco importa se o Estado sechame de republicano ou monárquico: seu princípio permanece. O Estado advém, paraBakunin (1970a), de um idealismo religioso que funda e legitima a Igreja. Afinal, se háuma hierarquia de seres celestiais até os infernais, por que não haveria de se ter tal lógicareplicada na Terra? Assim, a Igreja, por um lado, se vale do orgulho e da vaidade quefaz com que seus perpetuadores creiam-se inspirados. Estes carregam a luz celestial, sãoos iluminados e, portanto, autorizados. Tal como Deus se cerca de arcanjos, cercados deanjos, cercados de seres humanos, estes próprios podem criar sua hierarquia de acordo

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com sua inspiração celestial – o Papa pode, então, se cercar de cardeais que se cercam dearcebispos, e assim por diante.

De fato, não é à toa que o termo anarco aparece, pela primeira vez, no poema épicoParadise Lost, de John Milton (2014), para descrever o ser coletivo a quem o anjo caído,Satã, pede permissão para passar pelas profundezas em sua oposição ao Estado divinohierárquico4 (BLACK, 1994).

Milton (2014) descreve o “velho anarco” como um ser ancestral anônimo e coletivodentre uma multidão a qual se adiciona o que fora representado por Orcus, Hades,Dermagorgon, Rumor, Chance (seria esta o Devir?) e a Discórdia. De fato, a própria obrade Milton transparece uma ideia de que o(a) Anarco(a) seria um ser nascido do caos a talponto que sua própria identidade se confundia com o caos selvagem da multidão infernal.Anarco, assim, era o senso coletivo de oposição ao reino dos céus, contra a instituiçãocelestial que hierarquiza os seres transcendentes. Parece acertado que, se entendermos, talcomo Bakunin (1970a), que a crença na hierarquia celestial dá origem à hierarquia terrena,nada mais acertado do que se inspirar nos seres das profundezas, da base da pirâmidetranscendente, como inspiração na revolta contra os senhores imanentes. Os anarcos nãosão Satã: eles são o indiscernível entre si que visa o fim da estratificação social e que temcomo sagrado nada além de suas vontades. Sob esta alegoria, Satã seria aquele que desejadestronar o Rei em prol de uma nova ditadura daqueles que estão na base da pirâmide.O “velho anarco”, por sua vez, é aquele que se vê beneficiado pela luta, que requer o fimda autoridade e da hierarquia e que, portanto, não deseja um novo rei5. Nesta metáforapoética, se os anarcos são uma massa caótica, coletiva e destituinte, os marxistas seriamos seguidores do anjo caído que requerem alterar a hierarquia em seu favor. Tal como no4 “Thus Satan; and him thus the anarch old,

With faltering speech and visage incomposed,Answered: I know thee, stranger, who thou art,That mighty leading angel, who of lateMade head against Heaven’s King, though overthrown.[...]If that way be your walk, you have not far;So much the nearer danger. Go, and speed;Havoc, and spoil, and ruin, are my gain“ (MILTON, 2014).A tradução poderia se dar como “À Satanás, o(a) velho(a) anarco(a), com a fala vacilante e descompostorespondeu: Conheço-te, estranho, quem és: aquele poderoso anjo principal que recentemente guerreoucontra o Rei do Paraíso e foi derrubado. [. . . ] Se este é seu caminho, dele estás perto tanto quantomais perigoso. Vá, e pressa; Estragos, espólios e ruína são meu ganho.”

5 Black (1994) argumenta que deveríamos utilizar o termo ‘anarco’ no lugar de anarquista, tal como nadistinção entre monarca e monarquista: somos parte dessa entidade coletiva antes de sermos defensoresdela. Isso leva a uma outra discussão que é a ausência de constituição de hegemonia ou, daquilo queAgamben (2014) chama de poder destituinte: não cabe só defender a formação de uma sociedadeanarquista, mas de constituir, de fato, uma na ausência de hieraquia. Além disso, anarco é um termomais amplo que pode incluir vários autores que jamais se intitularam anarquistas, como Stirner,Nietzsche, Ivan Illich, Tolstói, Deleuze dentre tantos outros. Quando Felipe Borges (2018) defende ocuidado de si contra o fascismo cotidiano, sua posição não quer impor o cuidado de si a todos, deforma que não se pode lhe imputar a pecha de anarquista, mas sua recusa à autoridade lhe possibilitaestar dentre os anarcos.

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poema épico de Milton, estes necessitam daqueles em seu intento.

O problema anarco não é constituir um governo justo ou o melhor governo possível.Afinal, “governos são [...] obras de usurpação, de violência, de reação, de transição, de empi-rismo, onde todos os princípios são simultaneamente adotados e depois igualmente violados,não reconhecidos e confundidos” levando a conclusão de que o único governo desejávelpara um “regime de liberdade” é o “governo de cada um por si mesmo” (PROUDHON,2001, p.221). Sob o ponto de vista autoritário, isto é de fato o caos. Afinal, se só é legítimoo governo de si sobre si, então a indolência frente a ordem da autoridade surge e o governode todos se torna uma figura risível. Deus soberano, frente à turba “velho anarco” dasprofundezes seria senão uma figura considerada mimada que crê reger os outros6.

A Igreja pode ser visualizada, assim, como o velho administrador de Deus. Entreo horror do subterrâneo e a perfeição da autoridade superior a humanidade se encontra.A Igreja se porta como quem se encontra entre a autoridade suprema e os súditos, talcomo o administrador se põe entre os desejos naturais da Terra, expressa por suas leisnaturais, e seus trabalhadores que devem maximizar a produção. E se a Igreja estabelece,por meio da criação de um mito divino e da hierarquia celeste, um Estado incipiente,Bakunin (1970a) percebe que a ciência, por meio de seu pedantismo, submete todos aregras pré-estabelecidas que acabam por reforçar o Estado por meio do que chamava de“governo da ciência”7. Embora não fosse um primitivista, Bakunin estava advogando pelasubmissão da ciência à vida, percebendo que a mesma se aliara ao Estado na constituiçãode técnicas e regramentos para manutenção da dominação. Em oposição a isso, o autorargumentava pela pulverização e popularização do conhecimento a todos, o que parece seconstituir na limitação de sua obra.

Se é factual que nenhum pensamento surge do nada, isso é ainda mais relevantepara entender Bakunin, sua obra e sua contribuição8. Conservador na juventude e nascidode uma família da “pequena nobreza”, se torna um democrata liberal nos anos 1840,tornando-se um sindicalista da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores - aPrimeira Internacional) e passando a ser um ícone socialista na Itália na década de1850. Ainda acreditava, neste momento, na possibilidade de diálogo com a burguesia, sóabdicando da ideia ao final da década de 1860, quando rompe com a Liga Internacionalda Paz e da Liberdade e passa a se dedicar plenamente à Internacional. Logo após, romperelações com Marx. A partir daí pode-se dizer que a figura de Bakunin, enquanto marco6 De fato, Bakunin (2015a), sarcasticamente, falava que Proudhon possuia o verdadeiro instinto revoluci-

onário que o fazia adorar Satã.7 Cabe notar que, neste texto publicado postumamente, três páginas da sua crítica ao cientificismo se

perderam. Bakunin passara boa parte de sua vida prescrevendo a ciência como remédio às injustiças,mudando somente ao final de sua vida. Embora o Estado e a religião fossem inimigos confessos háalgum tempo, o autor adiciona somente ao final de sua vida a ciência como aliada de seus detratados

8 Sejamos francos: mesmo se ao leitor não lhe apetecer os pensamentos de Bakunin, sua história pessoalé digna de uma quase mitologia anarquista.

Capítulo 4. Estado e Capital 61

anarquista teórico, emerge (BERTHIER, 2015).

De fato, uma leitura atenta dos textos produzidos por Bakunin demonstra quehouve uma guinada paulatina de seu pensamento. Não é recomendável começar a ler ostextos do autor de forma temporal-linear, sob pena de se desistir do empreendimentoantes de se deparar com suas grandes contribuições teóricas, que estão situadas no finalda sua vida. Mas Bakunin, mais que um teórico, é um exemplo de uma práxis anarquista,um anarco, alguém que estava sempre em meio às lutas sociais libertadoras. Sua históriacomeça em seu interesse intelectual pelo pensamento hegeliano, de forma a sair da Rússiae ir estudar em Berlim em 1840. No entanto, quando a polícia secreta russa começa aperseguí-lo, ele foge para a Suíça, de lá para a Bélgica, até encontrar um porto-seguro emParis, cinco anos depois (PINO, 2015).

A Europa daquele momento, a década de 1840, vivia um ar de revolução à espreita.Em Paris, Bakunin conhece Marx, Engels e Proudhon, se afeiçoando ao pensamento desteúltimo. Após algumas confusões e alguma notoriedade, em especial entre os poloneses ealemães exilados, o governo francês, a pedido da embaixada russa, deporta Bakunin, quepor sua vez se exila novamente na Bélgica, retornando à Paris por ocasião da RevoluçãoFrancesa de 1848. Em meio à confusão da revolução, ele toma parte das barricadas eradicaliza seu pensamento, momento em que escreve que a realeza da Europa deveriadesaparecer. Após o fim da revolução, vai à Praga onde toma parte de motins que duramcinco dias, sendo expulso da Áustria ao final. De lá, parte para Dresden, onde tomaparte de outra revolução que fracassa, sendo feito prisioneiro com o triunfo da reação. Écondenado à morte, mas Rússia e Áustria pedem sua extradição. É enviado à Rússia paracumprimento de sua pena.

Deportado à Rússia, Bakunin é encarcerado na fortaleza de Pedro e Paulo em SãoPetersburgo. De lá, redige uma “confissão”, na qual lamenta suas atitudes revolucionárias,e onde presta alguma deferência ao czar9. No entanto, Bakunin faz chegar à sua irmã umacarta na qual explica seu desejo de recuperar a liberdade e retornar à ação revolucionária.Após oito anos de prisão, sua pena é comutada em trabalhos forçados na Sibéria. Lápermanecerá mais dois anos, conseguindo fugir. Para evitar atravessar a zona russa maisdensa (o oeste russo), Bakunin dá a volta ao mundo, fugindo para o Japão. De lá consegueir de navio para São Francisco, da onde atravessa o país até Nova Iorque. De lá vai àLondres, onde conversa com Marx e, depois, à Paris, onde revê seu amigo Proudhon já9 Em suas cartas, Bakunin (2005) descreve sua prisão na Saxônia como um momento em que fora bem

tratado, sendo bem alimentado e podendo ler Shakespeare. Mas mesmo estando em uma fortificação,“duas baionetas” sempre o acompanhavam e uma bola de ferro lhe era amarrada sempre que saíada cela. Já na Rússia, preso, Bakunin se queixara de estar sendo subnutrido, privado de ar, sol emovimentos. Acreditava estar ficando cada vez mais frágil, fisicamente, além de doente. Neste contexto,a carta de “confissão” ao czar, onde Bakunin se compara à Dom Quixote, pode ser entendida comouma carta de pedido de um abrandamento no seu trato. A carta é bastante ambígua, escrita sob umtom lamentoso e, ao mesmo tempo, entusiasta de suas participações libertárias.

Capítulo 4. Estado e Capital 62

moribundo. Então, instala-se na Itália (PINO, 2015).

Mas o conceito de Estado, em Bakunin, não é intrinsicamente ligado à sociedade. Oprimeiro se constitui enquanto ente externo, tal como em Proudhon, à sociedade. Em suacrítica a ideia marxista de constituição de um Estado governado pelo proletariado, ironiza:‘’Deixe-nos perguntar, se o proletariado deve ser a classe dominante, a quem dominará?”.Afinal, explica: “Se há um Estado, deve existir dominação de uma classe por outra e, comoresultado, escravidão; o Estado sem escravidão é impensável” (BAKUNIN, 1990, p.20).

Bakunin, em sua briga com Marx, dentro da AIT, o acusava de ter um temperamentoautoritário e de levar a AIT a se tornar uma organização burocrática, tal qual o Estado.Na verdade, notara, a burocracia enquanto separação do trabalho, profissionalizaçãodos integrantes e pela representatividade de delegados e parlamentares é uma práticaautoritária por natureza. É o ato autorizativo perpetuado por meio da fixação de relaçõessociais mediados por normas, regras e atos autorizativos escritos. Apesar disso, Bakuninreconhecia em Marx um teórico de alta qualidade.

Não à toa, Bakunin e seus correligionários na AIT, apesar de constituírem-se emmaioria após o Congresso da Basiléia em 1869, sofreram com as constantes manobras deMarx até que em 1872, no Conselho de Haia, Bakunin é expulso à revelia e a organizaçãofoi transferida para Nova Iorque, onde será dissolvida poucos anos depois. Um dos celeumascentrais entre Bakunin e Marx era a burocratização e o autoritarismo do movimento. Emúltima análise, notara Bakunin (2015a), a AIT que Marx defendia acabava por se tornarum partido político tal qual os das classes dominantes. Afinal, a democracia, emboraseja um princípio defensável a priori, em um contexto capitalista, é nada mais que umafarsa legitimadora dos processos de dominação. Dessa forma, a democracia das sociedadesmodernas atua tal qual a religiosidade nas sociedades feudais na atribuição de autoridade.

Assim, Bakunin deparava-se com uma questão interessante nos seus últimos anosde vida: de um lado via um autor com uma teoria que reconhecia ser de alta qualidade,bem fechada, mas que as práticas relacionadas eram autoritárias, abusivas, burocráticas eremontavam, no que havia de pior, os objetos de sua própria crítica. Por outro lado, via emProudhon uma teoria com falhas e incompletudes, derivadas de uma metafísica frágil, masque suas práticas denotavam “o verdadeiro instinto revolucionário” (BAKUNIN, 2015b).

As pistas para solucionar o autoritarismo marxista, em Bakunin, se encontram nosseus últimos textos. Após passar décadas devotado à uma ideia de verdade e à ciência, quedeveriam ser ensinadas a todos trabalhadores, Bakunin passa a repensar algumas premissassuas. Por exemplo, percebeu que o programa marxista passava pela ideia da promulgaçãode uma verdade única na AIT, base com a qual poderia se fazer uma revolução. Ao mesmotempo, percebera também que a metafísica proudhoniana tornava transcendente o que ématerial, ou seja, partia do pressuposto de que há anteriormente a nossa realidade algoque nos substancie (BAKUNIN, 2015b).

Capítulo 4. Estado e Capital 63

Mas Bakunin não chega a oferecer uma solução teórica. Percebe o problema daideia de transcendência de um lado, e o autoritário do outro. Notara que Proudhon seportava de maneira coerente com relação a vida, mas tinha uma teoria frágil; ao contrário,Marx parecia ter uma teoria bem delineada, mas gerava consequências horrendas pormeio de uma verdade única promulgada. De um lado, uma transcendência religiosa, umametafísica idealista; de outro um cientificismo que prometia emancipar o outro às custas desua expropriação individual. A verdade única, seja ela para além de nós, seja ela presentena eficiência da materialidade, limitava qualquer ideia de revolução. Seja pelo foco nasquestões emergenciais e prática, seja pela sua morte poucos anos após isso, Bakunin nãose debruçou mais sobre tal questão.

4.1 Contra o Estado, Contra a OrtodoxiaTal verdade não pode ser promulgada senão como farsa, senão como mito. É

necessário, de fato, que haja um mito de que nossa sociedade é melhor que as sociedadesque nos precederam. Tal crença só pode nascer de um senso essencialista que transfere àeficiência as questões substantivas. Fora Clastres (2013) que percebera que este primeiromito permite que se acredite que a separação do poder, a mediação das relações e aseparação do trabalho é benéfica. Isso legitima as autoridades que criam a manutençãodesse status quo. Um outro mito, denunciara, é de que as sociedades primitivas eram alheias– e não contrárias – ao Estado. Este mito possibilita que acreditemos, por exemplo, que osincas, maias e astecas eram mais organizados que pequenas aldeias - mesmo pertencendoao mesmo subcontinente. Com esta crença em voga torna-se possível crer que a existênciade um Estado é benéfica. Mas Clastres notara que inexistência de um Estado dentre associedades primitivas não era uma ausência de evolução ou da razão, mas sim de umprojeto claro de negação da formação de autoridades.

Um terceiro mito necessário à legitimação das relações de poder estabelecidas é deque as relações econômicas ou do trabalho precedem as relações políticas. Dessa formase desloca da vontade humana os porquês para imperativos naturais, tornando externoaos humanos as razões de ser. Deriva desse mito a crença de que o Estado seja um entenatural. O mito se funda na ideia de que há uma divisão entre rico e pobre quando, naverdade, a divisão se funda entre quem manda e quem obedece. Afinal, se nossas relaçõessociais são pautadas pelo trabalho, elas devem ser pautadas também por uma razão demaximização da produção e dos excedentes (CLASTRES, 2013).

No entanto, há de se lembrar que a grande maioria das sociedades que já existiramnão pautavam suas vidas pela maximização dos resultados ou pela busca do trabalhoeficiente. Seria de grande arrogância achar que só nossa sociedade moderna ocidentalentendeu como se organizar de “melhor” forma, ou seja, racionalmente. Tais sociedades

Capítulo 4. Estado e Capital 64

se organizavam de suas formas não porque eram (ou são) primitivas ou porque seriamirracionais. O fazem porque a maximização do trabalho cria relações de submissão edominação, onde uns ordenam e outros obedecem. Tal mito proporciona que, em nomede um suposto progresso coletivo, se submeta a grande maioria das pessoas ao poder depoucas (CLASTRES, 2013).

Isso é ilustrado quando Taylor, em uma sessão no Congresso Norte-Americano,afirma que o aumento produtivo da administração científica torna todas “querelas” sobrea divisão da produção uma questão infrutífera. Na verdade, Taylor fora adiante. Afirmaraperemptoriamente que, sob a administração científica, não haveria mais motivos paraexistência de sindicatos. Greves seriam uma questão do passado. Os ganhos produtivosseriam suficientes para acabar com qualquer discussão e o fariam isso por dois motivos:primeiro, porque dariam ganhos paulatinos de produtividade, proporcionando aumentosperiódicos de salários de forma a tornar os funcionários satisfeitos com suas condiçõessalariais. Segundo, porque, dado que se trata de uma ciência racional, a forma de produzirencerra-se em si mesma a possibilidade de discutir maiores salários do que os que já existem– um salário assim o é porque é reflexo da produção e vice-versa. Assim, Taylor acaba porsupor que técnicas avançadas resolveriam o conflito entre capital e trabalho.

Tal relação é delineada em Proudhon (2018). Para ele, a história da humanidade éa história do progresso científico e do progresso da sociedade por antinomias que acabampor formar uma dialética. Proudhon, apesar de perceber que há uma constante oposiçãoentre capital e trabalho, mantém uma visão evolucionista das relações de produção,na qual a “tribo desorganizada” vai paulatinamente dividindo seu trabalho, tanto pelaseparação horizontal do trabalho (especialização de funções) quanto pela separação vertical(surgimento de chefes e autoridades). Eventualmente, nota o autor, essas funções criadaspela separação do trabalho são incorporadas à sociedade, criando castas mais ou menosimutáveis, tais como a monarquia ou o feudalismo. Mas a democracia também é um exemplodesse tipo de sociedade: ela depende da representação que por sua vez se perpetua.

Neste ciclo histórico, há movimentos de tentativa de captura da sociedade por taiscastas e movimentos de solidariedade na base da pirâmide que se contrapõem a tal captura,criando um processo dialético do que é antinômico. Tal conceito parte do entendimento deque antinomia existe quando dois lados que se negam mutuamente mas que, para existirem,necessitam um do outro, ou seja, são auto referenciados. A relação capital-trabalho podeser entendida como uma relação antinômica, na medida em que a propriedade enquantoapropriação do que é produzido por outro (o roubo que forma o capital em Proudhon) sópode existir enquanto há o trabalho.

Esse movimento histórico levado ao extremo geraria, para o autor, um feudalismoindustrial, ou seja, uma economia concentrada em poucos atores que possuem a propriedadedos meios de produção. Este seria o momento o qual nos deparamos na atualidade, em que

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grandes corporações controlam o mercado de consumo e de trabalho (PROUDHON, 2018).

Levando ao extremo as relações que se apresentavam, constituíra-se uma espéciede capitalismo de Estado a que Proudhon chamou de Império Industrial. Ocorre que asantinomias gerariam um processo de concentração de poder a tal ponto que o Estado sefundiria, cada vez mais, com as organizações econômicas. É por isso que tentar entender asrelações econômicas por si só é um ato efêmero, necessitando entender as relações de poderque se estabelecem em relação à organização econômica. Por isso o famoso apontamentode Proudhon de que se escravidão significa a morte tanto quanto a propriedade significa oroubo – ambos se estabelecem em relações de poder e submissão daquele que trabalha.Frente a isso, o autor vislumbrava como única saída a autogestão por meio de uma repúblicaindustrial (MOTTA, 1980).

No pensamento de Proudhon é possível notar uma crítica à alienação de formatotal: ela é formada pela religião, ela é formada pelo capital, mas ela é garantida peloEstado. A propriedade, enquanto apropriação do trabalho alheio, só pode existir se háuma autoridade. Isso garante a separação do trabalho vertical e, assim, a autoridadehierárquica.

A organização moderna, como entendida no senso comum e ensinada nas Escolas deAdministração, é o empreendimento coletivo que assimila relações de separação de podere as cristaliza por meio de cargos e funções, transformando toda e qualquer organizaçãomoderna em pequenos Estados, mesmo que submetidos a um Estado maior. Por isso, mesmosob uma ótica anarquista, não há porque destituir só o governo, mas sim as corporaçõese o sistema capitalista como um todo. Ocorre que a lógica do Estado foi internalizadapor boa parte das organizações modernas e passamos a legitimar tais organizações emdetrimento das demais.

É por isso que Proudhon (2002) afirmara que o fenômeno da guerra só poderiaacabar com o fim do Estado, uma vez que esta migrou de ser uma pilhagem entre naçõespara se tornar a pilhagem dentro dos próprios países. Deixou de ser um exercício armadopara ser simplesmente uma coerção exploradora. Afinal, o Estado se constitui enquanto umsistema de desigualdades que transfere excedente produtivo coletivo para alguns. Por isso,advoga o autor(1969), uma revolução deve destruir a ideia de Estado. A ordem social devepartir da espontaneidade dos seres, e não de um ente externo que impõe uma hierarquia.

Neste sentido, nota (MOTTA, 1980), Proudhon está buscando a solução para aalienação social na retomada do poder que a sociedade outorga ao Estado. Para isso elesugere a criação de uma nova organização social baseado na troca espontânea, na livreassociação, na dissolução das classes sociais por meio do uso comum dos meios de produção(rompendo a separação entre capital e trabalho) e, assim, tornando a repressão coercitiva,base da necessidade do Estado, obsoleta. Ao mesmo tempo, a supressão do Estado énecessária para que os acordos voluntários ocorram, de forma que autogestão, de forma

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plena, só pode ocorrer na ausência desse. O pensamento de Proudhon demonstra umaimpossibilidade de solidariedade plena quando da existência de forças coercitivas.

Conforme a crítica de Marx (1865), Proudhon se valia de uma dialética com umtom moralista: contrapunha não movimentos históricos, mas relações de significados: oque é bom contraposto com o que é ruim. Por exemplo, a propriedade, em sua célebreobra “O que é a Propriedade?”(1988) possui uma conotação positiva (gera liberdadena medida em que possibilita independência do homem frente ao social) e é negativa(enquanto institucionalizada é um roubo dos meios de produção). Tal relação dialética deProudhon não encontra uma síntese na teoria, mas sim no próprio movimento histórico – nopróprio humano. De fato, tal dialética (por vezes tratada por Proudhon como “antinomias”kantianas) é apontada por Marx como uma suposta incompreensão de seus ensinamentospessoais à Proudhon, somados ao fato do anarquista não ser fluente no alemão, de formaque “não podia estudar a coisa a fundo”(MARX, 1865).

Somado à síntese aberta da dialética de Proudhon, as inconsistências teóricas doautor, tal como defender o desenvolvimento econômico e o mercado por meio de umacontratualização em oposição ao Estado, certamente o tornaram muito frágil para osacadêmicos da época até hoje. Ao que me parece, boa parte de sua fragilidade advém deuma busca de alternativas, por meio de um sistema de normas tácitas e explícitas, parao sistema capitalista mantido pelo Estado. Assim, embora o Estado devesse ruir paraque uma sociedade autogerida o suplantasse, esta, muitas vezes, acaba por possibilitar acriação de um novo Estado. Esta sociedade não viria ao passo de mágica ou por meio deuma revolução rápida, mas sim por um longo processo de progresso dos movimentos sociais.Estes, os movimentos, são o oposto de Estado: são provenientes do ser coletivo espontâneo,não pertencendo às estruturas hierárquicas da sociedade que são garantidas pelo Estado.Tais movimentos poderiam dar origem ao que chamava de “anarquia positiva”, que seria oápice de um progresso em direção a inexistência de hierarquias ou do Estado, ou seja, aformação de uma sociedade plenamente espontânea e autogerida (MOTTA, 1980).

No entanto, note-se, a anarquia positiva seria uma sociedade plenamente racionale ciente de suas capacidades produtivas. A alienação seria superada pelo conhecimentopleno desenvolvido por todos, de forma coletiva. Essa visão de um desenvolvimento darazão como instrumental da anarquia acaba por se tornar um problema do pensamentode Proudhon, na medida em que contradiz a própria ideia de espontaneidade por umlado, e pressupõe uma razão objetiva essencialista de outro. Mas estas fragilidades nãopoderiam ser melhor notícia para a consolidação de um pensamento deveras iconoclastae anarquista: do contrário, seria possível criar uma ortodoxia, um fechamento teórico,um norte único. Os paradoxos de Proudhon possibilitaram que a tradição teórica não setornasse “proudhoniana” e que os círculos de seus leitores não se focassem em interpretaro que o autor disse, mas sim em consolidar a problematização constante.

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Os parentes anarquistas mais próximos da época (os marxistas) não tiveram amesma sorte e se prendem até hoje a discutir intencionalidades de seus autores centrais,consolidando uma grande quantidade de bons intelectuais em fiscalizadores de conformidadedo pensamento alheio. Tais práticas, de fato, remontam o pai da tradição: Marx, apóselogiar as primeiras obras que teve contato de Proudhon, passou a detratá-lo, chamando omesmo de “pequeno burguês” que cometeu “vilanias” a tal ponto de tentar flertar como poder para tornar “aceitável para os operários franceses” Napoleão III. ProvavelmenteMarx não sabia disso na época de sua redação visceral, mas Napoleão, supostamentecoqueteado por Proudhon, não concordava com Marx, tendo mandado Proudhon à prisãouns anos antes.

Mas para além das acusações dos escritos pouco amigáveis de Marx em relaçãoà Proudhon, podemos observar que a teoria deste partia de pressupostos kantianos e deuma crença no progresso humano. Embora sua teoria tenha dado amparo intelectual aosmovimentos anarquistas do século XIX até o começo do século XX, apontando a relaçãointrínseca e embricada entre Estado e capital, sua proposição de revolução de longo prazo emdireção a uma autogestão possuía limitações. Da mesma forma, a crença no conhecimentolibertador que Bakunin10 defendia como solução para alienação e exploração acabavapor remontar a mesma fragilidade de Proudhon. Ambos pretendiam encontrar soluçõesgerais, um modo de organizar que pudesse se contrapor ao Estado capitalista. Na próximaseção argumentarei como tais limitações advém de pressupostos que são incompatíveis, nolimite, a uma visão libertadora. Na seção subsequente, a terceira e última, procederei aosmovimentos correntes que incorporam, mesmo que de forma indireta, o perspectivismoanti-essencialista, possibilitando que a proposição não seja mais em um sentido único deautogestão, mas de um processo constante de luta, fuga e realização do devir.

10 Conforme exposto anteriormente, Bakunin fora flexibilizando e revendo aos poucos tal entendimentoao final de sua vida.

Parte II

Por que o essencialismo é tão perigoso aosEstudos Organizacionais?

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A crença essencialista possibilita organizações com autoridades legitimadas. Nãosó legitima, como gera todo aparato discursivo necessário para que a autoridade sejaentendida como necessária e aceitável. Aqui se contrapõe a isso sob uma epistemologiaperspectivista, que também se afasta do relativismo pós-modernista.

Nesta seção pretendo demonstrar como a crença em objetos e seres com propriedadesa priori, ou seja, alheio às relações entre si, quando hegemônica, produz um mundo que secoloca na expectativa de uma verdade única. Esse salto de fé possibilita a crença numaverdade que se estabelece de forma antecedente à experienciação do mundo, de forma anegar os sentidos e atribuir validade a uma pretensa razão em detrimento da relação doser com o mundo. Esta crença, a qual chamo de essencialista, possibilita um discurso queterceiriza e medeia o mundo, possibilitando a atribuição e legitimação de autoridades. É acrença base do autoritarismo. Com ela, torna-se possível a ideia de que é necessário haveruma hierarquia para se organizar.

Para demonstrar isso, percorrerei um caminho. Em um primeiro momento, pretendodemonstrar como há uma correlação entre verdade e poder, me afastando e contrapondo ànoção ilusória de que a verdade precede o poder. Para tal me apropriarei do pensamentode Nietzsche em uma leitura que se afasta do relativismo pós-modernista. Para o autor, averdade é nada mais que o poder projetado sobre os demais – portanto não é relativa, massim conflitante e perspectivista. Ademais, intenciono demonstrar como a ideia de verdade,enquanto poder, é a base da formação da moral. Por sua vez, a moral é o que estabelece opoder legitimado e, portanto, a quem se autoriza dominar.

Em um segundo momento, pretendo explorar a formação histórica do ocidentesob um olhar weberiano. O conceito de desencantamento do mundo é decorrente de umaracionalização essencialista. Essa racionalização possibilita transformar um mundo animistae monista em um mundo religioso em um primeiro momento, onde a essência seria atreladaà vontade divina. A partir deste mundo religioso, interpretado por profetas e clérigos (e,portanto, a quem se autoriza), o processo se aprofunda por meio do secularismo expressona ciência normal. Assim, a essência se desliga da vontade divina para se atrelar às leisnaturais, reificando a vontade externa a nós.

Ao final, viso demonstrar como o ato autorizativo (autorizar), inicialmente situaci-onal, se reifica e cristaliza por meio da crença essencialista. Dessa forma, a atribuição daverdade à outrem deixa de ser circunstancial para se tornar pétrea.

Dessa forma, argumento, o essencialismo é a base necessária para moralautoritária que nos organiza hierarquicamente. Essa moral medeia o mundo e alienao trabalho.

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5 Vontade de Poder, Verdade e Moral

É um fato corriqueiro, querida Ana, pelo qual sempre passamos feitosonâmbulos, mas que, silencioso, é ainda o maior e o mais antigo es-cândalo: a vida só se organiza se desmentindo, o que é bom para uns émuitas vezes a morte para outros, sendo que só os tolos, entre os queforam atirados com displicência ao fundo, tomam de empréstimo aos queestão por cima a régua que estes usam para medir o mundo. (NASSAR,1989)

Algumas características da ciência moderna trouxeram a tona o que há de piornos pressupostos cotidianos – e isso não ocorreu alheio a reflexões. Tomemos a questãoda verdade. Ela pode ser considerada múltipla e relativa, como se tornou comum aospós-modernos; situacional ou pragmática, como argumento aqui; ou absoluta e dada apriori, como pressuposto comum da ciência normal.

Sugiro aqui, apoiado em Nietzsche (2008), que não existe verdade em si, já quenão existe coisa em si. Dessa forma, o autor se opõe ao argumento essencialista de Kant(2013) que separa o fenômeno e as aparências da coisa em si1. Kant2, no entanto, assumeque existe um mundo onde coisas existem por si, com propriedades inalcançáveis paraaqueles que vivem em um mundo aparente, ou seja, todos nós.

O pensamento de Kant, notara Nietzsche, é ingênuo por pressupor a verdade ondehá o poder. Note-se, no entanto, que não está sugerindo a relativização da verdade, nem quetoda verdade possui uma validade sua e igual a outra. Este argumento, costumeiramenteelencado como decorrente de uma visão pós-moderna, é, por vezes, apontado como umainterpretação da crítica nietzschiana à verdade única. Deste erro interpretativo decorreo entendimento de um suposto niilismo a que, muitas vezes no senso comum, se acusaNietzsche. Ora, se por um lado atribuir a verdade tão somente ao mundo, a um ente prévioa nós, acaba por tornar o mundo inócuo aos nossos feitos; atribuir que toda verdade éigualmente imputável torna o mundo indiferente aos nossos feitos. Dito de outra forma: oessencialismo é a base do niilismo moderno ao passo que o relativismo pós-modernista é aconsolidação, pelo negativo, do niilismo. De um lado da moeda, crê-se no mundo-verdadeexterno a nós; do outro, no mundo-verdade interno a nós. Não se trata de um, nem dooutro: trata-se da relação entre o ser e o mundo, uma relação perspectivista.1 Aparências precedem o fenômeno na filosofia kantiana, já que esta é a categorização mental daquela.

Em outras palavras, conforme Kant (2013), a aparência é o que chega aos nossos sentidos enquanto ofenômeno é como se pensa sobre a realidade que proviu essa aparência. Essa diferença entre os doisconceitos possui como pressuposto básico que existe, de fato, um mundo verdadeiro fora e para além oqual só pode ser percebido parcialmente.

2 Tomo o pensamento kantiano como marco dos nossos tempos (há séculos, pelo menos) e como exemplodo problema a que me refiro. No entanto, não afirmo ou sugiro que o problema tenha surgido com ele.

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 72

Estou me situando aqui em contraposição a duas posições epistemológicas: orelativismo e o essencialismo. De um lado, não se trata de aceitar o relativismo, tal qualo pensamento pós-modernista o faz. Este produz, ao fim, a própria impossibilidade dodebate. Uma verdade relativista sempre possui um valor equivalente a outra verdade, deforma que o mundo jamais poderia se compor dialeticamente, jamais poderia convergir.Um exemplo desse relativismo a que se critica aqui é expresso em Baudrillard (1996, p.7):“O universo [social] não é dialético – ele está destinado aos extremos e não ao equilíbrio.Destinado ao antagonismo radical e não à reconciliação nem à síntese”. Seu apontamentosegue a decorrência lógica de sua leitura de Elias Canetti. Para este, a história, enquantouma narrativa verdadeira, haveria cessado de existir no momento histórico enigmático aoqual Baudrillard chama de dead point. Ao fim, toda afirmação pode ter igual validade,cada qual seguiria sua própria narrativa. Muito embora essa epistemologia permita umaexplicação da coexistência de narrativas absolutamente dissonantes, ela acaba por deixarde reconhecer que as mesmas possuem, sim, uma finalidade dialética – a do convencimentoalheio, a do seu próprio uso enquanto poder. Ao fim, tal visão acaba por incitar umapostura epistemológica contemplativa. Ademais, se tudo possui igual validade, nada possuivalidade – por isso o relativismo é niilista por excelência.

Mas não nos enganemos: o essencialismo é também niilista, muito embora pormotivos distintos. Se há uma verdade única, alheia aos nossos sentidos, há de se aceitarque devemos negar a nossa percepção, os nossos instintos e os nossos sentidos. Nega-se ocorpo em proveito do que lhe é externo: a verdade. Se a essência precede nossa relação,somos objeto do mundo, constituídos a partir da essência e não partes constituintes daverdade. O essencialismo impõe um niilismo, para fins práticos, na medida em que tornatoda ação humana decorrente de sua própria essência. Se o relativismo nos seduz a umapostura contemplativa, o essencialismo nos desencanta enquanto partes de uma estruturasocial. Uma ciência que assuma os pressupostos essencialistas vai cedo ou tarde reconhecerque toda ação humana é decorrente de uma prévia determinação: a verdade.

Neste sentido o niilismo, ao qual me oponho aqui, pode ser entendido comodecorrência existencial da “ansiedade cartesiana” a que Bernstein (2011) se refere. Noafã de buscarmos um critério de validade do que é verdade ou não, buscamos soluçõespor vezes apressadas, o que nos incorre nos erros opostos de atribuir uma verdade préviaao mundo (essencialismo ou transcendentalismo), ou de implodirmos a própria ideia decritério de validade. Trata-se da falsa dicotomia entre o objetivismo essencialista, que crêque existe um mundo a priori de nós mesmos, e de um mundo relativista caótico: “Ou háalgum suporte para nossos seres, uma fundação fixa para nosso conhecimento, ou nós nãopodemos escapar as forças da escuridão que nos cercam com a loucura”3 (BERNSTEIN,3 Como há uma certa licença poética na frase do autor, eis a original: “Either there is some support

for our being, a fixed foundation for our knowledge, or we cannot escape the forces of darkness thatenvelop us with madness”.

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 73

2011, p.18).

Ao invés destas posturas (essencialismo ou relativismo), advogo por um perspec-tivismo, onde não há nem uma verdade a priori, nem verdades com valor equivalente –há, sim, verdades que competem constantemente. Aqui, a verdade é decorrente de nossocompromisso com nós mesmos e com o mundo. A verdade é um ato ético e políticodecorrente da nossa própria vontade. Afinal, nosso entendimento do mundo é rele-vante na construção desse mesmo mundo. Como argumenta Parker (1995), nós temos umaresponsabilidade sobre o que consideramos verdade e como contamos uma história. Nãohá uma narrativa pronta no mundo, na transcendência ou na essência, mas há narrativasem disputa e nossas preocupações epistemológicas devem se seguir às nossas preocupaçõeséticas. Dessa forma, embora se reconheça que não há uma verdade única aqui, também seacautela quanto à difundida ideia pós-modernista de que todas verdades possuem validadesequiparáveis. Neste sentido, não se trata aqui de relativizar a ideia de verdade ao ponto detorná-la passível de qualquer conteúdo ou significado: trata-se de incorporar uma ideiade verdade situacional, uma verdade que seja instrumental à ética, que seja pragmática àvontade.

Como salienta Parker (1995), o pós-modernismo acaba por se demonstrar umacrítica que não mostra a que veio. E embora possamos considerar o relativismo pós-modernista inócuo, este é somente uma alternativa frágil ao objetivismo essencialista. Esta,sim, criou o discurso que rege o mundo moderno e, portanto, aqui se foca a crítica nela.Dessa forma, se sugere que um pensamento que vise a libertação de autoridadese de processos de dominação não pode ocorrer em uma base epistemológicaessencialista. Afinal, se há coisa em si, há uma única verdade e, se há a crença nestasó é possível haver uma busca pelo verdadeiro e, assim, se legitima a própria alienaçãoem proveito de um autorizar de terceiros. Dessa forma, o essencialismo é, enquantoepistemologia, um instrumento discursivo importante pra dominação do outro — afinal,só se pode dominar quem crê que seu subjugo é legítimo, seja esta submissão ao patrão ouao intelectual.

Embora possa parecer sutil, mas a epistemologia perpectivista se difere frontalmentedo essencialismo, base do positivismo e do funcionalismo de um lado, bem como dorelativismo, pai do pós-modernismo:

Contra o positivismo, que fica no [...] “só há fatos”, eu diria: não, justa-mente não há fatos, só interpretações. Não podemos verificar nenhumfato “em si”: talvez seja um absurdo querer tal coisa [...]Tanto quanto a palavra “conhecimento” tem sentido, o mundo é conhecí-vel: mas ele é interpretável de outra maneira, ele não tem nenhum sentidoatrás de si, mas sim inúmeros sentidos. “Perspectivismo”.Nossas necessidades são quem interpreta o mundo; nossa pulsões e seusprós e contras. Cada pulsão é uma espécie de ambição despótica, cada

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 74

um tem a sua perspectiva, perspectiva que a pulsão gostaria de imporcomo norma para todas as outras pulsões.(NIETZSCHE, 2008, p.260, grifos do autor)

Desta forma, o essencialismo é uma forma de crer que o mundo existe a priori,alheio a nós, com uma vontade que lhe é própria, inumana. Se assim o é, a forma de melhorse organizar também é uma questão de verdade única e objetiva, precede nossa existência.Por meio desta crença, se reifica a vontade dominante. Essa reificação legitima o poderdos que o detém — sua vontade é transmutada em vontade do universo para, ao fim, serconsiderada como aquilo que não pode deixar de ser.

Afinal, como podemos assumir que existe um mundo a priori, um mundo queprecede tal mundo aparente? Isso é, na melhor hipótese, especulativo. Pior ainda, comopoderíamos assumir que existem coisas em si, com propriedades sem qualquer relaçãocom outras coisas em si? Propriedades são, por definição, o efeito de uma ou mais coisassobre outra(s). Sem essas, não poderia haver propriedades da primeira: “As propriedadesde uma coisa são efeitos sobre outras ‘coisas’: se, pelo pensamento, se abstraem as outras‘coisas’, então uma coisa não tem propriedades”(NIETZSCHE, 2008, p.290). Além disso, arelação entre coisas e indivíduos é condição básica para experienciar o mundo e, assim,poder atribuir as tais propriedades.

Ilustrativamente, podemos observar que qualquer propriedade que atribuímos aomundo é inerentemente relacional e perspectiva a algo: se consideramos algo quente oufrio, o consideramos em relação a expansão de um fluído (como o mercúrio) ou, então,comparativamente à temperatura do nosso próprio corpo. Se consideramos algo grandeou pequeno, pesado ou leve, bonito ou feio, e assim por diante, tudo isso só faz sentidorelacionalmente. Se o universo fosse composto de um único objeto, seria impossível descreveresse isoladamente. Em última análise, o universo é uma grande teia complexa e caótica derelações.

Esta discussão pode soar só uma questão metafísica sem qualquer efeito em nossocampo de estudo. Mas se nos deixarmos levar pela ideia essencialista, então assumimos asconsequências lógicas. Dentre essas consequências está a crença iluminista que existe averdade. Se assumimos que existe algo como a ‘coisa-em-si’ (ou qualquer outro conceitoque reflita a mesma crença), nós também assumimos, por desencadeamento lógico, queo nosso mundo aparente é ilusório ou, na melhor hipótese, somente um reflexo parcial edefeituoso da coisa real. Tal raciocínio poderia explicar porque existe uma multitude deinterpretações do mundo, mas proporia como solução que existe de fato uma interpretaçãocorreta, a interpretação verdadeira: o entendimento final da essência das coisas, a respostafinal acima de todas interpretações, a verdade.

As propriedades são forjadas relacionalmente no mundo. Ademais, a linguagemprecede a suposta verdade — o próprio conceito de verdade é uma construção da linguagem.

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 75

Assim, a verdade só pode ser alcançada utilizando-se de algo que já está no intelecto.Essa criação requer um contato prévio com o suposto mundo aparente. Assim, se existisseum mundo das essências, um mundo que precede o aparente, esse mundo não seriaalcançável pelo nosso intelecto e não poderia ser reproduzido pela nossa linguagem. Abusca desse mundo essencial não só seria infrutífera, como seria danosa, já que pressupõeo conhecimento pleno de algo que é relacional e, assim, submete à certeza e generalizaçãoalgo que é restrito e condicionado por relações específicas (NIETZSCHE, 2008).

Esse dano é visível em um discurso corrente que tenta essencializar questõescircunstanciais. Atribui-se propriedades essenciais e inequívocas a pessoas, organizaçõese movimentos que são, em última análise, propriedades que só se constituem em umadeterminada relação. Uma atitude anti-social, um comportamento destrutivo, e assimpor diante, são concebidos como aparências de uma essência igualmente anti-social oudestrutiva — ao invés de serem tomados como ações específicas que são parte de umarelação. Dessa crença essencialista nasce o dogma do bom e do mau; do essencialmentepositivo e do essencialmente negativo. Gera-se a partir disso, uma proposição de erradicaçãodaquilo que essencialmente mau e um enaltecimento ao bom. Muito embora nem todaepistemologia essencialista dê origem ao moralismo, ao autoritarismo e ao fascismo, estesnão poderiam ser sem aquela.

Perceba-se que todo fascismo decorre de uma lógica “nós” contra “eles”, seja láquem seja nós e eles. Mas para que essa definição seja suficientemente identificatória,para que a identidade dos grupos esteja particularmente arraigada de tal forma que sejainstransponível a barreira entre os dois grupos se torna necessário a essencialização dacondição de “nós” e “eles”. O discurso nazista só pode ser aceito porque havia uma ontologiaamplamente disseminada que partia de um pressuposto essencialista. Note que o problemaoriginário do nazismo não é afirmar que a “raça ariana” era superior às demais; massim que é possível estabelecer uma diferença essencial e instransponível entre um “nós”imaginário (raça ariana) e um “eles” paranóico.

Esse discurso se dá também no cotidiano e em atuações políticas menos organizadas.Exemplo disso é o discurso amplamente difundido do cidadão de bem versus bandido.Trata-se de um “nós” bom contra um “eles” ruim. As características circunstanciaissão essencializadas. O conflito maior entre os significados dos conceitos se dá quandoum cidadão de bem comete uma má-ação: aí ele possui a preferência e pode ser vistocomo alguém que cometeu um erro ou um excesso, mas que é essencialmente bom. Ojusticeiro que mata um assaltante é tido como alguém bom, mas que cometeu um excesso;o deputado protetor da moral e bons costumes que é pego em um esquema de corrupção édefendido como alguém que tomou um rumo ruim, embora fosse essencialmente bom. Odiscurso moralista, sintoma da visão essencialista de mundo, agrega pesos a essências, oque significa dizer que agrega diferentes pesos às mesmas circunstâncias: o bom pode ser

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mau eventualmente, pois isso é somente um desvio da sua essência; o mau ainda o serámesmo na ausência de más ações. Não por acaso, isso é conhecido popularmente comopreconceito — se ignoram as circunstâncias em favor de um suposto conhecimento daessência.

Para Nietzsche (1984), tal essencialismo deriva de uma metafísica cristã que maistarde é transmutada. O além mundo, o transcendente, se torna essência. As pessoas nãosão mais tomadas pelo Diabo, pelo Tinhoso, mas sim possuem uma essência má. Aquelecidadão encantador que antes era a personificação da providência divina se torna umcidadão de bem, protetor do que há de melhor em nossa sociedade, seja lá o que for.

Assim, rejeitando o pressuposto da coisa em si e aceitando que a realidade podeser só construída relacionamente entre coisas (e indivíduos), nós também nos deparamoscom as consequências lógicas. A primeira e mais óbvia é que não existe a verdade - aomenos não uma única. Só pode haver verdades perspectivas — à situação relacional entreindivíduo e objeto. 4

Assim, verdades são nexos lógicos que conectam diversas evidências que um in-divíduo experiencia. A evidência que dá suporte ao sistema de verdades previamenteestabelecido é aquela que é mantida pelo indivíduo, enquanto que experiências que seopõem a essas verdades prévias são descartadas. Somente quando a experiência é suficien-temente forte para compor verdades destarte dissonantes com as verdades previamenteestabelecidas é que acontece um rompimento e se cria um novo sistema de verdades.

Isto encontra respaldo na postura epistemológica que James (1979) delineia: oindivíduo, por já ter um estoque de opiniões, experiências e verdades suas, se deparacom novas experiências que pode colocar em xeque suas antigas verdades. Resulta daliuma indagação, uma perturbação íntima, mas salva o máximo que pode do que possuíaanteriormente, mudando o mínimo possível de seu conjunto de crenças, sentidos e verdades.Neste sentido, o autor nos alerta, somos todos intrinsecamente conservadores. Dessa forma,o conhecimento é uma forma de reação frente à realidade. A verdade, então, é um conceitoinerentemente reacionário: em prol da verdade, negamos o que experienciamos, negamos odevir e a mudança.

Uma vez que os fatos com que um indivíduo se depara não podem ser explicadospor seu senso de verdade, é necessária uma indagação interna que nos leva a um novoentendimento das nossas experiências. O próprio conhecimento é visto aqui como umresultado incompleto, nunca final, das indagações.

Neste sentido, Weick (1995) demonstra como a acurácia é secundária à plausibi-lidade, sob o ponto de vista da racionalidade humana. Para ele, não existe percepçãoobjetiva e, sendo assim, a realidade – sendo aquilo que é entendido como realidade, e não4 Novamente, “lutar por uma verdade é algo totalmente distinto de lutar pela verdade”(NIETZSCHE,

2007b, p.62).

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um ente externo – é moldada conforme as concepções prévias que as pessoas possuem.A plausibilidade é, assim, a verdade que é mais próxima daquilo que já se possuía comoverdade frente a novos fatos.

A verdade, então, é um composto entre o que já é retido como verdade (no sistema deverdades dos indivíduos), aquilo que se mostra relacionalmente na realidade experienciada,e um choque entre o primeiro e o segundo — no qual se descartam algumas informaçõesem favor de outras que se adequam da melhor maneira ao sistema de verdades prévio. Estetrinômio é denominado por Weick (1995) como, respectivamente, seleção; promulgação5 eretenção do sentido escolhido.

Mas verdades perspectivas são constantemente utilizadas como verdades absolutas.Estamos tentando impor (ou persuadir) nossa verdade a todo momento. Isso,para Nietzsche (2008), é o pilar fundamental da vida humana: a vontade depoder. A vontade de poder só se dá relacionalmente, só se dá na interrelação humana,não existe per se. Ela é a projeção do mundo a partir da interpretação individual. Como oautor salienta, o próprio ato de interpretar algo é o ato de se tornar mestre de algo — deprojetar seu poder.

Para Nietzsche (2012a, p.49), “O mundo visto por dentro, definido e determinadopor seu ‘caráter inteligível’ seria — precisamente ‘vontade de potência’ e nada mais”. Omundo, dessa forma, se compõe por meio das relações entre distintas vontades de poder.Mas a vontade de poder não é uma essência, não existe independente do meio. A vontadede poder se dá justamente na relação entre distintos poderes. Um poder só pode querer semanifestar sobre outro; não pode se manifestar sobre o nada.

Conforme Aydin (2006), o poder aqui é um conceito caracterizado pela relacionali-dade entre distintos poderes. Um poder só pode se estabelecer na medida em que encontraresistência — outro poder. A relação, então, não é um elemento extra no esquema dascoisas, mas é o próprio elemento constitutivo. Assim, o conceito de vontade de poder não éum ponto fixo e causal, mas justamente é a impossibilidade de estabelecer a dualidade entrecausalidade e finalidade, já que sua finalidade é sua própria causa. O poder, assim, nuncase encontra em um estado finalizado ou estável. O empoderamento sempre é questionadopor outras vontades de poder de forma que uma proposição nunca pode ser consideradadefinitivamente verdadeira. Sempre se está à mercê de outras vontades de poder, semprese está em uma situação de risco, sempre em um status provisório e inacabado.

Verdade, então, não é vista como um objetivo universal, mas sim um objetivo emdisputa. Já que todos temos relações situacionais diferentes com o mundo, nós todos temosdistintos sistemas de verdades. Essas diferentes verdades projetam mundos distintos, e5 No original enactment. Alguns autores traduzem o termo no Brasil como representação. No entanto,

dado que Weick se refere ao termo como uma metáfora dos legisladores que promulgam leis, entendoser mais apropriado o termo promulgação.

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cada qual requer suas regras de socialização. Eventualmente, um sistema de verdades podese sobrepor a outros, e assim provém mais poder para os indivíduos proponentes ou quesão empoderados pelo sistema vencedor. É por isso que, para Nietzsche (2008), verdade ésó um outro nome para poder. Nossa vontade, como indivíduos, de demandar aceitação danossa verdade é, em suma, nossa vontade de poder.

A vontade é entendida aqui como em Schopenhauer (1966) e Nietzsche (2008). Nãoé só o núcleo de um indivíduo, mas o precede. Neste sentido, a vontade não é racional ouirracional, mas já que precede, ocorre antes da própria cognição — é arracional. A vontadeé o que há de mais básico, de mais inerente à vida. Pensar a vida sem vontades que secontradizem, sem potências que se chocam, sem dinâmica de um indivíduo sobre outro, épensar em um sistema estanque que, em seu tipo ideal, é a própria morte.

Como Nietzsche (2008) aponta, a vontade é ultimamente a vontade de poder. Issosignifica que o indivíduo quer se expandir, se tornar maior, se apoderar. Também significaque o indivíduo quer dominar — e não ser dominado. Uma organização institucionalizadacristaliza o que d’outra forma seria um livre fluxo de poder, ascendendo um determinadoindivíduo e sua vontade de poder a posição de dominador. Assim, o indivíduo se utiliza dainstituição para perpetuar seu poder, constituindo-se em dominação. Ademais, como avontade de poder é um processo e não uma coisa, no momento em que é institucionalizada,cristalizada e se torna estanque, cessa de existir. Dessa forma, mesmo o dominador não aconsuma efetivamente. Assim, o processo de dominação atenta contra as possibilidades dodevir — mas sem consumar a vontade de poder do dominante.

A vontade de poder está intrinsecamente relacionada ao devir. O devir, comoconceito filosófico, parte da ideia de que as coisas se alteram - o mundo muda. Essamudança é a transmutação entre o reino das possibilidades para a realidade - da potênciaao real. Essa emersão é o devir, o vir-a-ser, o se tornar. A vida é consequência do devir donível celular às relações sociais. Do contrário, a vida não seria particularmente diferentedo reino mineral. A vontade de poder, enquanto um processo e não um ser ou uma coisa, étransposição das interferências externas para tornar-se mais. As coisas só mudam, o devirsó existe, porque há ali a vontade de poder atuando em favor da expansão (NIETZSCHE,2008).

Ademais, os indivíduos não só buscam se expandir — derivado de sua vontadede poder —, mas também buscam manter sua expansão, manter uma dominação. Destemodo, a dominação é um fenômeno último da vontade de poder: ela advém, como tudoem Nietzsche, da vontade de poder, mas ao existir impõe fim ao devir inerente àquele.

Entendo aqui que a vontade de poder pode implicar em dominação - mas cessade existir na medida em que esta emerge, porque: a) dominação se distingue de poder,enquanto que a primeira se encontra um mundo onde sua efetivação é provável, a outra sedá no reino das potencialidades, onde sua emersão é incerta, se constitui no devir a partir

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da potentia; b) vontade de poder não se equivale ao poder: trata-se do processo de buscapela expansão; c) em Nietzsche, a vontade de poder só ocorre na supressão ou superaçãode outra vontade de poder. Isso torna incompatível tal conceito com o de dominaçãoenquanto algo legitimado pelo dominado e, portanto, alheio a sua própria vontade depoder; e d) a vontade de poder, uma vez respaldada pelo externo ao indivíduo, pode setornar dominação, mas esta dominação impossibilita o exercício da vontade de poder namedida em que ocorre.

Dominação, utilizando-se da conceituação em Weber (1994), é a probabilidade deencontrar obediência pronta a uma dada ordem. Trata-se, portanto, de algo já instaurado,já instituído — se é possível estabelecer uma probabilidade de antemão, é porque já seestabeleceu um dado regramento (e até uma moral). Ainda, há de se considerar que oconceito weberiano já relativiza um vocábulo que, no senso comum, é menos probabilísticoe mais determinístico. Ao estabelecer que tal conceito diz respeito a uma probabilidade,Weber foge de uma ideia determinística. Mas isso parece ter pouca relação com o conceitoem si, e mais com uma ordem ontológica probabilística em oposição ao determinismo: nãoé que o conceito se preste ao devir, mas sim de que há um reconhecimento tácito de que,independente da dominação, ainda há o devir. Assim, a dominação nunca é plena, masna medida em que mais se realiza, maior sua probabilidade. Neste sentido, a vontade depoder ocorre na probabilidade inversa de se encontrar obediência, já que sua existênciapressupõe, como salienta Aydin (2006), a priori, a resistência externa, o choque frente aoutra vontade de poder. Assim, se a dominação é uma probabilidade, a vontade de poderocorre na probabilidade inversa.

A vontade de poder ocorre, assim, previamente a uma dominação estabelecida,enquanto encontrava resistência d’outra vontade de poder. Mas uma delas eventualmenterui e o indivíduo e se torna dominado. Neste momento, em que uma vontade de podercedeu, não há mais a possibilidade de exercício da vontade de poder em qualquer lado: sepor um lado tal vontade sucumbe, por outro a certeza (mesmo que relativa) de obediênciaimpossibilita a expansão do dominador. Esta expansão já ocorreu, agora ela só pode serexercida enquanto dominação. Vontade de poder é justamente o oposto do encontrarobediência: é se expandir contrariamente à outra vontade de poder. Encontrar obediênciaé, assim, a obstrução da vontade de poder: se dá quase que por inércia, por uma ordempré-estabelecida das coisas. Dessa forma, não há expansão do indivíduo – ele já se expandiuao ser legitimado (a obediência é a consequência da legitimação). (NIETZSCHE, 2008)

A dominação é, assim, um fenômeno último da vontade de poder: ela advém, comotudo em Nietzsche, da vontade de poder, mas ao existir impõe fim ao devir inerente aeste. Neste sentido, a dominação é o se tornar consciente da vontade de poder: “tudo quese torna consciente é um fenômeno terminal, um fim — e não causa nada; [...] — E nóstemos que entender o mundo por meio da concepção reversa — nada é real e efetivo a não

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ser pensar, sentir e querer!” (NIETZSCHE, 1967, p.265).

A todo efeito, a filosofia de Nietzsche leva a cabo a ideia de que a análise não se centranem no indivíduo nem na organização, pois não há ser nem coletivo. A humanidade, paraNietzsche, existe nos indivíduos, mas só enquanto sua relação com os demais. Sozinhos, sãodesprovidos de qualquer propriedade, mas quando em relação, suas propriedades tornam-seclaras por contraposição, por diferenciação (SIMMEL, 2010).

O tema da dominação, em Nietzsche, é raramente discutido como tal. Por vezes adominação é vista como racionalização do devir (no sentido de transformar um processoem um objeto); por vezes a dominação é entendida como resultante da consolidação deuma autoridade enunciativa, transformando a vontade de verdade em moral instituídasocialmente. Mas cabe salientar que, como Nietzsche (2007b) aponta, a vontade de verdadeé só uma manifestação da vontade de poder — e a moral, tal como em Nietzsche (2012a),é consolidação de preconceitos aceitos socialmente.

Simmel (2010) percebe que boa parte do pessimismo nietzschiano se dá pelatransição histórica entre humanidade, contida nos indivíduos, para uma sociedade que seapodera dos indivíduos: “A humanidade decai logo que a qualidade dos indivíduos — queé a sua própria — deixa de constituir o interesse central, substituída pela conduta [moral],social, [..] do indivíduo em relação aos demais, aos muitos.” (SIMMEL, 2010, p.187) Assim,quando a moral se apossa da humanidade (entendido como uma interrelação de indivíduos),impossibilita-se a criação humana. No momento em que uma série de normas e regrastomam por certo o duvidoso, a vontade de poder sucumbe perante um senso de rebanhoe a humanidade dá lugar à sociedade. O preconceito contido na moral possibilita umjulgamento prévio das ações humanas, tornando toda uma gama de ações impraticáveis.

A moral em Nietzsche é provavelmente o conceito que mais se aproxima da domi-nação. O dominador é aquele que pode instituir uma moral a um coletivo, se utilizandode seus interesses como norteadores da moral instituída. É claro que na criação de umamoral há uma vontade de poder, há um quê de vontade de se tornar senhor do seu meio,de se expandir. Mas uma vez criada essa moral, mesmo o indivíduo que se beneficia dessamoral torna-se sujeito da mesma.

Perceba-se que ao fundarmos uma realidade que pretendemos objetiva, que dizrespeito a uma suposta essência real, estamos, na verdade, estabelecendo que nossa relaçãocom o mundo é a relação a se ter em conta. Estabelecemos que nossa visão, nossas vontadese nossos interesses são, em última análise, os únicos verdadeiros. Isso fica especialmenteclaro ao analisarmos a formação das narrativas históricas, tal como Mills, Weatherbee eDurepos (2014) demonstram. Para os autores, o pressuposto objetivista tenta fazer crerque há uma equivalência entre história e passado, quando, na verdade, “nós estabelecemos,simultaneamente, representar e desestablizar eventos passados com o objetivo de pluralizara história”(MILLS; DUREPOS, 2010, p.26).

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Essa história é, de fato, um sentido prévio aos fatos. Como já salientado, nãose trata de visar por uma verdade relativa, mas de um compromisso dos fatos com osignificado deles. Quando contamos uma história, quando criamos uma narrativa, estamoscomprometidos com o significado da mesma — e este deve ser nosso compromisso ético,que o significado nos seja fiel, a nós mesmos. Afinal, não é possível saber qual a essênciados fatos, ou mesmo se a realidade que se apresenta a nós é a exata realidade objetiva.Mas é possível analisarmos nossa realidade criticamente.

Nietzsche (1998) argumenta que a criação da moral é um sinal da degeneração davida em si. A vida, entendida como o constante devir, sucumbe na medida em que se pré-estabelece valores e critérios. O cristianismo, caso a que o autor se concentra, é consequênciade uma dominação dos sacerdotes sobre escravos que possibilitam uma contraposição aosguerreiros, posteriormente dominados também. Assim, os valores socialmente instituídossão, na verdade, de interesse de uma casta social (os sacerdotes, os clérigos, os religiosos),que transformam valorativamente em bom e mau o que era, anteriormente, favorável oudesfavorável a sua vontade de poder. Mas ao fundarem tal moral, se submetem igualmenteà mesma. A castidade, por exemplo, é um valor moral importante para o controle de umapopulação — mas para que a autoridade enunciativa tenha validade, os promulgadoresda mesma devem dar o exemplo. Assim, o indivíduo e a humanidade se submetem àsociedade fundada na moral, entendidas como uma série de regras valorativas que outroraforam produto de um interesse individual (ou de um conjunto de indivíduos). O “idealdos moralistas: [...] levar a virtude à dominação. [...] Para querer uma, a dominação davirtude, não se pode, por princípio, querer a outra; com isso, precisamente, renuncia-setornar-se virtuoso” (NIETZSCHE, 2008, p.303). A virtude pode ser, assim, um discurso eum meio para dominação — e quando assim o é, deixa de ser virtude.

É verdade que em Nietzsche (2008) a dominação nunca ocorre de forma plena eestanque. O devir atua ali também, fazendo com que a esfera de domínio aumente oudiminua, derrotada pela vontade de poder alheia ou impondo sua vontade de poder. Nestesentido, dominação e vontade de poder são dois complementares — onde há um, cessa ooutro. Nunca um ocorre plenamente, há sempre um quê do outro. A moral, igualmente,nunca é total. Ela é a vontade de verdade instituída, da mesma forma que a dominação é avontade de poder instituída. Sempre há espaços de transvaloração da verdade e da moral,da mesma forma que sempre há espaços de subversão da dominação. O autor acaba pornomear liberdade, justiça e amor como sintomas visíveis da vontade de poder que ocorremesmo em situação de dominação, respectivamente dentre aqueles que são dominados, quetentam estabelecer uma nova dominação e que dominam:

A vontade de poder se manifestaa. nos oprimidos, dentre os escravos de toda espécie, como vontade de“liberdade”[...];

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 82

b. em uma espécie mais forte de homem, se preparando para o poder,como vontade de subjugar; e quando não se obtém sucesso de início,então se limita a uma vontade de “justiça”, ou seja, à mesma medida dedireitos que possui os dominantes;c. dentre os mais fortes, mais ricos, mais independentes, mais corajosos,como “amor à humanidade”, [...] à verdade, à Deus; como simpatia,“sacrifício próprio”, etc.; como dominar, arrebatar consigo, tomar a seuserviço; como um instintivo unificar-se com uma grande quantidade depoder para o qual se é capaz de dar um direcionamento: o herói, oprofeta, o César, o salvador, o pastor (— também o amor sexual temaqui o seu domicílio: ele quer o domínio, o tomar posse, e aparece comoum dedicar-se... Fundamentalmente, é apenas amor a seu “instrumento”,a seu “corcel” — a convicção que isso ou aquilo pertence a si porque seestá em uma posição de fazer uso).“Liberdade”, “justiça” e “amor”!!!(NIETZSCHE, 1967, p.407)

Mas para além da questão da dominação, de forma mais genérica, há um problemarelativo àquilo que Weber (1994) delinea como dominação racional6 : esta não só estancadentro do possível o devir, mas também o faz em nome de uma impessoalidade. Substitui-seo indivíduo pela sociedade (ou pela organização). A dominação racional é um atributo dasmassas e de uma concepção a que Nietzsche (1984) tanto criticava: de que o indivíduo podeser reduzido a uma essência e que essa essência, a um ser, onde a razão o define: “O pensarracional é um interpretar segundo um esquema que não podemos recusar” (NIETZSCHE,2008, p.274).

A razão aqui é a negação dos sentidos e da experiência. Ela se concatena segundouma rede lógica de pensamentos tautológicos tão complexos e intrincados que jamais sãoreconhecidos como tal: parecem criar algo quando na verdade só reafirmam o mesmo. Sãoa expressão de uma vontade de verdade que se tornou dominante e que não serve mais aum senhor, mas a si mesma. Tomou corpo e vida própria, e se reproduz a partir da crençade que tudo pode ser sistematizado e o mundo pode ser compreendido a partir de suaessência. (NIETZSCHE, 2010)

No mundo dominado pela razão, supressora do devir, Nietzsche (2008) vê um estadopsicológico humano reduzido ao niilismo. Esse niilismo, para o autor, é encontrado emseu esplendor máximo no projeto de sistematização de toda realidade, no reino supremoda razão. Ao equiparar distintos pensamentos e torná-los passíveis de sistematização e daformulação de uma totalidade teórica, crê-se numa realidade externa aos indivíduos e àssuas vontades: “a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo, — nós medíamos6 Pode-se questionar se, ao transpor o pensamento weberiano para filosofia de Nietzsche, se não seria o

caso de entender toda dominação como racional, já que a razão é, neste autor, a negação da experiênciasensorial em favor da sistematização de um mundo pré-concebido internamente. Sob este critério,é possível supor que mesmo os tipos ideais da dominação tradicional e carismática weberianas seconstituem em tipos de dominações essencialmente racionais para Nietzsche. No entanto, entendo queesta transposição de conceitos é um assunto que possibilita um grande leque de discussão, a qual nãopretendo me ater aqui.

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o valor do mundo em categorias que diziam respeito a um mundo puramente fictício”(NIETZSCHE, 2008, p.33). O mundo fictício que o autor se refere diz respeito ao mundo-verdade, ou o mundo das essências. Abandona-se os sentidos em prol de uma ficção, quepor sua vez só pode ser atingida por meio da razão: mas essa cobra seu preço suprimindoas potencialidades. O devir, em sua inocência, torna-se algo calculado, e, assim, passívelde ser julgado previamente. Dessa forma, razão e moral andam pari passu: uma é a facetaindividual enquanto que a outra se dá socialmente.

Dessa forma, a dominação é fixada a partir da vontade de poder. No entanto, dadoque tudo em última análise foi vontade de poder, enquanto pedra basilar da naturezahumana, determinar que a dominação nasce desta vontade só nos aponta a origem. Aconsequência da constituição da dominação (enquanto algo mais estanque) é, na medida emque se instaura, a impossibilitação do devir e, assim, da vontade de poder.A dominação sedá por meio da verdade, do discurso, da moral. A proposição amoral perspectivistaé, assim, uma arma contra o essencialismo que possibilita o projeto de dominação total, oque nos leva ao aparente paradoxo (somente aparente) de que a amoralidade é ética.

A moral é fundamental para que ocorra obediência, pois essa só ocorre a partir devalores aceitos tão universalmente quanto possível. A razão, assim, opera conjuntamentecom a moral: ela é a base para a valoração e julgamento da ação humana e submete o mundoacessível aos sentidos a um mundo imaginário constituído em um sistema de verdadesinterrelacionadas. Neste, é possível a sistematização da totalidade, que proporciona acriação de valores pré-determinados. Assim, a razão opera antes da realidade mostrar suaspossibilidades, e falsea-se os sentidos em nome da racionalidade. Ao falsear os sentidos,nega-se o devir em favor de uma ordem a priori: a ordem já estabelecida racionalmente.A dominação, enquanto sintoma social da primazia da razão, se contrapõe à vontade depoder, este sendo o processo do por vir a ser, do devir. Onde há uma, cessa a outra —sem que isso signifique que não haja uma dinâmica na qual onde uma está, a outra possaemergir no lugar.

Saliento, para finalizar, a exemplo de Nietzsche (2007b), que a vontade de verdadeé uma manifestação discursiva da vontade de poder. Se a vontade de poder se cristalizaem uma dominação, a vontade de verdade se cristaliza na moral. Esta, em Nietzsche(2012a), é consolidação de preconceitos que passam a ser aceitos socialmente. A moral é ageneralização de uma vontade de poder por meio de uma vontade de verdade. Dito deoutra forma, a vontade de poder, ponto zero da vida, necessita do discurso para se tornarmais.

Sumarizando, todo ato humano é fruto da vontade de poder. Mesmo o discursotécnico e mesmo o discurso científico são frutos da necessidade humana de se expandirsobre os demais por meio da constituição do que é a verdade, racionalizando o mundo emum sistema de verdades. A vontade de poder pode resultar em dominação, mas cessa de

Capítulo 5. Vontade de Poder, Verdade e Moral 84

existir na medida em que essa emerge. No momento em que a autoridade se forma, o devircede espaço à razão; a vontade de poder cede lugar à dominação.

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6 Racionalização e Desencantamento doMundo: a Obstrução do Devir

Before the beginning, after the great war between Heaven and Hell, Godcreated the Earth and gave dominion over it to the crafty ape he calledman. [...] There was magic then, nobility, and unimaginable cruelty. Andso it was until the day that a false sun exploded over Trinity1, and manforever traded away wonder for reason. (KNAUF, 2003)

A Administração faz parte do intento de racionalização do mundo. Como tal,não se pode pensar na administração como fenômeno alheio ao que Weber denominavadesencantamento do mundo.

Conforme Pierucci (2013) afirma, Weber não era um sociólogo das religiões, comomuito se afirma. Ele era, acima de tudo, um estudioso da racionalização da sociedade e dasorganizações. Diz Pierucci que é evidente a preocupação de Weber com como a sociedadese torna(va) mais e mais racionalizada. Tal preocupação, conforme o autor, acaba porser o componente principal de todas indagações teóricas no decorrer da obra weberiana.Tal constatação é corroborada por Kalberg (1980), que se debruça em separar os diversosentendimentos de racionalidade em Weber. Os diversos significados de “racionalidade” esuas implicações acabam por ser, também, a pedra basilar do trabalho final de Ramos(1981).

Em Weber (2004), o mundo progressivamente se desencanta na medida em que asreligiões (e, mais tarde, o secularismo e a ciência) tomam o lugar da magia. Nesse processo,há uma substituição de um pensamento mágico — e até de uma certa inconsequência —por um pensamento calculista. O cálculo, conforme nos afirma Pierucci (2013), é a basedo desencantamento do mundo: tudo se torna passível de cálculo, de um estabelecimentoracional de uma espécie de custo/benefício. Este se demonstra a nós, conforme o autor,por dois significados: pela perda da magia (desmagificação) e pela perda de sentido.

Na tradução publicada pela editora Martin Claret (WEBER, 2015), o termo étraduzido como desmagificação e como perda da magia do mundo. Pierucci (2013)defende que embora tal tradução seja atualmente mais utilizada e, do ponto de vista doconteúdo e significado, mais acurada, ela perde qualidade no que tange ao significante,tornando o termo mais insosso, deixando de lado a poesia. Afinal, a crítica embutidano próprio termo diz respeito a esse fim da poesia, do não racional, do não preciso. A1 Há um duplo sentido em “Trinity”: significa a “Santa Trindade” e o primeiro teste nuclear, chamada

de Experiência Trinity. Esses são os dois passos primordiais para o desencantamento do mundo: aconstituição da Santa Trindade enquanto verdade transcendente; a constituição da ciência modernaenquanto verdade essencial.

Capítulo 6. Racionalização e Desencantamento do Mundo: a Obstrução do Devir 86

própria forma de traduzir é uma postura do tradutor: desmagificação é correto, masdesencantamento possui, em adição, uma intenção poética. Se há uma crítica e umadenúncia ante o desencantamento, é decorrência necessária que tratemos de não desencantarmais.

Conforme o autor, a perda de sentido se introduz no mundo na medida em que arealidade é submetida a um mundo externo. Esta é a base das religiões ocidentais, nas quaiseste mundo só pode fazer sentido tendo em vista a finalidade além mundo. Toda nossa vidase torna uma relação de cálculo para obtenção do próximo mundo. Essa perda de sentido,para Nietzsche (1984) é proposital, já que transformar o mundo em algo submetido a umaentidade externa e desconhecida é uma forma de controle. Dessa forma, se cristaliza umametafísica dos torturadores: se estabelece objetivos jamais alcançáveis (ou pelo menosque jamais saberíamos caso alcançado: o outro mundo) e com base nisso se estabelecemrelações de controle através de regras morais. A autoridade enunciativa, ou seja, o clérigo,o ancião, o professor, aquele que é ouvido por conhecer melhor o mundo (e o além mundo),é necessária para que uma moral se consolide.

De fato, Weber (2004) reconhece em sua conclusão que a sociedade moderna setornou uma “crosta de aço”2. Mas note-se: a crosta que Weber percebe não é só das regrassociais formais, das leis. Trata-se, também, da moral cristã que se impregnou no idealascético. Se observarmos nossa realidade, podemos notar que o ideal ascético é, hoje, oideal do self-made man, do empreendedor: trata-se da forma última da ideologia total docapitalismo.

Nosso homem ascético moderno, o empreendedor envolto em seu discurso, não é sóum trabalhador zeloso. É um homem que internaliza as regras, a moral, os costumes eracionaliza tudo quanto possível. Torna passível de cálculo utilitário mesmo seus desejossexuais. Por isso, é mais que uma gaiola de ferro: ele construiu e mantém sua própriacrosta de aço, sua prisão de um mundo desencantado. Weber (2004, p.166) entoa emsua conclusão que os últimos homens desse mundo desencantado seriam, citando algumescritor: “especialistas sem espírito, hedonistas sem coração: esse Nada imagina ter chegadoa um grau de humanidade nunca antes alcançado”. 3

O desencantamento, conforme salienta Pierucci (2013), é a perda de sentido mastambém é a desmagificação. A magia é, conforme o autor, um conceito-limite: nunca2 Por vezes, inspirado na tradução parsoniana, o termo aparece como ’gaiola de ferro’. Há uma diferença

sutil entre os dois termos, mas relevante à discussão: a gaiola é externa a nós, a crosta é um exoesqueletoque se emaranha ao nosso ser. O argumento weberiano é, evidentemente, da existência de uma crostacrescente.

3 Substitui “hedonistas” no lugar de “gozadores” que é a tradução da versão brasileira. Ocorre que,embora a tradução esteja correta, o sentido da palavra é referente a pessoas que gozam a vida, não quegozam dos outros como a palavra adquiriu conotação no senso comum. No original: “Fachmenschenohne Geist, Genußmenschen ohne Herz, dies Nichts bildet sich ein, eine nie vorher erreichte Stufe desMenschentums erstiegen zu haben”(WEBER, 2016, p.172)

Capítulo 6. Racionalização e Desencantamento do Mundo: a Obstrução do Devir 87

está de fato ali, mas se tende mais, ou menos, a ela. No espectro oposto a ela está aracionalização religiosa. Esta, tal como a magia, nunca se encontra na realidade tal comodescrito. Se tais conceitos são preto e branco, na realidade só se encontram tons de cinza4:o contraste entre uma época da magia e uma época religiosa nunca é total.

Neste sentido, embora o processo histórico pudesse ter se dado de forma diferentee não significando que seja unidirecional, a história ocidental se demonstrou, em Weber(1994), no sentido de uma magia que é racionalizada paulatinamente pelas religiõesocidentais e, mais tarde, pela ciência. Nesse momento anterior à religião, o mundo é vistode forma animista — tudo possui uma alma — e monista — fazemos parte de um todoque não é bom nem ruim, mas que só pode ser, no máximo, favorável ou desfavorável.Neste mundo mágico, o mundo dos espíritos está entre nós e não há uma separação clarae a priori do significado desses espíritos. Não são bons nem maus, simplesmente o são.5

Como Pierucci (2013, p.70) afirma:

Magia é coerção do sagrado, compulsão do divino, conjuntura dos es-píritos; religião é respeito, prece, culto e sobretudo doutrina. Sendoprincipalmente doutrina, a religião representa em relação à magia ummomento cultural de racionalização teórica, de intelectualização, comnítidas pretensões de controle sobre a vida prática dos leigos, querendo aconstância e a fidelidade à comunidade de culto.

Na religião essencializa, por meio da ideia de transcendência, aquilo que antes erasituacional. O que era visto como prejudicial ou benéfico, se torna mal e bom e, dadotempo, o mal e o bom se desconectam das consequências que trazem. O tabu se transformaem pecado. Ao final, a racionalização religiosa nega, por meio de sua moral, a relação entreo bem e o favorável e o mal e o prejudicial. Aquilo que é relativo ao bem, o é independentede seus efeitos sobre nós, independente das circunstâncias (PIERUCCI, 2013).

Essa visão religiosa essencialista — de que algo é intrinsecamente bom ou ruim —é a base de uma autoridade enunciativa: se um espírito é essencialmente bom e ele podese comunicar conosco, então torna-se óbvio que o que tal espírito nos comunica deve serseguido dentro do possível. Ademais, se tal espírito é propriamente um deus (ou, ainda, ODeus), então sua comunicação não é só um indicativo genérico, mas deve ser entendidacomo aquilo que é intrinsecamente bom ou ruim: sua palavra é a moral pois indica aética. Pierucci (2013) indica que isso forma a base de uma submissão e de uma obediênciapor meio da piedade filial. A religião implica nos subordinarmos aos deuses — e, porquenão, aos seus interlocutores? Se a racionalização religiosa impõe um mundo que submeteos humanos aos deuses, é decorrente disso que os clérigos submetam os demais ao seuconhecimento único, o conhecimento divino.4 Não, não há trocadilhos aqui.5 Mesmo os deuses da Grécia clássica não eram inerentemente bons ou ruins, diferentemente do binômio

Deus/Diabo cristão.

Capítulo 6. Racionalização e Desencantamento do Mundo: a Obstrução do Devir 88

A magia, em oposição, é justamente o desafio de submeter os espíritos divinos anossa vontade. Trata-se da ideia de que é possível coagir, convencer ou dominá-los. Jáque eles não são bons nem ruins a priori, trata-se de um esforço contínuo de torná-losbenéficos a nós: “submissão dos deuses e demônios, [na magia]; submissão aos deuses, na[religião]”(PIERUCCI, 2013, p.74)

Se um feiticeiro clamava por chuva por meio de um ritual (uma dança?); o padredá por certo que a chuva depende de uma vontade externa a nós (Deus) e que a nós sóresta aceitar sua vontade; a ciência tenta explicar e, em última análise, entender quandovai chover. O sentido histórico aqui é claro: passamos de um período em que víamos omundo de uma forma mágica e que acreditávamos que nossa vontade é o centro do mundopara nos tornarmos intelectualizados que buscam analisar logicamente como a realidadeopera, passando por um período de resignação e aceite de que o mundo independe denossa vontade. Por isso o desencantar: nos tornamos mais racionais (ou mais eficazes emnossa racionalidade), mas perdemos a inocência que nos fazia acreditar em um mundomelhor bastando nossa própria vontade. Deixamos de acreditar na submissão das forçasexternas a nós para acreditar na nossa própria submissão às forças externas, sejam elasDeus ou as leis da física.

Tal perda de sentido e desmagificação — o desencantamento — sãoaprofundados pela ciência moderna: ela transforma o mundo, suas experiên-cias, suas vivências, seus prazeres e dores em um tecido formados de fios feitosde nexo causal. A magia dá lugar ao cálculo, o fim dá lugar ao meio. Em seuprojeto final, a ciência normal busca saber qual o destino do mundo: prever tudo a partirda realidade atual. Afinal, se é possível estabelecer nexos causais, é possível que essesnexos — uma vez conhecida e decalcada nossa realidade — nos leve a conhecer o própriofuturo. Ao final, o projeto de ciência nos leva a crer que se (a) sabemos todas variáveisda realidade e; (b) sabemos todas as leis do universo; então podemos prever (c) o futuro.Assim, um mundo que, no extremo, era mágico e animista e onde tudo, com suas almas,era sujeito, se torna um mundo inanimado. Afinal, todos nós somos reativos a um ambiente,sua estrutura e às leis que a ciência nos esclarece. Ao final, somos só um nexo causalcumprindo funções em um grande corpo — o corpo com órgãos de Durkheim (1977).

Nos livros de administração, alguns autores como Peters (1992) fazem crer que oprocesso de desencantamento do mundo é passível de ser reencantado pela reaproximaçãoda prática e da política organizacional, encantando os “colaboradores” por meio de umprocesso de liderança carismática. No setor público, salienta Clegg (2005), isso se daria pelogerencialismo (chamado por vezes de Tatcherismo no Reino Unido). Sob esta ótica, seriapossível reencantar o mundo ao submeter a burocracia ao mando carismático, à política.Mas, estes autores falham em perceber que a autoridade carismática de Weber, apontadapelo autor como possível solução ou resposta ao desencantamento, não seria a solução, por

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si só, para o problema, mas um eventual meio de romper com a dominação. O problema dodesencantamento está ligado diretamente a racionalização de um mundo que já se realizoupor meio de sua suposta essência. O desencantamento não é só a racionalização total domundo, mas a instrumentalização racional do ser humano em proveito de seu dominador.6

Neste sentido, o apelo quase nostálgico que Weber faz a emergência de novos profetaspode ser entendido como uma possibilidade desesperada de alguém que suplica por umpopulismo como alternativa desesperançosa a uma crosta de aço cada vez mais legitimada— e como legítima, cada vez mais internalizada.

Pode-se pensar aqui nas três grandes transformações do espírito pregadas porZaratustra em Nietzsche (2012b): desde o início de sua experiência vital o indivíduo,criança, é ensinado a ser camelo, a aceitar a carregar os pesos da vida, a se rebaixar semquestionar, a mergulhar em água sujas da verdade, porque lhe é dito para fazê-lo (poisa verdade está acima de tudo!). Trata-se do primeiro estágio desse desencantamento: acriança, que quer fazer valer seu desejo, é subtraída desse direito por uma lei divina: avontade a ser respeitada é a de deus, não a tua, dizem as tábuas sagradas. O camelo, figuradesmagificada do indivíduo, deve assumir uma postura conformista diante do mundo, pois“não deve questionar”. Inquestionável, Deus permanece enigmático — escreve ele por linhastortas e aos camelos lhes resta aceitar isso. A ciência, figura moderna de Deus, substituiaos poucos a moral pelas leis universais.

E assim o indivíduo passa a sua vida a se deparar com não apenas um, mas váriosdragões a dizerem “Tu deves”, “faça”, “cale-se”. Não cabe ao indivíduo compreender osimperativos do mundo; lhe basta saber que existem e que deve se aceitar. Os dragões seinternalizam e o “tu deves” se torna “eu devo”, “tenho de”. Daí, é quando caberá ao seuespírito alcançar seu segundo estágio, de leão, e conseguir dizer “não”. Para conseguirpara si a liberdade proporcionada pelo “não” entonado diante dos dragões da ordem e daverdade — os padres, os cientistas, os proclamadores da verdade. Só assim poderá, um dia,finalmente, atingir a última das três transformações, voltando a ser criança, alcançando ainocência do devir, a inocência suficiente para ter a capacidade de recomeçar alheio ao quedeve fazer; alheio ao que deve se contrapor para buscar seu desejo. A criança é tomadapela magia; o camelo, pelas regras morais e científicas; o leão, pela negação.

Nietzsche opera o historicismo de modo metafórico — o que limita o poder de suaanálise por um lado, mas possibilita maior expressão de outro. Um aspecto central noprocesso de desencantamento (visto em Nietzsche como um processo de internalização doniilismo, mas reversível por meio da figura do leão e sua negação), é que ele opera um6 Apresentei uma discussão semelhante a esta no congresso Critical Management Studies em Liverpool, em

2017. Ao final da minha apresentação alguns dos presentes apresentaram a ideia de que o reencantamentodo mundo poderia se dar por meio de líderes que saibam motivar funcionários. Frente ao terceirocomentário nesta consonância, me levantei e sai da sessão. Obviamente tinha enviado meu artigo aogrupo de trabalho errado (sobre líderes e liderança), muito embora acredito que eles estivessem nocongresso errado.

Capítulo 6. Racionalização e Desencantamento do Mundo: a Obstrução do Devir 90

dualismo maniqueísta: há o bem e o mal e ao camelo, no mundo desencantado, basta saberreconhecer o que é o que. Esse dualismo, bem e mal, se reconfigura também no dualismoalma e corpo que se transforma em mente em corpo, que se transforma em essência ecorpo para, ao final, se transformar no dualismo clássico essência e aparência. A essênciaassume o lugar do bom na medida em que o mundo secularizado toma o lugar da religião.

Santos (2014) aponta que Weber não só conheceu a obra de Nietzsche, por meiode sua amizade com Simmel, como também passou a nutrir certa estima pelo filósofo.Vem das leituras de Nietzsche o reconhecimento de Weber de que a dominação se originana moral e nos valores. Compartilhado entre os dois, conforme Santos (2014), tambémestá o reconhecimento de que os valores sociais são relativos e frutos de uma perspectiva.Ademais, até mesmo o conceito de tipo-ideal weberiano teria advindo de um reconhecimentodas impossibilidades da linguagem que Nietzsche salienta. Subentendido no conceito, seencontra a relativização da “verdade” e de como esta é utilizada como uma ferramenta dedominação.7

Nietzsche ataca principalmente a ideia de ’mente’ ou ’alma’ do dualismo. Mas aorejeitar um lado do dualismo, rejeita o dualismo como um todo. Não existe nada imaterial,uma vez que mesmo sentimentos, pensamentos e sensações estão no corpo. Os própriosespíritos do mundo são espíritos nossos, em nós. Talvez a própria ideia cristã de que Deusestá dentro de nós é um último suspiro monista dentro de uma instituição proclamadorado dualismo. Sob a ideia de desencantamento do mundo, Descartes (2004) acaba sendoum verbalizador de uma ideia já presente. Talvez o que até então fora sendo digeridoenvergonhadamente pela humanidade foi assumido por Descartes, por um lado e, por outro,aquilo que Descartes redige acaba sendo extrapolado pela formação de ciência normal paraalém de seu próprio pensamento — afinal, o pensamento, uma vez verbalizado, tem vidaprópria, vive para fora do próprio autor.

O dualismo em Descartes (2004) encontra sua forma de inflexão justamente porquesua crença em Deus se transforma em crença na ciência. Aqui é claro que o desencantamentonão é um fenômeno científico ou técnico, mas que encontrou seu ápice nestes. A religiãocriou as bases para a ciência tal qual conhecemos hoje e o desencantamento é o processocomo um todo — um processo milenar, lento, gradual e profundo.

Schluchter (1989) afirma que Weber, embora não fosse um kantiano ou um neo-kantiano, se baseava axiologicamente em Kant para construção de sua sociologia. Tal baseincluía, mas não se restringia, à teoria da constituição do conhecimento de Kant e a teoriada racionalidade fundamental. Mas aqui não se faz uma equivalência dos pressupostosde Weber e Nietzsche mas, já considerando pressupostos tão distintos, percebe-se odelineamento de uma realidade em comum: o de um mundo que perdeu sua magia, perdeuo animismo, transformou o monismo ancestral em um dualismo religioso e cientificista, se7 Se pretende discutir a relação entre os dois autores com maior profundidade na produção da tese.

Capítulo 6. Racionalização e Desencantamento do Mundo: a Obstrução do Devir 91

racionalizou progressivamente até o mundo percebido ser um modelo racional.

Podemos fazer um modelo, uma maquete, da realidade? É possível decalcar ela?Essa modelagem seria nossa razão? Não a toa que ratio (em latim, razão) se tornou ratio(em inglês, relação proporcional). A ideia de que podemos transportar a realidade para umarepresentação, guardando uma proporcionalidade é a base da racionalização do mundo.Tanto a resignação de Weber quanto a depressão de Nietzsche podem estar relacionadas aisso: a um mundo que finge se realizar na sua própria racionalização.

Mas para que este modelo, este decalque, exista, é necessário que seja proclamadopor alguém. Parte, assim, da razão de alguém e de sua palavra. É a modelagem feita porum indivíduo, expandido com autorização alheia (que lhe outorga autoridade) - fruto desua vontade de poder/verdade. Ela reduz o mundo a certas variáveis e tais variáveis sãoutilizadas como passíveis de explicar a realidade. A consequência é que essas variáveis sãoa base do que se entende por relevante no mundo e, assim, uma cosmovisão se torna numaprescritividade do mundo, uma ideologia.

Dessa forma, para que exista o desencantamento, é necessário que uma autoridadeproclame uma verdade que se institua. Para isso, é necessário sua autorização, suaconsolidação como autoridade, e sua legitimação. A magia, que ocorria no mundo monistasituacional, dá lugar a uma racionalização progressiva, que institui autoridades. O pajéancestral recorria aos espíritos e atribuía autoridade a estes. Com o tempo, se tornando oporta-voz dos espíritos, começa a adquirir uma certa autoridade. Primeiramente, só umaautoridade enunciativa, pois era aquele que evocava os espíritos, conhecia os segredos danatureza. Com o passar do tempo, a autoridade enunciativa possibilita a cristalizaçãode relações sociais, evocando organizações estanques em torno da autoridade e formandoautoridades institucionais.

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7 Do Autorizar à Autoridade

Woman: Well, how did you become King, then?Arthur: The Lady of the Lake ...(Angels sing.)... her arm clad in the purest shimmering samite, held aloft Excaliburfrom the bosom of the water signifying by Divine Providence that I,Arthur, was to carry Excalibur.(Singing stops.)That is why I am your king!Dennis: Listen. Strange women lying in ponds distributing swords is nobasis for a system of government. Supreme executive power derives froma mandate from the masses, not from some farcical aquatic ceremony.Arthur: Be quiet!Dennis: Well, but you can’t expect to wield supreme executive power just’cause some watery tart threw a sword at you!Arthur: Shut up!Dennis: I mean, if I went round saying I was an emperor just becausesome moistened bint had lobbed a scimitar at me, they’d put me away!(Monty Python and the Holy Grail)

Mas como seria possível esse desencantamento? Argumento que tal desencantamentoadvém da constituição de autoridades — a autoridade enunciativa nasce com a religião aopasso que a autoridade institucional nasce com a ciência e com a posterior racionalizaçãodas organizações e burocratização das mesmas. Isso só pode ocorrer sob a crença epistêmicana essência enquanto verdade.

Imagine um mundo tomado pela magia e os rituais: homens que buscam a chuva, osol, o calor ou o frio. Querem lograr os espíritos do mundo, presentes em toda parte, fazeros mesmos se curvarem a nossa vontade. É possível que indivíduos com característicasextremamente individuais e subjetivas (e nada racionais) tomassem, às vezes, a frentenestes rituais. Seriam esses os feiticeiros, pessoas que de tanto carisma que possuíampoderiam fazer crer que conseguiriam convencer até mesmo os deuses e os espíritos dosnossos desejos. Mas eventualmente, tais feiticeiros falhavam: a chuva não vinha. Cabia-lhes,então, o trabalho de lograr seus colegas humanos: era necessário lhes convencer de queos espíritos estavam a nosso trabalho, mas de uma forma um tanto misteriosa. Implícitoaí estaria a ideia de que os deuses não só possuíam uma racionalidade que não nos eraacessível, como também só este feiticeiro conseguia acessar tal racionalidade. Nascia aí aautoridade enunciativa.

Desse feiticeiro até uma religião, tais como as ocidentais, há certamente um grandepercurso. Mas este percurso nasce ali: no momento em que ele era promovido, coletivamente,de um ente igual para um entendedor das vontades espirituais ou divinas. A autoridade,nesse sentido, nasce de uma mudança na cosmovisão: altera-se de um animismo inocente(onde se atribui a tudo e a todos uma alma passível de ser domada pela nossa própria

Capítulo 7. Do Autorizar à Autoridade 93

vontade) para uma racionalização auto-objetificante (onde o humano atribui a si mesmo ostatus de consequência de forças externas e, assim, deve se curvar a elas). Interpretar eentender essas forças externas é algo, sem sombra de dúvidas, difícil. Por isso aqueles queo conseguem — ou que assim o fazem crer —, são elevados a um outro patamar acima dosdemais: são autoridades.

Bakunin (1871) afirma que a autoridade advém da autorização. Autorizamos umterceiro a fazer ou falar em nosso nome. Isso ocorre porque não podemos entender tudo.Autorizamos o sapateiro a consertar o nosso sapato e, logo, caso não sejamos cautelosos,ele se torna a autoridade enunciativa do assunto. O clérigo, da mesma forma, se torna aautoridade enunciativa do mundo como um todo: ele entende o que os deuses querem, oque é substancialmente mais complexo e relevante do que a qualidade de nossos sapatos.Atribuimos, então, ao clérigo o poder de interpretar o mundo por nós. Em nível histórico,mais recentemente, o clérigo dá espaço ao cientista e ao engenheiro porque deus deu lugaràs leis naturais. Passamos de autorizar um especialista em deuses para um especialista dasregras naturais.

Ricoeur (2008) problematiza a questão da autoridade e de onde esta advém.Conforme lembra o autor, se questionarmos alguém de onde se recebe a autoridade,esta pessoa tenderá a gaguejar. Ao fim, provavelmente, citará alguma lei ou algumanormatividade legal que a possibilitará responder a pergunta, mas não satisfaz umanecessidade mais inquisitiva. A própria instituição ou lei que este cita deve receber aautorização para exercer sua autoridade. Dessa forma, vem "à mente sem malícia [...] umapergunta matreira: de onde vem a autoridade em última instância?"(RICOEUR, 2008,p.102)

A este problema o autor considera um paradoxo, uma aporia e até como umenigma. Diria eu que pode ser visto como uma tautologia: a autoridade se legitima na suaprópria legitimação. Isso ocorre pois, conceitualmente, a autoridade é um tipo de poderque possibilita mandar, sendo assimétrico e hierárquico. Tal pode acabar por se tornar umdireito de quem possui tal autoridade, que poderia supostamente advir do povo, mas quequando defrontado com o próprio povo em um ato de questionamento da mesma, refugia-seem um pensamento apórico. Ora, se o poder advém do povo, como seria aceitável que sejaexercido sobre o mesmo?

Em suas buscas reflexivas, o autor sai do substantivo “autoridade” para ir ao verbo— e, assim, entender a formação da autoridade, que se dá em uma (ou um conjunto) deações, e não da pura existência. Assim, afirma que o substantivo deriva de autorizar, queé correlato a credenciar. Assim, a autoridade é, por natureza, credenciada e autorizada porseus hierarquicamente inferiores. É aí que a legitimação se forma e, se é verdade que creditaré central, então é central também a credibilidade da autoridade. Autoridade, portanto, sediferencia da violência e da coerção pela sua credibilidade e adquire um reconhecimento

Capítulo 7. Do Autorizar à Autoridade 94

da superioridade do autoritativo, o que a diferencia da mera persuasão. Por isso, o autorsalienta, o antigo, o imutável, tem um caráter que favorece a autoridade. Ademais, emuma tentativa de romper com a tradição mítica, o iluminismo francês, centrado nas figurasde Diderot e D’Alembert se foca em transmutar a autoridade tradicional que remete aantigos textos sagrados em uma autoridade baseada na credibilidade do autor - de suaboa fé e de seu conhecimento.

Assim, Ricoeur (2008, p.104) coloca a seguinte problemática: “Não sabemos muitobem o que autoriza a autoridade”. Tal questão é ainda mais essencial visto que há umapercepção de que há uma crise de autoridade. Tal percepção é fortemente argumentadapor Hannah Arendt, a qual o autor se refere com frequência.

No entanto, Ricoeur (2008) argumenta que a autoridade não está propriamente emcrise, mas em um processo de transmutação, mantendo seu cerne - o qual tenta descobrir.Para isso, ele divide a autoridade em dois tipos de legitimação, a saber:

1. A Autoridade Enunciativa: se constitui enquanto poder simbólico por meio daprodução de crenças. Isso ocorre pelo discurso, centralmente. Os textos sagradosproduzem autoridades enunciativas, por exemplo. O sábio se confere enquantoautoridade enunciativa também.

2. A Autoridade Institucional: se constitui enquanto legitimada por uma organizaçãoou instituição - tal como um policial que possui sua autoridade advinda do próprioEstado.

O professor é uma mistura das duas autoridades: ele possui sua autoridade instituídapela organização escolar mas tem um quê de produção de crenças por meio de sua palavra.O “autor”, por sua vez, é o exemplo claro de autoridade enunciativa: com frequenciarefugiamos nossos pensamentos em citações, atribuindo-lhes uma carga de poder que deoutra forma não teríamos. É mais fácil aqui, por exemplo, dizer que Nietzsche disse talcoisa do que argumentar longamente em prol de um pensamento consonante ao autor1.

De fato o ato autorizativo enunciativo, tal como autorizamos o sapateiro, pode servisualizado inclusive na etimologia das autoridades enunciativas. Note-se: se a autoridadeenunciativa originária era o profeta, que visualizava para além das vontades deste mundo,este se tornou no prof issional e no professor. É aquele que declara solenemente empúblico.

Assim, com base nessa separação das legitimações que formam a autoridade, Ricoeur(2008) argumenta que a autoridade que está em crise apontada por Hannah Arendt (2006)é basicamente a autoridade enunciativa - e, em específico, aquela advinda da cristandade.No entanto, argumenta, tal autoridade enunciativa foi, ao menos em parte, substituída por1 Isso é uma constatação da prática acadêmica, mas também uma autocrítica.

Capítulo 7. Do Autorizar à Autoridade 95

uma outra autoridade - mais difusa - que remonta o Iluminismo francês. E aí se percebe anova crise: com o pensamento contemporâneo (chamado de pós-moderno por alguns), aautoridade enunciativa dos autores e do discurso que produzem é enfraquecida, gerandoassim uma segunda crise de autoridade enunciativa subsequente. A primeira seria a criseda cristandade perpetrada pelo pensamento iluminista, ao passo que a segunda é a crisedo pensamento iluminista frente ao relativismo atual. Na primeira crise, a autoridadeenunciativa sacerdotal é substituída por uma autoridade enunciativa cientificista. Esta,por sua vez, é mais difusa: a ciência não possui sacerdotes, possui no máximo cientistasque duvidam de sua própria palavra e que possuem como terrível hábito o falseamento umdo outro. Agora temos a crise da autoridade enunciativa iluminista perpetrada por umpensamento que não necessariamente advoga em prol de uma nova formação autoritativa.Assim, se revive a crise da cristandade com o advento do Iluminismo de Diderot, D’Alemberte suas enciclopédias, substituindo os textos iluminados pelo relativismo. Historicamente, noocidente, substituímos o texto sagrado da Bíblia pelos textos não tão santos dos cientistase, agora, os colocamos em dúvida.

Tal crise pode ser percebida como complexa na medida em que uma autoridadeenunciativa possui uma forte correlação com a autoridade institucional. Assim como ostextos sagrados forneciam possibilidades de autoridade institucional da Igreja, a Enciclopé-dia possibilita a autoridade institucional da Academia, das ciências. Assim, a autoridadeenunciativa depende da institucional e vice-versa. A bíblia forneceria, assim, uma autori-dade enunciativa que é interpretada por um sacerdote, que por sua vez se respaldava nãosó na autoridade do próprio texto, mas também da instituição que representa. É nissoque consiste a tautologia da autoridade: o pensamento cíclico no qual a legitimação dasinstituições se dá por conta da legitimação do discurso; ao passo que a legitimação dodiscurso se dá pelas instituições.

Ricoeur (2008) aponta que, historicamente, a autoridade parece ser um conceitoque, embora em gestação pelos pensadores socráticos, foi propriamente compreendida como advento do Império Romano. Desta forma, Roma seria o berço da autoridade - não sódo conceito, mas também da sua própria existência, já que o processo de aporia que leva alegitimação da autoridade remete sempre que necessário ao que veio historicamente antes,de forma que, em última análise, irá remeter à Antiga Roma. Em termos weberianos,há sempre um quê de tradicional, de apelo ao que ‘sempre foi e, portanto, sempre odeve ser’ na legitimação da autoridade. O imperador romano Augusto, ao encomendar opoema épico Eneida a Virgílio (2002) parece ter entendido isso, de forma a legitimar suaautoridade num mito fundador. Além disso, Ricoeur salienta, a própria Igreja adquiriaseu poder não só com os textos sagrados, mas como uma extensão política do ImpérioRomano e sua autoridade institucional2. A Eneida nasce da necessidade vislumbrada pelo2 Outros exemplos históricos da legitimação da autoridade por meio de um mito fundador incluem: Os

Lusíadas, de Camões, que outorgam ao povo português o domínio sobre os territórios além-mar; O

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império romano de se legitimar, de fazer crer que sua existência estava imbricada naprópria história do território itálico. Mais que isso, a expansão do império e seu carátercrescentemente cosmopolita demandavam uma nova visão do que seria o Império. Romanão era mais uma vila local, mas sim o centro da civilização ocidental e, como tal, deveriase demonstrar aberta aos novos habitantes, à imigração, ao comércio, etc. Por isso, Virgílio(2002) cria uma nova Roma: não mais nascida de aldeões, mas sim de errantes do MarMediterrâneo a procura de um porto seguro, que por sua vez é mantido e garantido pelopróprio poder do imperador.

É importante ressaltar que a antiguidade aqui não é a antiguidade de fato, massim a crença na mesma, ou seja, a crença de que a ordem instituída é natural. A crençada verdade gera a crença na autoridade enunciativa, que por sua vez legitima a autoridadeinstitucional. A administração, neste sentido, é um conjunto discursivo que forma verdadesempoderadas pela ciência. Tais verdades legitimam práticas hierárquicas e produtivistaspor meio da proclamação de uma suposta verdade ancestral.

Ricoeur (2008) questiona a possibilidade da substituição da autoridade sem que seremeta a um mito fundador. Talvez, argumenta, a antiguidade pese mais que qualquerargumentação racional na formação da autoridade. Se assim for, parece claro que qualquerrevolução que destrone estruturas de autoridade necessita como critério básico para osucesso a transmutação de sua existência em um cerne histórico, antigo, como se sempreali sempre estivesse, formando as bases da sua autoridade. Isso acaba por demonstrar aprópria inexistência da autoridade como natural. Algo que é natural não precisa de um mitofundador, de algo que legitime sob o imaginário. Qualquer revolução, daí, necessita produzira crença de que sua gênese está imbricada na própria história, e de que a autoridade quedefende sempre existiu em outra faceta. Trata-se da ideia de transmutar uma verdadeinstituída em outra verdade. A dominação, exercida por meio da autoridade institucional,necessita do discurso legitimado, da verdade tida como tal, da autoridade enunciativa. Opoder necessita da aceitação de sua verdade.

Mas a verdade só pode ser instituída se a tornarmos externa a nós mesmos, ouseja, se essencializarmos ela. Bakunin (1970b), ao lidar com o problema do surgimentoda autoridade, aponta para crença em Deus. A crença religiosa é aquela que institui aautoridade como essencial. Afinal, Deus é um chefe supremo — a desculpa perfeita para umchefe na Terra. Operacionaliza-se o essencialismo atribuindo autoridade à essência humanae, mais, ao próprio universo. Esse processo se dá de forma tão clara que, etimologicamente,“dominador” advém do latim “Domine”, que é uma das formas a se dirigir à Deus. Dominese transformou em “Senhor” no português, que não por acaso é, também, a forma usual

Paraíso Perdido, de John Milton, que legitima a necessidade de imposição de ordem a partir da Igreja;nos EUA, os founding fathers e todas obras que os relatam; na antiga URSS, obras cinematográficas comoAlexander Nevsky e O Encouraçado Potemkin de Sergei Eisenstein, que outorgam, respectivamente,autoridade ao povo russo sobre seu território e ao Partido Comunista como representantes do mesmo.

Capítulo 7. Do Autorizar à Autoridade 97

até hoje de se dirigir a um chefe ou superior hierárquico.

A ideia de essencializar a autoridade é um projeto comum ao conservadorismo —mesmo ao secular. Se antigamente isso se dava em uma base religiosa, atualmente se dápor uma pretensão científica. Recentemente um notório publicista conservador, JordanPeterson (2018), passou a argumentar que a hierarquia e a autoridade existem antes mesmoda própria existência humana, de tal forma a constituir o que há de mais essencial emtodos nós. Para isso, amparou-se em estudos que demonstram que as lagostas são (1)antepassados genéticos dos humanos e, (2) extremamente hierárquicas em sua organização.Com base nestes dois pontos, concluira, nós somos “hardwired” para ser hierárquicos e,portanto, devemos aceitar autoridades.3

Dessa forma, o essencialismo opera não só na constituição inequívoca da vontadedo dominador, mas também por meio de uma falácia naturalista, ou seja, na ideia de quehá uma natureza inequívoca nossa. Tal essencialismo necessita de uma racionalização claraque nos torne impotentes perante a vida – daí o desencantamento e o niilismo. Se antesera a vontade de deus (Domine), agora é a vontade das leis naturais.

A decorrência dessa epistemologia no cotidiano é a da formação de organizaçõeshierárquicas, onde o trabalho e as tarefas se dividem horizontal e verticalmente. Assim,formam-se autoridades e passa-se a crer na sua necessidade. Uma vez presos na crença deque a verdade precede a vida, as organizações tornam-se instrumentos da vida na buscada verdade. A especialização e mediação do trabalho se tornam necessários, a hierarquiase torna consequente, o produtivismo se torna o meio.

Mas em contraposição, deixando de lado os pressupostos essencialistas, partindode uma postura perspectivista, abnegando a autoridade enunciativa como meio paracompreender a realidade, deslegitimando a autoridade institucional, haveremos de criaroutros tipos de organizações.

3 Para todos efeitos, considero irrelevante o fato das lagostas serem ou não hierárquicas e assumo comocorreta a informação do publicista. O que importa é que, dessa forma ou de qualquer outra, não existecomo descobrir qual é a essência humana (hardwired) porque não existe uma.

Parte III

A Organização Imediatista

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Aqui se apresentará a visão anarco como resposta ao desencantamento resultanteda naturalização da autoridade. Tal visão se afasta da concepção essencialista de verdade,presente no iluminismo, e do naturalismo que supõe um homem constituído a priori,presente nos teóricos anarquistas clássicos.

Desta forma, parte-se a assumir os pressupostos ontológicos. Trata-se do anarquismoontológico, que assume que a realidade é caótica em contraposição a uma suposta ordemnatural do mundo, a que se atribuir que é nada mais que uma interpretação. Para alémdisso ser um pressuposto, a ideia de interpretar que há ordem naturalmente dispostana realidade traz consequências pragmáticas. Ao se interpretar que há uma ordem, seproclama a mesma, passando a se impor sobre os demais. Em contraposição a isso há dese considerar que o mundo é inerentemente caótico, sem que se atribua uma conotaçãomoral a este pressuposto.

O Estado passa a ser reavaliado aqui não só como a estrutura estatal externaà sociedade, mas como uma totalidade que tudo medeia por meio da representação daverdade. É o Espetáculo, estrutura arborescente ou o sistema total. O indivíduo torna-seobjeto do Estado sistêmico, onde suas vontades são substituídas por suas necessidades,constituindo no lugar do indivíduo o Homo miserabilis.

Frente à este Estado total que tudo visa cooptar e mediar, a organização imediatistaé apresentada como a fuga do devir, como a alternativa que existe nas rachaduras daestrutura social. A coletividadade dessas organizações constituem um rizoma que, quandocontraposto contra o Estado, se constitui enquanto “máquina de guerra”. Mas para que issoocorra essas organizações devem estar desapercebidas sob pena de cooptação ou destruição.

Esta proposta conceitual é, também, uma defesa do direcionamento do olhar (seja dapesquisa, seja no cotidiano). É a possibilidade libertadora que contém em si a possibilidadede um novo encantar plural, um poliencantamento.

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8 O Anarquismo Ontológico

Muitos dos clássicos anarquistas, tais como Proudhon, Godwin e Bakunin eramhomens iluministas. Seus pensamentos partiam da ideia de que a desigualdade e a opressãose davam por causa da ignorância e da alienação. Por isso, muito de suas proposiçõesbuscavam melhorar a educação, trazer conhecimento e iluminar as pessoas. Mesmo Bakunin,que percebera que a autoridade nasce no autorizar enunciativo frente ao mundo natural,defendia (talvez com exceção do final da sua vida) que o conhecimento liberta.

A denúncia da propriedade ‘enquanto roubo’ feita por Proudhon apresentava umajustificativa naturalista para o anarquismo. Se a propriedade é um roubo – ou seja, elanão é natural à condição humana, seria consequente pensar em uma organização socialdistinta. O sistema social que o autor propôs era baseado na ideia da substituição doEstado opressivo por uma organização social autogerida, baseada na posse (ou usufruto)dos meios de produção. Para que isso pudesse funcionar, seria necessário uma racionalidadeiluminista para substituir o Estado – ou seja, a solução frente à alienação e divisão dotrabalho promovidas pelo Estado passaria por um conhecimento pleno de todos envolvidosnos meios de produção, tornando a educação um empreendimento necessário.

Sob o argumento do autor, os humanos são seres naturalmente racionais e coope-rativos. Contraposto a isto está o poder concentrado em forma de autoridade que criaorganizações hierárquicas sendo, a maior delas, o Estado. Na medida em que o ser humanopercebe melhor sua condição e racionaliza as questões do seu entorno, o Estado torna-sepaulatinamente desnecessário, nos tornando os seres que éramos: cooperativos, bondosos,sociais (PROUDHON, 1988).

Muito embora a crítica de Proudhon ao Estado enquanto mantenedor de umsistema de exploração e dominação pareça consensual no pensamento anarquista, suasproposições ainda derivam de uma visão essencialista de indivíduo. Afinal, tal essencialismobaseado numa verdade única (ainda que não plenamente alcançável) possibilita a crençano ser enquanto categoria natural, baseia-se na substituição do indivíduo por um objetosocial (o ser) que possui características naturais e intrínsecas. Essas características sãotratadas enquanto atribuição de verdade. A relação social, sob um olhar essencialista, podealterar os fenômenos derivados do ser, mas não sua essência. Dito de outra forma, o serse demonstra de diversas formas sob diversas circunstâncias, mas guarda algo que lhe éinerentemente verdadeiro. É por isso que, frente ao diagnóstico de que a propriedade dosmeios de produção é um roubo, a cooperativização humana pode ser tratada como umasolução moral.

Como se pode perceber, tais concepções anarquistas partem de uma visão essencia-

Capítulo 8. O Anarquismo Ontológico 102

lista de verdade, além de supor um ser constituído por uma natureza. Por conseguinte,embora a motivação da crítica à autoridade e ao Estado de tais autores fosse mais quejustificada, a problemática e, por consequência, suas proposições, tornam-se passíveisde reavaliação. Essa questão só vem à tona com a incorporação de autores, geralmenteutilizados de forma indireta, tais como como Max Stirner e Nietzsche à discussão anarquista– em especial a partir do século XX (KOCH, 1993).

A ideia processual nietzschiana que deriva da vontade em direção a uma expansãoconstante (a vontade de poder) remete à Stirner (2004). Para ele, pensamentos e conceitossão correntes que nos aprisionam a uma ideia de ser. O ser, enquanto construção reificante,se opõe ao único de Stirner (enquanto indivíduo distinto). De fato, etimologicamente,Illich e Sanders (1988, p.71) demonstram que “indivíduo” é uma palavra que advém daideia de inequívoco, de não-ambiguidade. O indivíduo é o nível último, aquilo que não podese confundir, se fundir ou dividir: ele é único, tal como em Stirner (2004). Este consideraque o que chamamos de era moderna emergiu com a cristandade. Sua crítica à ideia deser enquanto uma abstração total que possibilita a dominação permitiu que Nietzschebaseasse seu pensamento numa genealogia das ideias.

Com essa genealogia, Nietzsche (1998) pode delinear a relação entre as ideias e ocontexto na qual são produzidas. Tal visão se diferenciava de uma perspectiva iluministaou essencialista, por afastar a propriedade transcendente das coisas da ideia de verdade eda realidade. Assim, no lugar do transcendente temos o imanente. O processo históriconão é mais uma realidade a priori que estabelece os fatos, mas uma delimitação, por meiode processos de exclusão de narrativas, do que ocorreu no passado por meio do que ocorreno presente. Sob este olhar, torna-se evidente que o apontamento marxista da história serepetindo a si mesma é mais uma possibilidade narrativa (mesmo que relevante) do queuma questão real: não é que a história repete a si mesma (seja como tragédia, seja comofarsa), mas sim que analisamos o que nos precedeu sob o olhar do presente, transpondo arealidade passada ao presente e, assim, chegando à conclusão de que a história se repete.Uma consequência usual de não reconhecer isso é o purismo conceitual (muitas vezestravestido de “precisão conceitual”): porque dois elementos históricos nunca são, de fato,idênticos, acaba-se por descartar o uso de uma terminologia para reconhecer aspectosdistintos que guardam semelhanças. Um exemplo disso é a relutância de muitos intelectuaisem aceitar o uso do termo “fascismo” ao se referir a fascistas nos dias atuais. Afinal, ofenômeno histórico italiano de Mussolini nunca vai se repetir (seja como farsa, seja comotragédia) tal qual, seja no ideário, seja no contexto histórico que o produziu.

Como proclamado por diversas vezes pelo próprio Nietzsche1 a respeito de si mesmo,1 Embora essa auto-reflexão tenha se tornado famosa pelas afirmações ao final da sua vida, vista como

fruto da doença que acometeu Nietzsche, soando presunçosa e ufana em obras mais caricaturais comoEcce Homo (NIETZSCHE, 2004a), a mesma reflexão aparece em outras obras, como em Nietzsche(2004b).

Capítulo 8. O Anarquismo Ontológico 103

ele era de fato um homem fora de seu tempo. Esse anacronismo é o que permite observaras ideias como circunscritas ao seu tempo, tornando-se a forma como se constituem emuma moral e aprisionando o indivíduo com o passar do tempo: “Porque eu acredito que,de fato, nós todos estamos sofrendo de uma febre histórica que nos consome e no mínimodevemos reconhecer que somos afligidos por ela” (NIETZSCHE, 2004b, p.9).

A análise histórica cria uma ficção na qual se ressignifica o passado, por meio deprocessos de exclusão e inclusão na narrativa, até que o passado ilustre a verdade presente.Dessa forma, se impossibilita qualquer ideia de uma verdade historicamente imutável.Como a verdade não é dada a priori, mas sim é parte daquele que a possui, a verdade é umfenômeno histórico. Ou seja, o conhecimento não pode se contentar com verdades únicas e,por isso, não pode se contentar com representações da natureza humana – “verdade” e o“o ser” são só ficções (NIETZSCHE, 2004b).

O poder só pode ser visto como derivado do controle sobre a produção da verdade.Isso ocorre por meio da linguagem e, com a fixação de conceitos, advém a moral. O exemploque Nietzsche parte é de que o conceito de bom advém de nobre que, por sua vez, é umacaracterística relativa às riquezas e posses. Não é nada espantoso, então, que o “cidadãode bem” seja nada distinto do cidadão com posses.

Assim, a política não pode ser considerada decorrente da verdade, pois esta nãoexiste. Tampouco pode ser considerada decorrente da justiça, já que a moralidade quecompõe o que é justo é uma representação que reflete os interesses de quem define a moral.Política é, então, nada mais que a expressão do poder. E se política assim o é, o Estado énada mais que a representação do poder constituído e cristalizado.

O problema, portanto, deixa de ser a alienação do trabalhador enquanto a falta deconhecimento do mundo, enquanto falta de contato com a realidade, enquanto ausênciado científico, como em Proudhon ou mesmo em Bakunin. A ideia de que o dominadopoderá se libertar por meio do conhecimento, do entendimento do mundo, da apreensãoda verdade, cai por terra. Decorrente disso, as correntes anarquistas mais costumeiras doséculo XX, em especial após os anos 1960, se baseiam em algumas justificativas própriaspara a abolição do Estado (KOCH, 1993).

A primeira delas é que o mundo é inerentemente caótico, sem que isso seja umproblema, sem que se atribua a isso uma conotação negativa. A definição de conceitosestáticos cria uma moral que representa parcialmente (e enviesadamente de acordo comquem a profere) a realidade. Com base na moral as instituições se formam. As leis, osregramentos e as definições de procedimentos são compostas a partir da moral instituída.Essa moral não está representando a realidade de fato, mas uma perspectiva própria dequem consegue dominar. A realidade, por sua vez, é caótica – nós é que atribuímos sentidocoeso a algo que não há. Ao dominador cabe a estruturação da realidade de forma a fazercrer no seu discurso. Ele o faz ao excluir elementos e os organizar inclusos no discurso. Tal

Capítulo 8. O Anarquismo Ontológico 104

discurso ilusório pinta a realidade como um sistema coeso, causal e controlável quando, naverdade, não o é. Essa visão é bem ilustrada abaixo:

Absolutamente nada pode ser pronunciado com alguma certezareal acerca da “verdadeira natureza das coisas”. [...] A partir donada haveremos algo: o Levante, a revolta contra tudo o que proclama:“A natureza das Coisas é isso e aquilo”. Estamos em desacordo, somosantinaturais, somos menos que nada ante os olhos da Lei: LeiDivina, Lei Natural ou Lei Social, escolha a que quiser. A partir donada imaginaremos nossos valores, e por este ato de invenção viveremos.[...] Com efeito, o caos é vida. Toda confusão, toda revolta de calor, todaurgência protoplásmica, todo movimento é o caos. Deste ponto de vista,a Ordem aparece como morte, cessação, cristalização, ciência, alienação.Os anarquistas tem proclamado durante anos que “a anarquia não éo caos”. Inclusive o anarquismo parece querer uma lei natural, umamoralidade interior e inata na matéria, um mito enquanto enteléquiaou propósito-de-ser. Não melhores que os Cristãos neste aspecto, nissoacreditava Nietzsche – radicais só no profundo ressentimento. O anar-quismo disse que “o Estado deveria ser abolido” só para instituir umanova forma de ordem mais radical em seu lugar. A Anarquia Ontoló-gica replica em troca que nenhum “Estado” pode “existir” nocaos, que todas as afirmações ontológicas são espúrias exceto aafirmação do caos (que contudo é indeterminado), e portanto que oato de governar de qualquer tipo é impossível.Desde modo, as ilusões podem matar. Imagens de castigo rondamo sonho da Ordem. A Anarquia Ontológica propõe que desper-temos e criemos nosso próprio dia – inclusive na sombra doEstado, esse gigante postulado que dorme, e cujos sonhos de Ordemmeta-estatizam como espasmos de violência espetacular.(BEY, 1993, grifos meus)

A visão de ordem de Hakim Bey rompe com a velha ideia anarquista de que a ordemé algo que ocorre naturalmente, sem imposição. No lugar, ele estabelece que toda tentativade ordem é uma imposição, é uma violência coercitiva. A ordem, aqui, é entendida como acristalização da sociedade em relações estanques, na morte do próprio devir.

A citação acima contém elementos perspectivistas que a tornam uma reflexãopossível. Só é possível estabelecer a existência do caos em um mundo que se pretendiaordeiro uma vez que se rompa com a ideia de uma busca tola pela essência da realidadeaparente. A realidade aparente (caótica) é a própria realidade.

Uma segunda justificativa anarco para abolição do Estado é que, dadas as condiçõesepistemológicas já mencionadas, não é possível constituir sentença alguma que seja imuta-velmente legítima – não há verdades imutáveis. Ao se assumir que um enunciado não podeconter um valor essencialmente verdadeiro, nenhuma decorrência dessa é legítima de formaperene. Dito de outra forma, se a moral, os valores e as normas não são consequentes àverdade, mas sim ao poder, então qualquer relação de dominação se torna potencialmenteilegítima, criticável e frágil. Isso inclui não só relações despóticas e tiranas, não só relações

Capítulo 8. O Anarquismo Ontológico 105

onde poucos controlam muitos, mas também organizações sociais democráticas (burguesasou não), bem como “ditaduras do proletariado” (o que quer que isso venha a significar).

Assim, ao colocarmos sobre um perspectivismo ético qualquer ideia de moral,assumindo a moral, e mesmo as regras, como decorrentes de relações de poder, podemosentão superar o moralismo. Um exemplo extremo disso é o caso relatado por Wilson (2003)em seu estudo sobre a forma de organização dos piratas e corsários: mesmo a regra moraluniversalmente aceita de não assassinar alguém pode ser revisada quando se percebe queela é, também, uma consequência do poder instituído. Senão, observemos a prática moralrelatada pelo autor: dentre os piratas do Atlântico do século XVIII, a organização de suaspilhagens se dava de uma forma mais ou menos igualitária2. A organização dos piratasconfluiu a ponto de gerar o que o autor chamou de “democracia por assassinato”: apesarda organização e divisão de espólios dos piratas ser costumeiramente horizontal, algunsmomentos (especialmente de batalha) demandavam uma centralidade que constituía umaautoridade (o capitão). Tal capitão acaba por ter a vida de seus subordinados em suasmãos, já que suas ordens poderiam criar as condições de sobrevivência ou morte. De fato,um desafeto do capitão poderia ser morto facilmente com ordens elaboradas para quetal coisa ocorresse no advento das batalhas. Como seria possível tamanha autoridadeser contraposta a fim de evitar uma tirania? A resposta da organização pirata era aiminente possibilidade de assassinato do capitão. Aqui, fica claro que mesmo a moral maisuniversalmente aceita (“não matarás”) pode, por vezes, servir a um interesse dominante.O assassinato do capitão tirano pode ser, ao fim, uma atitude tão ou mais moral que suasobrevivência – tudo depende da perspectiva.

Uma outra ilustração dessa visão são os zapatistas: não lhes interessa fazer partede um Estado de coisas em que suas perspectivas (verdades) sejam toleradas. Afinal, odesafio zapatista não é que o Estado mexicano seja suficientemente liberal a ponto deaceitar que eles se organizem de maneiras tuteladas pelo Estado. Não cabe ser centro nemperiferia, mas sim ser alheio ao Estado e não ser capturado pela representação, seja elamoral, seja ela normativa, seja ela política (MARCOS, 2008).

Isso leva a ideia de um “anarquismo ontológico”: não há uma ordem natural dascoisas e, assim, não há uma moral a priori (o que não significa que não existam moraispossíveis). O mundo é o caos se organizando constantemente. Não há uma natureza do2 Apesar dos piratas serem normalmente vistos como fantasmas dos horrores de um passado, era mais

provável que suas organizações sociais fossem bastante equânimes. A explicação para a busca pororganizações sociais justas por parte dos piratas era de que, em sua maioria, os mesmos eram pessoasque tinham fugido de algum tipo de tirania, abuso ou escravidão. Dessa forma, a comunidade pirata,apesar de viver de espólios, era formada por pessoas que buscavam uma vida menos cruel. Tal buscapor uma sociedade um pouco mais justa levou a criação de enclaves utópicos, dos quais se destacaramos caribenhos no século XVII. Apesar de lugares inacessíveis para muitos “civilizados” da época, ashistórias da região inspiraram diversos mitos a tal ponto de hoje o termo “piratas do caribe” ter setornado uma franquia comercial. A mera ideia da pirataria foi transformada do bicho papão da épocaa um elemento de cultura pop da atualidade. Isso é discutido com maior afinco por Parker (2009).

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indivíduo e, portanto, não há ser. A “organização” é somente uma fotografia de um pedaçodesse caos se reorganizando em um dado momento. Este anarquismo põe por terra imagensde uma ordem natural das coisas, o que permite que abandonemos a ideia de uma utopiaordeira. Afinal, “imagens de castigo rondam o sonho da Ordem” (BEY, 1993).

Sob este olhar, a prescrição de regras é um atentado contra o indivíduo, contrao único, contra a liberdade. A utopia de Morus (2012) é nada mais que um pesadelo:submeter o indivíduo a uma totalidade que contém as regras. Reifica-se o indivíduo emprol de um sistema ordeiro. Mas não só utopias funcionais se tornam pesadelos: utopiasanarquistas clássicas também se tornam. A autogestão inspirada em Proudhon poderapidamente se transformar em uma ditadura do coletivo sobre a individualidade. Ou, emum exemplo ainda mais alarmante, notemos como Kropotkin (2002) lida com a questão dacriminalidade: observando que há elementos estruturais sociais, de um lado, e elementos desaúde, de outro, sua proposição se dá na direção de substituir penitenciárias por cuidadoscom a saúde dos criminosos em adição a melhoria das estruturas sociais. Não é necessáriomuitas delongas para notar que clínicas de saúde mandatórias podem ser ainda maisditatoriais que presídios. Na busca de uma ordem perfeita, acabamos por instaurar, mesmocom a melhor das intenções, um horror social.

A utopia ordeira torna-se, sob este olhar, seja ela de qual prescrição for, o motivopelo qual Orwell (2008) nota que as proposições socialistas são, com frequência, sugestõesde perfeição ordeira sem que, no entanto, consigam demonstrar uma sociedade que permitaa felicidade ou, mesmo, uma liberdade. A ordem, é assim, uma imposição, uma projeçãoautoritária de uma ideia ordeira sobre os demais. A ordem é nada mais que a promulgaçãode um sentido que não existe, de fato, na realidade; mas que é imposto – primeiro por meioda interpretação, depois por meio da imposição daquela interpretação sobre os demais. Talcomo quando olhamos para as estrelas e pensamos ver ali um desenho (onde, de fato, nãohá qualquer desenho), e proclamamos que, naquele caos, há um centauro, um centurião,um canário. Mas na realidade social, há um segundo passo que não nos atrevemos a atentarcontra as estrelas (não ainda, ao menos): ao proclamarmos que as pessoas se organizam deuma determinada maneira, implicamos que elas assim o devem se organizar. A ordem vistaé a ordem imposta. Imposta não no sentido metafórico ou como sinônimo de manipulação.Imposta pela força, por meio da violência: esta é a possibilidade da ordem.

Ao final, mesmo as ordens sociais mais “civilizadas” (ordens burocratas, tais como asque vimos nas formulações de autores clássicos da administração) estão só criando camadasde procedimentos que alertam as pessoas da possibilidade de que uma desobediência podecriar precedente para chamar uma pessoa fardada que utilizará um cassetete nas suascabeças pela manutenção ordeira. Por isso a violência não é simbólica: ela é real, é umacoerção que impõe, pelo medo do uso da força física, um conjunto de regras (GRAEBER,2015).

Capítulo 8. O Anarquismo Ontológico 107

O anarquismo ontológico é, então, uma resposta que se opõe ao ideal ascético debeleza ordeira. É a negação da possibilidade de viver sob uma ordem – porque a ordem éperspectiva. O que é ordeiro é um atributo de verdade – e a verdade é uma relação depoder. No lugar de uma ordem, o que se pode buscar são situações em que a potênciahumana pode usufruir (BEY, 1993).

Se não há ordem a ser objetivada de forma total, não é possível crer em umarevolução – ou, ainda, só é possível crer em revolução sob um olhar sarcasticamenteastronômico de “dar a volta ao mesmo lugar” (BLACK, 2006a, p.57). Ao final, a revoluçãoé um conceito que exige uma nova ordem, uma nova imposição. Ironicamente, a pichaçãonas paredes da Sorbonne em maio de 1968 declaram seus limites: “a revolução cessa nomomento em que chama por auto-sacrifício” (KNABB, 2006).

Se a revolução, o objetivo de boa parte dos movimentos políticos de ruptura, é oque Newman (2017) chama de “a tomada do poder político por um partido de vanguardaorganizada”, a insurreição é a emancipação auto-organizada, que constitui na sua própriaexistência seu objetivo que, embora não seja contido em si mesmo, seja não menos. Assim,no lugar de tentar criar um novo Estado, a insurreição é o conceito que se conecta com aideia de constituir uma espécie de “revolução da vida cotidiana”, nas palavras de Vaneigem(2012), abrindo espaços de autonomia.

A insurreição é um conceito relacionado à ideia de um poder destituinte, como emAgamben (2014). Nega-se a ideia de que o movimento social deva ser um meio para umfim (a revolução) e estabelece em si mesmo a finalidade. Neste sentido, é o que Newman(2017) chama de não-estratégico. Insurge-se para viver uma vida autônoma e não comomeio para que um dia possa se viver uma vida autônoma. O projeto de autonomia nuncaé total, sendo a vida regida pelo Estado e pelo capital em diversas formas.

O anarquismo ontológico, consonante à ideia de poder destituinte, de um lado,e de um anti-essencialismo, de outro, é a ideia de que o mundo é caótico por naturezae que o Estado é uma imposição artificial. Não é necessário que se crie uma ordem emcontrariedade à ordem instituída, mas sim que se ignore e deslegitime qualquer ordemvigente. É viver nas rachaduras da hegemonia, nos vãos da estrutura arborescente. É o queBey (2012a) chama de tertium quid: é não aceitar a ordem imposta e, ao mesmo tempo,não impor uma ordem. Essa finalidade anarquista acaba por clamar por um nomadismoinsurgente: migrar de uma falha da estrutura para outra.

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9 Estado, Mediação e Imediatismo

De minha parte, não nego crer em uma constante do universo: ela se chama ironia.Ironia, como acredito, precede a linguagem e se encontra no próprio estado das coisas. Épor isso que neste trágico ano de 2018 podemos celebrar os cinquenta anos de maio de68. Para além do levante em si, tal evento foi um marco para repensar a vida moderna –ali convergiram grandes intelectuais de todas correntes da esquerda. Pós-estruturalistas,marxistas, maoístas, anarquistas, trotskistas, sociais-democratas, etc. Em adição a estasestirpes do ideário alternativo, um grupo de ativistas-intelectuais se juntou para formar atempestade perfeita: tratava-se dos situacionistas.

Embora o pensamento situacionista seja, pela sua própria definição, difícil de carac-terizar, o fato é que havia uma organização que concentrava os esforços de seus defensores:a Internacional Situacionista (IS – 1957 – 1972). A IS foi a fusão de duas organizações – aInternacional Letrista, de onde veio Guy Debord, e o grupo antifuncionalista chamadode Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI). Esta última trouxe aoSituacionismo o conceito de urbanismo unitário, ao passo que a primeira trouxe a teoriasocial (BLACK, 2006b).

A ideia por trás do situacionismo é de que a vida, por meio da criação de inúmerassituações que superem a condição identitária fixa do indivivíduo, se constitua de formaplena. Ao invés de formar especialistas, tecnicistas, alienados, o situacionismo clama pelaformação e atuação plena, generalista, situacional. A ideia era pôr fim a todos ofícios senãoum: o de situacionista, de “leigo-profissional, de anti-especialista”. Ao fim, quando mesmoo situacionista se esvair de sentido, tornaríamos todos a ser não menos que artistas. É oideal de beleza plena caótica (DEBORD, 2011).

A conferência de abertura da IS, ocorrida em 1961 em Londres, foi lembrada pelosediador do evento, o Instituto de Artes Contemporâneas (IAC), como uma “conferênciacujo presidente era surdo, cujo principal orador não falava inglês e cujos participantesnegavam que a reunião existia” (BLACK, 2006b, p.96). Ao final do discurso proferido porMaurice Wyckaert contendo o manifesto da IS, o tom vagamente ameaçador declarava“os situacionistas, os quais talvez vocês se imaginem juízes, um dia os julgarão. Estamosesperando por vocês na curva [da história]” (BLACK, 2006b, p.95).

As duas obras mais famosas do movimento situacionista, ambas publicadas àsportas de maio de 1968, acabam por expor o debate central para transformação social:como ela seria possível? Debord, em sua obra “A Sociedade do Espetáculo”, demonstrafriamente a impossibilidade da revolução senão por meio da mudança da totalidade (ora,sua inspiração marxista não poderia lhe dizer outra coisa). Ou seja, a solução passaria

Capítulo 9. Estado, Mediação e Imediatismo 109

por uma revolução. Já Vaneigem (2012), um subjetivista anarquista, argumenta que arevolução está no próprio desejo e prática cotidiana – “desejar uma vida diferente já é essavida em seu processo”. A revolução não é a totalidade porque a totalidade é imaginária.

O que é real é o imanente, é o material. É o que se dá na vivência cotidiana doindivíduo. Ao encararmos o situacionismo enquanto organizações situacionais, colocamosa organização como consequente ao indivíduo – e não o contrário. Tal como em Stirner(2004), que defendia que a organização necessária era a organização de egoístas ou aorganização que conformava interesses situacionais específicos, de forma a se tornar umaorganização frágil. A organização frágil é a única forma de tornar o indivíduo inviolável.Ou seja, a organização deve ser secundária ao interesse dos indivíduos – sendo o oposto doque ocorre com frequência na modernidade.

Ocorre que, uma vez assumida a organização como categoria do real a priori,assume-se o indivíduo como reificado em relação a ela. A antítese se dá entre organizaçãoe o único, o indivíduo. Se a organização perdura, o único se medeia e se torna o ser. O seré então o indivíduo reificado.

Essa é a base de uma reavaliação do que é o Estado por Hakim Bey: o Estado éexterno à sociedade, mas enquanto representante do indivíduo é também um processoconstante de simbolização do mesmo. Esse processo de representação é a mediação entre oindivíduo e o mundo, implicando a forma com que aquele apreende este.

O Estado, assim, é a organização que se pretende total, que outorga a si mesmaa capacidade de incorporar a representação da totalidade das relações sociais. Nestarepresentação, o Estado pode estar replicado em todas relações sociais (BEY, 2012b).

O Estado seria não mais uma entidade externa ao humano, tal como em Proudhon(1849), mas um processo de representação total. A representação não é só a lógica docidadão que é representado por um político, mas também uma realidade que pode serrepresentada por seus símbolos. A decisão sobre o que é correto é transferida do indivíduopara o Estado e suas cortes. A decisão do valor das coisas, por sua vez, é transferida doindivíduo para “o mercado”. A decisão do que é moral, do que é correto para além dosenso coercitivo policial, é transferido para a Igreja. A decisão sobre o que é verdade étransferido para o método científico.

Podemos entender a representação, também, como decorrência de uma visãoessencialista de mundo. Afinal, se há um mundo-verdade, se há essência para além dasaparências, admitimos que nossos sentidos estão em contato tão somente com a aparência.Esta, ao final, é a própria representação da essência que, por sua vez, estaria fora dealcance aos nossos sentidos. Ao admitirmos uma essência, um mundo verdade, admitimosque só podemos entrar em contato com a representação da verdade. Autorizamos, assim, averdade a existir alheia aos nossos sentidos. Admitimos uma vida que, em prol da verdade

Capítulo 9. Estado, Mediação e Imediatismo 110

que não é alcançável, seja renegada. Tornamos o devir imoral e, assim, nos submetemosaos clérigos, ao Estado, ao mercado, ao capital e ao método científico.

A lógica da representação é o que permite o desencantamento do mundo: transfe-rimos para um ente externo (primeiro a hierarquia celestial, então a hierarquia clerical,então Estado clássico e o Mercado) o critério de validade do próprio mundo. A realidadedeixa de ser verdadeira por nossos próprios critérios para se tornar verdadeira por umcritério que nos é externo. Uma vez que a verdade se exterioriza e o acesso à mesmase torna mediado, passamos a ter como atributo moral o que nos é introjetado. O queconsideramos certo deixa de ser até que seja validado por um ente externo legitimado: oEstado, por meio de suas leis; o Mercado, por meio do dinheiro. Com a lei substituindo amoral, matar alguém torna-se certo se a lei o permite, salvar alguém torna-se errôneo sea lei proíbe. Produzir sem vender torna-se inútil, consumir sem alguém vender torna-seimpossível, com o dinheiro substituindo a criação.

Mas o desencantamento decorrente da mediação, que externaliza a validade davida, também se dá de outras formas. Frente ao terror das eleições manipuladas pelomeio das ferramentas de comunicação1: é certo que aqueles que são atingidos por taisferramentas transferem para um ente externo (seja a imprensa, seja o WhatsApp, sejao próprio Estado) seus critérios de validade próprios. É só assim que é possível destruira experiência em favor da mediação. Deixa-se de lado o próprio passado quando o meiofabrica para nós mesmos nosso passado. No orwelliano 1984 (ORWELL, 1983), o Estadofabricava as memórias2 em favor do statuos quo mantido por um Estado stalinista. Nossarealidade falsifica nossa própria vida e nossas memórias ao atribuir uma relação distintada que experienciamos em favor de quem pode fabricar a mediação necessária.

Essa concepção é consonante com a visão de representação dos situacionistas. Nesta,há um claro processo dialético entre a produção plena da vida e a incorporação dessano espetáculo. Tal relação dialética não encontra necessariamente uma síntese e se dános conceitos de “detournement” e “recuperation”. O primeiro, o desvio, é a extração dosistema de suas mediações e representações para utilizá-los contra o próprio sistema. Já osegundo é o processo de captura da arte, das ideias libertárias e das práticas alternativaspor parte do sistema capitalista, que utiliza a própria oposição a sua existência comolegitimador de si – é a cooptação (DEBORD; WOLMAN, 2006).1 Não me refiro em específico ao Brasil, já que parece ser algo comum nas democracias atuais. Também

não parece ser algo referente a esta tecnologia presente: Em 1938, Orson Welles, que mais tarde setornaria famoso por Cidadão Kane, resolve ler o clássico “Guerra dos Mundos” de H.G. Wells na rádioCBS durante um Halloween. A uma hora de programa gerou um pânico generalizado entre os ouvintes,que passaram a interpretar tudo que viam na cidade como consequências de uma invasão real dealienígenas, negando seus próprios sentidos em prol do que ouviam na rádio (SCHWARTZ, 2015).

2 Se o Estado diminuía a ração semanal de 40 gramas para 20, o noticiário anunciava que fora aumentadaa ração de 10 gramas para 20 – e os noticiários antigos que testemunhavam o valor até aquele momentoeram apagados.

Capítulo 9. Estado, Mediação e Imediatismo 111

A cooptação, recuperation, se dá o tempo todo, tanto pelo capital quanto peloEstado formal. Quando a loja de departamentos vende uma camiseta escrito “Rebele-se!”,quando o refrigerante utiliza, na sua propaganda, de uma estética revolucionária, quando oEstado institucionaliza a participação popular (seja por meio de eleições, seja por meio deaudiências públicas ou conselhos de participação popular), ou ainda quando uma agênciade turismo vende pacotes de “turismo revolucionário”3. É o Espetáculo enunciando que “arepresentação de tuas vontades é o exercício delas”. É o mundo que finge se realizar.

Mas se as dinâmicas e lutas sociais fossem cooptadas e recuperadas sem um processocontrário, o detournement, a vida social se tornaria estanque e o próprio ato criador seriaencampado pelas forças mediadoras da sociedade. Nesta hipótese de objetificação total daação humana, não haveria mais devir, não haveria mais escapes, alternativas ou oposição.Por isso o detournement é um conceito que descreve um processo criador constante, noqual se subverte o mundo hegemônico em prol de algo não contido no Espetáculo. Masalém de descrever, é prescritivo, é um conceito que, intrínseco a si, advoga por si mesmo.

Como nota Black (2006b), nenhuma teoria radical parece ter percebido tão bem orisco de ser capturada pelo status quo. Boa parte do foco situacionista, enquanto movimentotambém artístico, era de produzir uma arte que não fosse capaz de atuar em proveito domundo tal como está. Essa preocupação pode ser percebida em várias ações nas obrassituacionistas, como no livro de memórias escrito por Jorn e Debord (1959), que foiencadernado com lixa grossa para evitar que fosse tratado como um livro para se deixarna prateleira junto a outros livros, para evitar o fetichismo4.

Essas ideias partem do diagnóstico de que qualquer ideia libertária não pode sertratada de forma objetiva ou sistemática, de que a reprodução objetifica e possibilitaa captura por parte do espetáculo. A subjetividade só pode ser constituída de formahermética. Os mais recentes escritos de Hakim Bey, inspirados nesse diagnóstico, contémpedidos de que só sejam reproduzidos um a um, de forma a não se colocar na Internetos mesmos ou não se fazer largas tiragens. A ideia é de que a subjetividade se constituaa partir da dádiva, do ato de reproduzir uma obra especialmente para uma pessoa, nopresente enquanto ato subjetivo e pessoal.

Essa percepção de que há uma necessidade constante de lutar contra a captura(“recuperation”) por parte do Espetáculo é o que torna o situacionismo um diagnósticopoderoso e influente.

Mas o que seria o Espetáculo? O Espetáculo é a representação da realidade doindivíduo socialmente. Não é uma coleção de imagens, mas uma forma de subjetivação,3 De fato o turismo moderno, como um todo, pode ser entendido como uma consequência da sociedade

de espetáculo. É a recuperação de culturas locais, de artefatos históricos e de vitórias políticas utilizadocomo mercadoria mediada (BEY, 1990).

4 Na discussão sobre como encadernar, outras possibilidades foram consideradas, como capa de gramaou asfalto. Ao final a lixa foi utilizada por, aparentemente, ser algo mais realizável.

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uma internalização por parte do indivíduo, das representações sociais que o transformamem objeto da totalidade. Para isso, o indivíduo que se tornou ser, tornou-se ter paraentão tornar-se o que aparenta, mediado pelo mundo que o cerca (DEBORD, 1997).

É como se o indivíduo, ao olhar para as estrelas não as visse mais, substituindo-aspela imagem das constelações. Mas esta metáfora não é suficiente: as estrelas do mundosocial, da metáfora do Espetáculo aqui, são outros indivíduos. E, como tais, estes nãosão objetos, mas sim outros agentes. Assim o espetáculo é a representação social doOutro na forma de produção alienada, consumo mediado, prática da separação social porconsequência da internalização da reificação do Outro. A própria burocracia, enquantouma forma de subjetivação, por meio da regra, do comportamento como substituto daação, da formação da “crosta de ferro” (ou exoesqueleto), é o Espetáculo.

Aqui a burocracia não pode ser entendida como mero aparato administrativo deuma dominação, mas sim como a formação de uma subjetividade. Tal como Weber notara,a burocracia faz parte do processo de desencantamento do mundo, mas aqui pode-se iralém e afirmar que isso advém não de uma perda de sentido do mundo tão somente, massim da atribuição de sentido do mundo ao ente externo, desencantando o mundo porconsequência. Neste sentido, a burocracia é a ordem que, por ser em um primeiro momentoum atributo de verdade (seja de eficiência, seja de justiça, seja de impessoalidade), éatribuída coercitivamente, em um segundo momento, aos demais.

É como se, na metáfora da caverna de Platão, passássemos todos a concordar quehá um mundo-verdade lá fora e que este mundo-verdade só pode ser acessado por meio demediações produzidas pelas instituições modernas. A mediação, conceito que engloba todotipo de representação, de um lado, e alienação do trabalho, de outro, é o processo de crerque o mundo-verdade está fora de nós e que precisamos de algo que nos ilumine quantoa sua substância, quanto a seu conteúdo. O sistema social composto pela necessidadeconstante dessa mediação é o Espetáculo.

O Espetáculo é, ao final, o Estado, mas não no sentido clássico de uma organizaçãoformal que se pretende total, mas sim no sentido de ser uma forma de se organizar que sepretende como tal, que institui a mediação como obrigatória, necessária. Mas o problemade chamar essa relação total de mediação de “Espetáculo” é de que, mesmo Debord,dedica uma parte substancial do seu livro para explicar que não se trata de imagensou de pantomimas para, ao final, muitos interpretarem que é isso. Assim, o Espetáculoé incorporado na teoria anarquista como Estado enquanto a mediação que advém daexterioração do critério de validade, do critério de verdade.

O Estado é, então, essa relação na qual o indivíduo se medeia frente ao mundo.Essa mediação constante, nota Vaneigem (2012), advém da relação social que se estabelece

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na modernidade. Se dá pela humilhação do cotidiano5, pelas alfinetadas que reduzem oindivíduo, o tempo todo, a sua conformidade. Se dá também no isolamento dos indivíduos,resignados a uma vida de trabalho alienado, do vazio que se apodera dos homens. Ocorreque o isolamento e a pequena humilhação são decorrências necessárias da autoridade:“sendo as relações humanas o que a hierarquia social faz delas, as relações impessoaisoferecem a forma menos cansativa do desprezo; permitem passar sem atritos inúteis atravésdos moinhos dos contatos cotidianos” (VANEIGEM, 2012, p.24).

Ou seja, o Estado não é o único processo de mediação da vida. Um outro símboloóbvio que medeia é o próprio dinheiro6. O Estado capitalista é a troca do dinheiro pelaproteção e, como tal, só pode existir uma vez que elementos medeiem tal processo (BEY,2012b). No entanto, é possível existir dinheiro sem Estado.

É verdade que o dinheiro é só uma forma de representação, muito embora sejaa forma mais presente e uma constante redução da vida à representação. Assim, se oEstado se medeia por formas de representação e simbolismo, o valor, que originalmente ésubjetivo e inerente ao indivíduo, se medeia pelo dinheiro. Um se alia a outro em processossubsequentes da história, mas não são a mesma coisa. Para Bey (2012b), há uma relação deconstante competição entre os dois poderes representativos centrais modernos – o Capitale o Estado.

Como dois poderes instituídos, duas autoridades supremas da modernidade, doisconcorrentes e aliados em seus projetos de mediação do indivíduo até se tornar o outro,Capital e Estado codependem enquanto mediações, mas competem enquanto formas demediar. Por isso que o pensamento anarquista não se aproxima nunca do neoliberal7 (dodito “Estado mínimo”): não se trata de buscar um menor Estado em proveito de outrasformas de mediação, como o Capital, por exemplo. Trata-se, sim, de romper com todasrelações de representação e mediação, as quais o dinheiro, o capital e a objetivação dosvalores fazem parte.

As ideias por trás do conceito de mediação de Hakim Bey advém de, além dossituacionistas, do debate promovido por Ivan Illich. Para este, as instituições modernassão o cerne do processo de mediação da vida, onde inicia-se pela mediação da apreensãodo conhecimento e, ao final, mediamos o próprio corpo.

9.1 O Homo miserabilisEra uma noite animada na casa do embaixador canadense no Irã. Jantavam à mesa

o então embaixador James George, Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e Ivan Illich. O5 “Saia da sua zona de conforto!” diz o imperativo.6 Cabe notar que embora o dinheiro seja necessário para o Estado, por vezes as relações de mediação de

um e do outro são conflitantes7 E “anarcocapitalismo”, definitivamente, é qualquer outra coisa que não anarquismo.

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contexto nacional iraniano em 1974 era de um liberalismo prévio à revolução religiosa.Chegara um telegrama remetido pelo recém-eleito governador “de esquerda” da Califórnia,Jerry Brown para Ivan Illich. Ao ler a missiva, Illich, que possuía um temperamentotão calmo que lhe rendia uma aura de santidade, desata-se a praguejar enfurecido. Essecomportamento já seria suficiente para gerar estranhamento à mesa, mas o conteúdo dotelegrama tornou tudo ainda mais curioso (BEY, 2008a).

Ocorre que o telegrama era um convite para que Ivan Illich fosse à Califórnia àscustas de Brown para trabalhar em um alto posto da administração do Estado. Junto aisso, encontrava-se o convite de aparecer na TV oferecendo uma face pública e amigável àspolíticas de governo. Os colegas de mesa, desconcertados, pediram que Illich explicasseas razões de sua fúria. Ocorre que: 1) Illich tinha pavor de voar e só estava ali em Teerãporque o convite de seus comensais “estava cheio de erros de digitação”8; 2) Illich entendiaque a mídia não era uma instituição a ser reformada porque, por definição, torna objetivoo que é inerentemente subjetivo; e 3) ele não queria reformar o Estado e suas instituições,mas sim vê-las ruir frente a outras formas de organizar – de forma que tomar parte naadministração do Estado da Califórnia era absurdo e contrário às suas convicções pessoais(BEY, 2008a).

Mas sua indignação residia no fato de que sua subjetividade, atrelada reconheci-damente à contracultura, sofria um ataque, uma tentativa de cooptação, de recuperation.De fato, para Illich não seria possível resolver problemas tornando o Estado mais aberto,pois o Estado é justamente síntese da institucionalização da vida, o ente que outorga asquestões individuais a um ente externo, que decalca o indivíduo. Esse processo de outorga,de mediação da verdade, cria o homem moderno do pós-guerra a que o autor chama deHomo miserabilis (ILLICH, 1996).

O Homo miserabilis é aquele que nasce com o desenvolvimentismo, com a religiãodo progresso econômico constante e perene. Mas esta, por sua vez, é a resposta desafiadoraante a natureza – é a rebelião obstinada que visa superar a condição de sobrevivênciaconstante. Neste ínterim os desejos, do mais básico desejo de sobreviver ao mais complexodesejo de amar, vão sendo paulatinamente substituídos por necessidades construídassocialmente e mediadas – é a institucionalização do bem, da virtude. Tais necessidades,sob o jugo de uma ideologia desenvolvimentista, vão se tornando objeto das instituições(o Estado e o mercado, principalmente, mas também a mídia como no caso citado). Elassão massificadoras, planificam todo indivíduo sob o pretexto de sermos da mesma espécie(ILLICH, 1996).

Ao fim somos mediados, em prol das nossas necessidades, pelos profissionais queas melhor entendem. Perde-se autonomia individual em prol da eficiência. Ganha-se8 O relato dá a entender que os erros de digitação eram consequências de um convite escrito por partícipes

de uma festa insana e divertida

Capítulo 9. Estado, Mediação e Imediatismo 115

na produtividade, mas perde-se na ação criativa. Especialistas gerenciam não mais sóas máquinas, mas o corpo. Somos objetos que possuem necessidades para sua própriaexistência que são supridos pelas instituições especializadas. Mas há, ainda, um segundomovimento histórico: mais recentemente, pelo final do século, o homem deixa de sermediado só pelas instituições e medeia a si mesmo. Interpõe entre si e seu desejo umcondicionante de verdade.

Para Illich, o corpo é o locus da experiência e, portanto, se dá na relação entrea carne e o contexto. Assim, aquilo que chamamos de corpo (“meu corpo”) é o corpoexperienciado. Por exemplo, o corpo atual, enquanto reflexo de uma sociedade industrial,é “fretável”, transportável enquanto mercadoria, o que seria uma concepção absurda aum habitante de séculos anteriores. “Manuais de engenharia falam de ’auto-transporte’quando andamos a pé ao invés de usar um elevador. E nos sentimos [...] privados de algose temos de caminhar” (ILLICH, 1986, p.1326).

Nosso corpo é mediado, conforme Illich, primeiro pela conformação institucionalprofissionalizada. É a outorga ao especialista, é o corpo iatrogênico. Mas em seus textos apartir da década de 1980, Illich percebera que não era só a organização formal que instituíauma verdade única: há um processo mais amplo e complexo em que nos sistematizamos,mesmo sem organizações formais, mesmo sem a burocracia. A outorga ao Estado e seusentes legítimos se transfere a uma sistematização plena. Não necessitamos mais mediarnosso corpo por meio do médico ou do nutricionista, mas internalizamos o profissional.Substituímos nossos desejos pelas nossas necessidades que são supridas pelas autoridadescompetentes para, então, substituir tais autoridades por um conhecimento desindividuali-zado, asséptico, alheio aos desejos. O corpo é o que é experienciado nas condições imanentesdo seu momento histórico e de seu lugar. Dessa forma, Illich transita, em sua obra, noargumento do corpo iatrogênico (ILLICH, 1975b), para o corpo fabricado pelo sistemasocial para atuar no próprio sistema. Quando argumentara contra a institucionalização dasaúde, Illich percebera que o corpo era experienciado como resultado da intervenção médica,ao que chama de corpo iatrogênico. Mas se substitui o médico pela prescritividade de umaciência objetiva: passamos a comer amparados em uma nutrição científica, passamos anos exercitar da mesma forma e, ao fim, até mesmo nossas relações sexuais passam a sernecessidades e não desejos.

Por isso, o que poderia se entender como mediação por organizações formais,apresentado na primeira parte desta tese, é introjetado no Homo miserabilis, o homemque é parte integrante do sistema que o reifica. O problema é sim as instituições, mas nãosó como organização formal como também por uma crença no enunciado objetivo, na vidaenquanto passível de ser planificada por meio da técnica e da norma.

Mas a técnica, conforme nota Illich (2010), não é neutra. Em sua tipificação entreferramentas conviviais e ferramentas manipulativas ele as descreve como extremos

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de uma linha. As primeiras são alternativas e possibilidades para uma retomada de vidacompleta em contraposição às segundas. Estas pressupõem-se totais ao criarem o quechamava de monopólio radical. Por este conceito, o autor não se referia ao monopóliode uma empresa sobre um mercado – isso parece já suficientemente claro na atualidade.Mas sim, sua crítica parte do pressuposto de que a técnica não é neutra e, portanto, ofertaum mundo criado conforme suas premissas que perpetuamente se autorreferencia. Nanossa sociedade, necessitamos de uma série de ferramentas industriais por conta da sérieanterior de ferramentas industriais, em um ciclo que se autoperpetua. Um exemplo dissoé o automóvel: por conta do projeto urbanista de cidade moderna, o uso do mesmo setorna quase obrigatório. De um lado as cidades se espalham conforme a malha viária,de outro a própria configuração do trânsito impossibilita o uso de outras ferramentas detransporte - gerando o que Illich chamou de “modernização da pobreza”, a destruição dosmeios vernáculos em prol de uma técnica que se pretende indubitavelmente melhor, maiseficiente, mais verdadeira.

É a esfera heteronômica de produção impedindo a esfera autônoma, é ser impossívelcaminhar para chegar em tal lugar e ser obrigado a se transportar em um veículo automotor.A modernização da pobreza diz respeito também a hierarquização social inerente àindustrialização e à contraprodutividade global. É necessário ter acesso à autoestrada prachegar no aeroporto; é necessário ter acesso ao médico pra chegar no hospital, ou seja, énecessário consumir muito dos produtos industrializados pra poder ter acesso até ao quese entende por necessário.

Um outro problema que notara é o que chamou de “polarização”. Este se dácom o desenvolvimento da tecnologia à medida em que se impõe no quotidiano dospovos a necessidade de elites capacitadas para geri-las, impossibilitando uma distribuiçãoequitativa de poder. De fato, Prestes Motta (1986) notara que uma nova classe socialemergia dessa relação entre a necessidade de um conhecimento técnico próprio e umaimposição tecnológica à sociedade: a tecnoburocracia.

Esta polarização a que Ivan Illich (2010) se refere cria um processo extremo demediação e alienação do trabalho. A mediação, por sua vez, é necessária para reificar o serhumano, tornando o mesmo em nada mais que o papel que exerce no sistema. Tal papel,uma vez institucionalizado, gerava o que Illich chamava de uma ‘profissão incapacitante’(ILLICH, 1977). Tais profissões se demonstram como inúteis aos próprios profissionais,como nota Graeber (2018), mas além disso exercem um papel de contínua mediação darealidade, afastando o indivíduo não só dos vínculos sociais, mas de suas próprias vontadese desejos que são transmutados em necessidades. A mediação, assim, é o processo quepermite o próprio condicionamento do indivíduo enquanto objeto a ser alimentado enutrido de forma a, ele mesmo, ao fim, se perceber como um objeto do sistema social.

Nos seus últimos trabalhos, Illich passara a notar que tal processo moderno advém

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da Igreja e sua moral imposta. Ele define o cristianismo (enquanto instituição moral, nãoenquanto ensinamentos de Jesus Cristo9) como um processo histórico na qual a ética, queera ligada a um povo, a uma perspectiva, pode ser incorporada por qualquer pessoa queatenda “o chamado”, que reconheça Cristo no outro. O oposto disto seria o pecado, queé a negação de uma moral universal. No lugar de uma moral universal, o chamado éticodeveria ser uma decisão individual, uma virtude de fato (ILLICH, 2011).

Assim, Illich acaba por enunciar, em um sentido semelhante a Nietzsche, que acorrupção promovida pelo cristianismo no ocidente foi de tornar normativo o que era umaatribuição autônoma, de transformar em verdade uma virtude. Embora a liberdade deJesus Cristo, enunciada no novo testamento, seja de amar acima das leis, a Igreja operajustamente no sentido inverso. Isso ocorre, historicamente, por meio de uma delegação davirtude à Igreja, transformando o que é bom no que é sua doutrina e, depois, esta torna-sea lei do Estado. Neste sentido, o Estado moderno é uma cópia da Igreja Católica. Pordecorrência de uma interpretação errônea ou cooptada da Parábola do Bom Samaritano, ahospitalidade é a primeira virtude a ser institucionalizada, sendo transferida do indivíduopara a Igreja na antiga Roma (e, então, para o Estado moderno). Criaram-se corporaçõessamaritanas que tornaram a hospitalidade uma questão institucional que se replica atéhoje nas organizações de assistência social (ILLICH, 2011).

Com base na normativização da virtude (por um lado atribuindo o que é correto deantemão, por outro punindo o pecado), a Igreja cria a base do Estado, que é o juramentoperante Deus. Cria-se, assim, uma consciência cidadã, uma subjetividade que teme aDeus (e, depois, às leis). Assume-se que há um cidadão universal, uma espécie humanaque possui necessidades que podem ser supridas por um sistema regrado e funcional. AIgreja cria uma sociedade de seguro que toma a virtude por serviço. Prescritivamente,Illich advogava pela renúncia ao seguro, pela confiança à vontade de Deus como amor aodestino – sem intermediários, sem autoridades enunciativas ou institucionais, amor fatidiria Nietzsche (2004a).

Mais recentemente, a instrumentalização da vida pelas ferramentas, de um lado, epor instituições, de outro, dá lugar a uma ideia de “sistema”: somos partes umbilicalmenteligadas a um sistema de verdades que impossibilita que pensemos a nós mesmos enquantousuários penitentes das instituições ou mesmo em usuários de ferramentas. Ao introjetarmoso próprio sistema de verdades em nós mesmos, passamos a fazer parte das instituições deuma forma crescentemente total: o Estado não é um ente separado mais – tornamo-noscidadãos-polícia, somos usuários e operadores. Mediamos nossa própria vida por meio deum sistema que nos incorpora de forma cada vez mais total, destruíndo a distância entrenós e a ferramenta ou a instituição (ILLICH, 2011).

Assim, com a verdade posta a priori, com o homem se enxergando como consequente9 Illich (1988) definia Jesus Cristo como um anarquista que fora transmutado, pela igreja, num moralista.

Capítulo 9. Estado, Mediação e Imediatismo 118

ao sistema social e com a consolidação de instituições que garantem a transmutação dodesejo em necessidades, o indivíduo se torna mediado por um sistema de representaçãototal – o Estado.

119

10 A Organização Desapercebida

Mas se Deus morreu, pode-se imaginar que todo sistema hierárquico que deleprovinha padece como consequência. Quando o enunciado radical “Deus morreu, agoranasce o Super-homem” é inscrito, nada mais pode se depreender que não a ruína daautoridade (Deus) e, subsequente, a ruína da hierarquia. O super-homem de Nietzsche(2012b) não era senão o homem pleno, o homem que não delegava sua vida ao outro, quenão autorizava sua fala por procuração, que não se estabelecia na humilhação do dia-a-dia,no vazio da vida mediada. Era o homem situacionista, o ideal oposto de Homo miserabilis.

Não à toa, Emma Goldman (2012) chamava Nietzsche de um anarquista honorário,de um aristocrata do espírito humano. O assassinato discursivo de Deus propôs um fim aodiscurso da autoridade. Ruindo junto à autoridade suprema, as autoridades enunciativasdevem cair por decorrência. Nada mais óbvio, então, que questionar a ideia de autoria.

A questão da autoria já fora apontada por teóricos como Foucault (1992). Paraele, o autor nasce da divisibilidade proveniente do pensamento individualizante liberal.É necessário responsabilizar quem profere, é necessário culpabilizar a transgressão dodiscurso. O autor é aquele que é autorizado a enunciar a verdade. Ao citarmos alguém,trazemos a tona uma verdade e incorporamos uma carga de legitimação autorizativa aonome citado. Por um lado, o autor nasce como uma ideia cristã de punição a ideias; poroutro, nasce como legitimador de uma ordem discursiva.

Por consequência da ideia de autoria, as ideias se perdem naquilo que as autorizaou cancela. As ideias e a interpretação tornam-se secundárias a quem as profere, a quemautorizamos. Uma ideia perigosa, quando referida a um autor, torna aquele que a proferiuum alvo do capital e do Estado. Essa reflexão passou a se tornar uma questão comum avários anarquistas: se por um lado há de se ter um cuidado para não abnegar as ideiasfrente à autoridade que as constitui, por outro torna-se necessário estar desapercebidofrente às estruturas opressivas.

Por este motivo, o uso de pseudônimos se tornou algo frequente e, a partir do finaldo século passado, a prática de assinar sob um apelido coletivo se tornou comum, sendo os

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 120

que se destacaram Hakim Bey 1, Luther Blisset2, Wu Ming3, P.M., CrimethInc., Protopia,além de diversos coletivos que assinam como tais.

Hakim Bey invoca uma sabedoria sufi4 que remete a um dos motivos da necessidadeda ruína da autoria. Rend é um termo que descreve alguém que é “esperto o suficiente paratomar vinho sem ser pego”. O contexto do conceito torna tudo ainda mais interessante:trata-se de um substantivo utilizado entre os dervixes para designar a eles mesmos enquantoindivíduos que vivem em um sistema total de regras e, ao mesmo tempo, não se curvam àsmesmas. Trata-se de existir em uma sociedade onde há leis, há regras e há autoridades, masresistindo às mesmas e, ao mesmo tempo, fingindo aceitá-las. O Estado, por certo, é muitomais poderoso que as vontades subversivas de indivíduos. É uma oposição à formação demártires pois estes são, ao final, a própria reificação de si mesmos em prol da revolução(BEY, 1989).

Quando Proudhon exemplifica a mais-valia advinda da sinergia do trabalho coletivo(a multiplicação dos frutos do trabalho pelo fato do mesmo ser feito de forma organizadae coletiva), seu objeto de produção é o Obelisco. O objeto de sua crítica, o “erro decálculo” que possibilita a mais-valia, é o mesmo fenômeno que possibilita, para AdamSmith a riqueza das nações. No célebre exemplo liberal, alfinetes feitos individualmentepor um único trabalhador são produzidos na média de 20 por dia, ao passo que passam aser produzidos aos milhares, por trabalhador, quando se especializa e divide o trabalho.De fato, se por um lado Proudhon é melhor em compreender o fenômeno da produçãoe da exploração do trabalho, Smith demonstra seus argumento de forma muito maisexemplificativa.

Usando o exemplo deste com o argumento daquele, o que Proudhon aponta é quese na hipótese de menor divisão do trabalho a produtividade é 20 alfinetes por dia, o fatoda fábrica com 10 homens produzir 50.000 alfinetes por dia não possibilita a cada um delesreceber os proventos relativos a um décimo do total. Afinal, a incorporação ao trabalhocoletivo só lhes dá o direito, por barganha natural, de receber pouco mais que 20x – e,certamente, menos que 5.000x.1 Originalmente Hakim Bey era um pseudônimo de Peter Lamborn Wilson, mas com o tempo é provável

que várias outras pessoas passaram a escrever sob tal identidade. Um caso particular foi um livroassinado por tal pseudônimo que foi, na verdade, escrito por Luther Blisset para, mais tarde, serutilizado como argumento de que os leitores de Hakim Bey não prestam atenção.

2 Luther Blisset foi um jogador de futebol jamaicano que atuou no clube Watford até os anos 1990,sendo contratado pelo Milan na Itália e adquirindo a fama de ser o pior jogador do clube. Por motivospouco claros, esse nome foi tomado de empréstimo por um coletivo de ativistas italianos na décadade 1990, se mantendo como uma identidade aberta. O grupo se notabilizou por organizar zombariasà mídia e plantar informações falsas. Além disso publicou vários livros, sendo o mais famoso “Q: Ocaçador de Hereges” (BLISSETT, 2002).

3 O coletivo Wu Ming (“anônimo” em mandarim) é inter-relacionado com o Luther Blisset, possuindomembros em comum. Sua obra mais famosa é 54 (MING, 2005).

4 Sufismo é uma corrente mística do islã. Não é uma divisão (tal como os sunitas e os xiitas), mas umconjunto de práticas e místicas que remetem a Maomé e que podem ser praticadas por qualquer pessoa,independente da corrente religiosa.

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 121

Mas se os alfinetes parecem ser melhores para compreender a questão econômica, oobelisco de Proudhon ilustra a questão simbólica do trabalho. Denota a impossibilidadedo trabalho ser individual ao mesmo tempo que transcende a ideia de utilidade objetivado trabalho. Ao contrário dos alfinetes, o obelisco pode ser nada, mas pode representarpara cada qual o que se espera que represente – é o exemplo do trabalho com significadohermético, podendo representar desde a iluminação divina por meio de raios solares àprojeção sexual (BEY, 1997).

Assim, o obelisco é interpretado por Hakim Bey como uma metáfora da experiênciacoletiva (em oposição ao trabalho coletivo) prévio à apropriação do capital e do Estado. Oproblema não é só que se apropria o valor da produção, mas sim que se apropria o própriosignificado. Em oposição a isso, o obelisco deve ser “desapercebido”, deve ser formado poruma organização que vise a própria experiência como finalidade – e não a eficiência comofim e o trabalho como meio. Neste sentido, a única forma de fugir à captura da totalidadepor parte do Estado, de estar alheio às estruturas hierárquicas de poder, é permanecerdesapercebido, de permanecer alheio a captura do significado. Assim, não se submete auma verdade pré-estabelecida.

O obelisco desapercebido é a metáfora para descrever a coletividade rend. É arelação social que objetiva produzir uma experiência, mesmo que proibida, alheia àsestruturas. Mas para isso, deve-se fugir não só de ser apropriado pelo Estado, comotambém ser pautado pela própria existência do mesmo. O rend é o malandro que se situanos espaços vazios da hegemonia, nas suas frestas. Obviamente o faz negando a capturapor parte da totalidade, mas se pautar pela contraposição é, paradoxalmente, legitimar aexistência das estruturas de poder. Senão, vejamos: como seria possível fazer oposição auma relação social senão se compreendendo como parte da mesma relação? O rend e oobelisco são as formas metafóricas de se deslegitimar o Estado pela ocupação dos espaçosde sua inexistência.

A representação de uma ideia age tal qual a representação de uma pessoa: elaextrai dali o seu poder para se transformar em autoridade. Tal qual o jogo do Estadodemocrático exaure a capacidade política, das vontades humanas, dos “representados”.

Mas torna-se evidente que, dado o tempo, aquilo que ocupa as fraturas da estruturade poder, que se mantém alheio ao Estado e ao capital, sofrerá as consequências de nãolegitimar. Ao se negar e se deslegitimar as estruturas hierárquicas de poder, se cria umaoposição no que parece ser, a princípio, uma relação paradoxal. Assim, a questão em abertoé da reaparição do que é desapercebido como oposição ao Estado (BEY, 1997).

Se o obelisco produzido pela totalidade do capital é baseado na exploração dotrabalho (na sua alienação, divisão, especialização), um obelisco produzido em umaorganização libertária só pode ser aquele que foge dessa hierarquia social. O oposto deuma produção na qual poucos exploram muitos não é muitos explorarem poucos, mas sim

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 122

não haver exploração do outro.

Mas fugir da hierarquia social significa reconhecer que há uma hegemonia e, noentanto, não contrapor-se a ela de forma direta. Ao invés de ser contra-hegemônico, há deser anti-hegemônico. Nos termos de Deleuze e Guattari (1995), deve-se buscar as raízesrizomáticas em oposição à estrutura arbórea. Algo como formas móveis de linhas de fluxo,que escapam, que escorrem por entre as fendas como intensidades de devir. Linhas quedesatam das estruturas totalizadoras, fazendo contato com outras raízes, migrando paraoutras direções.

Essas linhas de fuga são o reconhecimento teórico de que toda totalidade é preten-dida e imaginada, jamais total no sentido estrito. O Estado, enquanto pretensa totalidademediada, enquanto estrutura arbórea, é um intento constante de cooptação, de captura,do devir. Mas o détournement sempre age em fuga. Essa fuga possibilita as máquinasde guerra enquanto rejeição insurrecionária, enquanto levante constante que perpassa oterritório e o refaz, impossibilitando o jogo estanque da hegemonia.

As máquinas de guerras funcionam nessas linhas de fuga, emergem da sua capacidadede se converter em linha de abolição, de rejeição, de resistência. “Fuga” neste caso nãosignifica renunciar completamente às ações, mas um “fazer fugir” (os sistemas, os seusdecalques). A máquina de guerra responde ao impulso do devir, por movimentos de escapeem relação ao aparelho de captura. Ao invés de se fechar em uma ordem ou estrutura(árvores, famílias, empresas, cultos), ela se move como forma livre, um bando ou um sujeitonômade, que estão à margem do Estado, à deriva de suas fronteiras, em um processode intensa desterritorialização constante. Como reforçam Deleuze e Guattari (1997) asmáquinas de guerra são exteriores à estrutura do Estado, externos à sua soberania e seuaparelho burocrático. Elas se expressam como multiplicidade pura, como o efêmero ea potência da metamorfose. Comparar sua natureza com a do Estado seria equivalentea comparar o Xadrez com o Go. Naquele temos peças organizadas e codificadas, cadauma com o seu papel introjetado, e um movimento a ela relacionado. O peão é semprepeão, o cavalo é sempre cavalo, o bispo é sempre bispo. O mesmo pode ser dito dos seusmovimentos, mediados por regras estritas: o peão para frente, o cavalo se movendo em L,o bispo em diagonal. No Go, as coisas são diferentes, as peças são grãos, pastilhas, simplesindivíduos. Sua função é anônima ou coletiva. Não têm propriedades intrínsecas, apenassituacionais, que se distribuem pelo tabuleiro, entrando em choque com o adversário,capturando suas peças buscando tomar o maior território. O Xadrez é um jogo de Estado,suas peças “entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções sãoestruturais”. É o jogo da dominação normativa. O Go, por sua vez, é “uma guerra semlinha de combate, sem afrontamento e retaguarda, no limite sem batalha: pura estratégia,enquanto o xadrez é uma semiologia” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.9).

Mas quando sobrepomos os dois jogos é que temos o grande conflito. Ostatus quo,

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 123

o xadrez, a hegemonia, a estrutura arbórea, tenta forçosamente, por coerção, dissuasão ourecompensa, enquadrar as peças do go em seu tabuleiro. Por decorrência de seu projetototalizador, que tenta impor um modelo ao mundo, que dá supremacia à razão e a verdade,as quais entende como precedentes da realidade social. As peças do go não aceitam funções,tal como as do xadrez se acostumam. Escapam nas fendas, naquele ponto cartográficoem que o modelo, o mapa, não dá conta de explicar a complexidade da realidade. Taisfugas eventualmente encontram bloqueios e o conflito se forma assim. Não é possível que oescapismo seja a única estratégia de resistência e, assim, torna-se necessária uma máquinade guerra.

Frente ao seu desaparecimento, escapam e ressurgem em outro ponto não mapeado.Neste momento, solapam as estruturas normativas e, antes que a captura ou a cooptaçãosurjam, desaparecem novamente. A máquina de guerra é a guerrilha insurreicionária e, talcomo os vietnamitas, podem contra uma estrutura muito maior – não porque são maiseficientes, mas justamente porque não se propõe a vencer e sim a sobreviver nas frestas,nas falhas da estrutura arborescente. São dois jogos, um que requer a plena hegemoniaformada em um perfeito corpo com seus órgãos, frente a outro que finda-se em si mesmo eque não requer a hegemonia e nem se pretende assim. Os objetivos são distintos e autoexcludentes.

Assim, a máquina de guerra é a incorporação do efêmero ao político. É o reconheci-mento que somente organizações desapercebidas podem se insurgir contra o Estado. Mas ainsurreição cedo ou tarde é percebida e, assim, destruída. Por isso tais organizações devem,além de desapercebidas, devem buscar seus objetivos no seu próprio horizonte curto deexistência: devem ser imediatistas.

10.1 A Organização para além do Estado: As Organizações Imedi-atistas

Normally, when you challenge the conventional wisdom — thatthe current economic and political system is the only possible

one — the first reaction you are likely to get is a demandfor a detailed architectural blueprint of how an alternative

system would work, down to the nature of its financial instruments,energy supplies, and policies of sewer maintenance. Next, you are

likely to be asked for a detailed program of how this system willbe brought into existence. Historically, this is ridiculous. When

has social change ever happened according to someone’s blueprint?David Graeber

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 124

Mas considerar organizações como parte de um rizoma, de uma máquina de guerra,como estas seriam? Entendo que uma alternativa a um projeto mediador da vida poderecorrer ao pensamento anarco. A primazia do reino econômico e de como socialmentese distribuem os meios de produção já é bastante discutida na tradição marxista, masparece-me que as questões econômicas, quando entendidas como centrais, são tambémbastante limitadoras. Além disso, frente ao marxismo, as ideias anarquistas parecempouco exploradas, em especial no campo dos estudos organizacionais. Isso salta aos olhosquando consideramos a crescente onda de movimentos horizontalizados, auto-intituladosanarquistas ou não. É como se os Estudos Organizacionais continuassem uma tradiçãopouco praticada pelo campo enquanto ignora uma multitude de organizações. Swann eStoborod (2014), em sua pesquisa bibliométrica, demonstram que a produção crítica naárea de estudos organizacionais se volta muito mais à tradição marxista e ao feminismo,enquanto que as ideias anarquistas sucumbem até frente às Queer. Embora tal constataçãoseja só quantitativa, ainda assim é indicativa da pouca representatividade dos estudosanarquistas em EO.

Essa pouca exploração pode explicar porque autores tão difundidos em movimentossociais são tão pouco conhecidos no campo acadêmico — e entendo que alternativaspoliencantadas passa por vários desses, que tão pouco ouvimos falar em nosso casteloacadêmico.

Pode, ainda, parecer que a ausência do pensamento anarquista seja por uma aparenteincomensurabilidade do objeto organização com a ideia de anarquia. É importante clarificaresse aspecto: não só organização não se opõe a anarquia, como pode-se argumentar queorganização só pode ser algo não imposto, alheio à autoridade e, portanto, uma anarquia.Uma organização sem autoridade, onde a dominação não se constitua de forma fixa, nãosó pode existir, como é desejável que assim o seja (WARD, 2011; PARKER et al., 2014).

Como Ward (1973) salienta, um componente importante das ideias anarquistas é ateoria de ordens espontâneas. A ideia básica é que dada qualquer necessidade humana,surge uma organização que tentará supri-la — por experimento, erro e improvisação.Essas características não são o problema ou a fraqueza da organização anarquista, maspropriamente onde reside suas potencialidades.

Ward cita experiências históricas que sob o ponto de vista mainstream, foramfracassadas, como o caso da Comuna de Paris de 1871. Adicionaria outro caso emblemáticoe que acho particularmente inspirador, a Barcelona anti-franquista, que resistiu por cercade três anos, entre 1936 e 1939, às tropas integralistas de Franco, como relatado por Orwell(2013, p.10-11):

Praticamente todo prédio de qualquer tamanho tinha sido tomado pelostrabalhadores e decorado com bandeiras vermelhas ou bandeiras verme-lhas e pretas dos anarquistas [...] Toda loja e café tinha alguma inscrição

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 125

dizendo que tinha sido coletivizada; até mesmo os engraxates foramcoletivizados e suas caixas pintadas de vermelho e preto. Garçonetes evendedores olhavam para você na cara e te tratavam como um igual. For-mas cerimoniais e servis da fala desapareceram. Ninguém falava “Señor”ou “Don” ou mesmo “Usted”; todos se chamavam de “Camarada” e“Tu”, e diziam “Salud!” ao invés de “Buenos días”. [...] Não havia carrosprivados, todos tinham sido tomados para a guerra, e todos trens, táxise a maioria dos outros transportes eram pintados de vermelho e preto.Os cartazes revolucionários estavam por todos os lados, brilhando nasparedes em vermelho e preto que faziam as poucas propagandas restantesparecerem borrões de lama.Nas Ramblas, as artérias centrais da cidade onde multidões de pessoasfluiam [...], os alto-falantes tocavam músicas revolucionárias o dia todoe noite adentro. Mas era o aspecto das multidões que era a coisa maisestranha de todas. Na aparência, era uma cidade em que os ricos tinhampraticamente deixado de existir. Exceto por um pequeno número de mu-lheres e os estrangeiros, não havia pessoas “bem-vestidas”. Praticamentetodo mundo usava roupas ásperas de classe trabalhadora, ou macacõesazuis, ou alguma variante do uniforme da milícia. Tudo isso era estranhoe comovente. Havia muita coisa que eu não entendia, de algumas coisaseu sequer gostava, mas eu reconheci imediatamente um estado de coisasque vale a pena lutar.

Alguém argumentaria que tanto a Comuna de Paris quanto a Barcelona anti-franquista foram provisórias, efêmeras, temporárias — ambas foram suprimidas pelopoder armado, ambas sucumbiram perante a cruzada pela razão. De fato, a hegemonia nãopermite que tais enclaves perdurem. Mas por outro lado, é realmente questionável se mesmobem sucedidas frente ao poder bélico, tais experiências permaneceriam libertadoras, se nãosurgiria uma nova dominação, um novo sistema de classes, castas ou estamentos. É precisoaqui retomar e problematizar a discussão dos princípios das organizações anarquistas deWard (2011). O primeiro deles: ser temporário.

A temporariedade diz respeito a um outro princípio que o autor nomeia: a orga-nização deve ser voluntária. Assim, o temporário não é, ao contrário do que ele parececrer, um princípio em si, mas sim uma consequência do princípio norteador central, queé o indivíduo querer fazer parte desta organização. No momento em que a organizaçãoperde o sentido, ela se dissolve — ao contrário de lutar por perdurar a despeito da vontadedos indivíduos que fazem parte da mesma. No momento em que a vontade de poder nãoencontra mais possibilidades, no momento em que o devir sucumbe frente a primazia dafuncionalidade da organização, esta deve cessar de existir. Sujeita-se, assim, a organizaçãoao indivíduo em sua relacionalidade, e, por paradoxal que pareça ser, a estrutura ao devir.A temporariedade da organização não pode, assim, ser visto como um princípio em si, masuma consequência do querer individual. Dessa forma, não há a pretensão de ser temporárioou perene a priori, mas simplesmente se reconhece que a organização não é um fim em simesmo, podendo deixar de existir a qualquer momento.

Os outros dois princípios que Ward (2011) estabelece para tais organizações parecemcarecer de sentido ou, até, parecem estar em pura contradição com o voluntarismo. São

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 126

eles: a organização deve ser pequena; e a organização deve ser funcional. O primeiroparece ser um princípio baseado em experiências já vividas, renegando possibilidadesmaiores — em outras palavras, parece ser fruto de uma falta de imaginação. O segundo éabsolutamente contraditório com o voluntarismo. A funcionalidade de uma organizaçãoé justamente o que torna os indivíduos sujeitados à razão (e um tipo especial de razão,a instrumental). Advogar em prol de uma funcionalidade é, em última análise, advogarcontra o voluntarismo como princípio nuclear.

Para mim, a ideia de uma organização voluntarista parece ganhar força com oanarquismo ontológico de Hakim Bey. Este rompe com a ideia de uma mera inspiração paraa busca da normatividade. Para ele, as organizações convivenciais (sendo a sociedade onível mais complexo de organização), alheias à autoridade, que rejeitam o superconsumo ea superprodução e que rompem com a institucionalização existem, existiram e continuarãoa existir. Assim, a normatividade aqui dá lugar a uma mudança de foco do olhar. Nãose trata de dizer que as organizações desprovidas de autoridade devam existir, mas deque existem efetivamente e que, o que nos cabe, é olhar para elas como organizações queefetivamente são (BEY, 2010).

Neste sentido, parece-me claro que, ao explicarmos o mundo, nós acabamos porconstruir ele. No momento em que nos focamos em organizações institucionalizadas,formalizadas, acabamos por gerar um mundo que valoriza estas organizações, que sepreocupa com as problemáticas que lhe são comuns. Produzimos também uma ciênciaque se preocupa em resolver problemas organizacionais formais, reproduzimos a buscapela problemática overorganization que Huxley nos acautelava. Por um instante, sevislumbrarmos toda produção científica e acadêmica que se deu no sentido de resolverproblemas de organizações institucionalizadas, todo esforço humano posto nisso, podemostambém imaginar como seria um mundo onde toda essa preocupação fosse voltada aorganizações que objetivam a plenitude da vida e da experiência.

Aqui, entendo que se trata também de uma responsabilidade do pesquisador: aonos colocarmos frente a um problema, nos comprometemos com o mundo que gerou este,bem como com os resultantes das soluções geradas. Aceitamos que é um problema legítimo,que foi criado por organizações legítimas, frutos de um mundo que queremos tomar parte.Também é verdade que estamos submersos em uma gigantesca rede de significados: nãoraro ‘organização’ é sinônimo de empresa. Quando não, o termo se estende a poucasoutras coisas, como a máquina pública e organizações formais que, em última análise, sãoreduzidas a uma visão de organização racional. Reedy (2014) argumenta que o foco dasteorias organizacionais, provavelmente por estar localizado em business schools, deve sevoltar mais às possibilidades instáveis de movimentos sociais, organizações informais, dadojustamente as inúmeras possibilidades que o campo oferece — em especial em comparaçãocom a já cansada teoria organizacional formal. Além disso, o autor salienta que o conceito

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de organização não deve se restringir ou se delinear, já que ao fazer isso acaba-se porcontribuir com o status quo, com a imutabilidade, com a dominação instituída.

Essa crítica à imutabilidade conceitual encontra amplo respaldo em Nietzsche(2007b) que critica a linguagem como meio para o estancamento da fluidez do poder.O poder na linguagem se dá através da pretensão de verdade e o rigor conceitual atuacomo a dominação por meio da verdade. Ao estabelecer-se um conceito como acabado,como finito, estabelece-se um sistema de verdades. Ainda, como argumenta Nietzsche(2010), a linguagem surge como necessidade humana, e não como meio para verdade. Oestabelecimento da linguagem ligado à verdade é estabelecido por conta de processos dedominação estanques, na crença do ser e sua razão por si, baseados em uma metafísicaessencialista — na crença de que existe a verdade. Assim, Santos (2010) salienta que senão há verdade, não há uma representação da mesma, que seria a linguagem. Além disso,a linguagem se restringe em sua possibilidade de representação pela própria linguagem— só se pode conceituar e reconceituar, ou seja, criar linguagem por meio da própria.Novamente, o paradoxo essencialista se apresenta: mesmo que houvesse uma essência, omito fundador da verdade, como essa essência poderia ser não só conhecida, mas descritapor um sistema de representações que é formado por ele mesmo?

Não se trata aqui de pensar como as organizações podem se formalizar — comopodem criar regras, normativas, procedimentos — ou se mediar cada vez mais — ou comopodem prosperar financeiramente com vistas a perenidade. Trata-se de pensar como asorganizações podem existir dando vazão à vontade, como podem ser objetos dessa, comopodem possibilitar um ambiente onde o devir seja possível. Trata-se de se afastar da visãode ser humano com necessidades e atributos implementado em um sistema para reconhecernele um indivíduo com desejos. Assim, a organização não deve ser eterna nem buscar seupróprio crescimento: ela deve ser frágil antes de ser cooptada, ruir para que outras surjam.

Neste sentido, a experiência5 necessita se libertar da mediação, que se dá pelaseparação do trabalho, pelo regramento formal, pela dominação racional. O problema torna-se mais evidente a medida em que se visualiza uma sociedade mediada e institucionalizadaa tal ponto que toda experiência é pasteurizada, como em Huxley (2001), e que aquele quese nega a essa pasteurização é visto como um não evoluído, um selvagem. Nesse sentido,Bey (2012a) evoca o conceito de Wild(er)ness que diz respeito ao duplo sentido agregadode ‘selvagem’ e ‘natureza intocada’. Trata-se daquilo que no pensamento do autor devemosbuscar, a irredutibilidade do desejo, a impossibilidade de troca, a incomensurabilidade davontade. É o rompimento com as instituições e com a mediação. Trata-se do

velho dualismo [que] implodiu-se em uma topologia totalizada pela geo-sofia6 do dinheiro e sua menos-que-unidimensionalidade. O “espelho da

5 Experiência aqui é entendida como a relação entre o mundo e o indivíduo. Trata-se do viver, do provar,do testar, do vivenciar, do se sujeitar a situações fora do controle, fora do previamente conhecido.

6 O conceito de geosofia a que o autor se refere é a do geógrafo J.K. Wright a qual se refere ao estudo de

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produção” tem sido supervalorizado por uma transparência completa, avertigem do terror. [Nesta aspiração do Capital total] a terra, o trabalho,a natureza, o próprio ser, a própria vida, e mesmo a morte podem serreinventadas como a base de toda troca (BEY, 2012a, p.46-47).

No entanto, aqui, o mundo das trocas totais do Capital é visto como uma exceção.Trata-se de uma sociedade específica em um momento histórico específico e que, por maisque tente suprimir todo e qualquer outro tipo de organização social, acaba falhando, oraincorporando ora excluindo elementos para sua sobrevivência. O desejo, incomensurável aoCapital e ao Estado, permanece. As experiências, ainda que crescentemente pasteurizadasmediadas, continuam a existir. Assim, para Bey (2008b, 2010, 2012a, 2014b) e Wilson (2003),as organizações não institucionalizadas, o rompimento com a mediação, a desacreditaçãodas autoridades e a rejeição do consumo não são só ideais, mas são realidades presentes,passadas e futuras.

Exemplos disso, Bey (2008b, 2010) afirma, são as zonas autônomas temporárias, ospotlachs7, as quilting bees8, e mesmo os jantares, os encontros, os piqueniques com amigos,a organização esportiva de conhecidos, e assim por diante. Até mesmo alguns eventos comoBurning Man9 e até algumas raves podem ser consideradas organizações imediatistas.Isso ocorre o tempo todo na nossa sociedade e, no entanto, são menosprezadas comoorganizações menores, irrelevantes ou desinteressantes. Ainda, no passado, organizaçõescomo as de piratas no século XVI (WILSON, 2003), os sufis, e a gigantesca rede no séculoXI chamados hashashins se constituíam em organizações horizontais, auto organizadas(BEY, 2010). No presente, ainda, é notável a quantidade e relevância de organizaçõesdesprovidas de autoridade, principalmente nos movimentos sociais, como no caso daschamadas jornadas de junho10 (BORGES; PAES, 2018), mas não restrito de forma algumaa estes. Ainda, um caso notável e atual é a comunidade de Christiania, na Dinamarca,que há mais de quatro décadas se mantém como alheia ao Estado, às leis, à hierarquia e aqualquer formalização (CASAGRANDE; CAMARA, 2011).

As organizações imediatistas só podem ser compreendidas como partes do rizoma –ou até como rizoma em si, dadas suas características nômades, múltiplas e interconectivas.Deleuze e Guattari (1995) afirmam que as características centrais do rizoma são a conexão

todo conhecimento geográfico de todos os pontos de vista, incluindo as percepções humanas sobre oespaço e elementos referentes ao imaginário. É a incorporação da subjetividade na realidade percebida.

7 O potlatch é uma cerimônia praticada entre tribos índigenas da América do Norte onde se trocampresentes e se pratica o desapego material.

8 A Quilting Bee consiste em grupos de amigos ou vizinhos que se reunem com alguma frequencia paracosturar uma colcha.

9 Burning Man é um evento que dura uma semana e ocorre no estado de Nevada, nos EUA, anualmente.Reunem-se cerca de 50.000 pessoas, formando uma espécie de zona autônoma, alheia às regras ecostumes comuns. O evento é marcadamente lúdico e festivo.

10 Embora popularizado como Jornadas de Junho de 2013, as manifestações iniciaram-se ainda em março.Outros nomes usualmente utilizados para referir-se são: rebelião da tarifa, manifestações do transportepúblico e “não é só pelos 20 centavos”.

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e heterogeneidade, onde “qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outroe deve sê-lo” (p.15); o princípio da multiplicidade, no qual não há uma forma melhor,uma forma a ser objetivada ou planificada e a diferença se torna a própria constituiçãoda identidade; e o princípio da ruptura a-significante: um rizoma pode ser rompido semque isso o destrua, fazendo com que as organizações ali existentes possam desaparecer ereaparecer; e, por último, o princípio de cartografia: um rizoma não pode ser visualizadoem nenhum modelo estrutural pois é alheio a um eixo central, a uma estrutura.

Dessa forma, o mundo é visto aqui como uma grande anarquia, um mundo compostode um gigantesco rizoma o qual tenta ser capturado constantemente pela estruturaarborescente, pelo Estado. Neste cenário, a grande maioria das organizações existentes, queexistiram ou vão existir são de fato horizontais. Daí decorre chamar esta visão de mundode anarquismo ontológico. Não se trata de simplesmente normatizar ou prescreveruma forma de organizar não-hierárquica: trata-se de reconhecer que tal ordem existe, eque por diversos interesses esta ordem é tornada irrelevante, é capturada, cooptada eatentada. A Era Moderna aqui é vista como um período de institucionalização e mediaçãodas organizações que, apesar de tentar superar as organizações horizontais e mediar aexperiência, só consegue fazer até um certo ponto.

Mas se como argumento, a ausência de novas experiências, por conta de um mundodesencantado e racionalizado previamente, impossibilita o devir perpetuando a dominaçãoestabelecida, a questão central torna-se como potencializar as possibilidades de experiência.Para isso, Bey (2014a) aponta como necessidade a busca pelo rompimento damediação.

Uma questão central no anarquismo ontológico não é como formar organizaçõesa partir de um idealismo, mas sim a mudança de enfoque para organizações horizontais,desprovidas de autoridades institucionalizadas, desprovidas de hierarquias. Mas até esteponto, parece-me que tal perspectiva teórica não oferece um diferencial único. Tal diferencialsó pode ser compreendido a partir da primazia dos aspectos psicológicos sobre os aspectoseconômicos. A experiência, aqui, é a categoria central. E, por isso, uma organizaçãonão pode ser medida no seu grau de importância pela sua duração, produção ou quantidadede membros. Poderia, tão somente, ser medida pela experiência que proporciona aos seusparticipantes (a possibilidade de efetuar tal medição é ainda outro problema, provavelmenteinsolúvel).

Embora a visão do anarquismo ontológico compartilhe de alguns diagnósticos darealidade com o marxismo, tais diagnósticos se demonstram secundários aqui. Isso ocorreporque, nas palavras de Bey (2010, p.13) “a psicologia precede a economia em nossateoria de libertação”. A categoria central, para o autor, é a experiência. Não se trata daexperiência de vida vista como uma variável quantitativa, mas a experiência qualitativa.A experiência qualitativa, para Hakim Bey, é o próprio ato libertador - libertador da

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consciência, da psiquê, da cognição e da vida associada. À experiência revolucionária, oautor chama de experiência de pico. Trata-se da experiência que gera tanto significado,incompatível com os sistemas de verdade já apreendidos, que requer que tais sistemassejam efetivamente revistos pelo indivíduo.

Neste sentido, Bey (2014a) se inspira na acepção costumeira dos beduínos árabes devalorização daquilo que a humanidade não toma parte, assim como Lawrence (1938, p.15)descreve: “Os beduínos do deserto, nascidos e crescidos nele, haviam abraçado, com todasas forças da sua alma, esta nudez excessivamente áspera, [...] sentida mas não articulada,de que se encontravam indubitavelmente livres dentro dela”. Trata-se, conforme o autordescreve, de experienciar aquilo que os beduínos consideram como o próprio criador (ou atotalidade plena), mas também significa a troca da segurança material pela liberdade -embora acossados pela fome e pela morte, os beduínos de Lawrence (1938) as aceitavamcomo uma troca justa pela experiência libertadora. Não importam os grandes templos,a fartura, nem a moradia sólida; importa o deserto, a possibilidade nômade infinita, orespeito a própria vontade.

Mas para Bey (2014a), toda experiência é, a priori, mediada. Mesmo que o contatoseja direto, a experiência será mediada por nossos próprios sentidos (audição, tato, olfato,etc). No entanto, isso não significa dizer que todas experiências são mediadas de igualforma, no mesmo grau. Podemos experienciar uma viagem através de fotos, de um filme,ou podemos viajar propriamente. Ao ver fotos, estamos submersos em um ambiente jáexperienciado em primeira mão, recortado, filtrado e nos fornecido. Não só a possibilidadede interpretação é restrita, não só o conhecimento que a foto possibilita é inferior ao daexperiência em primeira mão: é também uma experiência incompleta - não tocamos, nãocheiramos, não convivemos. Ademais, não há possibilidades não previamente conhecidasali: o devir é afastado na mediação.

Aqui os conceitos chave podem ser sintetizados da seguinte forma: a mediação comoforma de opressão por um mundo apático; a experiência como categoria-chave, que podeser mais ou menos mediada como se colocássemos em uma régua onde os dois extremosnunca podem ser alcançados; e o imediatismo, que é, por definição, o oposto da mediação,e se torna a preocupação central no anarquismo ontológico. A libertação, assim, só podeocorrer pelo imediatismo, pela experiência em primeira mão. A mediação, por sua vez,é a representação cognitiva da alienação. Assim, “dizer que a arte está mercantilizada édizer que uma mediação, ou estar-no-meio, ocorreu, e que esta interposição equivale a umaruptura, e que essa ruptura equivale à alienação” (BEY, 2014a).

A tecnologia, para o autor, é vista sob um olhar crítico, tal como em Ivan Illich. Éela que propicia formas mais extremas de mediação, afastando a realidade da experiência.Mas se a tecnologia proporciona a possibilidade das mais extremas mediações, há de sequestionar o que gera a necessidade dessas, para qual finalidade é utilizada continuamente

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 131

e de forma crescente em substituição à experiência imediata. A esta questão, pode-seresponder que tudo aquilo que busca a reprodutibilidade em oposição à experiência imediatatem como finalidade a maximização da produção. Aqui, é o próprio Capital que impulsionaa substituição da experiência imediata pela mediada. Aquela é única e, assim, não pode serproduzida em massa, e a própria reprodução só pode existir como linhas gerais, ao passoque a experiência, quanto mais mediada, mais passível de ser reproduzida. Bey (2014a)concorda fortemente com Illich (2008): a experiência deve se dar no nível mais imediato,mais com o violonista, menos com o disco.

Há uma questão para além do Capital que impele a mediação cada vez mais: trata-seda própria institucionalização, já apontada por Ivan Illich. Neste ponto, a crítica vai alémdo capitalismo. Mesmo a sociedade utópica de Morus (2012) ou os sonhos tecnófilos deAsimov (2004) reproduziriam a mediação em níveis semelhantes. Dessa forma, o problemanão é só a ambição, a avareza e a ganância instituídas e aceitas em formas sociais, masum discurso amplamente reproduzido, o sonho das instituições estáveis, da organizaçãosocial cristalizada, do fim da história. Trata-se do erro de julgar que haveria, em algumlugar, em algum momento do tempo, uma organização social ótima. Trata-se do discursoda linearidade do desenvolvimento; da própria ideia de um desenvolvimento11 .

A alternativa a essa cristalização institucional e à avareza tecnológica que produz amediação extremada, para o autor, passa pela busca de experiências imediatas em coletivossociais. Esses coletivos, organizados horizontalmente, são chamados de organizaçõesimediatistas (BEY, 2014a). Imediatista aqui significa duplamente:

1. Que a organização é intencional, não se dá ao acaso ou por necessidades materiais,não se dá por necessidades externas a ela. Ela intenciona a experiência imediata -mediada minimamente - de seus membros. Para isso, necessita do objetivo centralque Illich (2010) elenca: a convivência. Somente através da convivência plena, docontato físico, da exploração de possibilidades entre os membros se pode romper, emcerto nível, com a mediação. Uma vez que atinja tais objetivos, tem-se o que Bey(2008b) chama de experiência de pico. Tal experiência possibilita uma catarse queleva à revisão de valores, à revisão da aceitação da mediação12.

11 “O conceito de progresso atua como um mecanismo protetor dos terrores do futuro” (HERBERT,2003).

12 “Uma ideia simples seria a de explodir uma torre de transmissão de TV, e, então, creditar a ação emnome da Sociedade Americana de Poesia (quem deveria estar explodindo torres de TV); mas um atopuramente destrutivo como esse não tem o aspecto criativo da tática realmente imediatista. Cadaato puramente destrutivo deveria idealmente ser também um ato de criação. Suponhamos que nóspudéssemos impedir a transmissão da TV em uma vizinhança e, ao mesmo tempo, sugerir um festivalmiraculoso, liberando e transformando o centro comercial local em uma TAZ de uma noite de duração- nossa ação combinaria, por conseguinte, destruição e criação em uma "ação direta"verdadeiramenteImediatista de beleza e terror - Bakuniana, situacionista, real dada pelo menos. A mídia poderiatentar distorcê-la e se apropriar de seu poder, mas mesmo que o fizesse, ela nunca poderia apagar aexperiência de uma vizinhança e de suas pessoas libertas”(BEY, 2008b, p.86)

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 132

2. É imediatista no sentido corriqueiro e senso comum da palavra. Ela não buscanecessariamente a perenidade; busca, sim, que proporcionar a experiência plenaenquanto existe. Como em Vinicius de Moraes, que seja eterno enquanto dure - masnão só o amor.

Para Bey (2008b) os objetivos da organização imediatista são: a convivência quebusca o prazer sinergético dos membros, mas que também é uma estratégia, na medidaem que a convivência produz experiências de pico, a estas rompem com as velhas crençasna mediação; a criação, que é a produção de experiências imediatas, a criatividade postaem prática, o fazer coisas, o trabalho não alienado; a destruição, pois como Bakunin(1980) afirma, a paixão pela destruição é a paixão criativa, e para além, em Bey (2008b,p.74), “não existe criação sem destruição”; a construção de valores: a experiência depico rompe com o conservadorismo cognitivo e possibilita pensar o mundo fora das rédeasda mediação - dessa forma, é possível construir uma nova vida cotidiana.

Para o autor, o objetivo da organização não é externo a ela, mas sim a dispo-sição da vontade dos participantes de forma mais plena – a busca da zona autônomatemporária (TAZ), do pico máximo de experiência liberadora onde todo o horizonte deexperiência, onde todo desejo, pode se dispor. Assim, a estratégia, que é a ligação entrea organização imediatista e seus objetivos, é a otimização de condições para emergênciada zona autônoma. Aqui o autor traz outro conceito, o de ação direta, que diz respeito auma complementariedade a estratégia da organização: tal ação busca criar, por meio detáticas específicas, momentos de coesão da organização imediatista. Assim, tal organizaçãonão busca um objetivo externo a si mesma, mas sim a sua própria emergência, a suaprópria expansão, sua própria criação. E não o busca ao assumir estratégias externas a suaprópria existência, evita a ideia de possuir estratégias que não sejam inseridas na própriaorganização imediatista.

10.2 Experiências ImediatistasComo citado anteriormente, a organização imediatista não necessita ser uma

comunidade que viva todos os dias entre si, como Christiania - embora também possa sê-la.No entanto, isso não significa que um jantar possa se equivaler a uma zona autônoma. Aindependência de fatores externos é central na avaliação das possibilidades de produção ecriação. Assim, Bey (2008b) sugere níveis de organizações imediatistas:

1. O encontro é o nível mais simples, pode ser planejado ou não, pode ser entre duaspessoas ou duzentas;

2. O potlach: a troca de presentes, o banquete, a manifestação do desapego em umareunião de amigos;

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 133

3. A Bee13 imediatista: um grupo de amigos concentrando-se com alguma regulari-dade para colaborar em um projeto específico. Um grupo unido por uma paixãocompartilhada que só é possível de se realizar coletivamente;

4. A TONG ou o clube não-hierárquico imediatista: como na Bee, a partir de certoponto é possível que o grupo de amigos adquira um propósito maior do que umaúnica criação. É uma comunidade que não possui um território. Mas diferente de umclube comum, esta tende-se a autodestruição na medida de sua institucionalização -ela só existe na medida em que a criação é um ato de prazer.

5. A Zona Autônoma Temporária (TAZ)14: É o nível máximo unitário, trata-sede uma comunidade intencional, de um conglomerado, um bando. Pode ser brevecomo alguns dias ou duradouro como décadas, mas o que a define é que ela preencheo horizonte de atenção de todos participantes; ela é propriamente uma sociedadecompleta, embora possa ser breve.

Ressalvo que tais sugestões exemplificadoras nada podem ser além de exemplos,embora o autor por vezes se utilize como uma espécie de taxonomia das organizaçõesimediatistas — o que acaba por imprimir um viés de solução final a um problemaque, por definição, não admite tal. Não se pode pré-definir o que tais organizaçõesseriam, sob pena de deixarem de ser o que se pretendem. Assim, alheio às intenções deHakim Bey, entendo que os “ níveis” de organização acima mencionados só podem serentendidos como exemplificações de organizações que não poderiam ser exemplificadas emsituações específicas (e que não admitem nomes próprios em sua maioria), já que são muitopequenas para serem reconhecidas amplamente ou muito fugazes para serem capturadaspelo observador.

As organizações imediatistas, tais como as TAZs ou os encontros, são vistas por Bey(2014b) como thirtium quid. O termo, advindo da alquimia, refere-se aos elementos de umareação que são externos ao conhecimento, ao experimentado. Em economia e em outrasciências na atualidade, se utiliza o termo ceteris paribus para uma significação semelhante.São todas variáveis que não estão sob possibilidade de mensuração nem de controle. Sãoo ambiente, o externo, o não calculado. Conforme o autor, a sociedade, assim, deve servista como uma série de organizações formais e institucionalizadas que estão imersas emorganizações imediatistas. Estas surgem e desaparecem antes que se possa verificar suaexistência ou medir seus impactos. Como o thirtium quid, elas fogem ao conhecimento doobservador formal. Elas só podem ser vivenciadas, experienciadas.13 Etimologicamente o termo vem das Quilting Bees.14 No original: "Temporary Autonomous Zone". Pelo fato da sigla já ser um conceito bastante conhecido,

opto por não traduzi-lo. O texto que dá origem a este termo é provavelmente o mais lido e comentadode Hakim Bey.

Capítulo 10. A Organização Desapercebida 134

Alguns exemplos dessas experiências são vivenciados cotidianamente; outros, for-maram marcos históricos de liberdade. Exemplos disso foram: a Comuna de Paris, Maiode 1968, Barcelona anti-franquista, os kibutz israelitas, os soviets (que mais tarde foramaparelhados pelo poder estatal soviético e se tornaram ferramentas de dominação), oCordobazo (que embora tenha durado pouco tempo, foi essencial para a queda da ditaduraargentina), as Jornadas de Junho de 2013, as Ocupações dos secundaristas em escolaspúblicas na atualidade, as Ocupações universitárias contra a PEC 241/55 (que não realiza-ram o objetivo de barrar a emenda constitucional, mas formaram uma experiência única noínterim), etc. Todos esses exemplos são frequentemente narrados como fracassos em termosde institucionalização de uma nova ordem: foram ‘revoluções que fracassaram’, tal comoo exército de Brancaleone em Monicelli, Scarpelli e Rustichelli (2007). Mas tal narrativaperde de vista que o objetivo último não é a instauração de uma nova ordem, mas simda vivência da ausência de uma dominação, mesmo que provisória e frágil. Trata-se deum pausa no espaço e tempo libertário. Tais vivências oferecem insumo à imaginação,demonstram que o mundo não é um projeto acabado, que a história não se realizou ecompletou, que ainda há espaço para o inédito, para realização do novo, para o devir. Taisexperiências demonstram que se organizar não é um ato com finalidade única, nem meiosótimos: há novas formas de se organizar, mais libertadoras, menos restritas, nunca únicasou melhores.

Neste rizoma de organizações imediatistas, enquanto umas surgem, outras desapa-recem. Elas nunca são perenes, já que sua constituição enquanto máquina de guerra ascaracteriza como frágeis em contraste com o fortalecimento do indivíduo. Assim, emboratais organizações sejam temporárias, elas são também constantes – talvez eternas. Issoporque as diversas zonas autônomas estão em constante criação e destruição, em um cicloeterno, conectadas entre si, jamais entre si e um centro.

Tais organizações podem ser vistas, assim, como a contraposição a uma dominaçãoracional: se constituem alheias a um projeto estanque prévio constituído na razão, fogemà reprodução na realidade de um sistema de verdades pré-estabelecido, se dão na relacio-nalidade. Não podem ser racionalizadas para então serem realizadas (ao menos não emsua totalidade). Tais organizações possibilitam que aquilo não previamente conhecido seexperiencie, que o possível se torne real, e que os sistemas de verdades já estabelecidossofram rompimentos. Admite uma realidade não prevista na razão, imbuída de conceitos eexperiências passadas. E, assim, tal como em Heráclito (2002), para o qual nunca se cruzaum mesmo rio, nunca se vivencia a mesma organização imediatista. Elas produzem ummundo múltiplo, sujeitado à vontade individual, encantando a realidade antes desencantadapelos efeitos do essencialismo.

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11 Considerações Finais e Novas Possibilida-des

O percurso até aqui foi um grande ensaio constituído enquanto palimpsesto1. Asreflexões teóricas deste trabalho só foram possíveis porque o método possibilita, por umlado, a liberdade e, por outro, o hermetismo que revela na subjetividade. Ao fim possoexclamar que, apesar do cansaço que me assola por um esforço intelectual constante, aproblemática, que me é uma genuína preocupação, jamais teria encontrado os caminhosque aqui percorri senão de forma ensaística. O ensaio permitiu ir além dos pressupostosque possuía, possibilitou à tese se tornar um ato de criação.

A problemática referida aqui foi de como se organizar sem se sujeitar a própriavontade a uma ordem expressa externamente. A resposta a isso passa por um afastamentodas soluções prontas e uma defesa da multiplicidade e da pluralidade. Mas é, acima detudo, uma defesa da vontade humana.

Argumentei, nesta tese, que formas libertárias de se organizar passam por umareavaliação da crença na verdade. Tal crença constitui o essencialismo, entendido aquicomo a doutrina filosófica que pressupõe uma verdade prévia e externa à vida. Ao seatribuir a uma essência o pressuposto da realidade, se retira do indivíduo a vontade e odevir como categorias fundantes da vida social. Esta é racionalizada e acaba por perdero sentido, se desencantando a realidade em prol da verdade. No lugar da vontade doindivíduo exercida no mundo, inverte-se a relação e a suposta essência do mundo é quepassa a exercer seus imperativos sobre o, então, ser.

Isto é expresso em muito do pensamento iluminista, tal como Kant. Em oposição atal, argumentei que o perspectivismo oferece uma alternativa que possibilita o pensamentoe constituição de organizações libertárias. Uma limitação deste trabalho foi a de afirmar operspectivismo somente enquanto epistemologia, não aplicando tal corrente. Neste sentido,delineia-se uma possibilidade de trabalho futuro por meio de um diálogo com a obra deViveiros de Castro (1996). Tal obra tem o potencial de visualizar um encantamento domundo, sob um olhar perspectivista, por meio das sociedades indígenas das Américas.Tal possibilidade futura abre aproximações com autores latinos, fortalecendo enquantoperspectiva local.

Percorri um diagnóstico histórico do desencantamento enquanto um fenômenoocidental que culmina no essencialismo. Este, ao instituir que há uma verdade externa ao1 Palimpsesto diz respeito aos antigos papiros que eram reaproveitados. Apagava-se o conteúdo anterior

e se reescrevia, por cima, a nova informação. No entanto a informação anterior era retida, se mantinhaao observador cauteloso.

Capítulo 11. Considerações Finais e Novas Possibilidades 136

indivíduo, o sujeita por meio de diversas mediações. Estas podem ser normativas (tais comoleis e regras) ou valorativas (como o dinheiro e a própria moral). Ao se estabelecer que averdade é externa e a priori, a sociedade ocidental acaba, também, por criar indivíduosautorizados à falar em nome da verdade. Historicamente, o autorizar se torna a autoridadeenunciativa que, depois, se institucionaliza. Neste ínterim histórico que nos encontramos,tal autoridade alcançou uma legitimidade em que não só se aceita a instituição, suasnormas e autoridades, como também se internaliza o déspota, valorando a vida conformecritérios exteriores ao indivíduo.

Por meio da lógica da verdade essencial, cria-se a mediação autorizativa e asubsequente criação de autoridades. Assim se constitui o cerne da organização dominantemoderna — a organização formal, burocrática. Tal tipo de organização é refutada naprimeira parte desta tese. Sua concepção é baseada no dominar o Outro e na exploraçãodo trabalho. Em contraposição a isso, se buscou a crítica anarquista clássica, em especialem Proudhon e Bakunin.

A obra de Proudhon não é nada estranha aos Estudos Organizacionais, já tendosido trabalhada a exaustão por Prestes Motta (1980). Mas aqui se argumenta que a visãode Proudhon, embora portadora de grandes contribuições, não trouxe possibilidades tãolibertadoras quanto pretendia. A proposta autogestionária do autor se limitava por descon-siderar a multiplicidade humana em favor de uma crença em uma natureza cooperativa,o que limita as possibilidades de suas proposições por decorrência da insuficiência dodiagnóstico.

Negando a crença em uma natureza humana, incorporando a ideia do único deStirner (2004), podemos ir além da conclusão do anarquismo proudhoniano: não há umaforma melhor de se organizar porque não há uma natureza humana. A organização desejada,assim, deve ser o meio frágil, horizontal e instrumental para a vontade de poder. Mas, emoposição, na sociedade contemporânea, a organização formal hierárquica passa a permear asubjetividade. Dessa forma, o Estado e as organizações que se relacionam estruturalmentecom o mesmo deixam de ser entendidos como um mero projeto organizacional e se tornamum decalque, tornam-se um projeto total de sujeição do mundo a uma lógica hierarquizante.

Sob a perspectiva aqui adotada, a vontade de poder é o conceito-chave que substituiqualquer ideia de natureza. Trata-se do processo dos indivíduos de buscarem tornar-semais, expandir-se. É o quanta, é a eterna mutação da busca constante, é a vida enquantodevir. Antecedendo a moral, as regras e as organizações, a vontade de poder é a unidadede análise mais básica, é o ponto mínimo humano, é o que nos une e, ao mesmo tempo,nos põe em choque, em conflito. A verdade, sob tal olhar, é nada mais que uma construçãoderivada dessa vontade — de poder, de verdade. Assim, só podemos estabelecer que averdade é poder e ambas são finalidades vitais, são processos do devir.

Frente a estrutura hierárquica, a que Deleuze e Guattari (1995) chamam de estrutura

Capítulo 11. Considerações Finais e Novas Possibilidades 137

arborescente e que Debord (1997) chama de Espetáculo, há de se contrapor por meioda criação única, cada qual distinta, do devir. É dispor a vontade no mundo – enão deixar que a vontade do mundo se disponha em si. Assim, busca-se um novoencantamento do mundo. Frente ao racional que retira sentido da vida e atribui a verdade,almeja-se o encantar, o lograr os espíritos do mundo, o atribuir à realidade o status deobjeto da vontade.

A proposição que deriva desta tese é a de estudar organizações, em um sentido maisamplo, desapegado do business ou da administração enquanto mero aparato administrativo.Trata-se do imediatismo, na sujeição do mundo à experiência e não a lógica formal: tem sefeito por demais isso sem que os frutos desse esforço coletivo gerem uma vida satisfatória.Longe de se focar em processos normativos, em normas para maximizar a eficiênciaou tornar uma organização mais impessoal, deriva-se daqui a necessidade de pensar oorganizar, de estudá-lo e tratá-lo nas Escolas de Administração. Aliás, sob a presenteproposição, estas poderiam tornar-se mais Escolas do Organizar, em consonância como que propõe Parker (2018). Ele argumenta, em um tom provocativo, que as BusinessSchools devem ser demolidas em proveito de Escolas que estudem e ensinem todos tiposde organizar, melhor quanto mais plurais, dos mais vernáculos aos mais exóticos.

De fato, a teoria aqui delineada se propõe a uma pluralidade. Objetiva, em con-sequência última, um poliencantamento do mundo: um reencantar não como respostaao desencantamento ou como retorno ao primitivo, mas como formas múltiplas e diversasde organizar e fazer a paixão criadora atuar sobre o mundo.

A organização imediatista é a contribuição conceitual central aqui. Trata-seda organização efêmera, que é frágil propositalmente: rompe-se facilmente, desaparece,ressurge, num ciclo perpétuo. É o jantar, é o encontro, é a Zona Autônoma Temporária.No lugar da valoração total, da mediação, seja por meio de regras ou do dinheiro, parte-seda dádiva, do presente, do expandir-se não pela dominação, mas pela criação subjetiva.Trata-se da organização que visa gerar experiências, não sobrevivência. Frente ao Homomiserabilis que Illich (1996) denuncia, se possibilita o homem situacionista, o indivíduocriador.

Neste sentido, contribuo também ao trazer Ivan Illich para os Estudos Organizacio-nais. Embora Seifert e Vizeu (2015b; 2015a) tragam o autor para o campo, o foco de seusartigos é ligeiramente distinto, problematizando a questão da ideologia do crescimento. Éa incorporação de Illich como potência argumentativa para delinear a ideia da organizaçãomoderna enquanto objeto de ambição constante em oposição a possibilidades conviviais.No entanto, nesta tese, Illich foi incorporado para diagnosticar a institucionalização comoforma de destituição da autonomia, das técnicas manipulativas como formas de mediara vida e da constituição do corpo humano contemporâneo como desprovido de desejos erestrito a um objeto sistêmico que possui necessidades.

Capítulo 11. Considerações Finais e Novas Possibilidades 138

Enquanto abertura para possibilidades futuras, delineia-se uma exploração quepode contribuir para melhor constituição de uma teoria anarco-imediatista por meio daexploração do pensamento de Marcel Mauss (2018). A ideia da dádiva pode se demonstrarcomo alternativa à mediação financeira, ao dinheiro e à dívida, como nota Graeber (2012).Tal pensamento pode ser explorado, também, em conjunto com a ideia de organizaçãoliminar de Meira (2014), já que a dádiva pode ser entendida como uma relação econômicaque, na medida que é incorporada (por meio da recuperation) pela representação total, aorganização tende a se estruturar. Neste sentido, a organização imediatista se distingue daliminar por seus membros negarem a possibilidade de cooptação, preferindo a desapariçãoda organização antes de sua incorporação2.

Tentei aqui contribuir para os Estudos Organizacionais ao trazer a discussão anarcopara o campo. Trata-se de uma contribuição no sentido de pensar a organização nãosó como formas de dominar, produzir e racionalizar, mas também de se libertar, criare desejar. Para tal, apropriei o pensamento de Hakim Bey, autor que embora bastantepopular entre movimentos sociais ainda parece pouco difundido no espaço acadêmico daárea.

Uma outra possibilidade de contribuição futura é a do campo da ética. Afinal,a ética é absolutamente relevante a qualquer discussão que busca a libertação, já queeste é um objetivo inerentemente ético. A busca ética aqui não pode ser normativa oumoralizante, mas sim referenciada a partir do reino da vontade e das potências, temasabordados por Spinoza (2001). A ideia de afetos do autor também pode contribuir para adiscussão aqui apresentada.

Ao final, espera-se que a incorporação dos conceitos de organização imediatista, me-diação e de uma epistemologia perspectivista possam oferecer aos Estudos Organizacionaisnovos horizontes de pesquisa, de ensino e, principalmente, de imaginação.

2 Os motivos desse contraste entre desaparecer ou ser cooptado podem, também, ser possibilidadesfuturas.

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