o poeta e a h1stor1a: drummond, 0 observador no … · nas de diario, publicado em 1985 e reline...

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o POETA E A H1STOR1A: DRUMMOND, 0 OBSERVADOR NO ESCR1TOR10 Chove no passado, chove na memoria. o tempo e 0 mais cruel dos escultores e trabalha no barra.' "Por que se escrevem diarios?" - e com essa pergunta que Carlos Drummond de Andrade abre 0 livro 0 observador no escrit6rio: pagi- nas de diario, publicado em 1985 e reline registros em fragmentos do escritor, datados de 1943 a 1977. A forma de diario ja nos traz a sensa<;ao de que 0 escritor via, aos poucos, decompondo a historia em imagens e nao em estorias, isto e, a constru<;ao de uma totalidade a partir do imbricamento de partes que se fundem e se completam, fragmentos que nao neeessariamente consti- tuem narrativas, segundo 0 autar "fazendo lembrar coisas literarias e politicas daquele Brasil sacudido par ventos contrarios."(l985, p.08) a valor biografico (BAKHTIN, 1997), presente nas biografias, autobiografias, diarios, constitui 0 principio organizador do vivido e pode dar forma it consciencia, it visao, ao discurso que se tern sobre a propria vida. Em outras palavras, ainda segundo Bakhtin, "os valores biograficos podem determinar os atos praticos e suas finalidades; san as formas e os valores de uma estetica da vida". (1997, p.166) Dentro do genero memorialistico hibrido, 0 livro constitui urn misto de diario - com anota<;6es do dia a dia sem a ambi<;ao de estabe- lecer e prop or urn padrao. Assim, registra visitas it familia Portinari, morte de Mario de Andrade, visitas e conversas com Manuel Bandeira, Vinicius de Morais e outros; observa<;6es lirieas acerca de uma tarde 4.e chuva fina; passeio por Ipanema com 0 caehorrinho Puck e as im- press6es sobre predios, sacadase ruas; observa<;6es sobre 0 cotidiano e aprodu<;ao litera ria, desde 0 bizarro telefonema de uma professora de Letras questionando se avaria<;ao do tom de cor, do papel branco, do livro As impurezas do branco foi proposital (e a resposta daeditora:

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Page 1: o POETA E A H1STOR1A: DRUMMOND, 0 OBSERVADOR NO … · nas de diario, publicado em 1985 e reline registros em fragmentos do escritor, datados de 1943 a 1977. A forma de diario ja

o POETA E A H1STOR1A: DRUMMOND, 0OBSERVADOR NO ESCR1TOR10

Chove no passado,

chove na memoria.

o tempo e 0 mais cruel

dos escultores

e trabalha no barra.'

"Por que se escrevem diarios?" - e com essa pergunta que CarlosDrummond de Andrade abre 0 livro 0 observador no escrit6rio: pagi-nas de diario, publicado em 1985 e reline registros em fragmentos doescritor, datados de 1943 a 1977.

A forma de diario ja nos traz a sensa<;ao de que 0 escritor via,aos poucos, decompondo a historia em imagens e nao em estorias, istoe, a constru<;ao de uma totalidade a partir do imbricamento de partes quese fundem e se completam, fragmentos que nao neeessariamente consti-tuem narrativas, segundo 0 autar "fazendo lembrar coisas literarias epoliticas daquele Brasil sacudido par ventos contrarios."(l985, p.08)

a valor biografico (BAKHTIN, 1997), presente nas biografias,autobiografias, diarios, constitui 0 principio organizador do vivido epode dar forma it consciencia, it visao, ao discurso que se tern sobre apropria vida. Em outras palavras, ainda segundo Bakhtin, "os valoresbiograficos podem determinar os atos praticos e suas finalidades; sanas formas e os valores de uma estetica da vida". (1997, p.166)

Dentro do genero memorialistico hibrido, 0 livro constitui urnmisto de diario - com anota<;6es do dia a dia sem a ambi<;ao de estabe-lecer e prop or urn padrao. Assim, registra visitas it familia Portinari,morte de Mario de Andrade, visitas e conversas com Manuel Bandeira,Vinicius de Morais e outros; observa<;6es lirieas acerca de uma tarde4.e chuva fina; passeio por Ipanema com 0 caehorrinho Puck e as im-press6es sobre predios, sacadas e ruas; observa<;6es sobre 0 cotidiano ea produ<;ao litera ria, desde 0 bizarro telefonema de uma professora deLetras questionando se avaria<;ao do tom de cor, do papel branco, dolivro As impurezas do branco foi proposital (e a resposta da editora:

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motivos economicos)ate 0 desabafo "Esse diabo do Baudelaire, dizendoque a imaginac;ao consiste em trabalhar todo dia. E onde fica a minhapreguic;a de intelectual, que se imagina produtora de grandes obrasquando a inspirac;ao for servida?"(l985, p.64); e memoria, nos registrosde fatos e acontecimentos externos como a entrevista com Luis CarlosPrestes, a fundac;ao da Associac;ao Brasileira de Escritores (ABDE), apolitica getulista e a antigetulista.

o conjunto resulta na construc;ao da historia montada em peque-nas pec;as, cuidadosamente escolhidas, a partir da forma singular dodi,l.rio de quem se autodenomina "observador no escritorio". 0 lugar deonde fala - 0 escritorio - configura 0 predominio da observac;ao nolugar do senso pratico da experiencia vivida. 0 texto, no entanto, de-senvolve-se na tensao, do poeta, para compreender a teia complexaentre tradic;ao e modernidade, ac;ao politica coletiva e interesses indivi-duais, na efervescencia politico-cultural, especial mente do Estado Novo.Expoe, pois, a tensao entre a ac;ao politica militante e a atividade depensador consciente, critico e escritor que precisa justificar-se apenaspela sua obra.

conjunto de imagens que desconstroem a linearidade e univocidade nainterpretac;ao da historia e da cultura. A principio, aspectos gerais mos-tram nuances do pensamento politico que marcou 0 Estado Novo.

Medita\;ao entre quatro paredes: Sou urn animal politico ou apenasgostaria de ser? Esses anos alimentando 0 que julgava ideiaspoliticas socialistas e eis que se abre 0 ensejo para defende-Ias.Estou preparado? Posso entrar na militfillcia sem me engajar numpartido? Minha suspeita e que 0 partido, como forma obrigat6riade engqjamento, anula a liberdade de movimentos, a faculdadeque tern 0 espirito de guiar-se por si mesmo e estabelecer ressalvasa orienta\;ao partidaria.( ...) Resta 0 problema da a\;ao politica em

bases individualistas, como pretende a minha natureza. Ha uma con-J,radic;ao insoluvel entre minhas ideias, e talvez sejam apenas uto i-as consoladoras rninha ina tidao' p;~~iodo se"i-p'articu-l;~-~;;nsivel,-~roveitode"'~~~-g'e;ai:i-;;;p~l,----~. . .........•~~-,...".---_._. -,•....•._.--.". •...-""''''''''---as vezes dura, senao liiipleQOsa. Nao quero ser urn energurneno, urn;ctario, urn passi~~al o~ umfrio dornesticado, conduzido por paJa-vras de ordem.( ...) Se a inexorabilidade, a rnalicia, a crueza, 0 opor-tunisrno da a\;ao politica me desagradam, e eU,no fundo, quero serurn intelectual politico sern experirnentar as impurezas da a\;ao po-litica? (ANDRADE, 1985, p.3 1)

A Republica decepcionara pelas contradic;oes devidas aos gruposheterogeneos que a compunham; foram tantos os conflitos internosque a sua derrocada implicara em desmoralizac;ao das instituic;oes cha-madas "liberais", vistas como sinonimo do Estado dividido e desarticu-

J lado. A partir dos anos 30, as ira- um Estado hegemonico, i!!!~gra-~."'-"--"'...... do, monolitico diante do pensamento tido como inovador, capaz detv-v~,\-(- associar moderriX~a io e autoritarismo. As~~ec~s·sidade~de·iri;:-j\..,'~ dernizar as instituic;~~nalismo vigoroso tanto quanta 0

autoritarismo, aliados ao ideal salvacionista de renovar as tradic;oes,constituem as bases do pensamento politico brasileiro, no periodo de1930-1945. (CHACON, V., 1977, pAI)Os principios de nacionalidadepautam-se na unidade politica, pela continuidade administrativa e, paraser coerente a fonte do caudilhismo positivista, a defesa da supremaciada autoridade central.

o termo ~arao faz parte do discurso dos articuladores doEstado Novo: FrancisCO'""Lampos, Lindolfo Collor, Gustavo Capanema,Agamenon Magalhiies, Lourival Fontes, Salgado Filho, Gois Monteiro.o proprio Getulio Vargas demonstra, por seu empenho, ter a conscien-cia da vinculac;ao desse termo com a modernizac;ao burocratica.Tece-se, por tais meios, a~ comlliexa..Ji tradi ao e modernizac;ao: 0 regi-me do presidente com a reforma das instituic;oes.

Ora, se na Republica era a cidade considerada como um organis-mo cance\oso, sujeita a violenta pratica da ordem, sob a roupagemhigienista, no Estado Novo san as instituip5es 0 objeto da reformamoralizante e autoritaria, em nome do novo e do moderno. 0 maiorexemplo disso resume-se na burocracia de carreira, capaz de par emas!.~. aorg~~izac;ao nacio~al a f~lV~_.9:~.~I1!.'!..£...~~!!1_@la~~2_~fa [email protected]>:~~IE.a!~~.~Q_Lc!t';~.£J:~g.j.tQ..cgJieIlllb1i~C!..Y~lhe:.

Os termos, no entanto, para ambas as praticas asssemelham-se.Para 0 Rio Civiliza-se predominam expressoes como "arejar", "desinfe-tar", urbanizar com 0 brac;o da ordem pelo progresso. A modernizac;aoburocratica valem termos tais como "metodos", "disciplina", "eficien-

A longa citac;ao fez-se necessaria para expor a turbulencia inte-rior do poeta que, associada as suas observac;oes no diario, direciona 0

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cia", "reorganiza<;;ao", " harmonia", "urn ensino sistematico e sua apli-ca<;;ao", convergindo para "0 completo desenvolvimento" e 0 "planopolitico da na<;;ao".Aqui, portanto, 0 Setor Civil moderniza-se.

Nas primeiras paginas de seu diario, Drummond registra 0 "en-saio de novos habitos" nos modernos espa<;;os que anunciavam condi<;;oesideais de trabalho. "Dias de adapta<;;ao a luz intensa, natural, que substituias lampadas acesas durante 0 dia: as divisoes baixas de madeira, em lugarde paredes; aos moveis padronizados (antes obedeciam a fantasia dosdiretores ou ao acaso dos fornecimentos)" (ANDRADE, 1985, p.13)

A fim de alcan<;;ar as metas de moderniza<;;ao, Vargas realiza 0

apelo da ~e de~ as for<;;as- do Tenentismo ao lute ralismo -proposta que estremece as diferentes posturas entre os intelectuais,envolvendo desde uma inteligencia tida como conservadora (AlceuAmoroso Lima, Afonso Arinos, Otavio de Faria, Paulo Prado, AugustoFrederico Schmidt) ate uma intelectualidade considerada mais solidariae simpatica as reformas profundas, de cunho social, como GracilianoRamos, Jose Lins do Rego, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Erico Verissimo,Jose Americo de Almeida, Di Cavalcanti, Candido Portinari, Heitor Villa-Lobos, Ribeiro Couto e 0 proprio Drummond, entre muitos outros.

Algumas revistas concentram a organiza<;;ao dessas icteias, entreelas a Hierarchia(Rio de Janeiro), com Plinio Salgado e San Tiago Dantas;Revista de estudos juridicos e sociais (Rio de Janeiro), com AmericoLacombe, Otavio de Faria, Helio Osana; Politica (Sao Paulol, de Candi-do Mota Filho, Menotti Del Picchia.

Dentre as maio res revistas culturais e ideologos estao:Cultura Poli-tica (Rio de Janeiro), com a colabora<;;ao da elite oficial do regime, atraindoGilberto Freyre e Nelson Werneck Sodre; Brasil Novo (Sao Paulo), subsidi-ada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e Plan alto (SaoPaulo), ambas fundadas por Cassiano Ricardo.(CHACON, 1977, p. 93)

De particular importancia pelo fato de congregar 0 melhor daelite intelectual da epoca, esta 0 jornal carioca A Manha que, atravesdo Suplemento Literario "AutoreseLi'Vros'" participa intensamente domomenta cultural e politico. E interessante observar que a sombra pro-tetora de A Manha em sua sede a rua Evaristo da Veiga, no Rio deJaneiro, nasce a A~<;ao_BJ.a:iileira_de-EsGritQres CABDE), Eundadaem 1942, inicialmente consJitui-se .£.o_mAnibal Machado, Alvaro Lins,~~~deira, ~gXiP-9 JuniQr.:,L~i Carneiro, Drummond, Ca~;'anoRjgr9~~fons9- Minos, Asgojild9_E.erelr!! Mucio Leao, Vinichis~de.. ._-

Morais Ribeiro Couto e Francisco de Assis Barbosa.Se, num primeiromomento;-aJ'mDESillgepor-mspira<;;ao corporativista

indireta do Estado Novo, isto e, a administra<;;ao racionalizada de determina-dos interesses, converte-se depois em urn orgao de resistencia a ele.

Concentrando-se no relato e imagens das lutas e debates para afunda<;;ao da Associa<;;ao Brasileira de Escritores, Drummond revel a li-nhas politicas marcantes do processo politico-cultural brasileiro, comexpressao acentuada durante 0 Estado Novo, isto e, 0 dilema tradi<;;ao emodernidade, especialmente na defesa do tecnocracismo, contamina-do, porem, pelos la<;;osde amizade e favor.

Os conflitos da realidade politica sao muitos e impedem 0 obser-vador de permanecer com suas reflexoes. ~ljr.2...Yi:-~U1a!:tQ.l!Ql'~~~s de amizade e dependencia no estabelecimento de rela<;;oesprofissi---- -"-. -' -'-' .._------------ .-._---~~ja e!!.c.?_taU~~.~ena confian a.e cQ!lsideraso~s pes~~~is~odesvencilhar-se da delicada situa<;;ao em que dizer nao, a urn eci;implica, simultaneamente, ser coerente consigo mesmo?

Campos deseja que eu de forma jornalistica mais adequada ao texto.Eis ai urn pedido que me deixa perturbado. Devo favores a essehomem que me acostumei a admirar por sua inteligencia poderosa,e que e tao ligado a ~migos_meus. Como recusar a tarefa? Esquivo-me delicadamente. (ANDRADE, 1985, p. 38)

A sutileza e a discri<;;ao do escritor nao sobrevivem incolumes apressao externa. A complexidade do momenta politico mexe com assuas mais profundas convic<;;oes, como a de que uma atitude arbitrarianao justifica outra. A sua recusa ao .edido de Francisco Campos de darforma jornalistica a urn texto de Eduardo Gomes gu.e. i.o.centivaria urn"golpebranco, e na a adianta. Os mentor~ dessa icteia sustentam-naem reuniaocOiTIOs intelectuais, marcando com voz alta, sua indigna-<;;ao,distante da sutileza do seu agir costumeiro.

Surpreendo-me saindo do meu silencio natural e berrando, ao ouvirque 0 plano de oposi\;ao a Getu1io e transferir 0 governo ao Presi-dente do Supremo Tribunal. "E 0 golpe!" A agita\;ao da sala e tama-nha que Luis Werneck de Castro propiie 0 encerramento dasessao.(ANDRADE, 1985, p.38)

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A revela~ao feita pelo poeta de que seu ate de rebeldia foi mar-tI\-~ ~ cado pela emo~ao, pela indigna~ao, e nao por urn planejamento deM-~~ a~ao criti~a, :svazia, pa.ra 0 leito:,. a postura do intelectual firme em\(({~, suas conVlc~oes, com atltudes pohtlcamente planejadas, determinadas

~w-- e racionais. No entanto, mostrar a fragilidade, a duvida e a tensa in-11'-'" '" decisao representa urn raro ate de coragem. Isto porque sabemos que 0

passado recebe continuamente novos olhares, iluminados no presente porperfis e interesses diversos. No diario, a sua rela~ao com 0 pass ado naoalimenta a mistifica~ao e, na escolha do que lembrar, destaca-se a recusade espelhar-se uno: expor-se dilacerado, e urn ate intelectual de coragem.

E, ainda, a escolha do que lembrar, exercitada por Drummondnesse diario, traz-nos urn ambiguo e complexo movimento: as fragili-dades do intelectual, suas dores e dilemas, revestem-se dos anacronis-mos da realidade cultural.

Se, por urn lado, 0 conflito do escritor consigo mesmo entre aa~ao politica militante e a critic a independente parece ter alcan~adourn climax, por outro, gradativamente, intensifica-se a percep~ao domovimento das contradi~6es na aparente ordenada realidade exterior.

Primeiro, a tomada de consciencia de que as palavras fervemmuito, e mais, do que as atitudes, isto e, na entao Uniao dos Trabalha-dor~~~l.!ais illJI) - ~za~CLq!!S'~1._0!.i~ osdiscursos inflamam-se e-as a~6es perdem-se no difiCiremaraiihado darealidade politica.

Tudo isso e muito complicado e tira a minha naturalidade, a minhaverdade pessoal, 0 meu compromisso comigo mesmo.(ANDRADE,1985, p. 39)

Alem do continuismo, quer pelo corporativismo, quer pelacorrup~ao, aflora do texto, tambem, 0 movimento, como num jogo,entre 0 Brasil das a~6es reais (como os brasileiros as realizam) e 0 dosdiscursos, liberais ou fascistas. No lugar da competitividade do merca-do, 0 empreguismo, em vez das regras, a burla. Para a grande maioria,a fome e 0 abandono a propria sorte. Como urn quebra-cabe~a onde osfatos apreendidos a superficie organizam-se, na sucessao de manchetesde jomais, comp6em urn jogo egUl!!~ ..a,_atualidade.Lesume.JluUiosP~~ caitiG l;(a.-.f4j~i~:a: a promessa de mudan~as e~trutu-rais que, de verdade, nada mudam.

A UTI continua fervendo .... em palavras. (..)Como antes, dividem-se as opinioes. (Eu mesmo nao estarei dividido, no fundo? Deixeimeu trabalho no Gabinete de Capanema para ter 0 gosto de militarcontra Getlilio e seu continuismo, ec.~g~e sou ~~ara 0

lado que n~~.q.uer.c-O~lo, a fim de colher dividendos politiCOsantigetiilTanos ...Entenda-se).(ANDRADE, 1985, p. 39)

(...)Desapareceu urn vagao de carne da Central. Carregado.(...)Policias do Rio, Estado do Rio, Sao Paulo e Minas, em articula\;ao,apuram 0 caso dos remedios falsificados. Prisoes e apreensoes.(...)Poucas pessoas pagam as quantias devidas, nas Tesourarias, por fal-ta de Fiscaliza\;ao.(...)Mexico resolve abater e incinerar gada brasileiro em quarentena oudevolve-lo ao Brasil.(...)Surge nova fila: ados aposentados e pensionistas do Instituto.(ANDRADE,1985, p.60 e 61)

Em seguida, 0 descredito quanta a possibilidade de exito da a~aoconjunta de intelectuais sobre uma realidade tao dilacerada e confusa; aincerteza quanta aos principios e objetivos em tome dos quais se reunemo grupo de escritores,jomalistas, etc. Especialmente no poeta Drummonda divisao permanece e a vontade politica envolve-se num turbilhao deinseguran~a, adquirindo uma unica forma: a perplexidade a duvida.

Essa cole~ao de manchetes, montada no diario, com data dejulho de 1946, antecipa a reflexao do poeta que transformara a duvidaem constata~ao, acerca da fragilidade da atua~ao politica do intelectu-aI, de oposi~ao, frente ao Estado Novo.

A tortuosidade, 0 emaranhamento das linhas politicas que parecemnegar-se a si mesmas e no entanto obedecem a uma logica fria!

a plenario aprovou a declara\;ao e tudo acabou em paz, com aformula "posi\;ao de combate do escritor" transformada em"posi\;ao de vigilancia", e 0 repudio "i1 ditadura de classe" ado\;adae ampliada para "qualquer forma ou sistema de ditadura". Como edificil aos escritores a escolha da palavra certa!

A ironia da lugar a melancolica certeza: "novos choques, fatal-

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mente, ocorrerao no futuro, sem proveito alguma para a fragil, imper-feita e caricatural democracia brasileira, em que os escritores, artistas ecientistas san parte minima e desprestigiosa."(ANDRADE, 1985, p. 78)

Os text os de Historia registram que os anos do Estado Novo re-presentam uma renova<;:ao na concep<;:ao de cultura no Brasil, a partirda tentativa de se estabelecer uma mentalidade mais democrcitica acer-ca da educa<;:ao como direito de todos. No entanto, a mobilidade apa-rente para a ascensao social realiza-se pelo acaso loterico, isto e, 0

conhecimento e 0 talento san reconhecidos pela prcitica de antigos re-cursos - 0 privilegio da indica<;:ao a uma sinecura na burocracia.

Assim os famosos cargos de confian<;:a contradizem as propostasde disciplina, eficiencia e racionalidade do discurso de moderniza<;:ao.Segundo Silviano Santiago (1989), 0 pr.o.hl.~ajorg~~ as equipesde trabalho nao se formam sob principios da etica profissional, mas sobformas-.Q.ehi~~~q~iza~ao pelo m-an-d-on!s.mo,·iyaidad~, 0 empLegyi.:UlJ,O,-- -.----- ..........•...... _""~ . , .a corrup<;:ao.

--.ACQiiseqiiencia disso esta tambem na precaria consistencia de prin-cipios ideologicos, propicia a vigencia do sectarismo e das concep<;:6esmaniqueistas, mesmo entre aqueles, cujo discurso contradiz tal pratica.

Ora, a essa altura fecha-se 0 circulo do movimento das contradi-<;:6es:se, num mesmo contexto, os intelectuais prop6em reformas emseus discursos e divulgam-nas, em grupos e institui<;:6es compostos edirigidos por la<;:osde amizade, isso significa que nao passam imunesas caracteristicas culturais da realidade em que vivem. Se 0 continuismo,o vazio - deixado pelas promessas de reforma - e 0 privilegio matizamos principios democrciticos de conteudos tradicionais, de valores pesso-ais e oligarquicos, no conjunto social, atingem, por sua vez, os intelec-tuais, tanto em seu discurso, como na sua prcitica.

E proprio e possivel ao intelectual, ate a primeira metade doseculo XX, discutir e exercer uma poderosa critica a temas como aciencia enquanto urn exercicio tecnico afastado de uma reflexao so-bre os seus proprios fins; a grave disjun<;:ao entre mercado e produ<;:aocultural; 0 progresso tecnico que molda, ambiguamente, 0 progressopolitico do intelectual, dividindo-o entre a sobrevivencia (nos jornaisou expondo suas obras no mercado) e a fun<;:aopolitica de renova<;:ao.

Todavia, no caso brasileiro, outras regras nao pod em, ao mes-mo tempo, ser quebradas: as do patronato que levam as benesses doemprego publico, do favor publico e da carreira prestigiosa. Em resu-

mo, as icteias da razao instrumental, cujo eixo sustenta-se na defesada disciplina, eficiencia e organiza<;:ao, mesclam-se as leis das rela-<;:6espessoais e subserviencia. Os intelectuais se defrontam com umacomplexa realidade social e para explica-Ia ha a tenta<;:ao (a que pou-cos resistem) da via simplificada dos reducionismos, da transferenciade model os teoricos, de nacionalismos de todo tipo.

Para ler essa realidade cultural, 0 pensador Francisco de Olivei-ra criou para economia brasileira e sua rela<;:ao com 0 capitalismomundial uma alegoria: 0 ornitorrinco. Diz 0 autor: "0 que e 0

ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca for<;:ade trabalho e popu-la<;:aono campo, dunque nenhum residuo pre-capitalista; ao contra-rio, forte agrobusiness. Urn setor industrial da Segunda Revolu<;:aoIndustrial completo, avan<;:ando, tatibate, pela Terceira Revolu<;:ao, amolecular-digital ou informcitica." (OLIVEIRA, 2003, p.133)

Estimulado pelo terreno cultural a sua volta, Drummond tam-bem cria uma alegoria para poeticamente dizer, com sua voz solita-ria, mas que tern ressonancia, as contradi<;:6es, anacronismos, dispa-rates que envolvem 0 papel do intelectual no dicilogo com a Historiae frente a complexidade do presente. Registra, no seu diario, os mo.- tLvimentos "desencontrados", "subitos" de urn "~Q roxo claro".Apoesia, segundo 0 autor, com sua delicadeza e fragilidade aparentescabe a tarefa de "desmontar", "diluir", "interpretar" 0 conjuntoesdruxulo que toma conta, de forma absurda e violenta (apesar dobreve sorriso que 0 humaniza) de nosso cotidiano.

\ v-<- Urn leopardo v~i de roxo claro pela rua. E urn navia, urna estatua,"\ c...4<-' v-' "'- urn cora<;ao perverso, urn espectro, urn sorriso breve, saa muitas"~"" d,- • caisas desencontradas e subitas, que cabe a poesialrU:L!1!retar es-

~'" ~ ~ nwtawilluir.G.,.,,)'" t..•••~ (Vr.., (DRUMMOND, 1985, p.47)

J. '. <,k. c4. d' , . • t' t' t(/J"V.. .w- ""- Ao intelectual, portador do lSCUrsOteoDco, nao 0 poe a, m erpre eL.c-\'" de uma cultura onde fic<;:aoe realidade separam-se por fronteiras tenues a

tarefa e quase irrealizavel. Numa cultura sem memoria, 0 intelectual preci-sa exercer a reflexao critica, sob os riscos dos rotulos que the imp6emconforme a ocasiao, esbarrando nos dogmas e a deslizar pelas teorias damoda, sem deixar de ouvir as vozes que the atingem de todos os lados.

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caso unico, e urn carro 0 transporta, e que fazes tu, pequeno-burgu-es resignado, surdo as vozes da cidade, a voz das elei<;oes de dezem-bro, a todas as vozes senao a que desejaria sair de ti, e nao sai, e seestrangula e muda permanecena impenetravel recorda<;ao?(DRUMMOND, 1985, p.48)

o carMer particularizador das lembran~as do individuo integra-seao imaginario social, ganhando 0 teor de linguagem geral de uma soci-edade em busca de seu proprio rosto. Esse movimento desenvolve-se natensao entre as press6es extemas que pretendem dirigir 0 intelectualCarlos Drummond de Andrade a uma posi(,:ao de combate e enfrentamentoclaros, de urn lade, e, de outro, a sua op~ao pela Literatura.

Mal compreendido por sua escolha, nos momentos deefervescencia cultural e politica, amontoam-se-Ihe adjetivos como ta-citumo, sombrio, discreto e ate louco, vindos tantos das rela~6es pesso-ais, quanta dos interpretes das teorias da moda nos circulosespecializados. Desabafa em 1944, "por obra e gra~a de alguns profes-sores, os alunos de Literatura, todos, me conhecem como louco"(1985,p.17). Anos depois, em 1974, revela-se aturdido diante da singular lei-tura de seus textos, feita pelos estruturalistas: "0 poeminha, que meparecia simples, tomou-se sombriamente complicado, e me achei urnmonstro de trevas e confusao"(l985, p.174)

Mas, se voltarmos a pergunta, feita pelo poeta, no inicio do livro:"Por que se escrevem diarios?" De imediato, poderemos pensar na ne-cessidade de compor um a1J!.Q-retrato com ~~_T!E_~q~iYbrio'!l}trg_Qbser~y~c;.6es sociais e intros ec~ao.

~ N-o-ffit"aIifO,"'I"preciSQ;iao esquecer que 0 ate de lembrar confereao presente uma maneira propria de escolher os fragmentos do passadoque deseja resguardar ou iluminar. Na escolha de Drummond perpassaurn fio critico que liga 0 passado ao presente, ao nosso presente. Istoporque 0 auto-revelar-se do poeta, pela memo' ,..p.ermi.tr-nos 0 acesso

...---- - . - -~ ...~--,'#'as estruturas fundamentais do p.!-n.1'iW.£:.Q!Q..P.oJitiS:,!L~mnossa historia<;QrtirFjT:asiila.ids-do 'c<6iiflnl'tismo, os principios do favor,-a inconsls-tencia ideologica, a tensao do intelectual para posicionar-se critica-mente, para falar com 0 poder.

Apesar das fragilidades da democracia, intelectuais no Brasil, dosanos 90, nao apenas falaram com 0 poder, mas tomaram-se, eles pro-prios, a voz do poder nos ministerios, presidencia da republica e cargosafins. No entanto, foram engolidos pelo "leopardo roxo claro" e 0 dis-curso de renova~ao resultou em prMicas conservadoras, centradas namanuten~ao de privilegios, na indiferen~a aos anseios da maioria ecom uma autoridade social que nao promoveu 0 debate.

o passado nao est a guardado a espera de ser descoberto ou de serreconhecido "como de fate foi". Ao contrario, 0 passado esta sempre a

A experiencia privada, do poeta, de interprete do espetaculo fan-tastico que 0 cotidiano, bizarramente, encena amplia-se e confunde-secom a experiencia simultanea de outros - intelectuais como ele, entre-gues a tarefa de decifrar os desconcertantes movimentos do "leopardoroxo claro" (correndo 0 risco de tambem transformar-se em urn) queesta nas ruas e poucos 0 veem com nitidez. Dessa maneira, realiza-seno diario um duplo processo: 0 movimento simultaneo de conheci-mento dos dilemas da realidade cultural e 0 autoconhecimento do pa-pel a desempenhar como intelectual.

Assim, dos fragmentos do diario, 0 autor apresenta uma historiaque e sua e e ados outros sem perder 0 lirismo e 0 tom intimista, entreconfissao e sussurro, como quem revel a urn segredo ha muito guarda-do. Quando em 14 de dezembro de 1968, escreve ainda paginas dediario "como tanta gente", condensa valores culturais na miniatura deuma lembran~a, trazendo a tona a significa~ao, ate entao latente, deuma heran~a na prMica politico-social brasileira: 0 arbitrio e 0

personalismo a extrema; 0 continuismo que reune, de forma esdruxula,antigo e modemo, tradi~ao e renova~ao.

Minhas antigas lembran<;as politicas, remontando a infanciagiram em tome do quatrienio presidencial do Marechal Herrr:es, emque a estado de sitio suspendeu as liberdades do cidadao, govern a-dores de Estado foram depostos, jomalistas da Oposi<;ao presos, 0

navio Sat,8ite despejando corpos no mar, a Baia bombardeada. Quase60 anos Depois, 0 governo de outro marechal ( e na minha velhice)golpeia a Constitui<;ao que ele mesmo mandou fazer e sup rime, porurn "ato institucional" todos os direitos e garantias individuais esociais. Recome<;am as prisoes, a suspensao de jornais, a censura aimprensa.;\$sisto com tristezaiLrep~t.i\:a.Q.J:!p_f~nomeno politico cro-~o. da vi~a pUbli~br~~i.:~_ dewis ~!:.Jtos a~eru illJe a vig-~.9119..q!,~~~ ..!}.orl!L'!~<-~.ti.cas..,e.j.1JXigl~il~emanifesta-~am~~.eE!illlcira,~en~lll..crises r~s e nun~riiila-O¥ConlO)i~DRUMMOND, 1985, p.164) -

Page 7: o POETA E A H1STOR1A: DRUMMOND, 0 OBSERVADOR NO … · nas de diario, publicado em 1985 e reline registros em fragmentos do escritor, datados de 1943 a 1977. A forma de diario ja

constituir uma rela<;ao com 0 presente, atraves do olhar que este lhedirige. Mas, 0 medo do presente pode conduzir a mistifica<;ao do passa-do, no sentido de dar uma explicac;;ao de modo a tirar a gravidade deum fato que, visto de outro modo, seria evidente. Resgatar a experien-cia historica essencial de nossa rela<;ao com 0 passado e urn ato politicoque 0 intelectual pode, no tempo atual, realizar.

Nessa perspectiva, escrever diarios e/ou ler diarios parece-nos urnrecuo estrategico, no tempo e no espa<;o, para iluminar, no presente,nossas reflexoes de observadores da historia que julgamos construir.

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