o pensamento sobre a favela em são paulo: uma história concisa

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EMARQUITETURA E URBANISMO

    REA DE CONCENTRAO: HBITAT

    So Paulo2007

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    Dissertao de Mestrado apresentadaao Curso de Ps Graduao da Faculdade de Arquitetura

    e Urbanismo da Universidade de So Paulo.

    Professor OrientadorDr. Paulo Cesar Xavier Pereira

    So Paulo, janeiro de 2007

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    AgradecimentosAo Professor Paulo Cesar, pela ateno, apoio e orientao.

    O seu estmulo e dedicao me impulsionaram nosmomentos mais difceis. As suas observaes e indicaes de

    leitura, ampliaram o meu horizonte intelectual.

    Aos professores Nabil Bonduki e Suzana Pasternak Taschner,pelas dicas e contribuies no exame de qualificao e

    tambm por me servirem de exemplo, nas suas respectivasatuaes na vida acadmica, poltica e profissional.

    professora Ermnia Maricato, que me acompanhou emuma primeira empreitada de pesquisas e estudos.

    Ao professores Edmilson, Cludio Arantes,Ana Maria e Mnica, amigos da Csper Lbero, que me

    incentivaram a retornar a esta tarefa.

    Ao amigo Milton Costa, pelo projeto grficoe edio deste trabalho.

    Aos funcionrios das bibliotecas em que estivepesquisando nestes anos, pela ateno.

    minha me, Palmira, por se preocupar tanto por mim.

    minha esposa Cilene, pelo companheirismo,pelo carinho, amor, pacincia e compreenso.

    Aos meus filhos, Francisco e Maria Lusa,por tudo aquilo que me trouxeram de felicidade

    desde que vieram ao mundo.

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    ResumoO PENSAMENTO SOBRE A FAVELA EM SO PAULO:UMA HISTRIA CONCISA DAS FAVELAS PAULISTANAS.

    ESTA DISSERTAO ABORDA A PRODUO intelectual sobre o fenmeno favela, em es-pecial aqueles autores que estudaram a manifestao do fenmeno na cidade de SoPaulo. Analisa tambm os conceitos elaborados sobre a favela, destacando os limites e asinadequaes destes conceitos face s mudanas que ocorreram nestes aglomerados aolongo do tempo.

    Neste sentido, elaboramos um panorama histrico ressaltando neste a evoluo dasfavelas paulistanas, a partir das descries, dos dados apresentados nos estudos em quepesquisamos. Neste aspecto, estabelecemos um recorte cronolgico que vai da dcadade 1950 at o ano de 2006.

    A dissertao examina tambm as representaes e imagens construdas sobre o fen-meno favela e as teorias elaboradas para explica-las.

    AbstractTHE IDEA ABOUT THE SLUMS IN SO PAULO:A CONCISE STORY OF SO PAULOS SLUMS.

    THIS PAPER APPROACHES INTELLECTUAL PRODUCTION about the slums phenomenon,specially those writers who have studied the expression of the phenomenon in So Pau-lo. It also analyses the drawn concept of slum, pointing the limits and unsuitability ofthis concepts facing the changes in those agglomerates through time.

    Thinking about it, we made out a historical scenery emphasizing the evolution of SoPaulos slums from descriptions of the data presented in the studies in which we made ourresearch. In this aspect, we sat up a chronological area that goes from the decade of 1950 tothe year 2006.

    The paper also examines the rendering and the images created about the slumsphenomenon and the theories developed to explain them.

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    ndiceApresentao 11

    CAPTULO 1 O que Favela? Primeiras consideraes: uma introduo 141.1 Consideraes sobre conceitos e definies de favela 14

    1.2 A questo da ilegalidade fundiria e a ocupao consentida 191.3 As origens do termo favela. As primeiras imagens e representaes

    elaborada para as favelas cariocas. O processo de estigmatizao pelo nome favela 22

    CAPTULO 2 A favela como objeto de estudo da sociologia 322.1 A questo da habitao e a favela 32

    2.1.1 Algumas questes de natureza epistemolgicas 322.1.2 A questo da habitao 34

    2.1.3 A questo da habitao no Brasil So Paulo 37

    2.2 A teoria da marginalidade e a favela 512.2.1 Teoria da marginalidade: algumas consideraes iniciais 51

    2.2.2 Cultura urbanaMarginalidadeCultura da pobreza 532.2.3 Os aspectos econmicos da teoria da marginalidade e a favela 59

    2.3 Alguns mitos sobre a favela 662.3.1 Favela e ideologia 66

    2.3.2 As funes dos mitos elaborados sobre a favela 68

    CAPTULO 3 O pensamento sobre a favela em So Paulo um panorama histrico: 19501970 73

    3.1 Dcada de 1950: Os primeiros estudos sobre o fenmeno 733.1.1 As origens das favelas em So Paulo 73

    3.1.2 As favelas paulistanas como objeto de estudo das Assistentes Sociais 763.1.3 A favela segundo os engenheiros urbanistas 85

    3.2 As favelas paulistanas dcada de 1960 903.2.1 A favela vista por uma favelada 91

    3.2.2 Aes e reaes ao livro de Carolina de Jesus 953.2.3 O estudo da SAGMACS sobre as favelas do Rio de Janeiro 963.2.4 O Movimento Universitrio de Desfavelamento MUD 98

    3.2.5 A realidade sobre o problema favela por Wilson Abujamra 104

    3.3 As favelas paulistanas a produo intelectual na dcada de 1970 1083.3.1 Cadastro de Favelas do Municpio de So Paulo:

    estudo sobre o fenmeno favela no municpio 1103.3.2 Os estudos sobre favela e moradia em So Paulo

    na segunda metade dos anos de 1970 1153.3.3 Favela e espoliao urbana 120

    CAPTULO 4 O pensamento sobre a favela em So Paulo panorama histrico: 19802006 123

    4.1 As favelas paulistanas a produo intelectual na dcada de 1980 1234.1.1 A cidade que virou favela 123

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    4.1.2 A evoluo das favelas paulistanas e aproduo acadmica na dcada de 1980 125

    4.1.3 Desfavelamento toma conta da mdia impressa 130

    4.2 As favelas paulistanas a produo intelectual na dcada de 1990 1334.2.1 Favela e periferia 134

    4.2.2 Estigmas e preconceitos que persistem 137

    4.3 As favelas paulistanas a produo intelectual recente, a partir de 2000 1404.3.1 A favela: fenmeno metropolitano e seus dogmas 140

    4.3.2 O Dogma da pobreza na favela: algumas consideraes 1434.3.3 Polticas de urbanizao mercado imobilirio informal 146

    CAPTULO 5 Consideraes finais 149

    Bibliografia 152

    Anexos 159

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    ApresentaoA FAVELA UM FENMENO URBANO que possui um pouco mais de um sculo de existnciano Brasil e, assim como os cortios e os loteamentos perifricos, se tornou uma das alterna-tivas de moradia para as camadas sociais atingidas pela pobreza urbana.

    So muitos os autores que apontam a origem do fenmeno assim como do prprionome, favela , para a cidade do Rio de Janeiro nos finais do sculo XIX. (ABREU, 1994;LEEDS e LEEDS, 1978; TASCHNER, 1996; VALLADARES E MEDEIROS, 2003; VALLADARES, 2005).

    Neste aspecto, a palavra favela continha um contedo regionalista, mas que se con-solidou de tal forma ao longo do sculo XX que aparentemente se difundiu para todo oBrasil, suplantando inclusive outros termos que designam fenmenos urbanos seme-lhantes como os mocambos de Recife, as malocas de Porto Alegre e as invases e osalagados em Salvador. (SANTOS, 1982:45).

    Por outro lado, autores como Milton Santos afirmam que, malgrado o fenmeno tercaractersticas particulares, de regio para regio ou de pas para pas, ele se apresentacomo um elemento caracterstico da urbanizao dos pases latino-americanos:

    Os nomes tambm variam, mas a realidade sempre a mesma: so as vilas misria de Bueno Aires, asquebradas de Caracas, as barreadas de Lima, os bairros clandestinos de Bogot, as callampas deSantiago, os jacales do Mxico (SANTOS, 1982:45)

    Da mesma forma compreende Morse, conforme citado em estudo de SuzanaTaschner (1979):

    para muitos observadores as villas misrias, barriadas e favelas so as marcas visveis mais espetacu-lares da composio social de uma cidade latino americana. A nomenclatura dada a este tipo de agru-pamento humano varia de um pas para outro.

    Para outros, no entanto, o fenmeno se apresenta com uma abrangncia ainda mai-or. Segundo o economista e urbanista francs Yves Cabannes, da Universidade de Harvarde consultor internacional em polticas pblicas, urbanismo e habitao popular, Favela um mundo inteiro. H caractersticas locais, mas a origem, relacionada pobreza queatinge dois bilhes de pessoas, e a precariedade so comuns. 1

    Neste sentido, fenmenos urbanos, como o que caracteriza a favela no Brasil, teriamainda um mbito maior que o contexto latino americano.

    Mike Davis, em publicao recente, procura demonstrar que este fenmeno urbanotem uma escala global. Com base em um relatrio publicado em 2003 pelo Programa deAssentamentos Humanos das Naes Unidas (UNHabitat), ele afirma que o fenmenose espalhou pelas metrpoles do Terceiro Mundo como um todo. (DAVIS.2006)

    Mas, o que uma favela? O que a caracteriza e a singulariza frente s outras alterna-tivas de moradia popular? Quais so os critrios que a definem?

    Como o fenmeno se apresenta no Brasil? E particularmente, para ns, como ele seapresenta na cidade de So Paulo? Como se conceituou e se conceitua a favela hoje?Como se constituiu um pensamento sobre o fenmeno?

    Segundo Licia do Prado Valladares, H mais de cem anos as favelas do Rio de Janeirose constituem em objeto de reflexo de diversos atores sociais provenientes dos mais vari-ados campos do conhecimento (VALLADARES e MEDEIROS.2000:9.)

    Isto significa que um largo campo de produo intelectual se instituiu, tendo como obje-to de reflexo o fenmeno favela. Neste sentido, elaborou-se muitos conceitos e representa-es sobre o fenmeno ao longo do tempo, tendo como referncia a cidade do Rio de Janei-

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    ro. Mas no ficou restrito somente ali; em So Paulo o pensamento sobre a favela remonta adcada de 1950, com o trabalho pioneiro de Marta Godinho, malgrado o fenmeno ter ganhadomaior expresso a partir da dcada de 1980. De l para c podemos considerar que, tambmaqui a favela ganhou status de objeto de estudo e reflexo, mesmo reconhecendo que ofenmeno da favela tenha uma histria e uma maior expresso na cidade do Rio.

    Segundo Valladares (2000), a partir da dcada de 1960 temos um boom de pesquisassobre o fenmeno:

    Rapidamente a universidade transforma a favela em um dos seus objetos de estudo, geraes de pesqui-sadores se sucedem, alguns se tornam especialistas e a favela se consagra, ganha centralidade e acabapor inspirar uma grande parte da literatura sobre a pobreza urbana no Rio de Janeiro e no Brasil.

    Entretanto, mais recentemente, vrios autores, que sero indicados ao longo destetrabalho, apontam limites e insuficincias no conceito de favela consolidado nos estu-dos sobre o fenmeno no Brasil. Alguns propondo uma re-conceituao da favela frente inadequao dos critrios que definiram esta noo face s transformaes que vemocorrendo nestes espaos; outros buscando a construo de um novo olhar sobre ofenmeno, pois consideram que as representaes construdas para a favela ao longo dotempo so representaes estereotipadas das favelas e dos favelados.

    Valladares, que h muito vem contribuindo para a construo da favela como objetode reflexo, admite que Aquele velho conceito das favelas como espaos de invaso no sesustenta mais. Ela chega a elaborar uma autocrtica da sua prpria produo intelectual,apontando os equvocos de quem ajudou a construir a imagem da favela como se fossepossvel a uma nica imagem traduzir um universo to diverso. 2

    Compartilhamos da idia destes autores de que o termo favela, de fato, se mostrahoje inadequado no sentido de no explicar o fenmeno urbano que ele busca designar,assim tambm o conceito no corresponde mais e talvez nunca tenha correspondido realidade social e espacial que ele tenta compreender. Desta forma, o tema em questose mostra especialmente instigante e merece uma anlise mais aprofundada no que dizrespeito a sua gnese e desenvolvimento histrico.

    Para as favelas cariocas, os trabalhos recentes de Licia do Prado Valladares cami-nham no sentido de estruturar uma histria intelectual da favela no Rio de Janeiro.(VALLADARES. 2000, 2003 E 2005)

    Em relao ao fenmeno em So Paulo, h uma lacuna neste aspecto. Muito se es-creveu sobre as favelas em So Paulo, sua evoluo ao longo do tempo, mas quase nadafoi escrito sobre o pensamento sobre este fenmeno em So Paulo. Isto sobre os con-ceitos, imagens e representaes elaboradas sobre ele.

    Este trabalho procura preencher esta lacuna, buscando reconstituir a histria dareflexo sobre a favela em So Paulo e ao mesmo tempo, elaborar um panorama hist-rico do fenmeno na cidade de So Paulo.

    Para tanto, estruturamos esta dissertao em cinco captulos. Os dois primeiros, comuma abordagem mais geral do fenmeno, no tratam especificamente das favelas paulistanas.

    No primeiro captulo tecemos algumas consideraes sobre, a origem do termo favela,as designaes estabelecidas para este termo, assim como sobre as representaes e ima-gens construdas sobre o fenmeno a partir da. Buscamos analisar os critrios que defi-nem e tentam singularizar a favela em relao a outras alternativas de habitao das cama-das atingidas pela pobreza urbana. Abordamos tambm o processo de estigmatizao quemarca o termo.

    No segundo captulo, buscamos apresentar como a favela passou a ser um proble-ma sociolgico e emergiu com uma nova problemtica nos estudos urbanos. Enfim,

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    fizemos algumas consideraes sobre como a sociologia se aproxima dos estudos urba-nos , sobre a habitao e particularmente da favela.

    No terceiro captulo abordamos a produo intelectual sobre o fenmeno favela emSo Paulo. Buscando traar um panorama histrico ressaltando neste a formao de umcampo de estudos especfico, como tambm, mostrando a evoluo das favelas paulistanasao longo do tempo, como a prpria evoluo do pensamento sobre as favelas.

    Neste sentido, estabelecemos um recorte cronolgico linear, isto , sem a preocupaode marcar pontos de inflexo ou de ruptura no pensamento sobre o fenmeno favela, ouseja, partimos do ano da dcada de 1950, que entendemos como o marco inicial para traaruma histria da reflexo sobre a favela e chegamos at o ano de 2006.

    Desta maneira, os captulos 3 e 4 seguem esta ordem; o captulo 3 compreende asdcadas de 1950, 1960 e 1970, e o captulo 4 segue as dcadas de 1980, 1990 e chegando ato ano de 2006.

    No ltimo captulo deixamos as nossas consideraes finais, onde apontamos para anecessria reconceituao do fenmeno e para a superao das imagens e representa-es construdas sobre ele, que entendemos estigmatizantes e preconceituosas, no per-mitindo, portanto, uma compreenso clara das causas do fenmeno.

    1 Em entrevista publicada no jornal O Estado de S.Paulo do dia 12 de fevereiro de 2006, Caderno Cidades/Metrpole, pg. C5.

    2 Em entrevista publicada no jornal O Estado de S.Paulo do dia 6 de novembro de 2005, Caderno Alis (suplemento dominical), pg. J4.

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    CAPTULO 1

    O que favela? Primeiras consideraes: uma introduoO PONTO DE PARTIDA O PRESSUPOSTO de que as definies e conceitos sobre oque favela, estabelecidos ao longo do tempo no Brasil, se apresentam hoje inade-quados para a compreenso do fenmeno que eles tentam designar.

    Deste modo, como avanar o conhecimento sobre o que a favela sem cair naarmadilha de reproduzir conceitos que compreendemos serem inadequados, in-suficientes e pouco esclarecedores? Como dar sentido e compreenso a este fen-meno urbano que se mostra to presente nas cidades brasileiras, principalmentenas maiores.

    Comeamos por explicar, neste tpico, porque consideramos alguns conceitosconstrudos e ainda vigentes sobre a favela, inadequados; procurando demonstrar aslacunas, ambigidades e insuficincias destes conceitos. Para isso, a seleo de algunsconceitos elaborados sobre as favelas em geral e outros elaborados para as favelaspaulistanas, a partir da qual efetuamos um breve exame.

    1.1 Consideraes sobre conceitos e definies de favela.

    Buscamos primeiro algumas definies em dicionrios para o verbete favela. Encontra-mos uma definio assim descrita para a favela: um conjunto de habitaes populares queutilizam materiais improvisados em sua construo tosca, e onde residem pessoas de baixarenda 1. Em um outro dicionrio, encontramos uma definio muito prxima desta, queinclua outros elementos caractersticos: Conjunto de habitaes populares toscamenteconstrudas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos higinicos 2.

    Essas definies encontradas em dicionrio podem ser consideradas generalizantese no conseguem particularizar o fenmeno, mesmo porque, na sua generalizao, noconseguem capturar as transformaes que nele ocorrem. Ademais, muitas habitaesprecrias de So Paulo ou de qualquer outra grande cidade brasileira poderiam ser de-finidas desta forma.

    Por outro lado, h um certo tempo que as construes na maioria das favelas conso-lidadas nas cidades de So Paulo ou do Rio de Janeiro perderam este carter tosco; le-vando-se em conta que o parmetro estabelecido para se definir este juzo deva estaralicerado na prpria definio que diz sobre a utilizao de materiais improvisados naconstruo. E muito provavelmente tambm o dito material improvisado deve estarrelacionado madeira usada como elemento de vedao ou ainda a folhas de zinco,resultando nos famosos barracos. Ou seja, estas caractersticas utilizadas para definiras favelas, pelo menos as de So Paulo ou as do Rio de Janeiro, j no so suficientes. Somuitos os estudos que apontam para mudanas ocorridas nas moradias das favelas,quanto ao material de construo utilizado nas construes. Segundo a pesquisa deMarta Tanaka (1993):

    Os barracos eram construdos de madeira velha, folha de zinco, lata e papelo. Em 1987, o Cadastro deFavelas mostrou que em So Paulo, mais da metade das moradias em favelas so de alvenaria.

    Suzana Taschner, por sua vez, entre os muitos trabalhos sobre a evoluo das favelaspaulistanas, descreve em um dos mais recentes que:

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    A casa favelada do ano 2000 de alvenaria, com tamanho entre 40 e 60 m2, muitas vezes sobrado, servidapor energia eltrica (mais de 90%), gua potvel (64%) e coleta de lixo (88%) . (TASCHNER,2002 :18)

    Desta forma, nem a carncia de infra-estrutura urbana, no que diz respeito aos que-sitos acima descritos, caracterizaria a favela como espao tosco e desprovido de recursoshiginicos. Isso se considerarmos como tosco, mais uma vez, referncia qualidade dosmateriais de construo.

    No entanto, reconhecemos que a qualidade destas habitaes, no que diz respeito insolao, aerao, enfim, aquilo tudo que constitui os nveis de conforto trmicoambiental, pode ser questionada. Como tambm reconhecemos o carter precrio dashabitaes das favelas, ainda que construdas em alvenaria, que se considera uma cons-truo de qualidade superior. Mas, ainda assim, estes critrios no especificam o fen-meno. A precariedade das construes pode ser encontrada em outros tipos de moradianos loteamentos perifricos e tambm em muitos cortios.

    Por outro lado, a identificao do termo favela com as favelas cariocas e estas, porsua vez, com a ocupao dos morros, restringe demais a compreenso destas quanto heterogeneidade da localizao das favelas no stio.

    Para alm das generalizaes contidas em uma definio de dicionrio, a atualiza-o das acepes estabelecidas em um verbete quase inexistente, no caso do verbetefavela em particular.

    A mesma definio que encontramos nos dicionrios publicados mais recentemen-te, com as mesmas palavras, foi encontrada em outros dicionrios da dcada de 1950,citados no estudo de Marta Godinho. Nestes ltimos cinqenta anos a realidade dasfavelas se alterou, e em algumas favelas as alteraes foram to substanciais que estasdefinies no mais enquadrariam estes espaos. Estas caractersticas que definem otosco, por exemplo, ao nosso ver, so prprias do fenmeno em um determinado mo-mento de formao do fenmeno na cidade de So Paulo:

    Em 1973, apenas 1,3 % das paredes externas das casas eram de alvenaria; em 1993, este percentualatingiu 74%. Em 1973, 74% das casas estavam cobertas com telhado ou laje, e 46% tinham o piso deterra batida; em 1993, 97% das unidades domiciliares apresentavam cobertura de telha ou laje, e apenas4,5% tinham piso de terra batida. (TASCHNER.2002:19)

    Se as noes estabelecidas nos dicionrios so restritas e tornam limitada a sua com-preenso do fenmeno , ou porque no especificam o fenmeno na sua totalidade oupor que no acompanham suas transformaes, tomemos ento outras formulaeselaboradas por alguns estudiosos da favela em So Paulo.

    Um dos estudos pioneiros sobre as favelas paulistanas, foi elaborado em 1955 porMarta Godinho, como trabalho de concluso do curso de Assistente Social, nele temos umconceito de favela que repete as caractersticas encontradas nos dicionrios. Entretanto, aautora apontou para um elemento fundamental que tem singularizado a favela enquantofenmeno urbano, qual seja, a da favela como sendo a ocupao de terrenos alheios:

    Somos de opinio que: Favela um aglomerado de habitaes toscamente construdas, em terrenosalheios , e desprovidas de recursos higinicos, onde vivem pessoas (humanas) na mais completa desinte-grao psico-social, quase que completamente marginais vida humano-social, apresentando os maissrios problemas de desajustes (GODINHO.1955)

    No podemos deixar de destacar, desta definio, a maneira como j se revelavaneste perodo, , uma qualificao dos moradores que vai contribuir para um forte pre-

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    conceito em relao aos moradores de favela, acompanhado de um processo deestigmatizao que predomina at hoje.

    Deixemos de lado a questo do preconceito e do estigma dos moradores, que serobjeto de um outro tpico, e ressaltemos o elemento fundamental do fenmeno urbanopresente na da definio elaborada por Marta Godinho; que trata exatamente da ocu-pao de terrenos alheios. Este nos parece ser o elemento fundamental no encontradonas acepes extradas dos dicionrios, para a caracterizao e singularizao do fen-meno favela.

    Porm, o conceito de favela elaborado por Marta Godinho neste trabalho, nos pare-ce mais limitado que a definio estabelecida pelo IBGE alguns anos antes, em 1950.Nesta definio do IBGE , segundo Licia do Prado Valladares (2005), havia uma preocu-pao metodolgica do IBGE no sentido de categorizar a favela de forma mais objetiva;e contou com a importante contribuio de Alberto Passos Guimares, ento diretor daDiviso Tcnica do Servio de Recenseamento do referido instituto. Segundo a autoracitada, a formulao era a seguinte:

    A primeira caracterstica notvel e inovadora da apresentao do recenseamento de 1950 por AlbertoPassos Guimares a importncia da discusso metodolgica da prpria categoria favela. (...), no casodo Recenseamento Geral torna-se necessria uma definio mais precisa, na medida em que funda-mental distinguir o que favela daquilo que no . (IN. VALLADARES, 2005:68)

    Ela ressalta ainda que, nos critrios estabelecidos por Alberto Guimares, a localiza-o nos morros, no caso das favelas cariocas, j no se constitua mais em um critriosatisfatrio:

    Alberto Passos Guimares indica que a definio de favela tem como ponto de partida os aglomeradosque o consenso pblico classifica como tal, estejam situados nos morros ou em qualquer outraparte(Guimares, 1953:258). Mas esse consenso no suficiente, e a definio precisa supe a explicitaode seus critrios (IN. VALLADARES, 2005:68)

    Neste sentido, sempre segundo Valladares (2005), Alberto Guimares se esmerou paraestabelecer critrios mais precisos para definio das favelas, assim discriminados por ela:

    Desse modo, foram includos na conceituao de favelas os aglomerados humanos que possussem,total ou parcialmente, as seguintes caractersticas:1. Propores mnimas Agrupamentos prediais ou residenciais formados com unidades de nmerogeralmente superior a 50;2. Tipo de habitao Predominncia no agrupamento, de casebres ou barraces de aspecto rstico tpico,construdos principalmente de folhas de Flandres, chapas zincadas, tbuas ou materiais semelhantes;3. Condio jurdica da ocupao Construes sem licenciamento e sem fiscalizao, em terrenos deterceiros ou de propriedade desconhecida;4. Melhoramentos pblicos Ausncia no todo ou em parte, de rede sanitria, luz, telefone e gua encanada;5. Urbanizao rea no urbanizada, com falta de arruamento, numerao ou emplacamento. (Gui-mares, 1953:259) ( IN. VALLADARES, 2005: 68 -69)

    Alguns destes critrios, como vimos, podem estar superados atualmente na maioriafavelas localizadas nas cidades do Rio de Janeiro e de So Paulo. Quanto ao tipo de habita-o, fica evidente no segundo quesito, que a qualidade do tosco ou do rstico estava mes-mo associada ao material de construo. Quanto aos melhoramentos pblicos e a urbani-zao, as vrias intervenes e polticas pblicas implementadas nas ultimas dcadas me-

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    lhoraram sobremaneira as condies de infra-estrutura de muitas favelas paulistanas, comoobservado no trabalho de Suzana Taschner citado acima.

    Quanto ao primeiro quesito, este foi e ainda objeto de muito questionamento, poisao se estabelecer um nmero mnimo de 50 moradias agrupadas para considerar umaglomerado urbano favela, este critrio acaba por excluir uma poro de ncleos queatenderiam aos outros quesitos, mas que teriam um nmero de moradias menor que 50,como no caso da maioria das favelas de So Paulo quando do primeiro cadastro defavelas realizado pela PMSP em 1973. Isto implica tambm em uma diminuio do n-mero de favelas nos levantamentos estatsticos, levando a uma falsa percepo da di-menso do fenmeno, como assinalado por Valladares em relao ainda ao primeirorecenseamento das favelas do Rio de Janeiro:

    A aplicao destes critrios levou o Recenseamento Demogrfico de 1950 a registrar 58 favelas ao invsdas 105 identificadas pela Prefeitura do Distrito federal dois anos antes. (VALLADARES, 2005:69).

    Fica, portanto, do exame destes critrios estabelecidos pelo IBGE, aquele que apontaa questo da ilegalidade da ocupao quanto situao da propriedade fundiria, comoo nico critrio que define objetivamente um ncleo favelado e o diferencia de umoutro assentamento urbano popular.

    Por outro lado, a introduo das favelas como categoria a ser pesquisada e estudadapor dados estatsticos oficiais estabelecidos pelo Recenseamento do IBGE tornava evi-dente que o fenmeno urbano da favela se estendia para alm da cidade do Rio deJaneiro, aspecto que no foi deixado de lado por Alberto Guimares, como assinaladopor Valladares:

    As favelas deixam de ser, por esse e outros motivos, um fenmeno parte, prprio e exclusivo do Distri-to Federal, com caractersticas inconfundveis e essencialmente diversas de quaisquer outros aglomera-dos das classes pobres. Suas populaes representam uma parcela, como tantas que integram a sociedadebrasileira (Guimares,1953:254-255) (IN. VALLADARES, 2005:70).

    A questo da ilegalidade da apropriao fundiria como critrio que define e parti-culariza a favela se repete em outras definies do fenmeno em diferentes autores.

    Em um clssico estudo sobre favelas, elaborado pelos brasilianistas, Anthony eElizabeth Leeds (1978), onde os autores analisam os arranjos de vida alternativos demoradores de reas invadidas na cidade do Rio de Janeiro; escrevendo sobre os tiposde moradia e estrutura social da cidade, eles afirmam que, O nico critrio uniformeque distingue as reas invadidas dos outros tipos de moradia na cidade o fato de consti-turem uma ocupao da terra, j que sua ocupao no se baseia nem napropriedade da terra nem em seu aluguel aos proprietrios legais. (LEEDS. 1978:151-152).

    Em relao aos autores que estudaram o fenmeno em So Paulo, o critrio quesingulariza a favela frente a outras modalidades de habitao popular no diferentedestas definies, como podemos observar, por exemplo, nos estudos de Suzana Taschnere Yvone Mautner sobre a habitao da pobreza, produzidos no incio da dcada de 1980.

    Nestes estudos, as autoras procuram categorizar as diferentes alternativas, ou moda-lidades de habitao popular, destacando-se como critrios centrais, questo do esta-tuto jurdico da posse da terra e a densidade das habitaes. Nas palavras destas autoras:

    A habitao das camadas populares em So Paulo tem-se categorizado em algumas alternativas fun-damentais, conforme o status jurdico do terreno (invadido ou comercializado) e a densidade do habitat(individual ou coletivo). Essas categorias no devem ser encaradas rigidamente como tipos:dentro delas

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    vo existir diversas modalidades, quanto aos materiais de construo, formas de produo, situao depropriedade, localizao, etc. (TASCHNER e MAUTNER. 1982:20)

    Em outros trabalhos recentes, encontramos algumas definies que so mais porme-norizadas nas descries fsicas e morfolgicas sem, no entanto, deixarem de acentuar aquesto da ilegalidade das favelas frente no somente a questo da propriedade da terracomo tambm legislao especfica, urbanstica ou edilcia. O estudo de Laura Bueno,apresenta algumas definies de favelas que ressaltam exatamente estes aspectos:

    Favela invaso paulatina de terras pblicas privadas ou devolutas sem interesse imediatopor parte do setor imobilirio, muitas vezes terrenos de difcil ocupao por sua alta declividadeou por serem alagadias.

    As favelas so aglomerados em reas pblicas ou privadas, ocupadas por no proprietrios, sobre osquais os moradores edificam casas margem dos cdigos legais de parcelamento e edificao.

    No caso da favela temos muitas ilegalidades. H a ilegalidade sobre a posse do terreno (a principal), deedificar em terrenos de uso ou edificao proibidos beira de crregos, terrenos de alta declividade , da forma de parcelamento e ocupao do solo, dimenso dos lotes e das ruas, ndices urbansticos e porultimo, a ilegalidade da edificao da casa em si tipo de material, dimenso de cmodos, ventilao/iluminao. (BUENO.2000:15-17).

    Outros estudiosos do tema apontam para a questo ambiental e para as condiesde infra-estrutura urbana, para alm da questo legal, como caractersticas singularesdeste tipo de assentamento, como pode ser observado em estudos recentes elaboradospor Camila Saraiva e Eduardo Marques :

    Em sua maioria esto localizadas em reas non edificante, protegidas ambientalmente ou que ofere-cem risco, como as encostas dos morros e os leitos de cursos dgua. Por se tratarem de reas problem-ticas sob o aspecto da legalidade da terra e caracterizadas por uma ocupao desordenada, as favelasso normalmente locais com deficincias dos servios de infra-estrutura urbana e com oferta insuficien-te de equipamentos pblicos. (SARAIVA E MARQUES. 2003).

    Reiteramos que o conjunto das irregularidades e das ilegalidades quanto legis-lao ambiental, urbanstica ou edilcia no algo exclusivo dos aglomerados denomi-nados de favela. Os cortios e os loteamentos perifricos clandestinos compartilhamcom ela esse carter ilegal.

    Portanto, deste modo, podemos afirmar que a ilegalidade quanto a questo fundiriaou a ocupao de terra alheia se constitui no elemento que define e singulariza o fen-meno favela. Segundo Maricato:

    Temos definido favelas pela relao jurdica que o assentamento mantm com a terra invadida. Hcasas em favelas que so melhores do que as casas em bairros legais, mas esta constatao no basta. Apura e simples anlise da esfera do consumo no fornece informaes que nos permitem compreender omotor da produo e apropriao desigual do ambiente construdo, e podemos ainda correr o risco deachar que o consumo determina a produo. (MARICATO. IN.DAVIS.2006:Posfcio:222)

    Neste sentido, o conceito de favela pressupe sempre a idia de invaso ou de ocupa-o de terrenos urbanos. Assim como, desta forma, uma histria da favela seria umahistria de invases ou de ocupaes de terras urbanas.

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    Mas no estaramos diante de mais um critrio questionvel? Isto , teriam as favelastodas se originado de ocupaes de terras? Alguns estudos revelam que em muitas dasgrandes favelas consolidadas, tanto da cidade do Rio de Janeiro, quanto da cidade de SoPaulo, o processo de ocupao se deu no atravs de invases individuais ou coletivas,mas sim, atravs de ocupaes consentidas, ou pelo Poder Pblico ou pelos prpriosproprietrios, que desta forma ainda conseguiam auferir uma renda desta ocupao.

    Mas isto assunto para o prximo tpico.

    1.2 A questo da ilegalidade fundiria e a ocupao consentida.

    Se o nico critrio que particulariza a favela o da apropriao ilegal quanto questofundiria, pois trata-se de ocupao de terrenos alheios, cabe a questo, de como e quandoeste processo de ocupao ou de invaso de terras se constituiu numa ilegalidade?

    Nos parece que a questo da legalidade ou da ilegalidade passa, neste caso, pela insti-tuio de um arcabouo jurdico que defina os marcos regulatrios, os parmetros enfimpara se instituir estes juzos. No Brasil, este marco seria a Lei 601 conhecida como a Lei deTerras de 1850 que definiu os parmetros legais para regulao da propriedade da terra.

    Neste sentido, a favela, compreendida como ocupao de terras alheias, pblicas ouprivadas , teria a sua gnese a partir da instituio deste marco regulatrio, e, natural-mente, na medida em que a regulao no impede que estas ocupaes aconteam de fato.

    Mas, pensando sobre a origem do fenmeno urbano, algumas questes emergem:por que e como se ocupam terras alheias? porque e quando o cortio deixou de ser aalternativa de moradia para as classes populares nas cidades? quando se iniciaram asprimeiras ocupaes, particularmente na cidade de So Paulo? Seriam estas ocupaesorganizadas coletivamente? Ou no haveria ordem? Se desordenadas porque no have-ria uma reao por parte do poder pblico ou da iniciativa privada, no caso de terrenosde particulares, frente a estas invases de terras? E como estas ocupaes foram histori-camente consolidadas, uma vez que, como pudemos observar dos trabalhos citados , amaioria das favelas paulistanas tem energia eltrica, so abastecidas por gua potvel eas moradias so quase todas de alvenaria apresentando, portanto, caractersticas slidase de permanncia?

    Vamos tentar responder estas questes como um dos objetivos a ser realizado aolongo desta dissertao.

    Entretanto, de antemo, podemos inferir de imediato que boa parte das favelas deSo Paulo, assim como as da cidade do Rio de Janeiro, so, na verdade, ocupaesconsentidas ou estimuladas pelo poder pblico. Muitos ncleos antigos de favelas des-tas cidades foram iniciados com o estmulo do prprio poder pblico que alojou, geralmente por conta de obras virias , parte da populao desabrigada nestes locais.No caso da cidade de So Paulo, pode ser assinalado que:

    Muitas das favelas existentes no municpio de So Paulo tiveram incio pela ao do prprio poderpblico municipal que, visando liberar determinadas reas ocupadas por ncleos carentes, para cons-truo de obras pblicas, principalmente virias, transferiu os habitantes para alojamentos provisriosgeralmente localizados em reas pertencentes ao Estado, municpio ou rgos federais. (SAMPAIO.1991:29)

    Por outro lado, importante ressaltar que antes da regulamentao pelo Gover-no Imperial da Lei de Terras, em 1854, no que tange ao municpio de So Paulo, aocupao de terras pblicas era uma prtica comum, consentida pelo poder pblicoatravs da concesso de datas de terras, como observado na dissertao de mestradode Marlene Laviola:

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    Na provncia de So Paulo, por exemplo, foi freqente a concesso de datas de terras para dar formo-sura s estradas e caminhos. Uma das regies mais favorecidas pelo mecanismo foi o caminho que ligavaa S, o Brs e a Penha, no qual tinha inicio a estrada para a Corte. (LAVIOLA,1995:11)

    Essas concesses, por sua vez, eram emitidas normalmente mediante umacontrapartida por parte daqueles que as solicitavam, nas palavras de Laviola:

    Normalmente, essas datas eram concedidas com exigncias da esfera pblica quanto construodas casas (cobertura com telhas), ao cultivo da terra (destruio dos formigueiros) e reserva dereas de recuo e de servido. Alm destas obrigaes, os beneficirios deviam desistir de qualquerindenizao futura, no caso da Prefeitura exigir a observncia de recuos adicionais ou a demolioda moradia. (LAVIOLA,1995:11)

    E mesmo aps a regulamentao da lei imperial, ainda que a cmara do Municpiotenha suspendido as concesses por quatro anos, mantinha-se a sua normalidade, pois,ainda segundo Laviola ,essa prtica retornou:

    Todavia, em 1858, sob a alegao de que a Lei Imperial estava prejudicando o progresso dacidade, a Cmara retornou a prtica. Esse mecanismo de concesses persistiu por muitos anos.(LAVIOLA,1995:12)

    Mesmo reconhecendo os diferentes contextos histricos, a ocupao de terra urba-na em So Paulo, com a possibilidade da concesso por parte do poder pblico, no eraalgo estranho no que diz respeito posse da terra. O que muda com a Lei de Terras quecom ela se institui aquilo que Roberto Smith denominou de moderna propriedadefundiria no Brasil. Ou seja, a propriedade da terra se torna mercadoria, isto , terra quese compra e se vende, em bases contratuais de mercado.

    A instituio da propriedade privada da terra determina a criminalizao da prticada ocupao e, desta forma, determinou tambm a criminalizao da ocupao de ter-ras urbanas e a conseqente estigmatizao da favela nas suas origens, objeto de analisedo prximo tpico.

    Por outro lado, at a segunda metade do sculo XIX no Brasil, a questo da moradiados trabalhadores no se constitua ainda em um problema social importante. Por umlado, pela prpria natureza da nossa economia agro-exportadora assentada no latifn-dio e na utilizao legal e indiscriminada da escravido. Os trabalhadores escravizados,que estavam instalados na zona rural ou mesmo os que viviam nas cidades junto aosseus senhores, viviam s expensas destes, a quem cabia o custo de prover moradia ealimentao a esta mo de obra que produzia a riqueza.

    E o que dizer das cidades neste perodo, que poderiam ser consideradas, como fo-ram por Laviola,(...) meramente locais de trnsito dos senhores de escravos, onde muitasvezes eles mantinham os encontros necessrios para o escoamento da produo e paraaquisio de novos escravos. (LAVIOLA,1995:10).

    Desta forma, portanto, o urbano no tinha importncia como espao de produoda riqueza, situao que vai se modificar a partir da instituio da Lei de Terras, daspolticas de imigrao e da Abolio da Escravido.

    Na medida em que a terra intensificava seu carter mercantil sob os efeitos damodernizao da propriedade imobiliria, ocorria tambm a transformao do tra-balho e junto com o imigrante, o escravo tendia a comprar sua liberdade e a seempregar como assalariado alterando a apropriao e produo do espao urbano,ou seja, a construo da cidade:

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    Alterava-se no s o processo de trabalho, mas o prprio produto da construo construa-se de umaforma mais eficiente e, tambm, mais duradoura. A massa de assalariados urbanos acelerava a substi-tuio da construo com taipa e principalmente criava um novo contexto cultural e material para acidade. Agora, casa e cidade faziam parte do mesmo negcio, a propriedade de uma era a forma deprivatizao da outra. (PEREIRA.1988: 66)

    Em So Paulo, essa transformao do contexto urbano significou tambm umamudana dos investimentos na cidade por parte das elites, que urbanizavam seus inte-resses e propriedades, fato observado por Maria Odlia:

    Aos poucos, os escravos deixaram de ser o investimento principal e foram substitudos por casinhas dealuguel, havendo um gradativo processo de valorizao de bens de raiz. (In.OLIVEIRA,2005)

    Afinal havia uma metamorfose da propriedade e conseqentemente da renda, comotambm foi observado por Paulo Cesar Xavier Pereira:

    Progressivamente, dado o novo significado econmico da propriedade do escravo e da terra, no seio dacrise da escravido, tornou-se mais interessante obter rendas provenientes da propriedade imobiliria.Afinal, ter a propriedade imobiliria poderia significar rendas e riqueza, tanto quanto havia significadono passado a propriedade de escravos. (PEREIRA,2004:37)

    Neste perodo a cidade de So Paulo conheceu seu primeiro grande surto de cresci-mento populacional; enquanto o Brasil tinha um crescimento de 2% ao ano, e o Estadode So Paulo crescia 2,8% ao ano, a capital tinha um ndice de 4,1% no perodo de 18721890. Estes nmeros cresceram ainda mais na ltima dcada do sculo XIX, tendo o pasum ndice de 1,9%, 5,1% para o Estado e 14% para o municpio.

    Neste sentido, a cidade de So Paulo tornava-se, neste perodo, um grande atrativopara os investimentos imobilirios, como assinalado por Maria Luiza Ferreira de Oliveira:

    A propriedade imobiliria para o aluguel apareceu disseminada como forma de investimento. Dosquartos de uma s porta, passando pelas casinhas trreas, os sobrados, chals, armazns a construopara o aluguel estava presente em grande parte dos inventrios que tinham um mnimo de renda dispo-nvel para investimento. (OLIVEIRA,2005:.301)

    A formao de um mercado imobilirio na cidade era um processo recente, desenca-deado pela crise da escravido, pela imigrao massiva neste perodo, e pela prpria mo-dernizao da cidade; tendo seu incio por volta do ltimo quartel do sculo XIX, pois:

    At a dcada de 1870, a propriedade imobiliria era muito pouco relevante do ponto de vista da com-posio do patrimnio e da obteno de rendimentos. (OLIVEIRA,2005:301)

    Desta maneira, ocupar terras urbanas que se valorizavam no poderia ser de formaalguma tolerado. Aqueles que tinham alguma fonte de renda poderiam resolver seuproblema de moradia via mercado, ainda que fosse sob a forma de aluguel de um cmo-do em algum cortio. Mas, e para aqueles que no tinham rendimentos suficientes parapagar este aluguel? Ocorriam ocupaes de terras em So Paulo neste perodo de tointenso crescimento urbano?

    No temos dados e informaes suficientes para responder com rigor estas ques-tes, mas podemos afirmar que, se ocorressem ocupaes por parte dos pobres estascertamente no disputariam com a dos ricos pois ficariam bem distantes dos bairros de

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    elite; uma vez que, desenhava-se ali, pela fora das leis, uma geografia social cujo funda-mento era a segregao dos pobres, que implicava desde logo numa segmentao domercado imobilirio e, portanto da constituio do que seria a cidade.

    A constituio de um mercado imobilirio dual, no qual os pobres estavam alocados na periferia, come-ou com a proibio de instalar cortios na zona central definida pelas posturas de 1886 e reiterada peloCdigo Sanitrio de 1894, que proibia terminantemente a construo de cortios e permitia a constru-o de vilas operrias higinicas fora da aglomerao urbana. A lei 498, de 1900, isentou de impostosmunicipais os proprietrios que construssem vilas operrias de acordo com o padro municipal e forado permetro urbano, delimitado por esta lei. (ROLNIK.1997:47)

    Desta forma, conclui Raquel Rolnik:

    Construiu-se com essa sucesso de leis o outro lado da geografia social proposta, outra linha imagin-ria que definiu os muros da cidade: para dentro, o comrcio, as fbricas no incmodas e a moradia daelite; para fora, a habitao popular e tudo que cheira mal, polui e contamina (matadouro, fbricasqumicas, asilos de loucos, hospitais de isolamento, etc.). (ROLNIK.1997:48)

    Vamos voltar a este tema no captulo 3.Resumindo, voltemos aos conceitos apresentados nestes dois primeiros tpicos.A favela enquanto alternativa de habitao dos pobres urbanos se caracteriza pelo

    menos por trs pontos; primeiro pela precariedade das suas construes, segundo pelairregularidade do seu traado e terceiro pela ilegalidade fundiria, urbanstica e edilcia.

    No entanto, os dois primeiros quesitos no so exclusivos deste tipo de assentamen-to, assim como a questo da ilegalidade urbanstica e edilcia.

    Desta forma, a ilegalidade quanto a questo fundiria se constitui no elemento quesingulariza o fenmeno.

    Mesmo se tratando de ocupao consentida ou estimulada pelo poder pblico, ofato de se constituir em terreno alheio, privado ou pblico, torna esse tipo de territriosingular, frente a outras modalidades de habitao da pobreza, como os cortios e osloteamentos perifricos.

    Neste sentido, a idia de favela, buscando rigor no conceito se confunde com a idiade invaso ou ocupao de imveis urbanos.

    No entanto, as favelas se consolidaram como alternativas de moradia ao longo dotempo. Tiveram o seu reconhecimento e legitimidade, por meio das intervenes dediferentes administraes e governos, por meios de programas e ou polticas publicasde urbanizao de alguns ncleos. Mais do que isso, muitas favelas sofreram profun-das transformaes; de forma tal que aquela noo de favela como espao da precarie-dade e da ilegalidade perde significado e merece uma reconceituao. Por outro lado, emais importante o estigma sobre ela permanece inalterado, muito por fora simblicado prprio termo que a designa, como demonstraremos no prximo tpico.

    1.3 As origens do termo favela. As primeiras imagens erepresentaes elaboradas para as favelas cariocas.O processo de estigmatizao pelo nome favela.

    Neste tpico pretendemos desenvolver uma anlise sobre as origens do termo favela.Nesta anlise buscamos responder algumas questes como: quando surgiu o termo?Como, quando e por que foi aplicado para designar um conjunto de habitaes popula-res? Se o termo surgiu na cidade do Rio de Janeiro para designar a ocupao de alguns

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    morros desta cidade, como veremos a seguir, como ele se transfere para a cidade de SoPaulo para designar ocupaes distintas morfologicamente das ocupaes cariocas?

    Neste sentido, vamos partir da origem da palavra,do nome favela e dos conceitoselaborados a partir desta denominao, que apontamos de antemo comoestigmatizantes.

    O termo prprio da botnica, e diz respeito a um tipo de arbusto ou rvore queocorre no Brasil nas regies nordeste e sudeste. O termo favela, conforme se costumacontar, foi aplicado a um morro que se localizava junto cidadela de Canudos, cobertopor esta planta. Durante a campanha de Canudos , os soldados que foram lutar na regio,ao voltar para a cidade do Rio de Janeiro, em um certo momento pediram licena aoMinistrio da Guerra para se estabelecerem com suas famlias no alto do morro da Provi-dencia passando a morar em construes provisrias juntamente de outros desabrigados.A partir da, segundo Mauricio de Almeida Abreu, Seja porque o morro da Providncia seassemelhava ao morro existente em Canudos, seja porque os soldados ali encontraram (ouconstruram) algo que lhes recordava Canudos, a verdade que o morro da Providencia logopassou a ser conhecido na cidade como morro da Favela. (ABREU. 1994).

    Deste fato, destacamos alguns pontos de indagao: primeiro, quem eram os outrosdesabrigados que compunham o universo de moradores do morro juntamente com ossoldados? E por que os soldados no encontravam acomodaes na cidade?

    Segundo Llian Vaz, citado por Abreu (1994), os tais desabrigados faziam parte dapopulao expulsa dos cortios do centro da cidade, ... logo aps a destruio do Cabeade Porco, que se situava exatamente no sop deste morro, um de seus proprietrios, donotambm de terrenos na encosta, autorizou a ocupao da mesma, cobrando dos antigosinquilinos o direito de ali construrem casebres.

    interessante notar, deste trecho destacado, no carter desta ocupao do morro daProvidncia, uma vez que esta foi estimulada e consentida pelo proprietrio e pelo pr-prio governo, o que, neste caso, descaracterizaria a idia de favela como invaso. Trata-se, como observado no tpico anterior, de uma ocupao consentida.

    Por outro lado, se havia falta de acomodaes para os soldados na cidade do Rio, ogoverno, ainda segundo Abreu,

    Para resolver esta situao, ordens foram expedidas autorizando a ocupao do convento de SantoAntonio (localizado no morro do mesmo nome) por militares. No tendo sido as acomodaes suficien-tes, permitiu ento o coronel Moreira Csar a construo, numa das encostas do mesmo morro, dediversos barraces de madeira. Para tanto, concorreram a existncia de grande nmero de praas casa-dos neste batalho e a deficincia de casas nas proximidades deste quartel. (ABREU. 1994).

    A falta de alojamentos para os soldados que confluam para a ento capital federalevidencia a crise habitacional que se engendra naquele perodo, crise esta gerada pelareforma urbana pela qual a cidade passava e pelo novo carter que esta ganhava, comoplo de concentrao de capital aplicado na produo da prpria cidade.

    Era um perodo em que a cidade do Rio de Janeiro despontava como a metrpole -modelo do pas, nas palavras do historiador Nicolau Sevcenko, pois passava por ummomento privilegiado do ponto de vista poltico e econmico. Como a capital da recmfundada repblica era o centro poltico do Brasil, como tambm se tornou o seu princi-pal centro comercial.

    Sede do Banco do Brasil, da maior Bolsa de Valores e da maior parte das grandes casas bancriasnacionais e estrangeiras, o Rio polariza tambm as finanas nacionais. Acrescente-se ainda a esse qua-dro o fato de essa cidade constituir o maior centro populacional do pas, oferecendo s industrias que ali

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    se instalaram em maior nmero nesse momento o mais amplo mercado nacional de consumo e de mode obra.(SEVCENKO. 1995).

    O cortio era a modalidade de habitao dos pobres urbanos por excelncia nesteperodo, tanto na cidade do Rio de Janeiro, como tambm na de So Paulo, como vere-mos adiante.

    Entretanto, em relao ainda a cidade do Rio de Janeiro, os cortios foram se trans-formando em um problema na medida em que a cidade crescia e a disputa pelo espaourbano ganhava destaque, como assinalado por Sidney Chalhoub:

    A proliferao dos cortios na cidade do Rio se deu a partir das dcadas de 1850 e 1860, e esteve ligada aoaumento do fluxo de imigrantes portugueses e ao crescimento do nmero de alforrias obtidas pelos escravos

    O aumento nos preos dos aluguis para as classes menos abastadas estava certamente ligado s trans-formaes na demografia urbana do Rio no perodo,... novamente os cortios so vistos tanto como umproblema para o controle social dos pobres quanto como uma ameaa para as condies higinicas dacidade (CHALHOUB, 1999:26 e 31).

    Este autor nos revela ainda que a ideologia higienista hegemnica no perodo, quenorteava a reforma urbana ento em curso, na verdade escondia uma preocupao cen-tral que era a de controle social dos pobres que proliferavam na cidade e que tinham noscortios uma alternativa de moradia. Tema que desenvolvemos com mais profundidadeno primeiro tpico do segundo captulo.

    Quanto crise habitacional que assolava a cidade do Rio neste perodo, precisoressaltar, mais uma vez, que ela se origina das transformaes urbanas engendradas porum projeto de cidade absolutamente excludente, concebido por uma burguesia que seacreditava ilustrada, moderna e republicana; e que enxergava a cidade como smbolo damodernidade e da modernizao do pas, cenrio da civilizao e do progresso, comoassinalado por Geraiges Lemos:

    A idia da cidade como o espao da civilizao e o centro dinamizador da grande transformao naci-onal com que sonhavam as elites latino-americanas, corresponde s imagens de vida que desejaramcristalizar a partir da segunda metade do sculo XIX at as primeiras dcadas do sculo XX. A cidaderepresentava o smbolo e o instrumento das grandes transformaes sociais e a geradora de impulsosmodernizantes,(...) (LEMOS. 1993).

    Neste sentido, cumpria reformar a cidade que se encontrava desestruturada e ana-crnica diante da nova era que se projetava. E os princpios que norteariam esta mudan-a tinha como objetivo maior a expulso dos pobres do centro da cidade, como assina-lado por Sevcenko:

    Quatro princpios fundamentais regeram o transcurso desta metamorfose: a condenao dos hbitos ecostumes ligados pela memria sociedade tradicional; a negao de todo e qualquer elemento dacultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma poltica rigo-rosa de expulso dos grupos populares da rea central da cidade, que ser praticamente isolada para odesfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identifi-cado com a vida parisiense.(SEVCENKO. 1995).

    Pautado por estes princpios e amalgamados a uma poltica de sade pblica queenxergava a pobreza como foco de doena, engendrou-se neste perodo, uma reforma

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    urbana regeneradora, que impunha como uma das suas principais medidas a destrui-o dos cortios do centro da cidade, assinalado tambm por Sevcenko:

    A demolio dos velhos casares, a essa altura j quase todos transformados em penses baratas, provo-cou uma verdadeira crise de habitao , conforme expresso de Bilac, que elevou brutalmente os alugu-is, pressionando as classes populares todas para os subrbios e para cima dos morros que circundam acidade. (SEVCENKO. 1995).

    Nota-se, deste fragmento, a relao entre a demolio dos cortios e a ocupao dosmorros e dos subrbios cariocas. Especial destaque dado a demolio do cortio de-nominado de Cabea de Porco, pois segundo estudo do historiador Sidney Chalhoub,este era o mais representativo deste tipo de habitao popular na cidade do Rio de Janei-ro, e a sua destruio marcava o fim de uma era, nas palavras do autor: (...) nem bem seanunciava o fim da era dos cortios, e a cidade do Rio j entrava no sculo das favelas.(CHALHOUB, 1999: 17).

    Neste mesmo estudo, e mais uma vez citando o trabalho de Llian Vaz, sobre a hist-ria dos cortios cariocas, Chalhoub reafirma e corrobora a relao apontada por Abreuentre a poltica de erradicao dos cortios e a origem da favela na cidade do Rio, assimdescrito pelo autor:

    O prefeito Barata, num magnmino rompante de generosidade, mandou facultar gente pobreque habitava aquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas em outras cons-trues. De posse do material para erguer pelo menos casinhas precrias, alguns moradores de-vem ter subido o morro que existia l mesmo por detrs da estalagem. Um trecho do dito morroj aparecia at ocupado por casebres, e pelo menos uma das proprietrias do Cabea de Porcopossua lotes naquelas encostas, podendo assim at manter alguns de seus inquilinos. Poucosanos mais tarde, em 1897, foi justamente nesse local que se foram estabelecer, com a devidaautorizao dos chefes militares, os soldados egressos da campanha de Canudos. O lugar passouento a ser chamado de < morro da favela >. (CHALHOUB, 1999:17).

    Licia do Prado Valladares, por sua vez, em um estudo sobre as favelas cariocas publi-cado recentemente, reitera a existncia desta relao entre a demolio dos cortioslocalizados no centro da cidade do Rio e a origem das favelas enquanto ocupao dealguns morros, apontando outros autores que trataram do tema:

    Estudos sobre os cortios do Rio de Janeiro demonstram que esse tipo de hbitat pode ser consi-derado o germe da favela.(...) Outros autores tambm estabeleceram uma ligao direta entreas demolies dos cortios do Centro da cidade e a ocupao ilegal dos morros no inicio do sculoXX (VALLADARES, 2005).

    Os cortios sofrem , neste perodo, um amplo processo de estigmatizao e de per-seguio por parte das elites cariocas, como assinalado mais uma vez por Chalhoub:

    O Cabea de Porco assim como os cortios do centro do Rio em geral era tido pelas autoridades dapoca como um

    A destruio do cortio carioca mais famoso da poca no foi um ato isolado, e sim um evento noprocesso sistemtico de perseguio a esse tipo de moradia, o que vinha se intensificando desde pelomenos meados de 1870, mas que chegaria histeria com o advento das primeiras administraes repu-blicanas. (CHALHOUB, 1999:16 e25)

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    Neste processo de estigmatizao e perseguio aos cortios, a questo simblica, deconceituao e categorizao dos espaos urbanos ganhava uma dimenso maior, de carterideolgico mesmo, no sentido de isolar e estigmatizar simbolicamente o espao dos pobres.

    Neste aspecto, havia uma preocupao em definir o que era cortio e a contribuiode Everardo Backheuser, um dos principais estudiosos das habitaes populares no pe-rodo, foi relevante, no sentido de tornar evidente a construo ideolgica da definiode cortio, como assinalado mais uma vez, por Chalhoub:

    O que se extrai do texto de Backheuser que o elemento decisivo na identificao de uma habitaocoletiva com um cortio era mesmo o julgamento do observador: nos cortios as alcovas eram maisquentes, baixas e escuras; no havia separao adequada das famlias, sendo a vida mais promiscua.Todos esses elementos so obviamente subjetivos isto , sujeitos a avaliaes radicalmente distintasdependendo dos interesses ou do ponto de vista de cada observador , o que faz com que Backheuserexplicite o carter fortemente ideolgico de toda a discusso: < h cortios onde se penetra com o lenoao nariz e de onde se sai cheio de nuseas> (CHALHOUB, 1999:39).

    Chalhoub destaca a subjetividade e a ambigidade presente na definio do que eracortio naquele perodo, reafirmando o papel desempenhado, na elaborao de um con-ceito para um determinado espao da cidade, por aquilo Pierre Bourdieu denominoude conflitos simblicos. No se tratava de uma simples denominao, mas, sim, de umaforma de constituir tambm, junto ao nome, um conceito e uma imagem associada amitos estigmatizantes de marginalidade e a criminalidade.

    O espao dos pobres na cidade sofreu de um estigma de nascena que no permi-tiu pens-lo como algo integrado nela. Tratava-se da elaborao de um verdadeiroapartheid simblico.

    E da mesma forma como ocorreu com os cortios, este processo de estigmatizaoocorreu tambm com as favelas. Elaboram-se mitos estigmatizantes que se perpetuamao longo do tempo impedindo uma reflexo mais aprofundada sobre estes espaos.

    A prpria escolha do termo favela, para ter sido proposital, no sentido de dar a estesespaos um nome que conotasse algo negativo.

    O termo favela, como j vimos, estava relacionado a um arbusto tpico da caatinganordestina e muito abundante no serto de Canudos. Era um termo que evocava umBrasil arcaico, atrasado, rural e rebelde, pois remetia em seu simbolismo, ao sertonordestino e a campanha de Canudos. Engendrava-se ali, na escolha do termo que de-signava o fenmeno, a imagem de um espao apartado da cidade, ainda que dentro dela.Um enclave rural rural na cidade.

    Ou ainda, o termo favela representava a prpria negao da modernizao republi-cana e burguesa que tinha a cidade como smbolo e marca desta modernizao, comoassinalado por Amlia Ins Geraides de Lemos:

    Buenos Aires e Rio interessam como realidade e como mito cultural: representam o cenrio das mudan-as, da civilizao, exibe-os ostensivamente e s vezes, de forma brutal, os difunde e procura generaliz-los. No surpresa que essas cidades sejam o smbolo da modernidade e da modernizao dando apauta dos valores, da sua conformao fsica e dos processos materiais e ideolgicos. As mudanas que seproduzem ante os olhos de seus habitantes, com a acelerao que lhe permitem os implementos tecnolgicosde produo e de transporte, fazem a cidade ser pensada e julgada a partir dessa materialidade quesimbolizam as mudanas: o novo procurando atritar com o velho. (LEMOS. 1993).

    E, neste sentido, a favela representaria a negao desta idia de modernidade, assimcomo, por analogia, a negao de uma idia de cidade: Nessa analogia, as respectivas

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    representaes aparecem fortemente estruturadas pelas preocupaes polticas relativas consolidao da jovem Repblica, sade da sociedade e entrada na modernidade. A fave-la pertence ao mundo antigo, brbaro, do qual preciso distanciar-se para alcanar acivilizao. (VALLADARES, 2005:36).

    Por isso marc-la, na sua origem, com um nome que designa algo que no faz partedo corpo da cidade, um elemento estranho, legado perverso do atraso que vinha macularo projeto de modernizao burguesa no Brasil. Mais uma vez o estudo de Mauricio deAbreu evidencia esta imagem negativa construda para as favelas cariocas, ressaltando opapel desempenhado pela imprensa na difuso desta imagem:

    Em 1902, o morro da Providncia j visto pela imprensa como uma vergonha para uma capitalcivilizada, como um perigoso stio, que a voz popular denominou morro da Favela. (ABREU. 1994).

    Licia Valladares corrobora este aspecto do estudo de Abreu, revelando o papel dedestaque da imprensa na construo e consolidao desta viso estigmatizante sobre afavela. Citando vrios textos de jornalistas consagrados do perodo, ela toma especial-mente o prprio Euclides da Cunha, autor do clebre livro reportagem Os Sertessobre a guerra de Canudos, para tornar evidente esta imagem da favela apartada dacidade. Comentando um texto de Luiz Edmundo, autor de vrios ttulos sobre a cidadedo Rio de Janeiro deste perodo, publicado em 1938, ela assinala que:

    A favela descrita por Luiz Edmundo aproxima as duas , o reduto de fanticosno serto e o enclave dos pobres na grande cidade do litoral. Esses cronistas, quando descreviam os novosbairros miserveis da capital da Repblica, queriam mostrar que o serto estava presente neles. Alis, omdico Afrnio Peixoto tambm afirmou em 1918:

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    Por outro lado, podemos observar em outros estudos que esta imagempreconceituosa e estigmatizante sobre a favela e sobre os favelados, permeou todaevoluo histrica da favela, reatualizada nas falas sobre o crime e sobre a violnciaurbana, constituindo aquilo que Janice Perlman denominou de mitos damarginalidade. Anthony e Elizabeth Leeds, por exemplo, destacaram trechos de vri-os discursos extrados de seminrios, congressos e comunicaes oficiais do governo,onde se evidencia esta viso preconceituosa sobre a favela:

    ... Essa situao se agrava mais ainda pelo fato e que as favelas constituem um refgio ideal paracamada inferior dos marginais, cariocas ou imigrantes, o que produz o contgio de uma frao dosmoradores, especialmente os jovens.(IPEME, 1958, citado em LEEDS e LEEDS 1978:193)

    Nas favelas se constituem aglomeraes humanas extremamente populosas margem da lei e da civi-lizao. Verdadeiros cadinhos de criminosos, selvagens e inadaptados, as favelas constituem um dosaspectos mais negativos de nossa civilizao. (Seminrio. 1967 citado em LEEDS e LEEDS 1978:195)

    Em um outro estudo mais recente, sobre crime, segregao e cidadania em So Pau-lo, Teresa Pires Caldeira cita vrias falas de camadas mdias da populao paulistanaonde a imagem da favela est estreitamente vinculada ao crime, nas palavras da autora:

    (...), paulistanos de diferentes grupos sociais pelo menos aqueles que entrevistei - compartilham algu-mas concepes sobre o crime e o mal. Eles parecem achar que os espaos do crime so espaos margi-nais, como as favelas e os cortios, e que seus habitantes, criminosos em potencial, so pessoas que estono limite da sociedade, da humanidade e da comunidade poltica.(CALDEIRA. 2000:57).

    Destaca-se tambm, neste estudo, que, para alm do preconceito que liga os faveladosao crime, nas falas destes grupos pesquisados pela autora, existe uma certa reprovaoquanto ao estilo de vida do favelado, que na tentativa de igualar-se s camadas mdiaspelo consumo, aproxima-se mais da criminalidade:

    Pior a favela, bandido ta dentro da favela. Eles recebem pouco, mas se voc entrar dentro de umafavela, v um monte de televiso, vdeo, som, donde ? Tudo roubado. (citado em CALDEIRA. 2000:31).

    Isto uma coisa revoltante. Voc vai em qualquer maloca, e no Rio de Janeiro tambm, e aqui em SoPaulo, que tem perto das marginais, que tem nessas favelas, voc v em todas as casinhas antenas deteleviso. No tem geladeira, mas tem televiso.Geladeira seria at mais til, mas eles no tem geladeiramas tm televiso. Eles esto acompanhando isto, o jeito que os ricos vivem e que a televiso mostra.(ibidem:71 e 72.)

    Mauricio de Abreu, destaca ainda que, esta imagem negativa e estereotipada da fave-la e dos favelados se estendia e se estende tambm para os negros, revelando para almde um preconceito social, um outro, tnico, racista mesmo, nas palavras deste autor:

    Numa sociedade recm-sada da escravido, era inevitvel, entretanto, que as favelas, e sua maioria depopulao negra, fossem tambm identificadas como smbolos do atraso. Referncias persistncia dafrica no meio da civilizao e ral de cor preta so constantes nesta poca.(ABREU. 1994).

    Na verdade, construa-se ali, nas origens da favela e da prpria metrpole do Rio deJaneiro, uma nova forma de intolerncia social, nas palavras de Nicolau Sevcenko. Apli-cava-se aos favelados o mesmo estigma aplicado aos pobres em geral que ousavam

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    habitar nas reas centrais. Seria a gnese dos mitos da marginalidade. Sevcenko desta-ca, o papel desempenhado pela imprensa neste processo:

    Desencadeia-se simultaneamente pela imprensa uma campanha, que se prolonga por todo este pero-do, de caa aos mendigos , visando a eliminao de esmoleres, pedintes, indigentes, brios, prostitutas equaisquer outros grupos marginais das reas centrais da cidade (SEVCENKO. 1995:34)

    Em outro trecho deste mesmo estudo, Sevcenko reala a idia de cidade elaboradapelas elites carioca, implcita nesta caa aos mendigos por parte da imprensa, qual seja,uma cidade assptica, imponente e que exalte na sua arquitetura, os valores, os gostos ea histria desta elite:

    A civilizao abomina justamente o mendigo. Ele macula com seus farrapos e suas chagas oasseio impecvel das ruas, a imponncia das praas, a majestade dos monumentos. (citado porSEVCENKO. 1995:61).

    Encontramos ali, nas origens das nossas metrpoles, o inicio do processo de moder-nizao excludente e da construo de uma concepo de cidade segregada, espacial esimbolicamente. A favela como fenmeno e como conceito, que se origina tambm ali,traz as marcas da excluso e da segregao espacial e simblica. Paulo Csar GarcezMarins, em seu estudo sobre habitao e vizinhana nas origens das metrpoles brasi-leiras, tambm ressalta este aspecto, assinalando que:

    As favelas, surgidas no Rio de Janeiro quase contemporaneamente Repblica, inauguravam de modoexemplar o rol de frustraes das elites em eliminar as convivncias de habitaes e populaes diversasno seio da maior e mais importante cidade brasileira de ento, fornecendo um paradigma do que seprocessaria ao longo do sculo XX em quase todas as medidas que visavam a excluso social mediantea condenao e eliminao de habitaes inconvenientes. (MARINS, 1999)

    A imagem construda para a favela, como podemos observar nestes estudos, eviden-cia a disputa simblica existente no mbito da cidade distanciando pobres e ricos. Essadisputa simblica refora assim a segregao espacial, social e simblica, fato tambmobservado por Caldeira:

    A distncia social marcada de vrias maneiras. Ela pode ser criada materialmente atravs do uso degrades, que ajudam a marcar uma casa prpria como algo claramente distinto de cortios e favelas. Ouso de cercamentos ainda oferece o sentimento de proteo, crucial em tempos de medo do crime. Masconcepes depreciativas dos pobres tambm cumprem a funo de criar distanciamento social: elasformam uma espcie de cerca simblica que tanto marca fronteiras quanto encerra uma categoria e,portanto, previne as perigosas misturas de categorias. (CALDEIRA. 2000).

    Entretanto, o fato que ao longo das primeiras dcadas do sculo XX, na cidade doRio, o fenmeno se espraiou pelos morros e o termo favela se consolidou, o primeirocomo alternativa de habitao para a populao pobre e o segundo na sua formasubstantivada, como assinalado por Abreu:

    A partir da dcada de 1920, e em funo da sua enorme difuso pelo espao urbano, o termo favela segeneralizou. E adotando uma nova forma, substantivada e com f minsculo, passou a designar todas asaglomeraes de habitaes toscas que surgiam na cidade, geralmente nos morros, e que eram construdasem terrenos de terceiros e sem aprovao do poder pblico.(ABREU. 1994).

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    Licia do Prado Valladares reafirma este aspecto da difuso e personalizao do nomefavela, que reforava uma viso equivocada das favelas como espaos homogneos:

    O Morro da Favela, pouco a pouco, passou a estender sua denominao a qualquer conjunto debarracos aglomerados sem traado de ruas nem acesso aos servios pblicos, sobre terrenos pbli-cos ou privados invadidos. Conjuntos que ento comearam a se multiplicar no Centro e nas ZonasSul e Norte da cidade do Rio de Janeiro.(VALLADARES, 2005:26)

    A nossa insistncia na questo do nome favela porque entendemos que a escolhade um nome, de um sistema de classificao, de um conceito que define e delimita osignificado dos fenmenos, se configura em um campo de disputa simblica. E esteaspecto para ns muito importante, especialmente levando-se em conta aquele mo-mento histrico, em que a cidade vai se transformando no cenrio por excelncia daluta de classes no Brasil. Mais do que um nome, no caso da favela, elabora-se uma ima-gem associada a alguns mitos que estigmatizam um determinado espao da cidade.

    Caldeira, no estudo citado, reafirma a importncia que tem um sistema de clas-sificao na formao de um esteretipo, ainda que, no seu texto, trate da questoda fala sobre o crime e os criminosos, revelando como estes, por sua vez, so associ-ados pobreza e as favelas. Vale a pena citar os trechos, mesmo que longos, onde aautora coloca a questo:

    Quando me refiro categoria do criminoso, obviamente no estou me referindo a uma analisesociolgica, mas a uma categoria classificatria que atua na vida cotidiana e cuja funo principal dar sentido a experincia. Assim, uma categoria de pensamento embutida na prtica cotidianae que simbolicamente organiza e d forma a essa prtica.

    Elemento perigoso e que quebra as regras da sociedade, o criminoso visto como algum que vemdos espaos marginais e polui e contamina. Apesar de esse tipo de categorizao ser uma maneirapoderosa de pensar o mundo, organizar as narrativas e ressignificar a experincia, quando se pre-cisa de descries mais especficas e detalhadas, a funo do desreconhecimento se torna bvia enecessariamente surgem ambigidades.

    Observa-se, aqui, que o crime e os criminosos so associados aos espaos que supostamente lhesdo origem, isto , as favelas e os cortios, vistos como os principais espaos do crime. Ambos soespaos liminares: so habitaes, mas no o que as pessoas consideram residncias apropria-das. (CALDEIRA. 2000: 78 e 79).

    Pierre Bourdieu, por sua vez, ressalta que a luta de classes tambm toma a forma deluta simblica, segundo Patrice Bonnewitz, que analisou a obra do socilogo francs.Nas palavras deste autor:

    Para Bourdieu, os conflitos simblicos visam impor uma viso de mundo de acordo com os interessesdos agentes; esta viso do mundo se refere tanto posio objetiva no espao social (o lado objetivo),quanto s representaes que os agentes fazem do mundo social (o lado subjetivo). (BONNEWITZ. 2003).

    E desta vez citando o prprio Bourdieu, Bonnewitz destaca que:

    Do lado subjetivo, pode-se agir tentando mudar as categorias de percepo e de apreciao do mundosocial, as estruturas cognitivas e de avaliao: as categorias de percepo, os sistemas de classificao,isto , no essencial, as palavras, os nomes que constroem a realidade social tanto quanto a expres-

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    sam, so o mvel por excelncia da luta poltica, luta pela imposio do principio legtimo de visoe de diviso legitima... (BORDIEU,1987, citado em BONNEWITZ, 2003:98 e 99)

    Neste sentido que compreendemos que o nome favela atribudo a determinadosassentamentos populares em reas urbanas invadidas ou ilegais quanto propriedadeda terra, permitiu, (pela natureza simblica do termo e por tudo que ele representava),por si s a elaborao dos mitos da ruralidade e da marginalidade, pois, mais que ummero nome, o termo conferia a estes assentamentos, na sua origem, uma identidadenegativa. Ainda segundo o estudo de Bonnewitz sobre Bourdieu, este ressaltava a im-portncia da linguagem na disputa simblica:

    ..., convm, sublinhar o papel fundamental da linguagem: a definio daquilo que legtimo passa porquerelas de palavras . Nomear as coisas deste modo e no daquele faz-las existir e outra forma ou atabolir a sua existncia. Toda categoria de agentes dominados, quer se trate de grupo sexual, grupo deidade, grupo tnico, grupo religioso, grupo socioprofissional, etc., sempre objeto de um discurso depre-ciativo mais ou menos grosseiro ou sutil. (BONNEWITZ, 2003:100 e 101)

    E talvez por conta disso, desta violncia simblica, ainda nos termos de Bourdieu,que os mitos, que as imagens estigmatizantes e as idias pr-concebidas e preconceituosasque cercam a favela e os favelados tenham permanecido inalterados ao longo do tempo,malgrado a constatao emprica de vrios estudos realizados sobre as favelas, revelandoo quanto estes mitos da ruralidade e da marginalidade no se sustentam na realidade.

    Neste tpico, buscamos resgatar as origens das imagens e das representaes sociaissobre a favela. Pudemos observar que o fenmeno deita razes na origem das nossasmetrpoles e que foi marcado por um estigma de nascena.

    1 Verbete encontrado no Dicionrio da Lngua Portuguesa MEC/FENAME,1980

    2 Verbete encontrado no Dicionrio da Lngua PortuguesaAurlio Buarque de Holanda, 1985 Atualizado em 2001. Editora

    Nova Fronteira.

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    CAPTULO 2

    A favela como objeto de estudo da sociologiaIntroduo

    NO PRIMEIRO CAPTULO FIZEMOS consideraes sobre a origem do termo favela, dealguns conceitos estabelecidos a partir deste termo, assim como, sobre as representa-es e imagens construdas sobre o fenmeno favela. Buscamos analisar os critrios quedefinem e singularizam a favela em relao s outras alternativas de habitao das ca-madas sociais atingidas pela pobreza urbana; procurando demonstrar os limites, as in-suficincias e inadequao destes critrios.

    Neste captulo pretendemos discutir como a favela passa a ser considerada um pro-blema sociolgico e emerge como uma nova problemtica nos estudos urbanos.

    Enfim, trata-se de fazer consideraes sobre como a sociologia se aproxima dosestudos urbanos, sobre a questo da habitao e particularmente da favela.

    O foco da nossa pesquisa dissertar sobre a favela em So Paulo, porm, comofizemos no primeiro captulo, trataremos da questo de uma forma geral, a considerarsua dimenso mais abrangente, pensando o termo enquanto um conceito abstrato, masque designa um determinado fenmeno social. Neste sentido, no se tratou no captulo1, da favela paulistana ou carioca, nem tampouco de uma comparao entre elas.

    A favela como fenmeno urbano e social definida, como j vimos, por trs aspec-tos caractersticos: a da territorializao da pobreza urbana, a da precariedade da mora-dia e da ilegalidade quanto propriedade da terra. Desta forma, entendemos que visibi-lidade do debate sobre a favela nas cincias sociais tem seu foco em dois pontos: naquesto da habitao e da pobreza urbana.

    Assim, neste captulo em seu primeiro tpico abordamos a questo da habitao.Partimos de algumas reflexes de natureza epistemolgicas para argumentar sobre anatureza ideolgica do problema da habitao. No mesmo tpico, buscamos traar umpanorama histrico sobre o estudo desta questo no Brasil e em particular na cidade deSo Paulo, tendo em vista o foco de nossa dissertao.

    No segundo tpico deste captulo consideramos os estudos sobre a pobreza urbanapelo vis da favela, ou seja da sua territorializao. Neste aspecto desponta na dcada de1960 o desenvolvimento de uma teoria social que, atenta s particularidades da urbani-zao na Amrica Latina, tentou explicar o fenmeno a partir da estrutura macro eco-nmica dos pases latino americanos, denominada de Teoria da Marginalidade.

    Segundo Valladares, a Teoria da Marginalidade seria a primeira chave de leitura uti-lizada pelos cientistas sociais no sentido de compreender o fenmeno. (VALLADARES,2005:151). Neste tpico, buscamos examinar as diferentes concepes marcadas por essateoria e os argumentos dos autores que a criticaram. No se pretende realizar um estudoexaustivo do tema, buscamos somente sistematizar o trabalho de alguns autores quetiveram influencia nos estudos sobre favela.

    No terceiro tpico, buscamos analisar os autores que examinaram criticamente avalidade das crenas estabelecidas sobre as favelas na Teoria da Marginalidade e naideologia higienista.

    Fechando desta forma este captulo, balizamos a discusso da favela em So Paulo,objeto do prximo captulo.

    2.1 A questo da habitao e a favela.2.1.1 ALGUMAS QUESTES DE NATUREZA EPISTEMOLGICAS

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    A cidade capitalista se constitui em um cenrio privilegiado das lutas sociais, na medidaem que opera uma reorganizao radical de seu espao, marcada por dois elementosfundamentais, assim assinalados por Rolnik:

    O primeiro elemento que entra em jogo a questo da mercantilizao do espao, ou seja, a terraurbana, que era comunalmente ocupada, passa a ser uma mercadoria que se compra e vende comoum lote de bois, um sapato, uma carroa ou um punhado de ouro. Em segundo lugar, a organizao dacidade passa a ser marcada pela diviso da sociedade em classes: de um lado os proprietrios dos meiosde produo, os ricos detentores do dinheiro e bens; de outro, os vendedores de sua fora de trabalho, oslivres e despossudos. (ROLNIK.1988:39)

    Neste sentido, no seu desenvolvimento, a cidade moderna capitalista vai assumindoalguns traos caractersticos essenciais como: (...) a privatizao da terra e da moradia, asegregao espacial, a interveno reguladora do Estado, a luta pelo espao. (ROLNIK. 1988:71)

    Entretanto, estes traos caractersticos so escamoteados por um discurso ideolgico,que no revela a essncia dos problemas urbanos. Neste sentido, os problemas ditos urbanosna verdade so de natureza social, como assinalado por Castells (1975): h uma tendnciacada vez maior para qualificar de urbanos os problemas que antes se chamavam sociais.

    No mesmo sentido, este autor afirma que Esta substituio terminolgica no ino-cente, na medida em que tende a apresentar como efeito de uma contradio entre tcnicae natureza o que um resultado das contradies sociais. (CASTELLS.1975:15).

    Trata-se ento, nesta linha de raciocnio, da construo daquilo que Castells deno-mina de ideologia do urbano. Essa ideologia, como em toda ideologia, no sentido estabe-lecido pela professora Marilena Chau, serviria para mascarar os problemas geradospelas contradies sociais intrnsecas a uma sociedade de classes nos marcos histrico-estruturais da economia capitalista.

    Segundo Marilena Chau, a ideologia um conjunto lgico, sistemtico e coerente derepresentaes (idias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e pres-crevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devemvalorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devemfazer e como devem fazer. Ela , portanto, um corpo explicativo (representaes) e prtico(normas, regras, preceitos) de carter prescritivo, normativo, regulador, cuja funo daraos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicao racional para as dife-renas sociais, polticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenas diviso da socie-dade em classes, a partir das divises na esfera da produo. (CHAU,1981:113-114)

    E na qualidade de explicao terica, ou falsa teoria, uma de suas funes, portanto, de ocultar a realidade social, ou ainda, nas palavras de Chau:

    Essas idias ou representaes, no entanto, tendero a esconder dos homens o modo real com suasrelaes sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de explorao econmica e de domina-o poltica. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermdio, os homenslegitimam as condies sociais de explorao e de dominao, fazendo com que paream verdadeiras ejustas. (CHAU,1981:21)

    Os problemas urbanos, portanto, so problemas gerados pelas contradies sociaisinerentes sociedade capitalista, mas por esta ideologia do urbano, so vistos como algonatural e inerente ao desenvolvimento das cidades, como assinalado por Castells:

    Assim, a crise da habitao, as ms condies ambientais e, inclusivamente, a alienao, pas-sam a ser conseqncias infelizes e quase inevitveis da cidade, forma necessria do progresso

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    tcnico...Tratar-se-ia ento, segundo esta ideologia, de remediar o melhor possvel estes malesinevitveis,... (CASTELLS.1975:15)

    Desta forma cabe, portanto, teoria social, segundo Castells, a tarefa de delimitar ocontedo ideolgico dos pretensos conhecimentos sociolgicos; mostrar quais so os pro-blemas reais a que se faz aluso, atravs dos quais se poder ir fundamentando uma an-lise propriamente terica dos problemas assim aludidos e encobertos. (CASTELLS.1975:15)

    E no se trata de uma tarefa fcil, uma vez que, ainda segundo Castells, no existe umconhecimento universal e neutro pois a prtica terica tributria da prtica poltica e vice-versa. A prtica terica enquanto produo de conhecimentos, nas palavras deste autor:

    determinada socialmente, tanto no que diz respeito sua utilizao como articulao do seu con-tedo (cientifico) com as ideologias sociais. No h, historicamente, nenhum produto puramente teri-co, antes o que se encontra sempre so formaes ideolgico-tericas, de dominante ideolgica ou teri-ca. (CASTELLS, 1975:12)

    Para Castells, o campo de anlise da sociologia tem uma dominante ideolgica: cujoefeito social no produzir conhecimentos, mas legitimados comocincia a fim de organizar a racionalizao de uma situao social dada (a ordemestabelecida) e desorganizar a sua compreenso, possvel caminho para uma tomada deconscincia e, portanto, para uma mobilizao poltica. (CASTELLS, 1975:12)

    Neste aspecto, no se trata aqui de ignorar a concretude e a emergncia de determi-nadas questes ligadas ao urbano, mas, como colocado acima, necessrio identificaros problemas reais e , segundo Castells:

    Tais problemas so os que dizem respeito ao processo coletivo da reproduo da fora de trabalho e sunidades de consumo coletivo (aglomerados) nas quais esse processo se realiza. (CASTELLS, 1975:15)

    Sendo a habitao um dos componentes dos custos da reproduo da fora de tra-balho, as suas formas concretas exprimem o equacionamento deste custo em um deter-minado estgio do desenvolvimento capitalista de um determinado pas.

    Pensar a questo da habitao fora do mbito da reproduo da fora de trabalho e dascontradies sociais estabelecidas pela sociedade capitalista, ao meu ver, se constitui naelaborao de mais uma formulao de natureza ideolgica, na elaborao de um falsoproblema, como assinalado por Gabriel Bolaffi para a questo da habitao no Brasil:

    Em sntese, este o processo pelo qual a ideologia mascara os problemas do real e os substitui pelos falsosproblemas.Isto , formulam-se problemas que no se pretende, no se espera e nem seria possvel resolver,para legitimar o poder e para justificar medidas destinadas a satisfazer outros propsitos. (BOLAFFI.1982:40)

    Neste sentido, compreendemos que a questo da favela seria mais um dos falsosproblemas elaborados para escamotear outras questes de natureza econmica, polti-ca e social. Vamos esclarecer melhor essa idia analisando alguns estudos no decorrerdeste captulo. Por ora, vamos aprofundar melhor a questo da habitao destacando osautores que trataram do tema no Brasil.

    2.1.2 A QUESTO DA HABITAO

    Para Villaa o problema habitacional formulado de forma absolutamente ideolgica esuperficial. Nas palavras dele:

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    O problema que os homens tm de enfrentar para conseguir este abrigo a habitao o problemahabitacional. Pronto. Est criado, no pela prtica mas pela mente, pela razo, um abstrato,universal e eterno, ou seja, um a-histrico. Problema para quem? Porque problema?Suaorigem est nos homens ou na natureza? A resposta a essas e outras importantes perguntas obscureci-da por essa definio do problema da habitao. (VILLAA,1986:10)

    Formulado desta forma , o problema da habitao se constitui em um problema a-histrico, atemporal, que sempre existiu e sempre existir. Desta maneira, ainda segun-do Villaa,

    Essa forma de pensar esconde e distorce a verdadeira questo. Com isso, entre outras coisas, fornece classe burguesa o argumento que ela precisa para explicar classe dominada, seu clamoroso fracasso nasoluo do problema. As idias daquele gnero so produzidas e difundidas, ao longo de dcadas, numatentativa de transforma-las em verdades aceitas sem discusso, em dados da realidade, e com isso fazercom que os trabalhadores acreditem que o problema da habitao mesmo muito complexo, difcil e nofundo, insolvel, e que a burguesia est fazendo tudo que pode para resolv-lo, ou melhor, para minor-lo, j que resolve-lo mesmo seria impossvel (VILLAA,1986:10)

    E qual seria ento a verdadeira questo que essa formulao ideolgica esconde?Para Villaa, a essncia do problema habitacional est exatamente nas contradi-

    es sociais engendradas na sociedade capitalista:

    Com o desenvolvimento do capitalismo, juntamente com os demais bens necessrios para atender snecessidades humanas, a habitao comea embora lenta e penosamente a assumir a forma demercadoria. Entretanto, o sistema econmico privado, no consegue oferecer habitaes a todos, quersob forma de mercadoria ou no. A obrigao de oferecer habitao queles que no tm condieseconmicas de pagar por uma, passa progressivamente a ser do Estado. Este, contraditoriamente, aomesmo tempo em que reconhece essa obrigao como sua, d provas concretas de que incapaz dedesincumbir-se satisfatoriamente dela. (VILLAA,1986:11-12)

    E neste sentido, ainda segundo este autor, tenta-se ocultar essa contradio formu-lando falsos problemas,

    Uma das formas pelas quais tenta livrar-se dessa contradio exatamente a produo, pela classedirigente, do conceito ideolgico do problema habitacional e da idia j exposta de que esse problemasempre existiu e sempre existir. Alis, o uso da ideologia um dos estratagemas de que a burguesiamais lana mo para livrar-se do problema da habitao. (VILLAA,1986:12)

    E assim conclui Villaa:

    Isso no quer dizer que o problema no exista. Quer dizer entretanto que a burguesia no pode enun-cia-lo corretamente pois se o fizesse teria que reconhecer ao mesmo tempo sua incapacidade de resolve-lo. (VILLAA,1986:12)

    Esta forma de enxergar o problema da habitao como algo intrnseco ao desenvolvi-mento do capitalismo e da sociedade burguesa j havia sido formulado na segunda meta-de do sculo XIX por Engels. Em um artigo escrito em 1872, este autor refuta algumas teseselaboradas no contexto da sociedade alem do perodo, para resolver a crise habitacional.

    Para Engels, estas teses no apontavam para a essncia do problema, pois manti-nham inalterada nas suas propostas para resoluo do problema da habitao , a

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    ordem social do modo de produo capitalista. E, muito pior, estas propostas conti-nham um objetivo ingnuo de elevar as chamadas classes no possuidoras ao nvel dasclasses possuidoras. 1

    Segundo Engels a questo habitacional, colocada como problema a partir da falta dehabitao, era mais uma expresso das contradies sociais do modo de produo capi-talista e, portanto, colocada como uma questo social que s se resolveria com a disso-luo deste modo de produo:

    Mas de onde provm a falta de habitao?...ela necessariamente produzida pela forma burguesada sociedade; uma sociedade que no pode existir sem falta de habitao quando a grande massatrabalhadora depende exclusivamente de seu salrio, ou seja, da soma dos meios indispensveis sua existncia e reproduo;quando novos melhoramentos mecnicos etc., deixam continuamentesem trabalho massas de operrios; quando violentas e cclicas crises industriais, condicionam, porum lado, a existncia de um numeroso exrcito de reserva de desempregados e, por outro lado,temporariamente deixam na rua grande massa de trabalhadores; concentrando-se nas grandescidades num ritmo mais rpido que o da construo de casas nas condies atuais, de vez que paraos mais ignbeis pardieiros h sempre locatrios; quando finalmente, o proprietrio de uma casa,na sua qualidade de capitalista, tem no s o direito mas tambm, em virtude da concorrncia, decerto modo o dever de extrair da sua casa, sem escrpulos, os aluguis mais elevados. Numa socie-dade assim, a falta de habitao no nenhum acaso: uma instituio necessria; e juntamentecom as suas repercusses sobre a sade etc., s poder ser eliminada quando toda a ordem socialfor inteiramente transformada. (ENGELS.1988:38-39)

    Neste texto, Engels aborda o problema de forma mais ampla, para alm da questoda precariedade das moradias operrias ou da insalubridade e adensamento destasmoradias, articulando o problema habitacional com outras questes de carter econ-mico-estrutural, como o desemprego ou ainda o custo de reproduo da fora de traba-lho. Torna evidente, alis, como a questo da moradia se relaciona com os baixos salri-os e com a instabilidade no emprego:

    Suponhamos que numa dada regio industrial se tenha tornado regra cada operrio possuir a suapequena casa prpria. Neste caso, a classe operria dessa regio tem habitao gratuita; os gastoscom a habitao j no entram no valor da sua fora de trabalho. Mas toda reduo dos custos deproduo da fora de trabalho, isto , toda diminuio pouco durvel do preo dos meios de subsis-tncia do operrio, equivale, porm,

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    Em segundo lugar h que se considerar o obstculo representado pela propriedade privada da terra. Estaonera violentamente o preo do produto habitao, o que obriga as camadas mais pobres a morar naspiores localizaes das cidades.(...)

    Em terceiro lugar, outra particularidade da h