o pensamento de eurípides e a política durante a guerra
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
GUILHERME GOMES MOERBECK
O pensamento de Eurpides e a poltica durante a Guerra do Peloponeso.
NITERI 2013
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GUILHERME GOMES MOERBECK
Defesa de tese de doutorado apresentada ao curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de doutor. rea de concentrao: Histria social.
Orientadores: Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso / Prof. Dr. Mrio Jorge da Motta Bastos
NITERI
2013
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M694 Moerbeck, Guilherme Gomes.
O pensamento de Eurpedes e a poltica durante a Guerra do Peloponeso / Guilherme Gomes Moerbeck. 2013.
242 f. Orientador: Ciro Flamarion Santana Cardoso.
Coorientador: Mrio Jorge da Motta Bastos.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. Departamento de Histria, 2013.
Bibliografia: f. 225-244.
1. Grcia Antiga. 2. Teatro grego (Tragdia). 3. Eurpedes; crtica e interpretao. 4. Poltica. 5. Guerra do Peloponeso, 431-404 a.C. I. Cardoso, Ciro Flamarion Santana. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
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GUILHERME GOMES MOERBECK
O pensamento de Eurpides e a poltica durante a Guerra do Peloponeso.
Banca Examinadora
______________________________________________________________
Prof. Dr. Mrio Jorge da Motta Bastos (orientador)
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________________
Prof Dr Cludia Beltro da Rosa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________________________________
Prof. Dr. Jos Antonio Dabdab-Trabulsi
Universidade Federal de Minas Gerais
________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva
Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro
________________________________________________________________
Prof Dr Greice Drumond
Universidade Federal Fluminense
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, . EURPIDES. As Fencias. [v.1015-1018]
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Para Renata Mazeika
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Agradecimentos
Encerrar um trabalho de quatro anos faz com que nos lembremos, de diferentes
maneiras, de tudo o que se passou nesse perodo. Em quatro primaveras as esperanas se
renovaram, mimetizando a expectativa dos antigos com sua nova colheita. O doutorado
, sobretudo, uma experincia solitria que dominou os espaos vazios do pensamento
desse pesquisador, que espera, em breve, poder t-los novamente preenchidos com
outros projetos e aventuras historiogrficas.
E tendo tudo em vista, deixo aqui o meu sincero agradecimento queles que
foram fundamentais, no apenas em meu percurso no doutorado, mas a todos que
durante a graduao e mestrado permitiram que hoje eu pudesse perceber a minha
formao como algo integrado. evidente que eu tenho gratido por todos os
profissionais da Universidade Federal Fluminense, to relevantes em minha formao,
dentre os quais, gostaria de mencionar, especialmente, os professores: Mrio Grinzspan,
Delma Pessanha das Neves, Mario Jorge da Motta Bastos, Marcelo Rede, Marcos
Alvito, Ceclia Azevedo e Vnia Leite Fres. Aos funcionrios preciosos, em especial:
Silvana e Juceli.
Aos professores dalhures que, de variadas maneiras, me ajudaram durante o
doutorado, lembro com carinho das orientaes via e-mail, de toda a pacincia e da
receptividade do grande pesquisador Claude Calame. professora Johanna Hanink,
devo uma enorme gratido, pela receptividade e belas aulas na Brown University. Seu
talento excepcional como tradutora do grego tico foi e minha inspirao para
continuar estudando e traduzindo minhas fontes. Espero que possa rev-la em outras
ocasies por esse mundo afora. Ao professor Jos Antonio Dabdab-Trabulsi, fica
expressa minha grande admirao por um os helenistas mais interessantes que j pude
conhecer. Agradeo, tambm, professora Maria Beatriz Florenzano, pela receptividade
com a qual me recebeu no MAE-USP. Especial agradecimento a minha professora de
grego; Luana da Cruz, sua pacincia e dedicao com esse seu aluno foram das mais
notveis, muito obrigado. Do professor Alexandre Carneiro, seria imperdovel no
mencionar que, suas aulas, inspiraram parte do segundo captulo deste trabalho. Aos
professores que participaram da minha banca de qualificao, Marta Mega de Andrade e
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Greice Drummond, a forma final desse trabalho fruto da notvel interveno de vocs,
obrigado.
A todos os componentes da banca de defesa no mencionados anteriormente,
meu sincero agradecimento. professora Cludia Beltro, a grande especialista em
Ccero, minha silenciosa admirao desde o perodo em que frequentvamos o CEIA.
Ao querido professor Francisco Carlos, de impressionante erudio, minha alegria em
ter hoje, como colega de trabalho e de projetos, aquele que fora minha primeira
referncia do que seria um grande docente. O agradecimento tambm muito especial ao
professor Mrio Jorge, que me acolheu nesse grupo de pesquisa to interessante como o
NIEP-PrK e me ajudou imensamente no PPGH, quando perdemos nosso amigo Ciro
Cardoso.
Agradeo, igualmente, a todos os alunos da UNIG, IH-UCAM, IUPERJ e do
CPDOC-FGV, os quais, de inmeras maneiras, e em distintas temporalidades de minha
trajetria, acabaram por me ajudar e incentivar a melhorar a cada dia; mesmo com todas
as dificuldades e percalos da profisso de historiador e professor em nosso pas. Meus
queridos amigos e colegas de trabalho sempre me incentivaram a continuar, menes
especiais querida medievalista, Priscila Aquino e ao marxista e irmo espiritual, Fbio
Frizzo.
De tudo o que se passou em meu caminho, duas so profundamente especiais. A
primeira, provavelmente sem a qual no conseguiria foras para superar os obstculos
que se interpuseram em meu caminho para seguir adiante. bem verdade que, mulher
de doutorando deveria receber adicional por insalubridade. E mesmo sem receb-lo,
ainda me presenteou com um filho, Henrique Mazeika Moerbeck, certamente a melhor
coisa que pude ajudar a fazer em meu doutorado. E, em todo esse caminho, esteve ao
meu lado, minha querida e amada mulher, Renata Mazeika. De minha famlia, enorme
beijo em minha me, Maria do Rosrio Gomes e em minha sogra, Maria Aparecida da
Fonseca Mazeika, obrigado pela companhia nesse longo perodo.
Sempre que penso em meu grande amigo Ciro, acho que as palavras no
possuem o poder de expressar como ramos prximos e nosso carinho e respeito
mtuos. Enfim, no posso ir muito alm de escrever para ti Ciro, que nos deixou muito
antes do que o aceitvel. Desde a graduao, passando pelo mestrado e, durante quase
todo o doutorado, pude partilhar da companhia, da alegria, de uma das pessoas mais
amveis e brilhantes que pude conhecer. Ento, meu caro, espero que uma ou outra
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parte dessa tese seja digna de todos os dias que voc devotou de maneira to altrusta ao
seu orientando. Ciro, aqui, encerra uma parte de minha histria que tambm tua.
Ao querido gatinho, Batatinha, que sempre me acompanhava e tinha excepcional
entendimento de tudo o que eu fazia, meu corao est irreversivelmente vazio sem seu
ronronar.
A todos aqueles que por ventura tenha deixado de mencionar nesses
agradecimentos, peo desculpas, pois em muito j extrapolei o rigor do homo
academicus.
Agradeo ao CNPq pelas bolsas concedidas no Brasil e exterior; sem as quais
esse trabalho no seria possvel.
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Resumo
Uma hiptese heurstica de carter terico nossa reflexo inicial, a saber: a de
que as instituies e a dinmica da participao poltica na Atenas do sculo V a.C.
acabam por configurar uma arena de lutas e consagrao de tipo poltica, que pode ser
caracterizada como um campo poltico moda bourdieusiana. E, como corolrio: no
campo poltico Ateniense possvel discernir e caracterizar as Grandes Dionsias como
um espao de lutas simblicas, um festival religioso que canalizava tenses, ritualizava
as divises sociais, representava o poder de Atenas e punha em cena as prprias
disputas polticas dos atenienses.
O objeto de pesquisa da tese consiste em analisar como se caracterizou a
produo textual da ltima gerao do sculo V a.C., sobretudo no que se refere ao
problema da poltica e da guerra em As Suplicantes e As Fencias de Eurpides e, como
contraponto, em algumas peas de Sfocles, Aristfanes, bem como Tucdides. As
obras teatrais a serem utilizadas so aquelas que foram produzidas durante a Guerra do
Peloponeso, conflito que, com alguns armistcios, cobriu praticamente os ltimos trinta
anos do sculo V a. C. Alm de determinados temas como a poltica e a guerra, sero
analisadas as estruturas poltica e social que punha em destaque as obras teatrais no
contexto ateniense. Neste caso, ser fundamental uma anlise detalhada da dinmica de
funcionamento do maior festival ateniense no qual eram representadas tragdias e
comdias, isto , as Grandes Dionsias.
Palavras-chave: Grcia Clssica; Tragdia Grega; Grandes Dionsias; Euripides;
Campo Poltico; Guerra do Peloponeso.
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Abstract
This research starts with a theoretical hypothesis, namely: the institutions and
the dynamic of political participation in the Athens of the fifth century BC set up an
arena of political struggle and consecration that can be characterized as a distinguished
Pierre Bourdieu political field, which allows us to interpret certain themes of plays
staged in the Great Dionysia considering their political connections.
This thesis aims to analyze how text production featured by the latest generation
of the fifth century BC, particularly with regard to the issue of politics and war in the
Euripides' Suppliant Women and Phoenissae. As a counterpoint, will be under focus as
well some works of Sophocles, Aristophanes, and Thucydides. The dramatic plays to be
used are those that were produced during the Peloponnesian War, a conflict which, with
some truces, covered almost the last thirty years of the fifth century BC. In addition to
specific topics such as politics and war, will be analyzed the political and social
structures that connected the plays with the context of Athenian drama. In this case, a
detailed analysis will be done about the essential dynamics of functioning of the biggest
festival in which Athenian tragedies and comedies were staged, the Great Dionysia.
Key-Words: Classical Greece; Peloponnesian War; Greek Tragedy; Euripides;
Great Dionysia; Political Field.
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M694 Moerbeck, Guilherme Gomes. ________________________________ 3
Introduo ___________________________________________________ 14
1 PARTE: _____________________________________________________ 17
1. Captulo I - Poder simblico e habitus: aproximaes tericas
para a anlise das tragdias nas Grandes Dionsias ___________________ 17
1.1. Eurpides e a poltica: do extra ao intradiscursivo ______________________ 22
1.2. Entre o ritual e a poltica __________________________________________ 30
1.3. Os caminhos do ritual religioso ____________________________________ 35
1.4. A poltica e o poder simblico _____________________________________ 42
2. Captulo II - Espao, ritual e performance na cidade das Grandes
Dionsias. __________________________________________________________ 51
2.1. Dos espaos da cidade ao teatro ___________________________________ 57
2.1.2. O teatro e suas origens _______________________________________________ 61
2.2. A cidade das Grandes Dionsias. ____________________________________ 74
2.2.1. A Dionsia em Movimento _____________________________________________ 78
2.2.2. A poltica e a coregia _________________________________________________ 95
Intermezzo: O Ciclo Tebano __________________________________ 104
2 PARTE: ____________________________________________________ 109
3.Captulo III - Poltica, posio social e guerra em As Suplicantes
de Eurpides ______________________________________________________ 109
3.1.Guerra e Imprio: a construo da Liga de Delos ___________________ 109
3.2.Notas sobre a primeira fase da Guerra do Peloponeso _____________ 113
3.4.As Suplicantes e a poltica na Atenas de 425-421 a.C. __________________ 122
3.4.1. Os argumentos ____________________________________________________ 122
3.4.2. O debate _________________________________________________________ 127
3.4.3. O debate e o habitus poltico: a fora das representaes sociais na participao
poltica. _______________________________________________________________________ 134
3.4.4. Aps o debate, a guerra. _____________________________________________ 149
3.4.5. As marcas indelveis da guerra ________________________________________ 153
3.4.6. Paz e guerra no Drama Social _________________________________________ 157
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4.Captulo IV - Ambio, poder e poltica em As Fencias. _______ 166
4.1.Notas sobre a segunda fase da Guerra do Peloponeso ______________ 166
4.2.As Fencias e a poltica na Atenas de 411 - 409 a.C. ____________________ 176
4.2.1. Prolegmenos _____________________________________________________ 176
4.2.2. Os Argumentos ____________________________________________________ 178
4.2.3. Entre a trgua e a guerra: o gon tripartido ______________________________ 181
4.2.4. Um percurso tripartido: uma interpretao dos discursos de Jocasta, Polinices e
Etocles ______________________________________________________________________ 187
4.2.5. A circularidade da voz de Polinices. ____________________________________ 191
4.2.6. Etocles e a Filotimia. _______________________________________________ 195
4.2.7. E aps o debate: os caminhos para o sacrifcio ___________________________ 205
4.2.8. Tirsias, Creonte e Meneceu: Trs personagens e um destino. ______________ 205
4.2.9. Por fim ___________________________________________________________ 213
Eplogo _____________________________________________________ 215
Documentao Textual _______________________________________ 223
Compilaes de Fontes ______________________________________ 225
Material de referncia ________________________________________ 225
Bibliografia consultada ______________________________________ 226
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Introduo
H uma diviso espacial no trabalho aqui desenvolvido. Uma trajetria na qual
os temas so como grandes campos de discusso, ora tericos, ora empricos. A jornada
iniciada por meio de concepes tericas, ao lanar mo de conceitos pensados, a
priori, para desvelar os nexos, causalidades, e lgicas do funcionamento da poltica em
nossos dias. So tomados os espaos da cidade-estado antiga em um de seus rituais mais
importantes para, finalmente unir, no universo metaforizado e complexo do teatro, o
espao, a poltica, a ao social com a representao trgica. Essa difcil tarefa: a de
considerar analiticamente todas essas variveis, ser empreendida a seguir, e seu
sucesso poder ser avaliado pelo leitor nas pginas desse trabalho.
Uma hiptese heurstica de carter terico nossa reflexo inicial, a saber: a de
que as instituies e a dinmica da participao poltica na Atenas do sculo V a.C.
acabam por configurar uma arena de lutas e consagrao de tipo poltica, que pode ser
caracterizada como um campo poltico moda bourdieusiana. E, como corolrio: no
campo poltico Ateniense possvel discernir e caracterizar as Grandes Dionsias como
um espao de lutas simblicas, como um festival religioso que canalizava tenses,
ritualizava as divises sociais, representava o poder de Atenas e punha em cena as
prprias disputas polticas dos atenienses.
Nos espaos abertos da poltica, fosse na assembleia ou no teatro, as metforas
so objeto dessa pesquisa que marca a tentativa de, a partir do emaranhado da
informaes empricas, mostrar uma frao do funcionamento desse campo poltico, por
meio do universo mtico do teatro trgico.
Quatro captulos podero ser vistos a seguir. No primeiro deles, desenvolvo uma
discusso eminentemente vinculada ao problema do poder. A tragdia grega e a poltica
um tema profundamente pesquisado, mas, cada vez mais importante em nossos dias,
marca o tom inicial das principais questes. Retomo tal temtica mais adiante, avaliando
algumas das ltimas perspectivas acerca dos possveis nexos entre a poltica e a tragdia
grega. A seguir, poder se entrever uma tentativa, por meio da antropologia de Victor
Turner, de se discutir e mensurar a anlise da tragdia imersa em um ritual - as Grande
Dionsias; - e da prpria tragdia como ritual. Das concluses de tal debate, proporei um
tipo de abordagem dos elementos simblicos da tragdia, quase sempre apoiada nas
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consideraes de Pierre Bourdieu, num esforo de calcular em que medida a tragdia e
o festival mencionado esto incrustados no universo religioso da plis. A partir disso,
ser enfatizado como as Grandes Dionsias funcionam como um componente
fundamental do jogo de poder e lutas classificatrias de poder simblico durante a
Guerra do Peloponeso.
No segundo captulo, sero abordados os espaos da cidade, enumerados e
verificados em suas funes, mas, sobretudo, pensados nas maneiras pelas quais o
espao molda e influi nas aes individuais e coletivas. Tendo partido de algumas
teorias sobre a construo dos espaos sociais de Henri Lefebvre, tento incluir os
mbitos teatrais na dinmica de construo de significados culturais e de poder na
cidade de Atenas durante a Guerra do Peloponeso. Da configurao espacial da cidade,
passo dinmica dos corpos e da estrutura de funcionamento do festival mais
importante da cidade naquele tempo, a Dionsia em movimento.
Do espao da cidade, ao iniciar o terceiro captulo, vislumbro os problemas
conceituais e, de anlise mais geral, do problema da guerra na Antiguidade Clssica.
Das concepes e teorias sobre a guerra, dada ateno, primeiro, ao contexto da
primeira fase da Guerra do Peloponeso. Depois, da guerra real fantasia da guerra
mtica, contextualizam-se as duas obras de Eurpides que so as principais fontes
primrias aqui utilizadas. O Ciclo Tebano, em suas guerras fratricidas, d o tom ao
universo diegtico das obras que se inserem nesse mito. O percurso continua: da teoria
poltica aos espaos e, destes, volve-se vida na plis, s que por meio de As
Suplicantes de Eurpides. Na tragdia apresentada aproximadamente em 421 a.C., tem-
se a cidade de Atenas recebendo as mes dos filhos de Argos, mortos na guerra, contra a
sempre tirnica e negativa Tebas. A intransigncia de seu soberano, Creonte, abre
espao para debates acalorados sobre o melhor sistema de governo, a importncia da
paz e a inexorabilidade da guerra naquela sociedade. Atenas, em uma imagem
construda por Eurpides, aparece soberana em seus cidados e cnscia do dever da
manuteno da democracia. No entanto, o Arauto tebano est l para envolver os
espectadores em dvidas que no so facilmente resolvidas. Dvidas de um Atenas que,
logo, ter uma breve trgua na terrvel guerra em que envolveu toda a civilizao
helena.
A segunda fase da Guerra do Peloponeso encontra-se no ltimo captulo do
presente trabalho. Se, na realpolitik, os nimos da cidade democrtica parecem cada vez
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mais exaltados, enquanto uma classe poltica, a dos demagogos, invade a pnyx com seus
discursos encantatrios, na guerra, tem-se a profunda derrota na Siclia, que abre um
novo captulo do agir poltico com o heterodoxo Alcmenida, Alcibades. Na cidade, a
exaltao leva stasis, a guerra civil que coloca oligarcas e democratas em confronto
aberto pela primeira vez no sculo V a.C. Em 411 a.C., Eurpides leva cena ateniense
uma luta fratricida entre irmos de sangue tebanos, que se pe numa guerra cega, na
escurido da busca irrefletida de poder. Enquanto a Atenas histrica j no tem mais a
segurana de outrora, se questiona no teatro, em As Fencias, se possvel ter atitudes
benvolas e altrustas em relao a sua prpria cidade. O drama social estava aberto nas
lutas fratricidas dos helenos. Era o tempo de mostrar-se claramente, era o momento de
se expor as veias nos debates da cidade, na Eclsia, na gora e no teatro.
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1 PARTE:
1. Captulo I - Poder simblico e habitus: aproximaes tericas para a anlise das tragdias nas Grandes Dionsias
A primeira vez em que expus algumas tentativas de anlise do Campo Poltico
ateniense via Pierre Bourdieu, em particular do funcionamento das Grandes Dionsias
no sculo V a.C., foi em minha dissertao de mestrado defendida em 2007 e,
posteriormente, em um artigo publicado em 20091. Inevitavelmente, recorrerei a
algumas daquelas reflexes, pois as bases tericas pelas quais organizo a anlise do
funcionamento das Grandes Dionsias, que esto fortemente assentadas em ideias do
referido socilogo francs, encontram-se, em certo grau de desenvolvimento, em meus
prprios escritos de outrora.
O uso da sociologia para analisar fenmenos artsticos, movimentos culturais e a
arte como um todo relativamente antigo. Foi na primeira metade do sculo XX, que
Norbert Elias distanciou-se do fetichismo da obra, do gnio criador do artista e do
ambiente puramente esttico, para avaliar como questes exteriores ao prprio universo
artstico influem na maneira pela qual operam os artistas em relao composio dos
diferentes grupos sociais, sejam de ordem poltica, econmica ou cultural.
Os estudos voltados recepo tentam compreender melhor as conexes que a
produo dos autores mantm com o pblico. Isto quer dizer que, os valores pelos quais
uma obra de arte pode ser julgada numa sociedade/cultura no se resumem apenas ao
nvel da produo ou ainda da apreciao esttica; mas, igualmente, atm-se elementos
relativos moral, sensibilidade, racionalidade econmica ou ao senso de justia. As
formas de rejeio obra de arte so ainda mais importantes anlise sociolgica do
que o prprio entendimento de como se constitui a admirao2.
A produo une, no ambiente da criao artstica, um universo mltiplo em
coordenao, desde a concepo de uma dada obra, at os trabalhos tcnicos exigidos
para p-la em funcionamento. Por fim, a mediao compreende o conjunto de relaes e
operaes em determinada esfera do social que acaba por viabilizar e dar a forma
1 MOERBECK, Guilherme. O campo poltico de Atenas no sculo V a.C. In: Revista Phonix. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, Ano 15, V.15, n 1, p. 114-134. 2 HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. Bauru: EDUSC, 2008, p. 71-86.
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institucional da prpria obra de arte. Os mediadores so desde pessoas que no mundo
contemporneo costumam atuar em rede de cooperadores, em suas mais variadas
aptides tcnicas, at mesmo instituies, como museus, teatros e outras formas de
espaos em que a expresso artstica se faz presente3. No apenas o modus operandi do
mundo antigo distinto do contemporneo, como se ver no desvelar dos captulos que
se seguem, tambm a instituio que promovia, os mediadores e produtores guardam
diferenas significativas daqueles do mundo de hoje.
A semitica da imagem nos apresenta um diagrama possvel para compreender
os processos de criao de significado, as semioses. So ao menos trs nveis em que
podemos visualizar os signos: como cones, ndices e smbolos. Esse ltimo, mantm
com o objeto ao qual se refere, uma relao que depende de convenes sociais para se
tornar inteligvel e operar um grupo social4. As convenes so costumes considerados
vigentes, no interior de uma comunidade, o que garante, de alguma maneira, no como
norma, a regularidade de resultados no mbito da teoria da ao social5.
Os smbolos, portanto, podem ser manipulados e, assim, conseguirem efeitos,
mais ou menos eficazes, segundo o enraizamento das convenes em certo grupo social.
Os smbolos podem mesmo ser pensados de maneira complexa, quando se remetem
organizao da sociedade e s formas de padronizao do mundo segundo sistemas
simblicos, que so importantes nos modos como as pessoas interpretam, julgam e
compreendem sua sociedade. Assim, o smbolo serve como um guia ao comportamento.
Ento, se de alguma maneira, os smbolos, imiscudos em ideologias e representaes
sociais, podem influir na ao humana, a manipulao desses smbolos os coloca como
instrumento valioso junto aos mecanismos de poder6.
Bourdieu produziu um conjunto de reflexes que mostram como o poder, por
meio de suas manifestaes simblicas, opera em certos grupos sociais organizados e
estruturados em torno de prticas autorreguladas. Como poder simblico tem-se:
3 Idem, Ibidem, p. 87-125. 4 PIERCE, Charles Sanders. Semitica e Filosofia. Textos escolhidos. Trad. De Octanny Silveira da Mota e Lenidas Hegenberg. So Paulo: Cultrix/EDUSP, 1975. 5 ...de modo racional referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como condies ou meios para alcanar fins prprios (...) Toda a ao e, por sua vez, particularmente a relao social podem ser orientadas, pelo lado dos participantes, pela representao da existncia de uma ordem legtima. Cf. WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad.: Regis Barbosa e Karen Esalbe Barbosa. Braslia/So Paulo: UNB/Imprensa Oficial, 1999, vol. 1, p. 13-22. 6 GEEETZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2011, p. 121-126.
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O poder simblico no reside nos sistemas simblicos em forma de uma fora ilocucionria, mas sim que se define numa relao determinada e, por meio desta entre os que exercem o poder e os que lhe esto sujeitos, quer dizer: na prpria estrutura do campo em que se produz e reproduz a crena.7.
Bourdieu parte da teoria do poder que mais aceita atualmente: a relacional.
Nesta, o poder deve compreender uma relao entre dois sujeitos desiguais, dos quais o
primeiro obtm do segundo um comportamento que, em caso contrrio no ocorreria.
Se tomarmos o conhecido cientista poltico Robert Dahl, veremos que, a influncia
[conceito mais amplo, no qual se insere o de poder] uma relao entre atores, na
qual um ator induz outros atores a agirem de um modo que, em caso contrrio, no
agiriam8. a partir desse tipo de premissa, que Bourdieu constri sua teoria do campo.
Toda constituio de um Campo, seja ele poltico, econmico, cientfico ou
ainda artstico, passa por um processo de autonomizao progressiva do sistema de
relaes de produo, circulao e consumo de bens simblicos. Em qualquer campo,
vai se dando um processo de constituio de certas autonomias, nem sempre plenas, em
relao s outras esferas de atuao na sociedade, bem como nas formas pelas quais se
legisla dentro de um dado campo9.
Em nosso caso, requer-se alguma digresso acerca de como se organiza o campo
poltico, pensado de maneira abstrata, como uma categoria analtica e, depois, uma
aproximao emprica com a Atenas do sculo V a.C., adaptando-se, assim, mutatis
mutandis, o que deve ser mudado; posto que se trata de uma reflexo nascida para
compreender as formas variadas de relaes de poder em algumas esferas sociais
contemporneas e no as do mundo antigo.
Prefiro pensar o campo poltico de maneira espacial, como uma espcie de
campo de foras, uma arena de lutas que confere uma estrutura s formas pelas quais se
dividem o trabalho e o poder dentro dos espaos de participao, representaes e das
prticas polticas. Todo o campo se constitui como uma esfera de profissionais. Isto
significa dizer que se faz necessrio estabelecer saberes especficos, competncias para
se atuar legitimamente e habilmente nele. A constituio dessa esfera de profissionais
restringe a participao, pois a instaurao de um jogo poltico conta com o
7 BOURDIEU, Pierre. O Poder simblico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.14. 8 DAHL, Robert. A. Modern political analysis. Prentice-Hall: Englewood Cliffs, 1963, p. 63. 9 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Trad. Srgio Miceli et alii. So Paulo: Perspectiva, 2003, p.99.
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desapossamento do poder poltico da mo de uma maioria. O surgimento das formas de
regulao e de condies sociais/culturais para a participao no campo faz aparecer, de
forma concomitante e progressiva, um contrato tcito, uma espcie de conveno
interiorizada que limita as formas de atuao dentro do campo, que se trata de uma
declarao de adeso ao jogo. A illusio , assim, produto da formao do campo poltico
e condio para que ele funcione10.
Na realidade, o que faz com que esta cultura poltica permanea inacessvel maioria das pessoas , sem dvida, menos a complexidade da linguagem em que ela se exprime do que a complexidade das relaes sociais que constituem o campo poltico que nela se reexprime11.
A estrutura pela qual se forma a illusio o crdito e a crena estabelecidos no
funcionamento do campo poltico. Assim, toda a forma de ganho poder poltico, que
Bourdieu gosta de chamar de capital poltico, uma forma de poder simblico
acumulado. Mas a base do referido poder est firmada na crena, inclusive o que se
possa referir ao problema do carisma, no reconhecimento que produz obedincia. O
poder das palavras - sem esquecer, no entanto, que a fora enunciativa de uma
expresso no se reduz ao significado das palavras; - em muito, delegado ao de
um porta-voz.12 O uso da linguagem depende da posio social do locutor, a quem se
abre a lngua da instituio, a palavra oficial, legtima.
Um enunciado performativo est condenado ao fracasso quando pronunciado por algum que no disponha do poder de pronunci-lo ou, de maneira mais geral, todas as vezes que pessoas ou circunstncias particulares no sejam as mais indicadas para que se possa invocar o procedimento em questo, em suma, sempre que o locutor no tem autoridade para emitir as palavras que enuncia [...] Conforme se pode constatar, todos os esforos para encontrar na lgica propriamente lingustica das diferentes formas de argumentao, de retrica e de estilstica, o princpio de sua eficcia simblica, esto condenados ao fracasso quando no logram estabelecer a relao entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituio que o autoriza pronunci-lo13.
O capital simblico pode ser acumulado por meio de lutas polticas passadas, de
feitos heroicos, pode mesmo vir de outro domnio, como o econmico; e todo ele pode
ser mobilizado, isto , objetivado na materializao de algum feito no campo. Quanto
10 BOURDIEU. Op. cit. 2004, p. 162 173. 11 Idem, Ibidem, p. 178. 12 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas: O que falar o que dizer. Trad. Srgio Miceli et alii. So Paulo: Edusp, 2008, p. 85-7. 13 BOURDIEU. Op. cit. 2008, p. 89.
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mais institucionalizado estiver o campo, maior a tendncia a produzir disciplina pela
obteno dos postos e aparelhos nele criados.
Por fim, o habitus uma categoria fundamental para se compreender as formas
mais profundas que atam os homens em campos, que acabam dando coeso e orientao
s prticas neles contidas.
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condies de existncia produzem habitus, sistemas e disposies durveis e transponveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princpios geradores e organizadores de prticas e de representaes que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a inteno consciente de fins e o domnio expresso das operaes necessrias para alcan-los, objetivamente reguladas e regulares sem em nada ser o produto da obedincia a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser produto da ao organizadora de um maestro14.
Pode-se pensar o habitus em relao ao mundo prtico, como sistema de
estruturas cognitivas motivadoras. um mundo de fins j realizados e, embora possam
ser arbitrrios, tendem a aparecer como necessrios e at naturais. As antecipaes do
habitus so espcies de hipteses prticas fundadas na experincia passada.
As prticas so a presena ativa das experincias passadas que, em cada
indivduo, sobre a forma de esquemas de percepo, de pensamento e ao, garantem a
permanncia das mesmas prticas ao longo do tempo. O habitus acaba por funcionar
como a materializao de uma memria coletiva, reproduzindo nos sucessores a
aquisio dos predecessores15. Est inclusive, alm das tradies, pois, neste caso, a
fidelidade encontra-se no nvel de algo conscientemente mantido; no se trata tambm
de estratgias que permitem a manuteno voluntria de imagens do passado. Assim, o
habitus um princpio gerador de improvisaes reguladas. A incorporao de tais
estruturas permite o habitar nas instituies, mant-las em atividade, emprestando a elas
sentido, mas, historicamente, tambm, transformando-as16.
O campo poltico ateniense no sculo V a.C. carece de alguns elementos que do
forma aos diversos campos polticos no mundo ocidental contemporneo, mas, ainda
assim, a utilizao da categoria em questo mostra eficcia analtica. De Clstenes a
Pricles a vida poltica em Atenas sofreu alteraes em suas prticas e nas formas
institucionais pelas quais era expressa, sempre no sentido do alargamento do nvel em
14 Idem, O senso prtico. Petrpolis: Vozes, 2009, p. 87 15 Id., Ibid., p. 90. 16 Id., Ibid., p. 95.
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que se dava a participao popular, obedecendo a regras como a classificao censitria
na qual estava inscrito o cidado17.
Alhures pude sistematizar as formas pelas quais se davam as relaes de poder
no campo poltico ateniense18. O que parece mais relevante agora notar que, na Atenas
do Perodo Clssico, havia um forte processo de institucionalizao da poltica, de
racionalizao da forma pelas quais os conflitos eram dirimidos. Fossem estes de ordem
criminal ou poltica, a verdade que no havia uma distino e separao to rgida
quanto s atribuies de cada rgo da plis. Outro dado que no havia
profissionalizao da carreira de poltica, ao menos no nvel em que ns a vemos em
tempos atuais, mas, certamente, h elementos que se somam ao esforo necessrio para
se destacar politicamente. Geralmente, por meios econmicos, era possvel angariar
capital simblico no campo poltico, ao fazer da participao, por exemplo, meio e fim
em rituais e liturgias da cidade. Nesse sentido, ia-se acumulando capital cultural e
simblico, como costumavam fazer os mais ricos ao contratarem professores de
retrica. As regras e instituies polticas estavam reservadas e eram reguladas por um
grupo social apenas, os cidados.
1.1. Eurpides e a poltica: do extra ao intradiscursivo
Falar sobre a trajetria de um poeta recorrer a um nmero exaustivo de fontes
produzidas em pocas e estilos distintos: das comdias de Aristfanes dos sculos V e
IV a.C., passando pelas prprias tragdias do autor em questo, muitas vezes utilizadas
para entrever relaes entre o trgico e os filsofos de sua poca, at chegarmos ao
lexicgrafo Filcoro do sculo IV a.C., ou ainda Stiro de Callatis, seu bigrafo no
sculo II a.C., alm de fragmentos variados do Perodo Helenstico e da Scholia
Medieval. H, ainda, anedotas que refletem o conhecimento tradicional sobre os poetas
e seus destinos. Embora, s vezes, possa ficar parecendo que h uma separao
17 CANFORA, Luciano. O cidado In: VERNANT, Jean-Pierre (org). O Homem grego. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presena, 1994. p. 103-30. 18 MOERBECK, Guilherme. A forma, o discurso e a poltica: As geraes da tragdia grega no sculo V a.C. Niteri, Universidade Federal Fluminense, 2007. Dissertao de mestrado.
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significativa entre os poetas biografados, a verdade que h uma sobreposio das vidas
e obras tanto de squilo, Sfocles quanto de Eurpides19.
Uma varivel sempre evocada para se medir o apreo e fama de um autor
dramtico era o veredito dado pelos juzes das competies teatrais; o que no ,
necessariamente, um dado absoluto. A forma como vemos a discrepncia entre vitrias
de Sfocles e Eurpides pode levar m interpretao dos dados, indicando que este
ltimo era um autor de segunda linha. Deve-se levar em conta tambm que, ser
escolhido entre os trs trgicos a apresentarem as peas nas Grandes Dionsias, j era
muito significativo. Sobretudo, se percebermos a permanncia das citaes de obras de
Eurpides em Aristfanes, Plato, Demstenes, Licurgo e squines.
A Vita um trecho significativo sobre a vida de Eurpides, escrita no sculo II
a.C., hoje a maior fonte sobre a vida do poeta ao qual podemos recorrer. A parte mais
significativa das consideraes que compem a Vita formada pelas comdias antigas e
pelas prprias obras de Eurpides. Segundo tal fonte, o pai do tragedigrafo,
Mnesarchides era um comerciante e sua me, Cleito, uma feirante20. Segundo Filcoro,
tal histria inverdica21.
Eurpides nasceu em 480 a.C., provavelmente em Salamina [ou 485/4 a.C.
segundo outras fontes22] e escreveu cerca de oitenta obras, das quais nos restam
dezenove. Como si acontecer com vrias das figuras notrias de Atenas, seu pai
recebeu um orculo de que seria vitorioso; tendo o poeta Eurpides, segundo tal
tradio, vencido jogos em Atenas. Da amizade com filsofos como Anaxgoras,
Scrates e Protgoras, teria nascido a capacidade inovadora de Eurpides, por isso
mesmo os prlogos, os discursos filosficos emitidos por certas personagens e a
linguagem retrica que aparece em suas tragdias. Na verdade, como ressalta Mary
Lefkowitz, as semelhanas e relaes mais prximas de Eurpides com Anaxgoras
surgiram de escritos do perodo helenstico; em forma de acusao indireta, j que
19 LEFKOWITZ, Mary R. The lives of the Greek poets. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2012, p. 87 e GREGORY, Justina. Euripidean Tragedy. In: A companion to Greek Tragedy, __________(Ed.) Malden: Blackwell Publishing, 2005, p. 233. 20 Aristfanes faz referncia a isso em Os Acarnenses, v. 478 e As Rs, v. 840. 21 Cf. FgrHist. 328 F 218. 22 Cf. FgrHist. 239 A 50.
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Anaxgoras teria sido acusado de impiedade. H muitos indcios, discutveis ou no,
que indicam, em certo sentido, relaes de Eurpides com os filsofos23 de sua poca24.
Quanto ao que se refere ao carter mpio que pudesse ser imputado a Eurpides,
Christiane Souvirnou-Inwood faz significativa reflexo, pois, em primeiro lugar, dever-
se-ia ter em vista que Eurpides foi o segundo poeta mais querido de seu tempo, apenas
perdendo em popularidade para Sfocles. Alm disso, as possveis ligaes intelectuais
de Eurpides com os filsofos sofistas no implicam impiedade daquele com os deuses.
A viso de Aristfanes em relao a Eurpides muitas vezes um exagero, uma
estratgia cmica para fazer rir, no deve ser tomada ao p da letra. Trata-se de uma
distoro prpria da comdia. A dificuldade em Dioniso em escolher entre squilo e
Eurpides em As Rs um indcio de que a lgica do atesmo no inequvoca.
[...] eu estou sugerindo que o discurso religioso de Eurpides poderia ser transformado por Aristfanes em piada, ao fato que Eurpides persuadia o povo que no havia deuses, pois Eurpides mostrava o lado mais sombrio dos deuses, mais explicitamente que outros e fazia questionamentos mais perturbadores, alm de incluir elementos derivados da sofstica e do pensamento de Anaxgoras. [...] Eu argumentarei que Eurpides emprega esses ditos elementos da sofstica e de Anaxgoras no contexto de responder s necessidades religiosas daquele tempo25.
As inovaes de Eurpides dizem respeito forma e s tcnicas do teatro grego.
Em seus ltimos anos, tendeu utilizao de metros artificialmente arcaicos em seus
versos. pequena participao do coro em suas tragdias, sobrepem-se dilogos
intrincados e ritmos derivados, sobretudo de suas formas agonsticas [stichomythia e
antilabai] 26. Mesmo em Eurpides, so raros os usos de linguagem coloquial, j que o
emprego de um estilo grandiloquente foi comum a todos os trgicos. Os substantivos
23 HALL, Edith. Political and cosmic turbulence in Euripides Orestes In: Tragedy, comedy and the polis Greek drama conference, Tragedy, comedy and the polis. Bari: Lavante Editori, RANE -BARI, 11; 263-286. 24 LEFKOWITZ. Op. cit. p. 89-91. Vrios de seus inventos no foram bem aceitos por seus contemporneos, vide, por exemplo, os comentrios de Aristfanes em As Rs e algumas consideraes de Aristteles em sua Potica. O contexto em que Eurpides produziu foi a crise do final do sculo V a. C.. Nesta poca, no somente eram postas em questo a identidade ateniense, a aparente harmonia entre cidados ricos e pobres, mas tambm a linguagem mtica em favor do racionalismo ligado aos sofistas e filsofos como Xenfanes MOERBECK. Op. cit. p. 83. Cf. tambm XENFANES. Stiras. DK 21b 10-2 a. No necessariamente os personagens de Eurpides so mais realistas do que os de Sfocles, como sugeriu Aristteles Potica 1460b 33-4; O Odisseu em Filoctetes tem muito dos polticos corruptos de Atenas naquele perodo. Eurpides tambm gostava de refletir sobre certas caractersticas da natureza humana, mais do que se debruar sobre a psich de certos indivduos. GREGORY. Op. cit. 2005, p. 205-8. 25 SOURVINOU-INWOOD, Christiane. Tragedy and Athenian religion. Maryland: Lexington Books, 2003, p. 297. 26 DIHLE, Albrecht. A History of Greek literature: from Homer to the Hellenistic Period. Trad.: Clare Krojzl. London and New York, Routledge, 1994. p. 127-8.
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abstratos, comuns prosa do final do sculo V a.C., tambm permearam a obra de
Sfocles e Eurpides. Este gostava de formulaes enrgicas que geralmente
incorporavam paradoxos. O indivduo, ainda mais do que em Sfocles, ganha
proeminncia em monlogos e duetos. Eurpides gostava de inovar e retomar estilos
mais antigos, como se pode ver com o caso de uma de suas ltimas tragdias, As
Bacantes27.
Ateniense de nascimento, Eurpides circulou significativamente tanto na tica
quanto algures. Em Mgara e no Cabo Zoster, na tica, onde havia um santurio do
deus Apolo. Teria sido proxenos da Magnsia em Atenas. De acordo com a tradio,
Eurpides, em data incerta, teria deixado Atenas para a corte da Macednia, sob o
reinado de Arquelau.
A ida do poeta para a Macednia no significou sua infinita tristeza com Atenas,
mas, na verdade, corrobora a ideia de que Arquelau estava levando vrios poetas,
msicos e escultores para a sua corte. Sobretudo, a mudana de Eurpides para a
Macednia indicativo que a popularidade da tragdia no havia diminudo e que
havia uma crescente difuso uma tendncia que aceleraria no sculo IV a.C.28. A
verdade que, no sculo IV a.C., Sfocles manteve sua reputao, squilo saiu de moda
e Eurpides se tornou o mais festejado dos poetas trgicos. O critrio de Aristteles para
a excelncia era a forma como o protagonista respondia aos seus infortnios e no
como, ao fim, se davam os eventos.
Inventor da intriga, Eurpides multiplicou as personagens, episdios, artifcios e surpresas em suas tragdias. Nascido no mbito do debate judicial, permeado de retrica sofista, o trgico em questo mostrou personagens que defendem veementemente suas ideias. Certamente influenciado pelos sofistas, Eurpides coloca, no somente na forma de seus debates, mas em seus contedos, elementos da referida corrente filosfica. Em suas obras, os valores exteriores, relativos natureza do indivduo so depreciados em funo da euforizao do que interior, e de uma vida simples. A mudana mais profunda ensejada pela obra de Eurpides talvez tenha sido a sua avaliao do mito, posto que, o nosso autor, desintegra a noo clssica de que os deuses so essenciais para este mundo. A forma tradicional dos mitos e o poder dos deuses, outrora inabalveis, no foram seus nicos alvos. Os prprios heris foram humanizados e tornados maltrapilhos, por vezes desprezveis. Gnio incompreendido ou germe de outra gerao? A segunda opo a que mais me apraz. Eurpides, de maneira, por vezes sutil, discutia as bases das convenes da diviso social ateniense. Em seu tempo ganhou
27 GREGORY. Op. cit. 2005. p. 233-7. 28 Idem, Ibidem. p. 233.
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apenas cinco vezes o prmio das Grandes Dionsias, entretanto, deixou um legado permanente aos olhos dos artistas e do mundo ocidental29.
Eurpides morreu entre setenta e setenta e cinco anos e teria sido enterrado na
Macednia. Segundo algumas fontes, duas tumbas de Eurpides foram achadas em tal
reino, uma em Pela, a capital, e a outra, prxima fronteira, em Aretusa. Isto pode ser
visto como um elemento honorfico, pois apenas os heris recebiam duas tumbas. H a
informao ainda de que, aquando de sua morte, Eurpides foi abertamente pranteado
por Sfocles, seus atores e tambm pelo pblico presente no teatro de Dioniso em
Atenas30.
Acaso perguntassem ao historiador italiano Diego Lanza, qual a relao entre a
produo trgica e a poltica, a resposta no seria menos inequvoca: trata-se no apenas
de um teatro que apresenta temas polticos, mas de um teatro poltico. Dessa forma, para
Lanza:
O produto cultural se pe, na verdade, no imediatismo do horizonte mvel do saber, e, simplesmente pela mediao que ele entra em contato com a estrutura social. Os modelos, as formas, as figuras poticas, assim como os contedos do pensamento, fazem parte de um sistema ideolgico que sozinho, na sua complexidade e sua sistematicidade, est em relao direta com a estrutura social e suas contradies. Todos os fenmenos da vida intelectual so, ento, mediados pela ideologia, cada um segundo suas prprias especificidades, e no contexto desta especificidade que deve se desenvolver a ao do crtico, sem, contudo, nelas se encerrar31.
Dessa maneira, a ideologia no pode ser reduzida a mero ato de propaganda;
mais profundamente, ela um operador cultural que fortalece os nexos entre os
cidados e est entranhada nas formas pelas quais se organizam os espetculos na plis.
A ideologia da cidade democrtica um enorme sistema de significados na qual se
inscreve a produo cultural ateniense ps Clstenes. Assim, segundo Lanza, a plis est
ancorada em sua organicidade poltica eu mesmo diria ancorada em um campo-
29 MOERBECK. Op. cit. 2007. p. 83. DELEBECQUE, douard. Euripide. In: Dictionnaire de la Grce antique. Paris: Encyclopaedia Universalis Albin Michel, 2002, p. 543-551. medida que a filosofia sofista est incrustada na obra de Eurpides motivo de controvrsias. DABDAB-TRABULSI, Jos Antnio. Dionisismo, Poder e Sociedade: Na Grcia at o fim da poca Clssica. Belo Horizonte: Humanitas, 2004, p.154-170. e GREGORY, Justina. Eurpides as social critic In: Greece & Rome, vol. 49, n 2, October 2002, p. 145-162. 30 LEFKOWITZ. Op. cit. p. 91-2. 31 LANZA, Diego. Le tyran e son public. Traduit par Jeanine Routier-Pucci. Paris: Belin 1997, p. 12.
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habitus que se torna ponto de partida para os critrios de avaliao da vida moral e do
saber32.
Muito embora as consideraes de Lanza sejam de todo razoveis, muitas vozes
dissonantes se puseram em desacordo quanto leitura da tragdia como um teatro
poltico. Japer Griffin, por exemplo, sempre se mostrou bastante reticente em
empreender um estudo da tragdia considerando seus nexos polticos, com algumas
ressalvas ao caso de Eurpides. Inclusive, afirmou que a tragdia produzida
anteriormente ao ltimo dos grandes trgicos no devia encorajar a crtica social. Para
Griffin, a tragdia estava muito mais ligada ao apuro esttico em suas conexes com o
elemento emocional do que necessariamente intelectual33.
Parece ponderado afirmar que, muito mais do que estabelecer dicotomias entre
emocional versus intelectivo, mais profcuo buscar as maneiras pelas quais possvel
analisar a tragdia e seus nexos polticos intra e extradiscursivos. Foi Pierre Vidal-
Naquet que trouxe luz a esse debate. Primeiro, distinguindo as formas pelas quais dever-
se-iam se dar as leituras da comdia de um lado e da tragdia de outro. Isso no
significa dizer que no seja possvel considerar ambas as fontes em um mesmo trabalho,
mas que se devem tomar cuidados quanto estrutura narrativa, que acaba por distanciar
fortemente os gneros teatrais. Enquanto a comdia tica punha em cena uma cidade e
seu povo - invertendo o universo das mulheres e trazendo os homens, inclusive em
cargos polticos importantes, ao achincalhamento pblico; - no caso do gnero trgico, a
presena concreta das instituies democrticas residual, ao menos no corpus do qual
dispomos. Em suma, na tragdia o povo no personagem, salvo excees, e, embora o
discurso democrtico imiscua-se sub-repticiamente nos enredos, a verdade que quase
sempre est metamorfoseado pelo mundo heroico de outrora34.
A tragdia, diferente da diviso dos papis sociais tipicamente desenhados, com
as mulheres dentro do oikos e os homens na vida pblica, em diversos momentos,
subverte tal lgica, ao pr em cena mulheres que manifestam sua independncia e
ultrapassam os limites da referida diviso. A tragdia, por outro lado, tambm coloca
32 Idem, Ibidem, p. 12-3. 33 A viso platnica da tragdia deve ter influenciado fortemente o autor. GRIFFIN, Jasper. Apud: GREGORY Op. cit. 2002, p. 145. 34 Quanto ao simples cidado, muito raro que se exprima diretamente, enquanto tal, em squilo e em Sfocles. Em Eurpides, ser diferente, j que houve um pequeno campons, um autourgs, a falar na condio de marido de Electra. Nos seus predecessores, h sempre um deslocamento. A tragdia no um espelho direto do social e do poltico, ela um espelho quebrado. (VIDAL-NAQUET, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 118).
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em cena mulheres envolvidas com diversas formas de ritual, fato bastante comum na
vida cotidiana do sculo V a.C.35.
A teatralizao da experincia cvica ocorre em vrios contextos institucionais e
prticas discursivas. A comdia antiga , segundo Froma Zeitlin, qui, a forma de arte
mais identificada com a cidade democrtica do sculo V a.C. tal gnero se utiliza de
diversos espaos, como o mercado, o teatro, o ginsio, e o templo, para organizar seus
enredos com grande liberdade de expresso. Mostram-se tanto as pretenses e mentiras
da elite, quanto as fantasias ambivalentes e os anseios proibidos do povo36.
Considerando o humor, necessrio que o disfarce seja evidente para os
espectadores. Entre os dois polos, o masculino e o feminino, h gradaes, nos quais
aparecem os artesos e os efeminados. A ideia de que mulheres assumem o controle
poltico, acaba por denotar, no teatro de Aristfanes, a falta de masculinidade e a falha
das polticas masculinas. A lgica da troca das indumentrias liga-se, nesse sentido, ao
aumento do poder feminino e sujeita os homens vergonha pblica37. De alguma forma,
as fronteiras entre homens e mulheres so alargadas, mas tambm reforadas. A ideia de
Zeitlin deixar de lado a noo de uma utopia, como um mundo imaginrio do e se,
mas perceber uma pea que constri uma verso cmica de uma realidade social
ateniense na apresentao teatral38.
H duas posies, certamente relevantes, para a forma pela qual a tragdia ser
analisada daqui em diante.
A primeira delas a de Julin Gallego que, ao analisar as tragdias de squilo,
observou ser possvel estabelecer relaes entre a obra e seu contexto histrico, desde
que no se tente fazer relaes diretas; como se, para cada personagem do mundo
trgico houvesse um referente histrico correspondente. Deve haver o estudo
simultneo do funcionamento e da organizao do sistema democrtico ateniense com a
35 Com certeza, as mulheres atenienses viviam numa sociedade patriarcal que oferecia a elas pouco poder sobre a sua prpria pessoa e nenhum papel nas decises polticas. Todavia, uma variedade de trabalhos (tarefas domsticas, trabalho agrcola, indstria artesanal, cuidado com as crianas) e responsabilidades religiosas (festivais, servio nos cultos, obrigaes nos rituais, ritos de passagem, sacerdcio) levavam as mulheres atenienses para fora de suas casas e esfera pblica. Embora essas atividades no se encaixem perfeitamente na ideia masculina do poltico, elas eram em sua natureza pblica e desempenhavam um papel essencial na vida e na bem-aventurana da polis ateniense. (REHM, Rush. The play of space: Spatial transformation in Greek tragedy. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 56). 36 ZEITLIN, Froma I. Aristophanes: the performance of utopia in the Ecclesiazousae. In: GOLDHILL, Simon and OSBORN, Robin. Performance culture and Athenian democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 168. 37 Idem, Ibidem, p.170-1. 38 Id., Ibid., p. 170-2.
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criao intelectual nos diversos planos em que possam ser lidas as conjunes entre as
esfera das prticas discursivas e da poltica39.
A segunda a de Peter Burian,
Eu tenho focado amplamente na dramaturgia e nas diferentes maneiras em que ns, por meio das peas, estamos avaliando as configuraes da vida pessoal e da poltica, as demandas do parentesco e as necessidades da cidade, alm dos papis convencionais dos homens e das mulheres na sociedade ateniense, bem como suas distores nas situaes extremas das lendas trgicas. Eu me aproximo de uma tentativa de relatar as diferenas que ns viemos observando nos eixos especficos da poltica contempornea ateniense. Eu no pretendo, em nenhuma circunstncia, retomar a velha maneira de analisar a tragdia como uma forma de alegoria poltica, mas eu de fato penso que as felizes circunstncias que ns temos [...] inevitavelmente levantam a questo das maneiras pelas quais cada pea pode ser dita como um reflexo de seu contexto particular40.
De maneira semelhante, Donald Mastronard afirma que as ideias de Eurpides
como construtor de alegorias polticas e de relaes diretas com os problemas polticos
de sua poca, bem como o de possuidor de ideias progressistas parecem, se tomadas
unilateralmente, inadequadas a uma anlise contempornea da tragdia41. Do mesmo
modo, tambm no possvel reduzir a tragdia s questes pedaggicas que ela pode
suscitar. Embora seja verdade que h uma funo educativa no drama tico. O fato de o
poeta ser referido como sbio, tem a ver com as maneiras pela qual ele herdeiro de
uma herana [de uma sabedoria] e dos valores de sua prpria cultura, e tambm est
ligado s maneiras pelas quais o poeta acaba por conseguir expressar os elementos
culturais valorizados em questo, por meio da reformulao dos mitos amplamente
compartilhados na cultura grega e, mais particularmente, tica42.
Os dois fios por meio dos quais os problemas polticos sero avaliados na obra
de Eurpides aqui, foram sintetizados por Justina Gregory da seguinte maneira: em
primeiro lugar, a evocao de prticas e instituies democrticas. H vrias passagens
na literatura do sculo V a.C., considerando no haver uma sntese de teoria poltica da
poca, que mostram os atenienses como conhecedores e orgulhosos de seu prprio
sistema poltico.
39 GALLEGO, Julin. La mirada trgica de la poltica: La democracia a travs del teatro de Esquilo In: _________. (org.) Prcticas religiosas, regmenes discursivos y el poder poltico: en el mundo grecorromano. Buenos Aires: Facultad de Filosofa y Letras, 2001, p. 33-4. 40 BURIAN, Peter. City, Farewell! In: McCOSKEY, Denise Eileen and ZAKIN, Emily. Bound by the city: Greek Tragedy, sexual difference and the formation of polis. Albany: Suny Press, 2009, p. 34-5. 41 MASTRONARD, Donald J. The art of Euripides: Dramatic Technique and Social Context. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, Cf. nota 62, p. 22. 42 Idem, Ibidem, p. 22-3.
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Para aqueles que cumpriram seus rigorosos requisitos para a cidadania, a democracia radical de Atenas prometia liberdade e igualdade abstraes que traduziam em acesso ao processo poltico, a garantia de livre discurso e a imparcial proteo da lei43.
Este tipo de padro discursivo acerca da democracia aquele que se tornou
cannico com a orao fnebre de Pricles44. Gregory enfatiza o elemento patritico
envolto em As Suplicantes, que caracteriza um pouco daquilo que seria o pensamento
poltico de Eurpides45. Note-se ainda que Eurpides chamou a ateno para os
problemas envoltos na moralidade do poder e do domnio em Hcuba.
Os mais difceis elementos de serem captados em Eurpides so justamente
aqueles em que o autor se debrua sobre temas mais perenes, de interesse universal. A
relao entre a vida e a morte, a natureza da moderao, a justia, a definio de
nobreza: todos esses temas assumem um carter contemporneo e poltico nas mos do
tragedigrafo. E, em diversas maneiras e graus, se tornam portadores de uma ideologia
democrtica. A infncia e a adolescncia de Eurpides se deram em uma Atenas
envaidecida por sua retumbante vitria sobre os persas. Em 455 a.C., Eurpides compete
pela primeira vez, e em 454 a.C. o tesouro da Liga de Delos transferido para Atenas.
A gerao de Eurpides, sem dvida, marcada pelas intensas relaes de poder e
econmicas que Atenas mantinha com o mundo externo.
1.2. Entre o ritual e a poltica
O ano era 1981, quando Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, lanavam
um livro em que reuniam artigos, que se tornaria um marco na historiografia sobre a
Grcia Clssica e mais especificamente sobre os estudos da tragdia grega. A verve
ensasta, bem moda filosfica de Vernant, acabou por cunhar termos que se tornaram
cannicos e amplamente discutidos nos trabalhos que o sucederam; refiro-me
43 GREGORY, Justina. Euripides and the instructions of the Athenians. Michigan: The University of Michigan Press, 1999, p. 10. 44 E o habitus encontrado em As Suplicantes. 45 Cf. on [v.28-30; 735-7; 999-1000]; o problema da autoctonia que surge tambm em Erecteu; (Cf. CALAME, Claude. Myth and performance on the Athenian stage: Praxithea, Erechtheus, Their Daughters, and the Etiology of Autochthony. In: Classical Philology. Chicago: The University of Chicago Press, v. 106, N 1, January 2011, p. 01-19).
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31
principalmente ideia de sujeito trgico46. A contribuio de Vernant foi enorme, pois
insistia na ideia de que, quando o gnero trgico se constituiu o universo mental que o
subjazia e lhe emprestava sentido cultural j havia se estabelecido. Vernant tentava
mostrar que a constituio de um fenmeno social novo como o teatro necessitava de
uma nova postura dos receptores, da audincia ateniense. O universo espiritual que
permitiu a instaurao do ficcional do teatro fez com que o gnero trgico florescesse e
que seus signos fossem inteligveis. Com a tragdia surgia a conscincia trgica. De
acordo com o prprio autor,
Se um dos traos maiores de Dioniso consiste, como pensamos, em misturar incessantemente as fronteiras do ilusrio e do real, em fazer surgir bruscamente o alm aqui embaixo, em nos desprender e nos desterrar de ns mesmos; mesmo o rosto do deus que nos sorri, enigmtico e ambguo, nesse jogo de iluso teatral que a tragdia, pela primeira vez, instaura sobre o palco grego47.
Nos ltimos anos, embora as conjecturas de Vernant e Vidal-Naquet tenham
deixado marcas indelveis na historiografia sobre o tema, os estudos tomaram caminhos
mais profundamente engajados em tendncias antropolgicas, sobretudo a norte-
americana, nos estudos concernentes performance. H hoje, uma querela bastante
produtiva na academia. De um lado, temos os estudos que defendem a ideia de que a
tragdia est, ainda, no sculo V a.C., inscrita naquilo que poderamos chamar de um
desempenho ritualstico religioso. Noutra ponta, temos aqueles que acham a relao
entre o dionisismo e a tragdia algo casual, portanto, sem ligaes substanciais entre a
religio e o teatro. Entre tais antpodas, temos posies de vrios matizes e argumentos
convincentes. Neste segmento, tenho como objetivo posicionar minha abordagem,
eminentemente atrelada noo de poder simblico em relao antropologia da
performance e dos rituais que tanto influenciam os helenistas.
A anlise da tragdia como ritual no propriamente uma novidade. Os
antroplogos da Cambridge School, no incio do sculo XX, estabeleceram uma teoria
pela qual a tragdia tinha suas origens nos rituais de morte e renascimento de Dioniso48.
certo que os estudos antropolgicos sobre o teatro contemporneo tiveram
reverberaes nas mentes dos helenistas. Um novo caminho para ver no s o teatro,
mas vrios mbitos da vida social como ritual, teve como base conceitual a noo de
46 Cf. VERNANT, Jean-Pierre. e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragdia na Grcia Antiga. So Paulo: Perspectiva, 2001. Vol. I, p. 211-19. 47 Idem, Ibidem, p. 162. 48 WILES, David. Tragedy in Athens: Performance space and theatrical meaning. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 4-6.
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performance. Richard Martin faz explicitamente e de forma at didtica essa aliana,
quando se esfora por definir tais fenmenos. Para ele, performance geralmente
sugere um modo intensificado e esteticamente marcado de comunicao, estruturado de
maneira especial e colocado em exibio para uma audincia49. Baseado no
antroplogo Stanley Tambiah, Martin completa:
O Ritual um sistema de comunicao simblico construdo culturalmente. constitudo de padres e sequncias de palavras e atos ordenados, geralmente expressos em mltiplos meios, cujos contedos e disposies so caracterizados em variados graus de formalidade [convencionalidade], de esteretipos [rigidez], de condensao [fuso] e de redundncia [repetio]50.
Para Martin, ambos os fenmenos so marcados pelo processo de comunicao.
Mesmo se supusermos o primeiro no mbito do apuro esttico e o segundo do poder
funcional, o poema e o encantamento mgico geralmente encontravam-se fundidos na
cultura grega. Nesse sentido, o que mais belo, mais bem feito, pode estar ligado
efetividade de determinado ritual. Destas ponderaes, surgem insights bastante
difundidos hoje, de que a Atenas antiga tivesse constitudo uma cultura performtica
composta por grupos, cuja atuao na pnyx, gora, tribunais e teatro funcionava como
componentes-chave da identidade social dos cidados51.
Dentro de tal perspectiva terica, o ritual tambm pode ser pensado como uma
espcie de matriz, a partir da qual derivaram muitos gneros de desempenho cultural,
inclusive os pensados como estticos. O ritual seria, assim, a sincronizao de muitos
gneros performticos, com uma estrutura dramtica que inclui um enredo, com atos de
sacrifcio. Para o antroplogo Victor Turner o ritual pode ser definido
[...] como comportamentos formalmente prescritos para ocasies no dadas rotina tecnolgica, com referncia a seres invisveis ou poderes concebidos como a causa primeira e final de todos os efeitos [...] Eu a acho til, porque eu gosto de pensar o ritual essencialmente como performance, sano, no primeiramente
49 MARTIN, Richard Ancient theatre and performance culture. In: McDONALD, Marianne and WALTON, Michael. (Ed.) The Cambridge companion to Greek and Roman theatre. Cambridge: Cambridge University Press, 2007,p. 38. 50 Idem, Ibidem, p. 38. 51 Mesmo um adepto de tal perspectiva como Richard Martin no parece totalmente confortvel em aceitar uma relao direta entre ritual e teatro, pois: Qualquer que seja a relao originria que liga o drama ao ritual, os dois so contguos em Atenas, pois o evento teatral principal, a Dionsia, era um festival religioso. Nesse sentido, toda ao teatral era, de alguma maneira, dedicada ao deus do teatro? Ainda que tivssemos fontes que explicitamente sugerissem isso, os ganhos para a interpretao ainda poderiam ser questionveis. (Id., Ibid., p. 46).
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como regras ou rubricas. As regras emolduram o processo, mas o processo ritual transcende sua moldura52.
A conscincia da existncia de um pblico implica certo grau de reconhecimento
do prprio desempenho enquanto tal - a percepo da atuao e de estar atuando
considerado um elemento universal da performance. Uma apresentao, alm das
dimenses psicolgica e social, possui caracterizaes fsicas. A par disso, outro
parmetro que ajuda a discernir um desempenho o contexto especial em que ele
executado, diferente daquele das prticas cotidianas.
Nos estudos sobre o teatro, dentro da seara da Antropologia Cultural, Victor
Turner foi um dos mais influentes e tambm criticados pesquisadores53. Uma de suas
maiores contribuies foi pensar o ritual como elemento de desempenho, pois defendia
a ideia de que havia um contnuo e dinmico processo que ligava um comportamento
performtico na arte, esporte, ritual e peas com as estruturas tica e social. Isso se
processava na maneira como as pessoas pensavam, organizavam suas vidas e tornavam
especficos os valores de grupos e indivduos54. Turner foi um profundo investigador do
ritual, que estava localizado nas dinmicas das sociedades, especialmente representado
nas formas como as pessoas resolviam suas crises. Esse dado fundamental, pois
relacionado ao ritual havia o que o referido autor chamou de social drama 55.
O drama social uma unidade de descrio e anlise que est inscrita na lgica
do ritual. Por isso mesmo, tem a ver com as formas pelas quais se do as definies
taxonmicas: relaes de parentesco, posies sociais e status poltico. Mas tambm: o
carter individual, o estilo, a habilidade retrica e as diferenas morais e estticas. O
mais importante para Turner perceber que os rituais agem por meio de smbolos, na
base da comunicao humana, assim:
Cada cultura, cada pessoa dentro dela, usa seu repertrio sensorial inteiro para transmitir mensagens: gestos manuais, expresses faciais, posturas corporais; rpidos, pesados ou leves suspiros, lgrimas. No nvel individual: gestos estilizados,
52 TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The human seriousness of play. New York: PAJ, 1982, p. 79. 53 Tanto Simon Goldhill quanto Claude Calame criticaram a amplitude dos conceitos assumidos por Turner, o que minora seu carter analtico e estabelece uma espcie de primazia do conceitual sobre o emprico e o figurado. Na Antropologia uma crtica semelhante pode ser vista em SCHECHNER, Richard. Victor Turners last adventure. In: TURNER, Victor. The Anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1987, p. 7-20. 54 SCHECHNER. Op. cit. p. 8-10. 55 Idem, Ibidem, p. 7.
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padres de dana, silncios prescritos, movimentos sincronizados como marchas, os movimentos e desempenho em jogos, esportes e rituais no nvel cultural56.
O que nos interessa aqui pensar a relao que Turner faz entre teatro e ritual e,
mais especificamente, entre teatro e drama social. Os dramas sociais so momentos em
que se estabelece uma crise na sociedade. H uma brecha que possibilita o surgimento
do drama social e a instaurao da crise. A partir desse momento, so estabelecidas
lutas, antagonismos, oposies classificatrias de classes, grupos tnicos, faces e
regies. Trata-se de uma forma de guerra simblica, isto , na elaborao de modos
culturais de confrontao, compreenso e atribuio de significado57. E por que o teatro
especialmente importante dentro dessa perspectiva? Segundo Turner:
Por meio de gneros como o teatro, incluindo o de fantoches e teatro de sombras, a dana dramtica e em contadores de histrias profissionais, desempenhos so apresentados, o que explora as fraquezas de uma comunidade, chama seus lderes a prestar contas, dessacraliza os seus mais queridos valores e crenas, retrata seus conflitos caractersticos, sugere remdios para eles e, geralmente, fazem um balano da situao atual do mundo conhecido58.
Bem mais frente, na mesma obra, Turner aprofunda suas consideraes:
Eu gostaria de persistir argumentando que o drama social uma forma processual quase universal e representa um desafio perptuo a todas as aspiraes perfeio na organizao social e poltica [...] Dramas sociais so, em grande medida, processos polticos, isto , envolvem competies por fins escassos: poder, dignidade, prestgio, honra, pureza por meios particulares e pela utilizao de recursos que tambm so escassos bens, territrios, dinheiro, homens e mulheres59.
Para Turner toda performance tem em seu ncleo uma ao ritual60. O teatro,
portanto, hipertrofia os processos rituais e est inscrito nos dramas sociais que
envolvem questes variadas, dentre elas, as de conflito poltico. As dificuldades em se
trabalhar com as categorias de Turner dizem respeito forma quase universal e,
portanto, a-histrica, em como trabalhar com as categorias de ritual e performance;
56 TURNER. Op. cit. 1982, p. 9. 57 Idem, Ibidem, p. 10-11. 58 Id. Ibid. p. 11 Em seguida Turner continua: O teatro , de fato, uma hipertrofia, um exagero, relativo lei e processos rituais; no apenas uma simples rplica dos naturais padres processuais totais do drama social. H, nesse sentido, no teatro, algo de investigativo, de julgamento, e mesmo de uma caracterstica punitiva de um direito de ao, e algo de sagrado, mtico, numinoso, mesmo uma caracterstica supernatural da ao religiosa s vezes ao ponto do sacrifcio. (Id., Ibid., p. 12). 59 Id., Ibid., p. 71-2. 60 SCHECHNER. Op. cit. 1987, p. 7.
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muito embora, em suas consideraes, haja momentos bastante interessantes para se
pensar as relaes entre os conceitos acima e seus referentes empricos.
1.3. Os caminhos do ritual religioso
A posio de Christiane Sourvinou-Inwood a mais sedutora neste prisma
terico. Em seu livro Tragedy and Athenian Religion, publicado em 2003, Inwood
aproxima a tragdia grega do discurso religioso e da perspectiva que une performance e
ritual.
[...] a tragdia era percebida pelas audincias do sculo V a.C., no como uma unidade individual, uma pura experincia teatral, simplesmente estruturada por um ritual, mas como uma performance ritual; e as divindades e outros elementos religiosos na tragdia no estavam separados da realidade religiosa da audincia, mas eram percebidos, em maior ou menor grau, de alguma maneira, prxima daquelas realidades, parte daquelas realidades, de uma forma especfica que precisa ser definida61.
Ao contrrio de Vernant, cujas obras tratam da percepo do ficcional, Inwood
enfatiza que a representao das tragdias ativava na audincia a conscincia de um
desempenho religioso e no de meros dispositivos teatrais elencados para uma cena
dramtica62. A autora toma o exemplo da pea Erecteu de Eurpides, da qual nos restam
apenas fragmentos. Para Inwood, o mundo heroico de outrora na tragdia em questo
trazido realidade presente dos atenienses recurso bastante comum nas tragdias
especialmente em seus aspectos religiosos, pois a deusa Atena era invocada nos campos
ticos durante os anos de invaso espartana, assim como ocorre em Erecteu, noutro
contexto63. Nesse sentido, Inwood sugere que a apario da deusa poderia ter sido
percebida como a representao da deusa real que ativara um esquema de
61 INWOOD. Op. cit. 2003, p. 1. 62 Idem. Tragedy and Anthropology. In: GREGORY, Justina. (org.) A companion to Greek tragedy. Malden: Blackwell Publishing, 2006, p. 299. 63 As expresses que Atena usa para descrever o destino das filhas de Erecteu parecem ligadas, e, nesse sentido, poderiam chamar memria da audincia ateniense, o epitfio pblico dos homens que morreram na batalha de Potideia. Isto poderia ter aproximado o mundo da tragdia daquele dos espectadores, apresentando as Hiacintides como modelos aos heris dos atenienses mortos na guerra. (Idem, Ibidem, p. 300).
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representao de uma deidade num drama sagrado, como, inclusive, acontecia em
casos em que se sonhasse com os deuses.
Os significados religiosos inerentes ao discurso trgico teriam sido deixados de
lado por diversos helenistas: primeiro, porque alguns tentaram analisar
concomitantemente tragdia e comdia; e, em segundo lugar, e mais importante, porque
muitos autores teriam deixado de compreender antropologicamente, os filtros, os
pressupostos por meios dos quais a audincia percebia e decodificava as tragdias. No
seria verdade imputar autora o esquecimento do aspecto poltico relacionado, no
apenas aos contedos das tragdias, mas tambm ao festival no qual elas estavam
inseridas; pois, em algumas passagens, ressalta que, nas Grandes Dionsias, havia um
esforo significativo na construo da ideologia democrtica ateniense64. Mas a verdade
que, no cerne da sua concepo em torno da festa para Dioniso estava a recepo e
entretenimento de um deus que vem do estrangeiro, um xenismos ritual.
Para Inwood, h trs tipos de relaes entre o universo da pea e o da audincia:
1) A relao obtida quando o universo trgico representado o do mundo
heroico (no sculo V a.C., este era governado por duas perspectivas entrelaadas): de
um lado, o mundo da pea era outro, distanciado daquele do presente, tempo em que
deuses e homens relacionavam-se de maneira mais direta e em que os homens mais
proeminentes tornaram-se os heris do sculo V a.C.; por outro lado, a idade heroica
fazia parte do referido perodo o sinecismo foi feito por Teseu; Elusis se tornou parte
de Atenas aps a guerra em que Erecteu foi morto, criando-se o culto a Poseidon e a
Erecteu. Assim, o mundo da tragdia, construdo na idade heroica, era ao mesmo tempo
distante e ligado ao presente da plis.
2) A relao marcada como transgressora As caractersticas da escolha
transgressora so aquelas em que o mundo da pea basicamente o mesmo do mundo
da audincia65. Como aconteceu com Frnico e a pesada multa que teve de pagar por
conta da proximidade com o evento66, tal momento poderia significar no apenas a
64 INWOOD. Op. cit. 2003, p. 71. 65 Idem, Ibidem, p. 16. 66 J os Atenienses, ao terem conhecimento da tomada de Mileto, mostraram-se consternados, testemunhando sua dor de mil maneiras. No teatro, por ocasio de uma representao de uma tragdia de Frnico, que tinha por tema a captura daquela cidade, os espectadores debulharam-se em lgrimas, sendo o poeta obrigado a pagar uma multa de mil dracmas por haver relembrado aos povos aquela
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percepo e a tristeza advinda da destruio de Mileto, mas, tambm, a viso de um
futuro de agruras, caso os persas tambm invadissem Atenas.
3) A relao presente no caso de Os Persas, de squilo. Em primeiro lugar, as
articulaes que pertencem audincia so positivas e todas as negativas estavam
distanciadas, situadas no inimigo. O mundo dos persas representado na tragdia
distante geogrfica e culturalmente, embora no distanciado no tempo, como no caso da
construo do enredo da obra no mundo heroico. Em Os Persas, os inimigos
estabelecem uma forte relao de alteridade e, ademais, historicamente, foram
derrotados pelos gregos.
O que diferencia o modelo transgressivo daquele que no o , reside no
estabelecimento da alteridade do mundo trgico. E, no caso dos modelos no-
transgressores, o lugar do enredo da tragdia no mundo do presente que os
diferenciam. Na escolha preferida, o mundo da tragdia era uma parte significativa do
presente da audincia, a alteridade e o fato de que isto era uma parcela relevante do
presente estavam interconectadas67. Um desses momentos quando, no presente
polade, ainda permanece cultuado, uma das personagens, que por sua vez teria fundado
instituies e rituais que so parte da vida dos cidados da Atenas Clssica.
Uma das formas de percepo da religio grega era aquela que concebia as
crenas tradicionais, as repostas possveis e os comportamentos adequados em relao
ao mundo divino, como incertas. O que tambm tem a ver com o fato de no haver
ortodoxia e livros sagrados entre os helenos. Os cultos que haviam sido fundados pelos
heris de outrora possuam eficcia na manuteno da prosperidade dos cidados no
Perodo Clssico68.
O caminho hermenutico preferido para se ler a tragdia como um discurso
religioso aquele que utiliza a estrutura e funcionalidade do coro trgico como
argumento basilar. Muitos autores que se dedicam a esse vis interpretativo sero
imensa desgraa que ele sentia como se sua prpria fora. Alm disso, a pea ficou proibida de ser representada em Atenas por quem quer que fosse. (Cf. HERDOTO. Histria. 6.21). 67 INWOOD. Op. cit. 2003, p. 20. 68 Nesse sentido, foi especialmente em momentos de crise, dos quais este foi um para Atenas [refere-se ao discurso de Lsias contra Nicomaco proferido no perodo da Guerra do Peloponeso], que as comunidades perguntavam a si mesmas mais abertamente, a que deuses elas deviam ter ofendido ou negligenciado; e , geralmente favoreciam a possibilidade de inovao na constante e complexa tenso entre tradio e inovao que caracterizava a religio grega. (INWOOD. Op. cit. 2003, p.21).
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mencionados a seguir, mas, guisa de sntese, tomaremos trs para fixar um trajeto
discursivo. So eles: David Wiles, Barbara Kowalzig e Claude Calame.
Wiles se esfora para mostrar que a dana grega foi pensada antes como uma
ao mimtica, portanto, como um processo de imitao dialgica que coloca os seus
protagonistas mais em uma ao narrada69, do que simplesmente como um conjunto de
extenses musculares. Assim, a dana imitava as ninfas, os stiros, as silenes, as
suplicantes, etc. Quando se avalia o coro trgico que une a dana e o canto deve-se
perceb-lo como um elemento orgnico da ao narrada, no qual a dana parte
fundamental da educao grega da poca era elemento crucial70. O coro, assim, unia a
dana e o canto numa schmata coreogrfica, isto , num modelo mimtico, num quadro
de movimento de dana71. Influenciado por Plato e por outros poetas, Wiles
acompanha a metfora de um coro circular como um cosmos circular72. bom notar a
posio metodolgica de Wiles, quando este estabelece como padro analtico aceitar a
simetria visual como conveno ao gnero. Wiles afirma tambm que a iniciativa de
criar uma simetria coreogrfica era, normalmente, oriunda do coro73. A ideia de simetria
coreogrfica, que pde ser vista, por exemplo, em coros de As Bacantes e on, ambas as
tragdias de Eurpides, permitia ao tragedigrafo dar mais clareza a oposies binrias
que, de outra maneira, poderiam ser percebidas de forma incerta, pela simples narrativa
linear74.
Kowalzig bastante direta em seus argumentos, a dana coral pode bem ser o
que relaciona o deus ao lado mstico de seu culto [...]75. A autora enftica ao afirmar
69 A definio de mmesis em Plato contrape-se ideia de digesis, em que o poeta o prprio narrador. (Cf. CALAME, Claude. Modes rituels de la fabrication de lhomme: Linitiation tribale. In: Figures de Lhumain: Les reprsentations de lanthropologie. Paris: EHESS, 2003, p. 6-8). 70 A tragdia conseguia seus efeitos valendo-se de um rico vocabulrio cultural das formas da dana , tais como: as de pe, os lamentos, a dana da guerra, ou a dana de iniciao e isso permitiu ao contexto dramtico dar quelas danas uma mudana e, com frequncia, um significado invertido. WILES. Op. cit. p. 87-90. Calame ressalta que pode existir um processo de identificao dos espectadores com os pensamentos e sentimentos do coro. Isto se torna ainda mais factvel se avaliarmos a educao coral recebida por parte dos atenienses. como se o espectador real assumisse a posio do coro, espcie de espectador virtual da pea encenada. (Cf. CALAME, Claude. Performative aspects of choral voice in Greek tragedy: civic identity in performance. In: GOLDHILL, Simon and OSBORN, Robin. Performance culture and Athenian democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 137-49). 71 De forma fragmentada: ATHENAEUS. 21 d frag. e PLUTARCH. Table-talk IX 15-747 Apud: WILES. Op. cit. p. 92. 72 O prprio Wiles menciona em Plato: Timeu 34-7; 40c, 43-4; Repblica 617; Leis 760. Em Eurpides: Orestes v. 1001-7; on v. 1079, Electra, Fragmento v. 593. Para Vasos cf. nota 45. 73 Para exemplos cf. WILES. Op. cit. p. 103-5. 74 Quase parafraseio WILES nesse trecho. Cf. Op. cit. p. 103. 75 KOWAL KOWALZIG, Barbara. And now all the world shall dance!: Dionysus choroi between drama and ritual. In: The origins of theatre in Ancient Greece and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 229.
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que as representaes dramticas e os atores eram parte de um ritual para Dioniso. Sua
pesquisa tenta ver o teatro ateniense numa posio intermediria entre a realidade e a
iluso; entre a histria e o mito; entre o verdadeiro e o imaginado. A mediao focada
no coro, pois, como lembra Wiles, o coro estava dentro e fora da pea, seus integrantes
eram assim, diferentemente dos atores, danarinos de Dioniso76.
Nas tragdias atenienses eram encenadas aes rituais-chave, tais como: o
sacrifcio, a libao, a splica, o nascimento, a morte e o casamento. O drama e o ritual
estariam, doravante, relacionados por meio das formas rituais assumidas pelo coro
trgico, pois seria um elemento de continuidade do ritual dionisaco ao longo do
tempo77. As formas rituais so assumidas por meio do carter autorreferencial do coro,
que pode ligar o culto imaginado da pea com aquele feito na plis. Dessa forma, a
autora conclui que:
Pode-se pensar que, enquanto mito, ritual, pea e plis convergem na sua performance, a negligncia com o tempo e espao, assim como ns observamos na poesia coral, as passagens do coro auto-referencial no projetam o coro num distante domnio da orgia dionisaca, mas, ao invs disso, projetam a audincia na orquestra e a fazem parte do ritual que ocorre no palco78.
Ao lado de Inwood, o trabalho mais profundo nessa seara o do pesquisador
suo Claude Calame. Ele associa o coro trgico na mediao intra e extradiscursiva
do ritual religioso por meio da anlise minuciosa de seus aspectos enunciativos. Calame
traz nova luz a essa corrente quando afirma que as vozes das partes corais da tragdia
invocam a autoridade de um grupo. O enunciado performativo do coro correspondia a
um ato de fala, com autoridade investida nele e que, via de regra, era expressa por
termos como: eu ordeno, eu juro, eu canto, eu suplico, e assim por diante. Dessa forma,
o estudo do coro trgico consiste em v-lo em seus aspectos rtmicos, dialetais, mas
tambm em suas formas rituais79.
76 WILES. Op cit. p. 121-4. 77 KOWALZIG. Op. cit. p. 222 e 225-6. 78 Idem, Ibidem, p. 236. Nesse sentido, Calame afirma que: No entanto, o papel performtico da voz autorreferencial dos membros mascarados do coro existe simultaneamente dentro da esfera dramtica da pea e fora dela nos domnios poltico e cultual do aqui e agora. CALAME, Claude. The craft of poetic speech in Ancient Greece. Trad. Janice Orion. Ithaca and London: Cornell University Press, 1999, p. 36. Desta forma, o grupo de atores que interpreta o coro, envolvidos na fico intradiscursiva, joga para fora e convidam o espectador (extradiscursivo) a assumir o eu do coro. [Os] atos cultuais (cultic acts) envolvem as relaes entre os atores assim como os espectadores com os deuses. Idem. Ibidem. p. 37; Cf. v. 896 e 910 de dipo Rei. 79 Calame faz referncia ao fato do coro possuir caractersticas inerentes poesia mlica arcaica que pode ser considerada como atos de falas rituais, expressando, inclusive os sentimentos do poeta. (Cf. CALAME. Op. cit. 1999, p. 125-130).
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Ao analisar o coro de dipo Rei, Calame mostra que as linhas corais do parodos
desenvolvem uma tradicional splica, num apelo a trs divindades, Atena, rtemis e
Apolo. O parodos, ento, uma splica. Possui, portanto, as marcas estruturais de um
ato de ritual verbal. Calame chama a ateno splica, pois tambm pode ser
compreendida no contexto cultural ateniense, alm das fronteiras dramticas. Apolo
Dlico, provavelmente desconhecido em Tebas, faz referncia ao santurio da Liga de
Delos, e Atenas reina nos primeiros dois teros da splica coral.
Num esforo de sistematizao, Calame props as seguintes dimenses das
vozes do coro na tragdia:
1) Uma dimenso ritual, que faz os membros do coro relacionarem-se ao
dramtica. uma dimenso interativa, que geralmente toma a forma de cnticos cultuais
que permitem aos membros do coro, por meio de rituais, agirem sobre as atitudes dos
atores em certos eventos.
2) Uma dimenso hermenutica, na medida em que as palavras do coro
envolvem narrativas e descries. Tais como: informaes sobre o que j se passou e o
que os espectadores viram e sobre a estruturao espacial nas quais as aes dramticas