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O PEDIDO DE DECISÃO PREJUDICIAL E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO JURISDICIONAL Renata Chambel Margarido FDUNL N.º8 - 1999

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O PEDIDO DE DECISÃO PREJUDICIAL E O

PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO JURISDICIONAL

Renata Chambel Margarido FDUNL N.º8 - 1999

.

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 8 /99

O PEDIDO DE DECISÃO PREJUDICIAL E O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO JURISDICIONAL

Renata Chambel Margarido

© autor Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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ABREVIATURAS

Ac. – Acórdão c. – considerando CE – Comunidade Europeia CEE – Comunidade Económica Europeia CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço CEEA – Comunidade Europeia da Energia Atómica Col. – Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça Desp. - Despacho p. - página pp. - páginas Proc. - Processo Rec. - Recueil de la Jurisprudence de la Cour TJCE - Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias TPI - Tribunal de Primeira Instância UE - União Europeia v. - versus v. - vide

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ÍNDICE

Jurisprudência ..................................................................................................................7 1. Função e Essência do Reenvio Prejudicial.................................................................14 Uniformização-Primado-Efeito Directo-Cooperação Entre Jurisdições-Repartição de Poderes-Mecanismo Não Contencioso-Função Diferente da do Recurso Interno-Processo Sem Partes 2. Aspectos do Princípio da Cooperação em Diversas Fases do Processo de Reenvio Prejudicial Previsto no art.º 177.º do Tratado de Roma..............................................20 Despacho de Reenvio-Impulso Processual-Legitimidade-Pertinência da Questão-Tempestividade-Órgão Jurisdicional-art.º 177.º/1.ª Parte-art.º 177.º/2.ª e 3ª Partes-Interpretação-Aplicação-Validade-No TJCE-Faculdade de Reenvio-Recursos Internos-Regras de Direito Interno-A Questão da Declaração de Invalidade pelos Juizes Nacionais-Obrigação de Reenvio-Excepções 3. Jurisdições Nacionais-TJCE.......................................................................................31 Princípio da Cooperação Numa “Nova Arquitectura Judicial”? O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias-O Êxito em Decadência?-O Tribunal de Primeira Instância-Cooperação Entre Iguais?-Reenvio Prejudicial em Números do Passado e Presente 4. A Realidade do Princípio da Cooperação-Confiança ou Nem Por Isso?...................36 Alguns Números Sobre Portugal no Âmbito do Reenvio Prejudicial Magistrados-Advogados-O Reenvio Pelos Tribunais Portugueses 5. Conclusão....................................................................................................................39 6. Os Casos Portugueses.................................................................................................40 Bibliografia......................................................................................................................65

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NOTA PRÉVIA

Esta publicação corresponde, com algumas alterações, ao relatório que apresentei no âmbito do primeiro Curso de Pós-Graduação em Direito da União Europeia da Universidade Autónoma de Lisboa, no ano lectivo 1997/1998. Se a tomada de consciência da importância de que o mecanismo do reenvio prejudicial se reveste enquanto instrumento, por excelência, da integração jurídica comunitária, não me fez ter grandes dúvidas quanto ao tema a que me proporia desenvolver, já me deixou, porém, menos tranquila a possibilidade de na sua abordagem poder vir a dizer de modo mais ou menos diferente as coisas já merecedoras de atenção por parte da doutrina que se dedicou ao esclarecimento dos meandros deste instituto central do contencioso comunitário, senão da própria ordem jurídica comum. Estando ciente de que, de uma forma ou de outra, acabei fazê-lo, foi, contudo, minha preocupação primária procurar realçar os aspectos do mecanismo do reenvio prejudicial que permitem identificá-lo como instrumento, por essência, de cooperação entre as jurisdições nacionais e o Tribunal de Justiça mediante o qual, no quadro das respectivas competências, são chamados a contribuir directa e reciprocamente para a elaboração de uma decisão com vista a assegurar a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos Estados-Membros, enquanto “Carta Constitucional de uma Comunidade de Direito”. Para haver lugar a um reenvio prejudicial, o art. 177.º do Tratado de Roma, actual 234.º do Tratado de Amesterdão, exige que perante uma jurisdição de um Estado-Membro seja suscitada uma questão de interpretação ou de validade cuja resolução se afigure necessária para que o magistrado nacional possa proferir a sua decisão. Assim, a partir do acto de suscitação, abordei a propósito das diversas fases do processo pré-decisório, as nuances do princípio da cooperação jurisdicional, quer nas características que reveste, quer no sentido cronológico que lhe pode ser atribuído, e questionei o seu futuro face à transferência de competências do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias para o Tribunal de Primeira Instância, que excepcionou os reenvios prejudiciais. A pouca confiança que parece vislumbrar-se nos tímidos números relativos aos reenvios promovidos por advogados e magistrados no seio da República Portuguesa e a eventual dificuldade em se admitirem as consequências favoráveis, também ao nível judicial, da criação efectiva das Comunidades Europeias, levou-me a procurar clarificar algumas das razões que estão na base dessa conduta, bem como a levantar o véu quer das estatísticas nacionais quer das avançadas pelo Tribunal de Justiça, nem sempre coincidentes. Com a finalidade de sensibilizar quer advogados – que podem suscitar questões de interpretação ou apreciação de validade de normas de Direito Comunitário perante os órgãos jurisdicionais nacionais e sustentar as suas posições no Tribunal de Justiça – quer os magistrados nacionais, nas suas vestes de juizes comunitários de Direito Comum – ao terem a faculdade ou a obrigação de suscitar questões prejudiciais – para a acessibilidade deste verdadeiro incidente do processo principal, procedi à identificação e a um, ainda que breve, comentário de dezanove reenvios prejudiciais originários nos órgão jurisdicionais nacionais, dos vinte e quatro que o Tribunal Comunitário diz terem sido promovidos por Portugal, entre o momento da sua adesão às Comunidades e 1997. É, assim, com o objectivo fundamental de sedimentar a ideia de que, para além de todas as imperfeições ou carências do processo de decisão a título prejudicial, sem

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ele o Direito Comunitário Europeu não se teria tornado no jus commune dos Estados-Membros, tal como hoje se nos apresenta, que este trabalho deve ser enquadrado. Mas as breves ideias que nele se explanam só foram possíveis porque tive o privilégio, e a honra, de poder contar com a ajuda daqueles a quem cabe, por justiça, o devido e público agradecimento. Deixo expresso, por isso, a minha sincera e profunda gratidão ao Professor Doutor Miguel Poiares Maduro, primeiro, pela confiança ao incentivar-me a frequentar o Curso de Pós-Graduação, depois, pelo estímulo que me transmitiu desde o primeiro momento para que estas palavras pudessem vir a público e fundamentalmente pelas suas qualidades pedagógicas e humanas.

Professor, mantenha entre nós os ensinamentos do saudoso Professor Lucas Pires. Ao Doutor Carlos Pinto Correia, responsável, no Curso, pelo módulo “Sistema Jurisdicional de Protecção dos Particulares”, pelo apoio que me deu assim que manifestei interesse em desenvolver uma matéria sobre a qual “a jurisprudência já muito avançou”, o meu muito obrigado. À Doutora Isabel Meirelles, a minha palavra de grande estima pela diferença das suas aulas e pela capacidade de sensibilização e motivação dos alunos para as matérias subjacentes ao Direito Comunitário, quando já no final da Licenciatura lhe cabe a grande responsabilidade de aproximar das causas comunitárias quem, até então, as presume, de certo modo, alheias às realidades jurídicas nacionais. Mas as minhas últimas palavras de profundo agradecimento terão, justamente, de ser dirigidas aos meus pais e ao meu irmão. Tudo o que sou, a eles devo.

Este trabalho é-lhes dedicado.

Renata Chambel Margarido

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JURISPRUDÊNCIA

1962 Ac. TJCE 06 de Abril de 1962, Sociedade Kledingverkoopbedrijf de Geus en U. v. Robert Bosch, Proc. 13/61, Rec., pp. 89 ss.

1963 Ac. 05 de Fevereiro de 1963, Van Gend & Loos v. Administração Fiscal Neerlandesa, Proc. 26/62, Rec., pp. 3 ss. Ac. TJCE 27 de Março de 1963, Da Costa v. Administração Fiscal Neerlandesa, Proc. 28 a 30/62, Rec., pp. 59 ss. 1964 Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Flamino Costa v. ENEL, Proc. 6/64, Rec., pp. 1141 ss. Ac. TJCE 19 de Março de 1964, Unger v. Bedrijfsvereniging voor D. en A., Proc. 75/63, Rec., pp. 347 ss. Ac. TJCE 13 de Novembro de 1964, Comissão v. Grão-Ducado do Luxemburgo e Reino da Bélgica, Proc. 90+91/63, Rec., pp. 1217 ss.

1965 Ac. TJCE 01 de Dezembro de 1965, Firma Schwaze v. Einfuhr und Vorratstelle fur Getreide und Futtermittel, Proc. 16/65, Rec., pp. 1081 ss. 1966 Ac. TJCE de 30 de Junho de 1966, Proc. 61/65, viúva G. Vaassen Gobbels v. Direcção do B. voor her M., Rec., pp. 377 ss.

1968 Ac. TJCE 16 de Maio de 1968, Firma Kurt A. Becher v. Hauptzollamt M.-L., Proc. 13/67, Col., pp. 289 ss.

1971 Desp. TJCE 14 de Julho de 1971, Rheiniiehler v. Einfuhr – und Vorratsstelle Getreide, Proc. 6/71, Rec., pp. 719 ss.

1972 Ac. TJCE 13 de Julho de 1972, Comissão v. Itália, Proc. 48/71, Rec., pp. 529 ss. Ac. TJCE 12 de Dezembro de 1972, Internacional Fruit Company v. Produktschap voor Groenten en Fruit, Proc. 21 a 24/72, Rec., pp. 1219 ss. Ac. TJCE 15 de Junho de 1972, Grassi v. Administração Italiana das Finanças, Proc. 5/72, Rec., pp. 443 ss.

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1973 Ac. TJCE 1 de Março de 1973, Paul G. Bollmann v. Haupzollamt H.-W., Proc. 62/72, Rec., pp. 269 ss.

1974

Ac. TJCE 16 de Janeiro de 1974, Rheinmuhlen (II) D. v. Einfhur und V. fur G. und F., Proc. 166/73, Rec., pp. 33 ss. Ac. TJCE 12 de Fecereiro de 1974, Rheinmullen (III) D. v. Einfhur und V. fur G. und F., Proc. 146/73, Rec., pp. 139 ss.

1976 Ac. TJCE 17 de Fevereiro de 1976, Rewe-Zentrale v. Hauptzollamt Landau Pfalz , Proc. 45/75, Rec., pp. 181 ss. Ac. TJCE 8 de Abril de 1976, Royer, Proc. 48/75, Rec., pp. 497 ss. Ac. TJCE 17 e Fevereiro de 1976, Haupzolamt Gottingen v. Miritz, Proc. 91/75, Rec., pp. 217 ss. 1977 Ac. TJCE 24 de Maio de 1977, Hoffmann – La Roche v. Centrafarne, Proc. 107/76, Rec., pp. 957 ss. 1978 Ac. TJCE 29 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board v. Redmond, Proc. 83/78, Rec., pp. 2347 ss. Ac. TJCE 09 de Março de 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss. Ac. TJCE 16 de Março de 1978, Algemeen Ziekenfonds Drenthe – Platteland v. G. Pierik, Proc. 117/77, Rec., pp. 825 ss. 1979 Desp. TJCE 18 de Outubro de 1979, Sirena v. Eda, Proc. 40/70, Rec., pp. 3169 ss. Ac. 13 de Março 1979, Peureux v. Director dos Serviços Fiscais, Proc. 119/78, Rec., pp. 975 ss. Ac. 06 de Maio de 1979, Kevin Lee v. Ministre de l’Agriculture, Proc. 152/79, Rec., pp. 1495 ss. Ac. TJCE 03 de Fevereiro de 1979, Publico Ministero v. Flavia Manghera, Proc. 59/75, Col., pp. 91 ss.

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1980 Ac. TJCE 10 de Janeiro de 1980, Jordens – Vosters v. Bedrifsvereninging Voor de Lederen Lederwerkende Industrie, Proc. 69/79, Rec., pp. 75 ss. Ac. TJCE de 09 de Outubro de 1980, Procédure Pénal v. Giovanni Carciati, Proc. 823/79, Rec., pp. 2773 ss. Ac. 18 de Março de 1980, Procédure du Roi v. Mare JVC Debauve et autres, Proc.52/79, Rec., pp. 833 ss. 1981 Ac. TJCE 16 de Julho de 1981, Salonia v.Poidomani e Giglio, Proc. 126/80, Rec., pp. 1563 ss. 1982 Ac. TJCE 06 de Outubro de 1982, CILFIT v. Ministero della Sanitá, Proc. 283/81, Rec., pp. 3415 ss. Ac. TJCE 01 de Abril de 1982, G. Holdijk et autres, Proc.141+143/81, Rec., pp. 1299 ss. 1983 Ac. TJCE 7 de Junho de 1983, Comissão v. Itália, Proc. 78/82, Rec., pp. 1955 ss. 1984 Ac. TJCE 09 de Fevereiro de 1984, Rhône Alpes Huiles v. Syndicat National des Fabricants Reffineurs d’Huile de Graissage, Proc. 295/82, Rec., pp. 575 ss. 1985 Ac. TJCE 23 de Janeiro de 1985, Paolo Iorio v. Azienda Autonoma delle Ferrovie dello Stato, Proc. 298/84, Rec., pp. 247 ss. Ac. TJCE 9 de Julho de 1985, Bozetti, Proc. 179/84, Rec., pp. 2301ss.

1986 Ac. TJCE 15 de Abril de 1986, Comissão v. Bélgica, Proc. 237/84, Rec., pp. 1247 ss. Ac. TJCE 12 de Junho de 1986, Bertini v. Região do Lácio, Proc. 98 + 162 + 258/85, Rec., pp. 1885 ss. Ac. TJCE 30 de Abril de 1986, Ministério Público v. Asjes, Proc. 209 + 213/84, Col., pp. 89 ss. Ac. TJCE 15 de Janeiro de 1986, Hurd v. Jones, Proc. 44/84, Rec., pp. 29 ss. Ac. TJCE 13 de Março de 1986, Sinatra v. FNROM, Proc. 296/84, Rec., pp. 1047 ss. Ac. TJCE 20 de Março de 1986, Procurador da República, v. Tissier, Proc. 35/85, Rec., pp. 1207 ss.

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1987 Ac. TJCE 11 de Junho de 1987, Pretore di Salò/x, Proc., 14/86, Col., pp. 2545 ss. Ac. TJCE 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost v. Hauptzollamt Lubeck - Ost, Proc. 314/85, Col., pp. 4199 ss. Ac. TJCE 08 de Dezembro de 1987, Ministére Public v. Gauchard, Proc. 20/87, Col., pp. 4879 ss. 1988 Ac. TJCE 05 de Outubro de 1988, Alsalel v. Novasam, Proc. 147/86, Col., pp. 5987 ss. Ac. TJCE 20 de Abril de 1988, Procédure Pénal v. Guy Bekaert, Proc. 204/87, Col., pp. 2029 ss. Ac. TJCE 21 de Abril de 1988, Pardini v. Ministero del Commercio com l’estero, Proc. 338/85, Col., pp. 2041 ss. Ac. TJCE 20 de Setembro de 1988, Oberkreisdirektor des Kreises Borken e o. v. Moormann, Proc. 190/87, Col., pp. 4689 ss. 1989 Ac. TJCE 16 de Dezembro de 1989, Foglia v. Novello, Proc. 224/80, Col., pp. 3054 ss. Ac. TJCE 23 de Novembro de 1989, Parfumeriefabrik 4711 v. Provide, Proc. C-150/88, Col., pp. 3861 ss. Ac. TJCE 13 de Dezembro de 1989, Grimaldi v. Fond des Maladies Professioneles, Proc. C-322/88, Col., pp. 4407 ss. 1990 Ac. TJCE 09 de Janeiro de 1990, SAFA v. Administração delle Finanze dello Stato, Proc. C-337/88, Rec., pp. I-1 ss. Ac. TJCE 08 de Novembro de 1990, Gmuerzynsca-Bscher v. Oberfinanzdirektion Koin, Proc. C-231/89, Col., pp. I-4003 ss. Ac. TJCE 18 de Outubro de 1990, Dzodzi v. Etat Belge, Proc., C-297/88 + C-197/89, Rec., pp. I-3763 ss. Ac. TJCE 13 de Dezembro de 1990, Procédure Pénal v. Bellon, Proc. C-42/90, Rec., pp. I-4863 ss. Ac. 03 de Outubro de 1990, Procédures Pénales v. Eleonora Nino , Proc. 54+91/88 + 14/89, Rec., pp. I-3537 ss.

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1991 Ac. 19 de Novembro de 1991, Proc. C-6+9/90, Francovich e Bonifaci v. République Italienne, Rec., pp. 5357 ss. Ac. TJCE 23 de Abril de 1991, Rigsadvokaten v. Ryborg, Proc. C-297/89, Rec., pp. I-1943 ss. Ac. TJCE 18 de Junho de 1991, Piageme v. BVBA, Proc. C-369/89, Rec., pp. I-2971 ss. Ac. TJCE 16 de Abril de 1991, F. Bayern v. Eurim-Pharum, Proc. C-347/89, Rec., pp. I-1747 ss. Ac. TJCE 27 de Junho de 1991, Mecanarte v. Chefe do Serviço da Conferência Final da Alfândega do Porto, Proc. C-348/89, Col., pp. I-3277 ss. 1992 Ac. TJCE 16 de Julho de 1992, Manuel José Lourenço Dias v. Director da Alfândega do Porto, Proc. C-343/90, Col., pp. I-4673 ss. Ac. TJCE 08 de Abril de 1992, Beirafrio – Indústrias de Produtos Alimentares Lda. v. Chefe do Serviço de Conferência Fiscal da Alfândega do Porto, Proc. C-371/90, Col., pp. I-2715 ss. Ac. TJCE 19 de Março de 1992, José António Batista Morais, Proc. C-60/91, Col., pp. I-2085 ss. Ac. TJCE, 28 de Janeiro de 1992, Procédures Pénales v. Lopez Brea e Carlos Palacios, Proc. C-330+331/90, Rec., pp. I-323 ss. Ac. TJCE 26 de Fevereiro de 1992, Bernini v. Minister, Proc. C-3/90, Rec., pp. I-1071 ss. 1993 Ac. TJCE 27 de Novembro de 1993, Vandeweghe v. Berufsgenossenschaft Chanische Industrie, Proc. 130/73, Rec., pp. 1329 ss. Ac. TJCE 19 de Janeiro de 1993, Caves Neto Costa S.A. v. Ministro do Comércio e Turismo, Proc. C-76/91, Col., pp. 117 ss. Ac. TJCE 2 de Agosto de 1993, Celulose Beira Industrial S.A. v. Fazenda Pública, Proc. 266/91, Col., pp. 4337ss. Ac. TJCE 10 de Novembro de 1993, Petróleos de Portugal – Petrogal S.A. v. Correia Simões e Co. Lda. e Correia Sousa e Crisóstomo Lda., Proc. C-39/92, Col. pp. I-5659 ss.

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1995 Ac. TJCE 09 de Novembro de 1995, Atlanta e o. v. Bundesamt, Proc. C-465/93, Col., pp. I-3761ss. Ac. TJCE 9 de Março de 1995, Fazenda Pública e Ministério Público v. Américo João Nunes Tadeu, Proc. C-345/93, Col., pp. I-479 ss.

1996 Ac TJCE 18 de Janeiro de 1996, SEIM v. Subdirector Geral das Alfândegas, Proc. C-446/93., Col. pp. I-73 ss. Desp. TJCE 13 de Março de 1996, Banco de Fomento Exterior S.A. v. Amândio Maurício Pechim, Maria da Luz Lima Barros Raposo Pechim e confecções Têxteis Vouzela Lda. (CTV), Proc. C-326/95, Col. pp. I-1385 ss. 1997 Ac. TJCE 17 de Julho de 1997, Kruger GmbH & Co. KG v. Hauptzollamt Hamburg-Jonatas, Proc. C-334/95, Col., pp. I-4517 ss. Ac TJCE 17 de Julho de 1997, Pascoal e Filhos v. Fazenda Pública, Proc. C-97/95, Col., pp. I-4209 ss. Ac. TJCE 17 de Junho de 1997, Fábrica de Queijo ERU Portuguesa Lda. v. Alfândega de Lisboa, Proc. C-164/95, Col. I-3441 ss. Ac. TJCE 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa, UCRL (UCAL), Proc. C-347/95, Col., pp. I-4911 ss. Ac. TJCE 29 de Maio de 1997, Indústria e Comércio Têxtil S.A. (ICT) v. Fazenda Pública, Proc. C-93/96, Col., pp. I-2881 ss. Ac. TJCE 17 de Junho de 1997, Codiesel – Sociedade de Apoio Técnico à Indústria Lda. v. Conselho Técnico Aduaneiro, Proc. C-105/96, Col. pp. I-3465 ss. Ac. TJCE 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. Fricarnes S.A., Proc. C-28/96, Col., pp. I-4939 ss. Ac. TJCE, 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. Solisnor – Estaleiros Navais S.A., Proc. C-130/96, Col. pp. I-5053 ss. Ac. TJCE 16 de Dezembro de 1997, Fábrica de Queijo ERU Portuguesa Lda. v. Subdirector-Geral das Alfândegas e Ministério Público, Proc. C-325/96, Col., pp. I-7249 ss. Desp. 30 de Junho de 1997, Banco de Fomento Exterior S.A. v. Amândio Maurício Martins Pechim, Maria da Luz Lima Barros Raposo Pechim e Confecções Têxteis de Vouzela Lda. (CTV), Proc. C-66/97, Col., pp. I-3757 ss.

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O reenvio prejudicial é, por essência, o instrumento de uma cooperação

judiciária (...) mediante a qual a jurisdição nacional e o Tribunal de Justiça no quadro das respectivas competências são chamados a contribuir directa e reciprocamente para a elaboração de uma decisão, com vista a assegurar a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos Estados-Membros1. 1 Ac. TJCE 01 de Dezembro de 1965, Firma Schwaze v. Einfuhr und Vorratstelle fur Getreide und Futtermittel, Proc. 16/65, Rec., pp. 1081 ss..

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1. Função e Essência do Reenvio Prejudicial Uniformização-Primado-Efeito Directo-Cooperação Entre Jurisdições-Repartição de Poderes-Mecanismo Não Contencioso-Função Diferente da do Recurso Interno-Processo Sem Partes

A criação das Comunidades Europeias trouxe consigo uma nova ordem jurídica quer no sentido cronológico, quer nas características que reveste. A jurisprudência do Tribunal de Justiça vem erguendo desde os anos sessenta os pilares dos Tratados na pessoa dos juizes enquanto founding fathers possíveis ou provisórios2 de uma evolução constitucionalizadora com vista ao erguer de uma Constituição para a Europa3. Foi por esse meio sendo colocada em evidência a autonomia4 do Direito Comunitário que o faz valer a se dispensado e repelindo “injecções normativas” externas já que as disposições comunitárias são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos aqueles a quem dizem respeito, sejam Estados-Membros ou particulares sujeitos de relações jurídicas relevando do Direito Comunitário5. O Direito Comunitário constitui um corpus iuris próprio auto-suficiente enquanto regulador do fenómeno comunitário, não se podendo procurar fora das normas juridico-comunitárias o respectivo alcance, a sua zona de imperium, já que o âmbito de aplicação objectivo dessas normas apenas pode resultar de si mesmas, tendo em conta o seu contexto6. Diferentemente dos tratados internacionais correntes, o Tratado CEE instituiu uma ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos Estados-Membros aquando da sua entrada em vigor e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais. Efectivamente, ao instituir uma Comunidade de duração ilimitada dotada de órgãos próprios, de personalidade, de capacidade jurídica, de capacidade de representação internacional e mais particularmente dos poderes reais oriundos de uma limitação de competências ou de uma transferência de atribuições dos Estados para a Comunidade, estes limitaram, se bem que em domínios restritos, os seus direitos soberanos e criaram um corpo de direito aplicável aos seus nacionais e a si próprios7. O Direito Nacional do órgão jurisdicional que suscita uma questão prejudicial e o Direito Comunitário constituem duas ordens jurídicas distintas e diferentes8. Porém, a exigência de uma aplicação uniforme do Direito Comunitário no interior da Comunidade implica que os conceitos a que tal ordem se refere não variem em função das particularidades de cada Direito Nacional mas repousem em critérios objectivos, definidos num quadro comunitário9. O Direito Comunitário, destinado a reger a vivência de um grupo de Estados portadores de algumas irrefutáveis e assinaláveis diferenças, teria de garantir a sua essência de lex communis pelo que a realização dos objectivos da Comunidade exige 2 Pires, F. Lucas, Introdução ao Direito Constitucional Europeu, 1997, p. 25. 3 Ibidem. 4 Campos, J. Mota de, Direito Comunitário, II vol., Gulbenkian, 2.ª ed., pp. 195 ss. 5 Ac. TJCE 09 de Março 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss., c. n.º 15, p. 643. 6 Ac. TJCE 15 de Abril de 1986, Comissão v. Bélgica, Proc. 237/84, Rec., pp. 1247 ss., c. n.º 17, p. 1256. 7 Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Flamino Costa v., ENEL, Proc. 6/64, Rec., pp. 1141 ss., especialmente, p. 1158. 8 Ac. TJCE 06 de Abril de 1992, Sociedade Kledingverkoopbedrijf de Geus en U. v. Bosch, 13/61, Rec., pp. 89 ss., especialmente, p. 101. 9 Ac. TJCE 10 de Janeiro de 1980, Jordens – Vosters v. Bedrifsvereninging Voor de Lederen Lederwerkende Industrie, Proc. 69/79, Rec., pp. 75 ss., c. n.º 6, p. 84.

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que os normativos comunitários estatuídos pelo próprio Tratado ou nos termos dos procedimentos por ele instituídos, se apliquem de pleno direito ao mesmo tempo e com efeitos idênticos em todo o território da Comunidade10. E a interpretação e aplicação uniformes do Direito Comunitário só são asseguradas se este constituir um corpo vedado à penetração de elementos distorçores externos. O procedimento do reenvio prejudicial é precisamente um dos instrumentos de uniformização do Direito Comunitário tal como o são o primado e o efeito directo enquanto princípios fundamentais que constituem a alavanca da conversão dos típicos tratados multilaterais (CECA, CEEA e CEE) numa constituição Europeia. O primeiro princípio é corolário da concepção que o Tribunal11 tem da ordem jurídica comunitária integrada no sistema jurídico dos Estados-Membros e imposta aos seus órgãos jurisdicionais já que reconhecer qualquer eficácia a uma manifestação de vontade da autoridade nacional contrária às regras comuns seria comprometer toda a construção pretendida pelos Estados autores dos Tratados, abalar a confiança mútua, arruinar a progressão do processo comunitário e traduzir mal as relações de coordenação que devem subsistir entre as ordens jurídicas comunitária e nacionais, em muito exprimidas pelo mecanismo das questões prejudiciais; o segundo faz com que os Tratados e mesmo as Directivas, nos casos em que reconheçam direitos e imponham aos Estados-Membros obrigações suficientemente precisas, claras e determinadas, possam ser invocados e feitos valer directamente pelos particulares, culminando num sistema hoje quase pleno de tutela jurisdicional dos direitos dos indivíduos12 13. O consenso sobre a superioridade normativa cada vez mais comum, também em muito devido ao medo da erosão do edifício comunitário, à limpidez da sua dedubilidade textual dos Tratados ou à previsão nos mesmos de meios proporcionais para a sua imposição e sanções face aos destinatários14 faz o juiz nacional dela retirar os poderes que lhe permitem assegurar a sua aplicação. Não havendo dúvidas de que é em grande parte da sua actividade que depende o sucesso da construção comunitária surge o mecanismo do reenvio prejudicial instituído num esquema de colaboração entre as jurisdições nacionais e o TJCE. É que o Direito Comunitário é uma ordem de subordinação embora com concessões à cooperação15. Os “pais” dos Tratados tomaram uma decisão de grande significado quando confiaram a um órgão jurisdicional independente, o TJCE, enquanto único Tribunal Comunitário em sentido institucional16, a missão de assegurar o respeito do Direito na interpretação e aplicação (dos Tratados)17 já que ao procederem deste modo não apenas 10 Ac. TJCE 13 de Julho de 1972, Comissão v. Itália, Proc. 48/71, Rec., pp. 529 ss., c. n.º 8, p. 534. 11 Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Flamino Costa v. ENEL, Proc. 6/64, Rec., pp. 1141 ss., especialmente p. 1158 a 1160; Ac. 09 de Março de 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss. 12 v. Ac. 05 de Fevereiro de 1963, Van Gend & Loos v. Administração Fiscal Neerlandesa, Proc. 26/62, Rec., pp. 3 ss.; Ac. 19 de Novembro de 1991, Proc. C-6+9/90, Francovich e Bonifaci v. République Italienne, Rec., p. 5357. 13 Ribeiro, M. C. C. Machado, Da Responsabilidade do Estado Pela Violação do Direito Comunitário, Coimbra, 1996. 14 Pires, F. Lucas, Introdução ao Direito Constitucional Europeu, 1997, p. 27. 15 Ac. TJCE, 08 de Novembro de 1990, Gmurzynska-Bscher v. Oberfinanzdirektion Koln, Proc. C-231/89, Col., pp. I-4003 ss., c. n.º 18, p. I-4017. 16 Stricto sensu, porque pode considerar-se que também o Tribunal de Primeira Instância cabe no órgão que lato sensu se designe por Tribunal de Justiça. 17 Art.º 164.º Tratado CEE, correspondente ao art.º 220º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “O Tribunal de Justiça garante o respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado”; art.º 31.º Tratado CECA, ”O Tribunal garante o respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado e dos regulamentos de execução”; art.º 136.º Tratado CEEA, “O Tribunal de Justiça garante o respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado”.

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submeteram as noções e as regras de Direito Comunitário a um controlo judiciário, como também consagraram que aquele Direito constitui o substrato sobre o qual se realiza a unificação na Europa18. Como órgãos de aplicação do Direito Comunitário as inúmeras jurisdições espalhadas por toda a Comunidade podem confrontar-se com dúvidas quer quanto à interpretação do Direito Comunitário, quer quanto à validade dos actos adoptados pelas instituições, cujo esclarecimento seja fundamental para o proferir da justa decisão sobre o fundo do litígio que lhes foi submetido (exclusivo dos órgãos jurisdicionais nacionais). Enquanto mecanismo de estreitamento das relações entre os órgãos jurisdicionais o Tribunal, através do reenvio prejudicial do art.º 177.º do Tratado CEE19 pronuncia-se a pedido das jurisdições nacionais, espelho da estrutura descentralizada da Comunidade, que são obrigadas ou não a submeter-lhe questões. O reenvio, em sede de interpretação, tem como função essencial a garantia da uniformidade da interpretação e aplicação do Direito Comunitário20 constituindo ainda um meio de promover esta uniformidade21. Quanto ao reenvio em vista da apreciação da validade, surge como garante do respeito da legalidade na ordem jurídica comunitária, assumindo uma função paralela à do recurso de anulação do art.º 173.º22. 18 Dauses, Manfred A., Alguns Aspectos do Processo Prejudicial Previsto Pelo art.º 177.º do Tratado CEE, in Boletim do M.ºP.º, ano 7/86, n.º 25, p. 11-37. 19 Correspondente ao art.º 234.º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro, de 1997, “O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação do presente Tratado; b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade e pelo BCE; c) Sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por acto do Conselho, desde que estes estatutos o prevejam. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito Interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça”; E também das disposições correspondentes dos Tratados CECA (art.º 41.º “Só o Tribunal de Justiça é competente para decidir a título prejudicial, sobre a validade das deliberações da Comissão e do Conselho, se em litígio submetido a um tribunal nacional, esta validade for posta em causa”) e CEEA (art.º 150.º “O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação do presente Tratado; b) Sobre a validade e interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade; c) Sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por acto do Conselho, desde que esses estatutos o prevejam. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito Interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.”). 20 v. Lecourt, R., L’Europe des Juges, Bruyland, Bruxelas, 1976, p. 226. 21 Barav, A., Imbroglio Prejudiciel, Revue Trimestrelle de Droit Européen, 1981, p. 431. 22 Correspondente ao art.º 230º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “O Tribunal de Justiça fiscaliza a legalidade dos actos adoptados em conjunto pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, dos actos do Conselho, da Comissão e do BCE, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos actos do Parlamento Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros. Para o efeito, o Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos recursos com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de poder, interpostos por um Estado-Membro, pelo Conselho ou pela Comissão. O Tribunal de Justiça é competente, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos interpostos pelo Parlamento Europeu e pelo Banco Central Europeu com o objectivo de salvaguardar as respectivas prerrogativas. Qualquer pessoa singular ou colectiva pode interpor, nas mesmas condições, recursos das decisões de que seja destinatária e das decisões, embora tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam directa e individualmente respeito. Os recursos previstos no presente artigo devem ser interpostos no prazo de dois meses a contar, conforme o caso, da publicação

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O papel do Tribunal é definir o sentido das disposições cuja interpretação lhe é pedida ou de se pronunciar sobre a sua validade, isto é, sobre a sua legalidade não lhe estando incumbido corrigir normativos nacionais contrários ao Direito Comunitário ou estatuir sobre a aplicação desse Direito ao caso determinado sob pena de ver ultrapassados os limites da sua competência.

Vai-se vendo, assim, cumprido o objectivo do desenvolvimento da ordem jurídica comunitária à luz das finalidades da Comunidade, ao mesmo tempo que se integram as lacunas do Direito só rudimentarmente vertido no Tratado. O processo de reenvio assenta numa repartição de poderes entre os Tribunais Nacionais e o Tribunal de Justiça destinada a garantir aos Estados que o seu respeito será assegurado e a salvaguardar um quadro de cooperação no qual o TJCE surge provido de uma competência de atribuição, nos termos do art.º 4.º Tratado CE23 encerrada nos limites da interpretação e apreciação da validade do Direito Comunitário a pedido dos Tribunais Nacionais24 nas suas vestes de juizes comunitários de direito comum25. Assim, a contrapartida do poder-dever dos Tribunais Nacionais de suscitar questões prejudiciais é o dever do Tribunal de Justiça de proferir decisões sobre tais questões26. É que cooperação implica horizontalidade, isto é, conjugação paritária de esforços27. O reenvio prejudicial não reveste a natureza de um recurso de decisões dos Tribunais Nacionais28, porque não tem por objecto modificar uma decisão já tomada mas antes dar ao juiz nacional, ainda antes da decisão de mérito, indicações úteis quanto ao conteúdo das disposições de Direito Comunitário aplicáveis para a solução in casu. Entre o Tribunal Nacional reenviante e o TJCE existe uma relação de cooperação interjudicial, uma relação processual de colaboração entre juizes, com legitimações e competências específicas, embora ambos sujeitos ao mesmo dever de boa aplicação do Direito Comunitário29. Não se funda, assim, no princípio da hierarquia dos órgãos jurisdicionais da mesma ordem jurídica mas no princípio da harmonização da actuação dos órgãos jurisdicionais do mesmo grau ao serviço da missão comum de assegurar o respeito pelo Direito Comunitário em todos os níveis da vida social. Encontramo-nos, portanto, perante um processo não contencioso30. Aliás, os processos com esse carácter,

do acto, da sua notificação ao recorrente ou, na falta desta, do dia em que o recorrente tenha tomado conhecimento do acto.” 23 Correspondente ao art.º 7º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “1. A realização das tarefas confiadas à Comunidade é assegurada por: um Parlamento Europeu; um Conselho; uma Comissão; um Tribunal de Justiça; um Tribunal de Contas. 2. Cada Instituição actua nos limites das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo presente Tratado.” 24 v. Miguel Moura Silva, O Papel das Partes e Outros Interessados no Processo de Reenvio Prejudicial, in Direito e Justiça, n.º 1, 1995, p. 123-167. 25 v. Joliet Le Droit Institucionnel des Communautés Européenes. Le Couteucieux, Liége, 1981, p. 168. 26 Ac. TJCE 08 de Novembro de 1990, Gumrzynska – Bscher v. Oberfinanzdirektion Koln, Proc. C-231/89, Col., pp. I-4003 ss., c. n.º 20, p. I-4017. 27 Ac. TJCE 23 de Abril de 1991, Rigsadvokaten v. Ryborg, Proc. 297/89, Rec., pp. I-1943 ss., c. n.º 9, p. I-1970. 28 Apesar de, tal como acontece com o processo de recurso, o processo prejudicial assumir, para além da função de protecção jurisdicional, uma importante função de harmonização, in Dauses, Manfred A., Alguns Aspectos do Processo Prejudicial Previsto Pelo art.º 117.º do Tratado CEE, in R.M.ºP.º, ano 7/86, n.º 25, p.13. 29 Castro, Paulo Jorge Canelas de, O Reenvio Prejudicial: Um Mecanismo de Integração Através da Cooperação de Juizes – apontamentos sobre uma história (ainda?) de sucesso, in Temas de Integração, 2º Vol., 1º Sem., 1997, p. 107. 30 Ac. TJCE 16 de Maio de 1968, Firma Kurt A. Becher v. Hauptzollamt M.-L., Proc. 13/67, Col., pp. 289 ss.; Ac. TJCE 1 de Março de 1973, Paul G. Bollmann v. Hauptzollamt H.-W., Proc. 62/72, Rec.., pp. 269 ss..

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também ditos recursos directos, pelos quais se pode recorrer ao Tribunal de Justiça defrontando-se um requerente e um requerido, estão taxativamente enumerados nos Tratados. São eles, no Tratado de Roma, o recurso por incumprimento (art.º 169.º31 e 170.º32); o recurso de anulação (art.º 173º33); o recurso por omissão (art.º 175.º34); o recurso de indemnização (art.º 178º35); para matéria de concorrência (art.º 172.º36); o recurso no respeitante a funcionários (art.º179.º37). À natureza não contenciosa do reenvio junta-se o carácter marcado de ordem pública38, que é reflexo da contribuição deste processo para a consolidação do Direito quando seja instável, a sua clarificação quando seja incerto, a sua evolução quando seja inadaptado ou incompleto39. A colaboração que lhe está subjacente, em si mesma, parece reflectir até um modo de concretização de uma espécie de serviço público comunitário justificado pelo propósito de facilitar uma convivência mais serena do Direito Comunitário, em relação ao qual podem ser experimentadas algumas dificuldades naturais de valoração.

É um processo interlocutório, que só constitui uma parcela do processo jurisdicional global que se inicia e termina no juiz nacional40. A questão prejudicial constitui um incidente do processo principal, do qual, por iniciativa do juiz nacional, 31 Correspondente ao art.º 226º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Se a Comissão considerar que um Estado-Membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado, formulará um parecer fundamentado sobre o assunto, após ter dado a esse Estado a oportunidade de apresentar as suas observações. Se o Estado em causa não proceder em conformidade com este parecer no prazo fixado pela Comissão, esta pode recorrer ao Tribunal de Justiça”. 32 Correspondente ao art.º 227º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Qualquer Estado-Membro pode recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerar que outro Estado-Membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força do presente Tratado. Antes de qualquer Estado-Membro introduzir recurso contra outro Estado-Membro, com fundamento em pretenso incumprimento das obrigações que a este incumbem por força do presente Tratado, deve submeter o assunto à apreciação da Comissão. A Comissão formulará um parecer fundamentado, depois de os Estados interessados terem tido oportunidade de apresentar, em processo contraditório, as suas observações escritas e orais. Se a Comissão não tiver formulado parecer no prazo de três meses a contar da data do pedido, a falta de parecer não impede o recurso ao Tribunal de Justiça.” 33 v. nota 22. 34 Correspondente ao art.º 232º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Se, em violação do presente Tratado, o Parlamento Europeu, o Conselho ou a Comissão se abstiverem de pronunciar-se, os Estados-Membros e as outras instituições da Comunidade podem recorrer ao Tribunal de Justiça para que declare verificada essa violação. Este recurso só é admissível se a Instituição em causa tiver sido devidamente convidada a agir. Se, decorrido um prazo de dois meses a contar da data do convite, a Instituição não tiver tomado posição, o recurso pode ser introduzido dentro de novo prazo de dois meses. Qualquer pessoa singular ou colectiva pode recorrer ao Tribunal de Justiça, nos termos dos parágrafos anteriores, para acusar uma das instituições da Comunidade de não lhe ter dirigido um acto que não seja recomendação ou parecer. O Tribunal de Justiça é competente, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos interpostos pelo BCE no domínio das suas atribuições ou das acções contra este intentadas”. 35 Correspondente ao art.º 235º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “O Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos litígios relativos à reparação dos danos referidos no art.º 215º/288º” 36 Correspondente ao art.º 229º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “No que respeita às sanções neles previstas, os regulamentos adoptados em conjunto pelo Parlamento Europeu, e pelo Conselho, por força das disposições do presente Tratado, podem atribuir plena jurisdição ao Tribunal de Justiça.” 37 Correspondente ao art.º 236º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “O Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre todo e qualquer litígio entre a Comunidade e os seus agentes, dentro dos limites e condições estabelecidas no estatuto ou decorrentes do regime que a estes é aplicável.” 38 Vandersanden, G./Barav, A., Contencieux Communautaire, Bruxelas, Bruylant, 1977, pp. 268-315. 39 Pescatore, Pierre, O Recurso Prejudicial do art.º 177.º do Tratado CEE e a Cooperação do Tribunal com as Jurisdições Nacionais, in BMJ, Documentação e Dt.º Comparado, 1985, n.º 22, p. 7-71. 40 Vandersanden , G./Barav. A., Contencieux Communautaire, Bruxelas, Bruyliant, 1997, p. 275.

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enquanto dominus do processo, vai surgir um verdadeiro diálogo entre os juizes, nas palavras de Pescatore, um processo objectivo de “juiz a juiz” em que não há partes em sentido próprio -sendo por isso dito um processo objectivo- nem noções processuais, tais como admissibilidade, causa de pedir, ónus da prova e força de caso julgado porque desprovidas de qualquer significado41, associando-se num esforço conjunto para a resolução de um litígio. Está-se, pois, face a um instituto já dotado da enriquecedora sedimentação das realidades que perduram no tempo pelo facto de não ter sofrido na sua configuração qualquer alteração desde que foi delineado na versão original do Tratado de Roma42, que constitui um apoio à decisão de um caso concreto pelo juiz nacional, e garantir a coerência da ordem jurídica comunitária na sua integração nas ordens jurídicas nacionais. A previsão do art.º 177.º43 do Tratado CEE constitui, no fundo, uma solução de compromisso que tem em conta as particularidades das relações entre as ordens jurídicas e o seu bom funcionamento no decurso dos anos permitiu definir, pouco a pouco, os contornos do que pode ser chamado um “Poder Judiciário Europeu”, simultaneamente descentralizado e centralizado, no sentido de que, por meio de um esforço conjunto, juizes asseguram ao Direito Comunitário a sua unidade e a sua eficácia nos diversos contextos jurídicos nacionais. Ao fim de mais de trinta anos de diálogo com as jurisdições nacionais no domínio da interpretação do Direito Comunitário e de mais de quarenta quanto à apreciação da validade de actos adoptados pelas instituições44 e como resultado não só do número elevado de recursos prejudiciais, hoje constituindo parte importante dos processos entrados cada ano, mas também da variedade dos assuntos a que respeitam, o TJCE tem levado através da já ampla jurisprudência à concretização do que ele mesmo chamou “Carta Constitucional de uma Comunidade de Direito”45. A Comunidade não é um Estado sendo a sua arma o Direito que cria. Por conseguinte, a sua missão estaria altamente ameaçada se este único meio de realizar os objectivos comunitários perdesse o carácter obrigatório, uniforme em todos os Estados-Membros46.

Para que isso não aconteça o reenvio prejudicial existe. 41 Dauses, Manfred A., O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Factor de Integração in R.M.ºP.º, n.º 33 e 34, ano 9.º, Janeiro/Junho 88, p. 79-107., especialmente p. 83 e 84. 42 v. Laureano, Abel, Quando é que o Juiz Nacional Obrigado a Suscitar uma Questão Prejudicial ao Tribunal das CE?, 1994. 43 v. nota 19. 44 O Tratado CECA atribuía já ao Tribunal funções de controlo a título prejudicial da legalidade das deliberações da Alta Autoridade e do Conselho - (art.º 41.º), v. nota 19. 45 Parecer 1/92 de 14 de Dezembro de 1992 relativo ao Acordo Sobre o Espaço Económico Europeu, Rec., pp. 2825, n.º 21. 46 Presidente Hallste, in, Parlamento Europeu, Débats, 17 de Junho de 1965, p. 220, Uma Comunidade de Direito, in A Ordem Jurídica Comunitária 1993, p.53.

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2. Aspectos do Princípio da Cooperação em Diversas Fases do Processo de Reenvio Prejudicial Previsto no art.º 177.º do Tratado de Roma

Despacho de Reenvio-Impulso Processual-Legitimidade-Pertinência da Questão-Tempestividade-Orgão Jurisdicional-Art.º 177.º/1ª Parte-Art.º 177.º/2ª e 3ª Partes-Interpretação-Aplicação-Validade-No TJCE-Faculdade de Reenvio-Recursos Internos-Regras de Direito Nacional-A Questão da Declaração de Invalidade Pelos Juizes Nacionais-Obrigação de Reenvio-Excepções

Para que tenha lugar um reenvio prejudicial o art.º 177.º47 do Tratado de Roma

exige que perante uma jurisdição de um Estado-Membro seja suscitada uma questão de interpretação ou de validade, cuja resolução se afigure necessária para que o juiz nacional possa proferir a sua decisão.

Encontrando-se o juiz nacional perante uma dessas questões ele pode ou deve, consoante o respectivo grau de jurisdição, proferir um despacho de reenvio que suspende a instância e remeter a questão em causa para o Tribunal de Justiça. É com este facto processual nacional que se inicia o processo de reenvio prejudicial e em relação ao seu conteúdo cumpre referir que reflecte a regra da repartição de competências. Na verdade, a determinação desse conteúdo cabe em exclusivo na esfera do Tribunal Nacional, o que equivale a dizer que mesmo que as partes do processo principal peçam ou sugiram o pronunciamento do Tribunal de Justiça sobre determinado(s) assunto(s) em nada isso vincula quer o juiz nacional, quer o comunitário48. Para além disso, se o problema se coloca em relação às partes do processo principal, o mesmo pode suceder em relação aos órgãos comunitários já que também eles não podem interferir no teor do acto de suscitação49 do juiz nacional que dá início a um processo de colaboração construtiva entre parceiros para resolução de dificuldades recíprocas. Apesar da articulação desta exclusividade do Tribunal Nacional para a conformação do conteúdo do despacho, o TJCE não deixou de admitir o que, no mínimo, se pode apelidar ajustamentos à regra. Perante uma determinação imprecisa da questão como a decorrente da não aplicação, como seu objecto, de disposições individualizadas, aquela instituição comunitária já decidiu ter competência para extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional do litígio os elementos de Direito Comunitário carecentes de decisão prejudicial50, para o que se pode avançar como razões o intuito de concretização dos critérios da separação funcional entre Tribunais, da economia processual, mas fundamentalmente da cooperação. Foram estas, aliás, as justificações que o juiz comunitário aduziu quando, face à conformação imprecisa de uma questão, pela não indicação dos respectivos fundamentos, se julgou competente para lhe responder fazendo, ademais, reparo expresso de que não descortinava a utilidade da mesma para a resolução do processo principal51.

Os despachos de suscitação podem conter erros, quer materiais quer substâncias, mas a jurisprudência comunitária tem apontado no sentido do seu aproveitamento. De 47 v. nota 19. 48 Ac. TJCE 09 de Janeiro de 1990, SAFA v. Administração delle Finanze dello Stato, Proc. C-337/88, Rec., pp. I-1 ss., c. n.º 20; Ac. TJCE 15 de Junho de 1972, Grassi v. Administração Italiana das Finanças, Proc. 5/72, Rec., pp. 443 ss., c. n.º 4, p. 488. 49 v. Ac. TJCE 05 de Outubro de 1988, Alsalel v. Novasam, Proc. 147/86, Col., pp. 5987 ss., c. n.ºs 7 e 8 p. 6007, que o afirma sobre a Comissão. 50 Ac. TJCE 20 de Abril de 1988, Procédure Pénal v. Guy Bekaert, Proc. 204/87, Col., pp. 2029 ss., c. n.ºs 6 e 7, p. 2038. 51 Ac. TJCE 12 de Junho de 1986, Bertini v. Região do Lácio, Proc. 98 + 162 + 258/85, Rec., pp. 1885 ss., c. n.º 7 e 8, p. 1896.

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facto, acabou por julgar que tem competência para, perante um despacho de suscitação formulado de maneira inexacta, identificar a questão em termos de poder pronunciar-se52, depois de já ter decidido que, face a questões eventualmente formuladas de maneira imprópria ou que ultrapassem o âmbito das funções que lhe são atribuídas pelo art.º 177.º53, pode extrair, dos elementos fornecidos pelo juiz nacional, aquilo que fundadamente reclame uma resposta sua54. Do mesmo modo, baseando-se no facto de as questões prejudiciais incidirem sobre o Direito Comunitário e não sobre o Direito Nacional, o TJCE classificou imprecisões do despacho de suscitação na descrição de disposições nacionais como sendo erros não impeditivos do conhecimento por si da questão55. Refira-se ainda que o Tratado não estabelece qualquer formalismo implícito ou explícito para o despacho de suscitação, pelo que pode pautar-se pela regra da liberdade de forma56. De facto, do procedimento, do art.º 20º57 do Estatuto do Tribunal de Justiça, a que deve obedecer o reenvio, apenas decorre a ideia de que se trata de uma “relação” entre Tribunais (e respectivas Secretarias Judiciais), pelo que não importa a utilização de canais diplomáticos. A notificação do despacho de reenvio pode ser feita por carta registada mas o Tribunal de justiça, fiel ao espírito de cooperação judicial, aceita como válidas outras formas de comunicação, mesmo uma mera carta do Presidente do Tribunal Nacional que constate a necessidade de proceder ao reenvio, acompanhada do dossier do processo58. As partes do processo principal não têm qualquer faculdade de impulso processual em sede do mecanismo prejudicial, abstrai-as enquanto autores judiciários59. É o princípio do inquisitório que o domina em exclusivo. O órgão jurisdicional nacional tem competência oficiosa para suscitar a questão ou questões60, se entender que deve faze-lo, independentemente da posição das partes em litígio; podem estas (ou uma delas) entender que se configura uma questão para reenviar, que nem por isso o juiz nacional é obrigado a entender o mesmo; e pode este decidir-se por reenviar quer as partes, ou uma delas, entendam o mesmo, o contrário, ou nem se pronunciem. De facto, a única possibilidade que as partes têm de influenciar o processo prejudicial, ainda que por forma indirecta, é a de retirarem a sua acção em curso perante o juiz nacional, pois

52 Ac. TJCE de 09 de Outubro de 1980, Procédure Pénal v. Giovanni Carciati, Proc. 823/79, Rec., pp. 2773 ss., c. n.º 4, p. 2778. 53 v. nota 19. 54 Ac. TJCE 29 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board v. Redmond, Proc. 83/78, Rec., pp. 2347 ss., c. n.º 26, p. 2368. 55 Ac. TJCE 30 de Abril de 1986, Ministério Público v. Asjes, Proc. 209 + 213/84, Col., pp. 89 ss., p. 102. 56 Ac. TJCE 06 de Abril de 1962, Sociedade Kledingverkoopbedrijf de Geus en U. v. Robert Bosch, Proc. 13/61, Rec., pp. 89 ss., p. 102; v. Estatuto do Tribunal de Justiça CE, DR, I Série, n.º 215, de 18 de Setembro de 1985, p. 3032 (457) ss.. 57 “Nos casos previstos no art.º 177º do Tratado, a decisão do órgão jurisdicional nacional que suspenda o processo e que suscite a questão perante o Tribunal será a este notificada por iniciativa desse órgão. Esta decisão será em seguida notificada, pelo escrivão do Tribunal, às partes em causa, aos Estados-Membros e à Comissão, bem como ao Conselho, se o acto cuja validade ou interpretação é contestada dele emanar. No prazo de dois meses a contar da notificação, as partes, os Estados-Membros, a Comissão e, se for caso disso, o Conselho, têm o direito de apresentar ao Tribunal memorandos ou observações escritas.” 58 Ac. TJCE 19 de Março de 1963, Unger v. Bedrijfsvereniging voor D. en A., Proc. 75/63, Rec., pp. 347 ss. 59 Desp. TJCE 14 de Julho de 1971, Rheiniiehler v. Einfuhr – und Vorratsstelle Getreide, Proc. 6/71, Rec., pp. 719 ss., c. n.º 1, p. 720. 60 v. Ac. TJCE 16 de Janeiro de 1974, Rheinmuhlen (II) D. Einfhur und V. fur G. und F., Proc. 166/73, Rec., pp. 33 ss.

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que então desaparece a utilidade da resposta do TJCE61. Sublinhe-se, porém, que o antes afirmado se entende sem prejuízo do mecanismo normal dos recursos previsto no respectivo Direito Interno, única via pela qual será sindicável, ao nível nacional, a decisão do juiz nacional62. Está-se afinal perante um processo desenhado segundo um modelo ou figurino de colaboração, todo relevantemente de tramitação entre órgãos jurisdicionais embora vocacionado, em última análise para a solução de litígios concretos sem feição académica nem com vista a estabelecer jurisprudência desgarrada de uma aplicação imediata como a que decorreria de litígios simulados63. A problemática da pertinência da questão sempre presente para a ponderação do juiz nacional sobre necessidade da suscitação da interrogação com vista ao julgamento da causa gira em redor da circunstância de uma decisão de “entrar em diálogo” com o juiz da Comunidade ser ou não imprescindível para a resolução do litígio in casu, designadamente por o(s) preceitos(s) de Direito Comunitário carecente(s) de interpretação ou apuramento da validade serem ou não relevantes para a dissolução do pleito. Em suma, para que se verifique o requisito “pertinência” é necessário que para a resolução do litígio principal seja fundamental uma decisão prévia sobre uma questão determinada. O TJCE tem reiteradamente afirmado a competência em exclusivo dos Tribunais Nacionais para a apreciação dessa pertinência64 com base nos princípios da separação de funções e cooperação. É que o juiz comunitário não julga a questão de fundo não tendo, consequentemente, que pronunciar-se sobre o interesse da questão para aquele julgamento, por outras palavras, não cabendo ao Tribunal de Justiça a decisão do processo principal, também não lhe deve ser deferido o encargo ou a faculdade de ajuizar da utilidade, para tal decisão, de lançar mão de uma questão prejudicial e em que termos65. Por outro lado, inexistindo hierarquia entre o Tribunal Comunitário e os Tribunais Nacionais seria falha de sentido uma ingerência daquele no âmbito dos despachos de suscitação66. Apesar do acima referido, o Tribunal de Justiça tem assumido uma conduta pela qual se denota que colabora efectivamente com as jurisdições nacionais não prescindindo, tanto quanto possível de informação exaustiva da matéria de facto. Na realidade, se o Tribunal Comunitário não se pronunciasse sobre ela, mesmo que implicitamente, afastada estaria qualquer interferência sua por meio do juiz nacional na decisão do caso subjudice. Neste sentido, o Tribunal de Justiça considerou já que o despacho de reenvio deve explicar as razões que levam o juiz nacional a considerar necessário obter uma resposta às questões por ele colocadas, bastando para o efeito que as mesmas resultem inequivocamente do processo em causa67. O respeito desta exigência é tanto mais importante quanto essas informações sirvam não só para permitir

61 Ac. TJCE, Bernini v. Minister, Proc. C-3/90, Rec., pp. I-1071 ss., c. n.º 4. 62 Ac. TJCE 06 de Outubro de 1982, CILFIT v. Ministero della Sanitá, Proc. 283/81, Rec., pp. 3415 ss., c. n.º 9, p. 3428., Ac TJCE 16 de Julho de 1981, Salonia v.Poidomani e Giglio, Proc. 126/80, Rec., pp. 1563 ss., c. n.º 7, p. 1577; Ac. TJCE 09 de Março de 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss., c. n.º 10, p. 643. 63 Ac. TJCE, Gmuerzynsca-Bscher v. Oberfinanzdirektion Koln, Proc. C-231/89, Col., pp. I-4003 ss., c. n.ºs 22 e 23, p. I-4017. 64 Ac. TJCE 18 de Junho de 1991, Piageme v. BVBA, Proc. C-369/89, Rec., pp. I-2971 ss., c. n.º 10, p. I-2983; Ac. TJCE 16 de Abril de 1991, F. Bayern v. Eurim-Pharum, Proc. C-347/89, Rec., pp. I-1747 ss., c. n.º 16, p. I-1768. 65 Ac. TJCE 16 de Março de 1978, Algemeen Ziekenfonds Drenthe – Platteland v. G. Pierik, Proc. 117/77, Rec., pp. 825 ss., c. n.º 6, p. 834. 66 Ac. TJCE 23 de Abril de 1991, Rigsadvokaten v. Ryborg, Proc. C-297/89, Rec., pp. I-1943 ss. 67 Ac. TJCE 16 de Dezembro de 1989, Foglia v. Novello, Proc. 224/80, Col., pp. 3054 ss.

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ao TJCE formular respostas úteis, como também para dar às instituições, Governos e outros interessados a possibilidade de apresentar observações68. A propósito da decisão sobre o momento processual da suscitação, o TJCE tem-se pronunciado igualmente no sentido de a competência ser unicamente dos Tribunais Nacionais69 por estes serem os únicos a terem conhecimento directo do processo principal e, consequentemente, os que estão aptos a detectar qual o melhor estádio deste, em razão de economia processual e de utilidade, para suscitar a questão prejudicial para além de serem só eles a definir o quid da questão e, logo, a assumir a responsabilidade do julgamento da causa principal70. É, assim, por apenas o Tribunal Nacional estar melhor habilitado a determinar sobre a (subsistência) do interesse na pronúncia, tal como sobre o início e o termo do reenvio prejudicial, ou sobre o an da questão, que em exclusivo lhe compete decidir da oportunidade para o impulsionar71.

O órgão nacional suscitante de uma questão prejudicial tem de ser um órgão jurisdicional no sentido que lhe foi dado pelo TJCE enquanto órgão permanente, regularmente constituído ao abrigo da lei de um Estado-Membro, com jurisdição obrigatória em certo tipo de litígios, que aplica as regras de Direito na resolução dos casos que lhe são submetidos, desenrolando-se o processo perante si segundo o princípio do contraditório72. Mas podem existir outras características não abordadas que sejam pertinentes na apreciação do carácter jurisdicional de um órgão73. Na verdade, mesmo que a organização jurisdicional e administrativa dos Estados-Membros resulte de princípios comuns no seu conjunto, ela foi influenciada por contingências históricas ou por concepções jurídicas distintas. Pode, deste modo, acontecer que as necessidades de interpretação e de aplicação uniformes do Tratado conduzam o TJCE a reconhecer a qualidade de jurisdição, com base no art.º 177º74, a um órgão ao qual a lei interna não atribui expressamente este carácter. Aliás, a interpretação jurisprudencial do conceito de órgão jurisprudencial tem o mérito de ser uniformizadora quando radica como noção autónoma do Direito Comunitário, não limitada , ainda que influenciada pelas noções dos Estados-Membros e correspondentes estruturas judiciais. (Quase) sem limites, ou não tivesse o conteúdo do conceito “jurisdicional” constituído, desde sempre, uma vexata questio do direito público75.

No âmbito da primeira parte do art.º 177.º76 há que chamar a atenção para o facto de, desde logo, não se vislumbrar alusão alguma ao Direito Internacional Público77.

68 Ac. TJCE 01 de Abril de 1982, G. Holdijk et autres, Proc.141+143/81, Rec., p.1299, c. n.ºs 5 e 6; sobre a participação de outros interessados no processo v. Miguel Moura e Silva, in Direito e Justiça, n.º1, 1995, p. 123-167. 69 Ac. TJCE 27 de Junho de 1991, Mecanarte v. Chefe do Serviço da Conferência Final da Alfândega do Porto, Proc. C-348/89, Col., pp. I-3277 ss., c. n.º 48, p. I-3281; Ac. TJCE, 11 de Junho de 1987, Pretore di Salò/x, Proc. 14/86, Col., pp. 2545 ss., c. n.ºs 10 e 11, p. 2568. 70 Ac. TJCE 21 de Abril de 1988, Pardini v. Ministero del Commercio com l’estero, Proc. 338/85, Col., pp. 2041 ss., c. n.º 8, p. 2074; v. ainda a Comunicação do Tribunal n.º 34/96, de 9 de Dezembro de 1996 que determina que “é desejável que a decisão de submeter uma questão prejudicial só seja adoptada numa fase do processo no órgão jurisdicional em que o juiz de reenvio esteja em situação de definir, ainda que de forma hipotética, o quadro factual e jurídico do problema. De qualquer modo, pode afigurar-se útil para a boa administração da justiça que a questão prejudicial só seja colocada após um debate contraditório”. 71 v. nota 40. 72 Ac. TJCE de 30 de Junho de 1966, Proc. 61/65, viúva G. Vaassen Gobbels v. Direcção do B. voor her M., Rec., pp. 377 ss.. 73 v. nota 40. 74 v. nota 19. 75 Melo, Barbosa de, Notas de Contencioso Comunitário, Coimbra, 1986, p. 133. 76 v. nota 19.

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Aquele não cabe no seio do mecanismo prejudicial pelo motivo de que tal visa tão só à correcta implementação uniforme do Direito Comunitário, de que é corolário do princípio da cooperação jurisdicional. Com o mesmo fundamento também não cabem nesse segmento as Convenções Internacionais celebradas pelos Estados-Membros sem base jurídica comunitária, ainda que apresentem conexões com a Comunidade78. Alguma atenção é reclamada pelas “Convenções Internacionais Complementares”, celebradas entre os Estados-Membros e relativas a matérias directamente ligadas com o fenómeno da integração comunitária, logo da unificação jurídica79. Da letra daquela primeira parte do preceito constam, in fine, tão somente referências ao Direito Comunitário. Sendo que, logo por aí, o TJCE nunca poderia pronunciar-se sobre as normas internas dos Estados-Membros quanto à sua aplicação, interpretação ou validade, que é no fundo formalmente o que vem sendo firmado em jurisprudência: cabe ao órgão de jurisdição nacional e não ao Tribunal interpretar as disposições de Direito Nacional e decidir sobre a sua aplicação ao caso considerado80 bem como apreciar a sua validade ou eficácia, designadamente face ao Direito Comunitário81, apesar de, como já se fez referência, as tomadas de posição do juiz comunitário, para serem pormenorizadas o necessário de forma a serem úteis, não poderem nunca situar-se tão aquém de um certo grau de incursão no campo dos Direitos Internos. Na mesma ordem de ideias, a contrario, não há actos comunitários exceptuados da apreciação do Tribunal de Justiça em sede de mecanismo prejudicial82. A norma do art.º 177.º83 terceiro parágrafo do Tratado CEE impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito Interno a obrigação de reenvio ao TJCE das questões de interpretação do Tratado ou do Direito Comunitário derivado e das questões de validade deste último, que se suscitem nos processos neles pendentes. O sentido e o alcance desta parte da norma remetem como já se deu a entender, para o seu segundo parágrafo, que contempla o caso das questões da mesma natureza, que se suscitem perante os órgãos jurisdicionais nacionais de cujas decisões caiba recurso judicial de Direito Interno, estatuindo que estes podem, se considerarem necessária ao julgamento do processo nele pendente uma decisão sobre tais questões, pedir ao TJCE que sobre elas se pronuncie a

77 Ac. TJCE 27 de Novembro de 1993, Vandeweghe v. Berufsgenossenschaft Chanische Industrie, Proc. 130/73, Rec., pp. 1329 ss., especialmente, p. 1333. 78 Ac. TJCE 15 de Janeiro de 1986, Hurd v. Jones, Proc. 44/84, Rec., pp. 29 ss., c. n.º 20. 79 v. art.º 220.º Tratado CE, correspondente ao art.º 293º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Os Estados-Membros entabularão entre si, sempre que necessário, negociações destinadas a garantir em benefício dos seus nacionais; a protecção das pessoas, bem como o gozo e a protecção dos direitos, nas mesmas condições que as concedidas por cada Estado aos seus próprios nacionais; a eliminação da dupla tributação na Comunidade; o reconhecimento das sociedades, na acepção do segundo parágrafo do art.º 58º/48º, a manutenção da personalidade jurídica em caso de transferência da sede de um país para outro e a possibilidade de fusão das sociedades sujeitas a legislações nacionais diferentes; a simplificação das formalidades a que se encontram subordinados o reconhecimento e a execução recíprocos tanto das decisões judiciais como das decisões arbitrais”. 80 Ac. TJCE 13 de Março de 1986, Sinatra v. FNROM, Proc. 296/84, Rec., pp. 1047 ss., c. n.º 11, p. 1060. 81 Ac. TJCE 23 de Novembro de 1989, Parfumeriefabrik 4711 v. Provide, Proc. C-150/88, Col., pp. 3861 ss., c. n.º 12, p. 3913. 82 Como se depreende maxime da al. b) do art.º em referência ; v. Ac TJCE 13 de Dezembro de 1989, Grimaldi v. Fond des Maladies Professioneles, Proc. C-322/88, Col., pp. 4407 ss., c. n.º 8, p. 4419. 83 v. nota 19.

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título prejudicial. O reenvio obrigatório e o reenvio facultativo delimitam-se reciprocamente84. O juiz nacional dispõe de competência plena para aplicar o Direito Comunitário ao caso concreto que é submetido ao seu julgamento só que para aplicar correctamente as disposições dos Tratados ou dos actos normativos emanados das instituições comunitárias, impõe-se-lhe determinar, interpretando-as, o exacto sentido e alcance das disposições em causa. Por vezes, o juiz pode aplicar o Direito ao caso subjudice (aparentemente) sem necessidade de proceder a uma prévia operação de interpretação mas o Direito Comunitário, recheado de noções específicas, que rege situações complexas e obedece a princípios próprios, é susceptível de embaraçar o aplicador do Direito menos familiarizado com conceitos estranhos ao Direito Nacional85. Assim, um magistrado solicitado a julgar de acordo com o Direito Comunitário facilmente procede à cisão desses momentos que à partida seriam distintos e incomunicáveis: o da aplicação da norma, que seria da exclusiva competência do juiz nacional, o único chamado a encarar o litígio enquanto tal (oposição de pretensões das partes numa dada controvérsia factual) e a resolvê-lo; e o da interpretação, que envolveria uma mera operação jurídica de precisão e acertamento do sentido da regra, e que como tal se traduziria numa questão de Direito em que a colaboração com o juiz comunitário teria o seu lugar. Pela prática facilmente se reconhece na actualidade “uma indivisível solidariedade”, “uma verdadeira unidade metodológica” entre as duas operações86. O TJCE, porém já fez questão de frisar que o termo “interpretação” usado em todas as alíneas do primeiro parágrafo se reporta, em si mesmo, ao significado que lhe é atribuído na Teoria Geral do Direito87. Por outro lado, a jurisprudência do TJCE, firmou-se no sentido de que a “validade” dos actos adoptados pelas instituições comunitárias (e pelo BCE) comporta a legalidade para efeitos de ponderação de que o desvalor dos actos há-de resultar da sua desconformidade à lei, em termos gerais. E o Tribunal tem o poder de se pronunciar sobre todas as possíveis causas de invalidade88, em sede de reenvio prejudicial de harmonia com as que podem ser invocadas no art.º 173.º89, como fundamento de um recurso directo de anulação90. A atitude do TJCE na abordagem da questão prejudicial é pautada por um espírito de abertura face aos termos em que é apresentada já que o seu lema é apoiar o reenviante, sem descurar o respeito pela separação funcional face à jurisdição nacional e isso estende-se naturalmente à sua competência em sede de interpretação ou apreciação da validade do Direito Comunitário.

84 Piçarra, Nuno, O art.º 177.º do Tratado CEE na Jurisprudência do TJCE, in O Tribunal de Justiça das CE Como Juiz Legal e o Processo do art.º 177.º do Tratado CEE, AAFDL, 1991, p. 5 – 25. 85 Campos, J. Mota de, Direito Comunitário, III vol., p. 444. 86 Neves, Castanheira citado por R. M. Moura Ramos, Reenvio Prejudicial e Relacionamento Entre Ordens Jurídicas na Construção Comunitária, in Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação 4/5, Abril/Dezembro de 1992, p.107; o Advogado-Geral Lagrange sublinhou tais dificuldades de delimitação da fronteira entre interpretação e aplicação no caso Flamino Costa v. ENEL, Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Proc. 6/64, Col., pp. 1141 ss.. 87 Ac. TJCE 18 de Outubro de 1990, Dzodzi v. Etat Belge, Proc., C-297/88 + C-197/89, Rec., pp. I-3763 ss., c. n.º 38, p. I-3794. 88 Ac. TJCE 12 de Dezembro de 1972, Internacional Fruit Company v. Produktschap voor Groenten en Fruit, Proc. 21 a 24/72, Rec., pp. 1219 ss., c. n.ºs 4 a 6, p. 1226. 89 v. nota 25. 90 Desenvolvimento sobre preceitos de controlo das infracções ao Tratado, in Trinta Anos de Direito Comunitário, Perspectivas Europeias, 1981.

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Da restrição à interpretação e apreciação da validade que da letra do art.º 177.º91 resultam muito claramente, o TJCE tem-se declarado incompetente para apreciar reenvios cujo objecto recaia sobre qualquer outra questão mas não se priva de constantemente relembrar à jurisdição reenviante o sentido do Direito Comunitário92. Noutras situações, porém o TJCE pareceu ter-se “arvorado” em censor do Tribunais Nacionais ao decidir ter competência para um caso de exorbitância das questões suscitadas, para suprir o defeito, ajustando a sua resposta em face da hipotética questão que correctamente devesse extrair-se do conjunto dos elementos fornecidos pelo juiz nacional93.

Efectivamente, foi com toda a probabilidade muito importante para o sucesso da cooperação entre os Tribunais no âmbito do disposto no art.º 177.º94 que, durante anos, o TJCE não tenha rejeitado pedidos de decisão prejudicial apesar de muitas vezes se ter somente debruçado sobre os dados dos problemas de Direito Comunitário que, de forma indirecta constituíram o motivo pelo qual a questão foi posta indicando, para eles, a solução ou facultado os elementos respeitantes ao Direito Comunitário, no contexto do processo, que tenha considerado necessários ao juiz nacional para determinar a regra aplicável ao caso concreto95. Se a partida, de facto, foi assim, a certo momento, porém, o TJCE começou a recusar decidir a título prejudicial, por motivo de que o órgão jurisdicional nacional não tinha fundamento para pedir a sua intervenção, de que a questão levantada não era pertinente ou de que era de tal forma fácil que o juiz não devia tê-la colocado e por isso não devia ser admitida. A benevolência do TJCE em tomar sempre em consideração as questões postas pelos órgãos jurisdicionais nacionais em nome de um bom trabalho de cooperação parece que teve que ceder numa situação em que a sua capacidade de trabalho se evidenciou ameaçada de atingir o limite em razão do número sempre crescente dos pedidos de decisão prejudicial, o que de um ponto de vista crítico corporizou a renúncia à apreciação de certas questões que lhe eram submetidas e assim a verificação de interferências no diálogo supostamente aberto entre os dois juizes. Se o Tribunal de Justiça entendeu reforçar as exigências de análise da questão posta pelos órgãos jurisdicionais nacionais, o desejo de uma reforma passava tão só pela elaboração de uma nova jurisprudência e não de um Direito novo. O art.º 177.º96 põe como condição para que o Tribunal de Justiça seja competente que a questão seja suscitada perante um órgão jurisdicional. Literalmente, ela não terá lugar quando os elementos de facto do processo não justificarem suficientemente a aplicação do Direito Comunitário na decisão do litígio; o pedido será rejeitado quando o advogado de uma das partes sustente o alcance das perspectivas que chamam o Direito Comunitário ao processo em causa e o juiz não se preocupe em decidir e prefira, sem mais, ordenar a remessa do mesmo ao TJCE para apreciação sob a forma de questão prejudicial. Não se duvida que o Tribunal adquiriu um critério em parte discricionário, para decidir das questões que poderão monopolizar a sua capacidade de trabalho e o seu tempo, critério esse só limitado na decorrência do acórdão proferido no “processo 91 v. nota 19. 92 Ac. TJCE 09 de Fevereiro de 1984, Rhône Alpes Huiles v. Syndicat National des Fabricants Reffineurs d’Huile de Graissage, Proc. 295/82, Rec., pp. 575 ss.. 93 Ac. TJCE 20 de Março de 1986, Procurador da República, v. Tissier, Proc. 35/85 Rec., pp. 1207 ss., c. n.º 9, p. 1212. 94 v. nota 19. 95 v., a título de exemplo, Ac. TJCE 17 de Fevereiro de 1976, Rewe-Zentrale v. Hauptzollamt Landau Pfalz, Proc. 45/75, Rec., pp. 181 ss.. 96 v. nota 19.

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Foglia”97. Pode levar a fazer com que os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros procedam como que a um “teste de maturidade” das questões que decidam colocar, pela sua importância jurídica mas também social, económica e mesmo política, consideradas em relação às perspectivas das consequências de uma eventual decisão. A propósito da amplitude da faculdade de reenviar o TJCE orienta-se no sentido de que o direito de utilizar o art.º 177.º98 deve ser reconhecido às jurisdições nacionais mesmo quando as regras internas a isso se oponham, decorrência natural do primado da regra comunitária sobre a norma nacional contrária.

Sem prejuízo da liberdade de iniciativa reconhecida ao juiz nacional, o TJCE entende que não deve dar seguimento a um processo susceptível de conduzir a uma decisão inútil, como poderá suceder em virtude do regime vigente na ordem interna em matéria de recursos. De facto, do despacho de reenvio pode caber recurso para um Tribunal Nacional superior mas a admissibilidade da sua interposição não pode deixar de ser articulada com a necessidade de preservação da faculdade conferida ao juiz nacional. O Tribunal consagrou por meio de jurisprudência99 a sua posição perante recursos internos: o TJCE continuará o processo de reenvio, até que seja informado pelo juiz que procede ao questionário de que foi interposto recurso com efeito suspensivo do seu despacho de reenvio, caso em que o Tribunal suspenderá ele próprio o processo até que o recurso interno seja decidido; quando a decisão do Tribunal superior seja contrária ao reenvio, o TJCE arquivará o processo pelo facto de a questão deixar de ter objecto; o Tribunal que procedeu ao reenvio pode repeti-lo, ainda que contrariando a decisão do Tribunal de recurso, caso considere que a obediência à posição da instância superior o levaria a proferir uma sentença contraditória ao Direito Comunitário. Além do mais, não se pode descurar que as normas de Direito Interno não podem submeter a protecção de direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária a condições ou modalidades menos favoráveis do que aquelas que são aplicáveis a processos semelhantes de natureza puramente interna.

O Tribunal das Comunidades realçou também que o processo prejudicial é um processo sem partes, já que nele não intervêm litigantes, entendidas enquanto dominadas pelo princípio da estabilidade da instância. Assim o pedido do órgão jurisdicional nacional em que se consubstancia um reenvio faz nascer uma instância que se mantém inalterada enquanto tal pedido não for retirado pelo órgão de que emana ou anulado em recurso por um órgão jurisdicional superior100. A faculdade de suscitação de questões prejudiciais não pode ser limitada por regras de Direito Nacional que estabeleçam a sujeição do pronunciamento do órgão jurisdicional nacional suscitante ao de um órgão jurisdicional de hierarquia superior. Assim o impõe o respeito que tem que existir pela necessidade sentida, por banda do órgão jurisdicional suscitante que vai julgar o processo principal, de ser elucidado sobre a questão suscitada e, portanto, pela obrigação que tem de, pelo melhor Direito, solucionar o litígio que tem em mãos. E Efectivamente qualquer obstáculo, inclusive potencial, à aplicação e interpretação uniformes do Direito Comunitário no conjunto da União implica perigo para o bom funcionamento comunitário enquanto sistema, devendo manter-se aberta a todos os órgãos jurisdicionais a possibilidade de dirigir-se 97 v. nota 67. 98 v. nota 19. 99 v. Ac. 16 de Janeiro de TJCE 1974, Rheinmullen (II) D. v. Eifhur und V. fur G. und F., Proc. 166/73, Rec., pp. 33 ss., c. n.º 4; Ac. 12 de Fevereiro de TJCE 1974, Rheinmullen (III) ) D. v. Eifhur und V. fur G. und F., Proc. 146/73, Rec., pp. 139 ss.. 79 Ac. TJCE de 09 de Março de 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss., c. n.º 10, p. 643.

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ao Tribunal de Justiça101. Ademais, o presente normativo desinteressa-se, na sua estatuição, da circunstância de a decisão do órgão jurisdicional nacional ter adquirido força de caso julgado102. O TJCE pronunciou-se no sentido da incompetência dos Tribunais Nacionais para declararem a invalidade dos actos comunitários com fundamento no objectivo de se visar por via do reenvio a aplicação uniforme do Direito Comunitário. É que aquela declaração facultada aos órgãos jurisdicionais nacionais ficaria necessariamente sujeita ás suas divergências de juízos na apreciação do valor dos referidos actos. Seria assim também posto em causa o princípio da segurança jurídica.

O juiz comunitário apenas admitiu a possibilidade de este entendimento comportar excepções no concernente ao processo de medidas provisórias103. Primeiramente, a posição assumida afigura-se, desde logo, passível de críticas pelo que tange ao disposto no segundo parágrafo do normativo em análise, já que parece retirar aos órgãos jurisdicionais nacionais uma faculdade que o texto legal lhes atribui de forma clara, transformando-a em dever. Na realidade, a letra do segundo parágrafo, ao conceder aos Tribunais Nacionais a faculdade de suscitar questões prejudiciais, não distingue entre questões de interpretação e validade. Parece assim que a argumentação expendida pelo juiz comunitário esbarra com a estrutura do art.º 177.º104 quando estabelece os sistemas contrapostos da faculdade de suscitação e da sua obrigatoriedade relativamente a qualquer uma das alíneas do primeiro parágrafo. Depois, a questão que se põe no âmbito do “Processo Foto-Frost” que é relativa á competência dos Tribunais cujas decisões são susceptíveis de recurso de Direito Interno para declararem a invalidade de um acto comunitário (mas não à de afirmarem a sua validade) podia, em concretização dos objectivos desde início propostos no âmbito do art.º 177.º105 ter uma resposta menos rígida do que a avançada pelo Tribunal. O acórdão em questão estabeleceu a incompetência total - com um mero desvio para os procedimentos de urgência - mas parece de questionar por que motivos se hão-de acentuar disparidades relativamente às competências dos magistrados nacionais se, não tendo dúvidas razoáveis sobre a invalidade do acto, eles ainda assim não poderão dispensar-se de interpelar o Tribunal. Com este regime o TJCE reconhece aos juizes do litígio uma competência bizarra ao serem plenamente capazes para julgar que os actos comunitários são válidos podendo limitar e mesmo dar como não existentes vícios, mas já não para afirmarem que existem e assim declarar o acto onde aqueles se verifiquem inválido, por neste campo lhe ser retirada a competência, apesar de a operação intelectual ser a mesma em ambas as situações. O princípio da cooperação via “alargado” o seu campo de aplicação, sem se pensar em desmoronar o resultado do laborioso trabalho comunitário, se se tivesse adoptado uma fórmula que reconhecesse aos Tribunais Nacionais, que no caso concreto não decidem em última instância, a sua competência para decidirem pela não aplicação de um acto comunitário com fundamento em invalidade, concomitantemente sugerindo-

101 v. Relatório do Tribunal de Justiça Sobre Determinados Aspectos da Aplicação do Tratado da União Europeia, Luxemburgo, Maio de 1995. 102 Ac. TJCE 06 de Abril de 1962, Sociedade Kledingverkoopbedrijf de Geus en U. v. Robert Bosch, Proc. 13/61, Rec., pp. 89 ss., p. 101. 103 Ac. TJCE 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost v. Hauptzollamt Lubeck - Ost, Proc. 314/85, Col., pp. 4199 ss., c. n.ºs 12 a 20, p. 4230; Ac. TJCE 17 de Julho de 1997, Kruger GmbH & Co. KG v. Hauptzollamt Hamburg-Jonatas, Proc. C-334/95, Col., pp. I-4517 ss.; Ac. TJCE 09 de Novembro de 1995, Atlanta e o. v. Bundesamt, Proc. C-465/93, Col., pp. I-3761ss.. 104 v. nota 19. 105 Idem.

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lhes que, sempre que tivessem dúvidas sobre a validade de um tal acto, interpelassem o TJCE106. O terceiro parágrafo impõe o dever de suscitação quando se trate de processos correndo trâmites em Tribunais Nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito Interno, que é o mesmo que dizer Supremos Tribunais Cíveis e Criminais, Sociais, Fiscais ou Administrativos107, o mesmo é dizer que o “juiz supremo”, na dúvida cujo esclarecimento se mostre necessário para a resolução do processo principal, deve pedir colaboração ao juiz Comunitário. O Tribunal entendeu que o terceiro parágrafo ordena o dever de suscitação quando se trate de processos correndo os trâmites em Tribunais Nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no Direito Interno, salvo se o julgamento for proferido (mesmo sem possibilidade de recurso) num processo provisório, desde que as partes possam instaurar um processo de fundo, no curso do qual a questão provisoriamente julgada possa ser apreciada e objecto de suscitação prejudicial108. Para os casos tidos como implicando uma obrigação de suscitação, o TJCE também entendeu haver excepções á regra. Dispensa-se a imposição de um novo pronunciamento, quando já existia uma tomada de posição lavrada sobre o plano de fundo de um caso análogo109; se o juiz comunitário teve ocasião de reiterar um determinado entendimento, há-de este presumir-se estabilizado e, portanto, falha de utilidade uma obrigação de novos pedidos de reapreciação, mesmo não existindo uma identidade estrita entre as matérias objecto do litígio; além disso, diz que, não havendo lugar a dúvidas razoáveis sobre o tema da causa, na decorrência do brocardo latino in claris non fit interpretatio, perde razão o impor-se qualquer obrigação de suscitação - antes de se concluir no sentido de se verificar uma evidência, o órgão jurisdicional nacional deve, contudo, rodear-se de extrema cautela, só o fazendo caso se convença de que a mesma evidência se imporia igualmente aos órgãos jurisdicionais dos outros Estados-Membros e ao Tribunal de Justiça mas a eventualidade desse convencimento há-de ser delineada em função das características do Direito Comunitário e das particulares dificuldades que a sua interpretação apresenta, a saber, necessidade do confronto entre as várias versões linguísticas, tomada em consideração de uma terminologia própria e de conceitos jurídicos não forçosamente coincidentes com os dos Direitos Nacionais, atenção aos elementos sistemáticos e racionais no descortinar do alcance das disposições comunitárias110. A cooperação levada a cabo anteriormente conduziu ao estabelecimento de uma regra comum. Refira-se, in fine, que são admissíveis segundas suscitações, caso o Tribunal nacional tenha dificuldades de compreender são ou de aplicação do acórdão prejudicial, caso apresente uma nova questão de Direito ou, enfim, caso avance com novos elementos de apreciação relativamente a uma questão já decidida111. 106 Miranda, Alberto Souto de, A Competência dos Tribunais dos Estados-Membros Para Apreciarem a Validade dos Actos Comunitários no Âmbito do art.º 117.º do Tratado de Roma, in Revista da O. A., Ano 49, Set. 1989, p. 559-581. 107 Campos, J. Mota de, Direito Comunitário, vol. II, p. 457. 108 Ac. TJCE 24 de Maio de 1977, Hoffmann – La Roche v. Centrafarne, Proc. 107/76, Rec., pp. 957 ss., especialmente p. 974. 109 Ac. TJCE 06 de Outubro de 1982, CILFIT v. Ministero dela Sanitá, Proc. 283/81, Rec., pp. 3415 ss., c. n.º 13, p. 3429; Ac., TJCE 27 de Março de 1963, Da Costa v. Administração Fiscal Neerlandesa, Proc. 28 a 30/62, Rec., pp. 59 ss., p. 75. 110 Ac. TJCE 06 de Outubro de 1982, CILFIT v. Ministero della Sanitá, Proc. 283/81, Rec., pp. 3415 ss., c. n.º 14 e 16 a 20. 111 Ac. TJCE 11 de Junho de 1987, Pretore di Salò/x, Proc., 14/86, Col., pp. 2545 ss., c. n.º 12, pp. 2568 ss..

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Manifesta-se igualmente aqui, outro afloramento da ideia de cooperação judiciária que enforma todo o mecanismo prejudicial: desenrolando-se totalmente ao nível dos órgão jurisdicionais, também no campo das suscitações obrigatórias se verifica a exclusão da iniciativa das partes do processo principal no sentido de importante ser o facto de o juiz nacional se crer ou não suficientemente esclarecido112 113.

112 Desp. TJCE 18 de Outubro de 1979, Sirena v. Eda, Proc. 40/70, Rec., pp. 3169 ss., p. 3170. 113 A decisão de reenvio e os documentos pertinentes devem ser enviados directamente ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional nacional dirigida ao Greffe de la Cour de Justice des Communautés Européennes, L-2925 Luxembourg (telefone 352-43031; fax 43032600). Até à prolação do acórdão, a Secretaria do Tribunal de Justiça permanecerá em contacto com o órgão jurisdicional nacional ao qual enviará cópia dos documentos ulteriores (observações escritas, relatório para audiência e conclusões do Advogado-Geral), bem como o acórdão. O órgão jurisdicional nacional deverá informar seguidamente o Tribunal de Justiça da aplicação que tenha feito do acórdão no litígio na causa principal e remeter-lhe, oportunamente, a sua decisão final.

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3. Jurisdições Nacionais – TJCE Princípio da Cooperação Numa “Nova Arquitectura Judicial”?

O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias-O Êxito em Decadência?-O Tribunal de Primeira Instância-Cooperação entre Iguais?- Reenvio Prejudicial em Números do Passado e Presente

Criada pelo Direito e nele baseada com vista a assegurar a sua eficácia, a ordem jurídica comunitária é essencialmente criadora de Direito. É um ordenamento que assegura um elevadíssimo grau de desenvolvimento das regra normativas e do seu respeito por um órgão jurisdicional. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia, contrariamente aos órgãos jurisdicionais internacionais clássicos, como o Tribunal Internacional de Justiça, tem competência plena nos casos previstos pelos Tratados sem que seja necessário que o Estado a aceite; a sua jurisdição é obrigatória pela simples entrada em vigor dos Tratados Comunitários. Pelas funções do Tribunal passa a intervenção a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais para se pronunciar sobre a interpretação das normas comunitárias ou apreciar a validade dos actos das instituições. Empenhado num controlo jurisdicional, rejeitou a aplicação, na ordem jurídica comunitária, do princípio da retaliação entre Estados-Membros pelo qual estes não podem fazer justiça pelas próprias mãos visto que o Tratado prevê e organiza um sistema particularmente completo de recursos114. Na mesma ordem de ideias, os Tratados proíbem, para a solução dos diferendos relativos à sua interpretação e aplicação, o recurso a outro modo de resolução que não seja o que eles determinam115. Um simples exame do número considerável de decisões prejudiciais permite concluir que a cooperação das jurisdições nos termos do art.º 177.º116 traduziu-se, no seu conjunto por um grande êxito117, que está em vias de se devorar a si próprio, porque no final dos anos setenta a quantidade dos processos começou a ameaçar deitar por terra a capacidade do Tribunal. A título de exemplo, se entre 1953 e 1960 nenhum processo de reenvio deu entrada no Tribunal, já em 1970 entraram 32, em 1980, 99, ou seja, mais do triplo, dez anos mais tarde 141 e em 1997 foram já 239 os pedidos de decisão prejudicial118. A pressão do trabalho e o risco inerente de não poder instituir de maneira inteiramente satisfatória todos os processos, concomitantemente com o desejo de não prolongar demasiado o tempo consagrado à sua instituição , levou o Tribunal de Justiça

114 Ac. TJCE 13 de Novembro de 1964, Comissão v. Grão-Ducado do Luxemburgo e Reino da Bélgica, Proc. 90+91/63, Rec., pp. 1217 ss.. 115 Tratado CECA, art.º 87.º “As Altas Partes Contratantes compromete-se a não invocar os Tratados, Convenções ou Declarações existentes entre si com o fim de submeter diferendo relativo à interpretação ou aplicação do presente Tratado a um modo de resolução diverso dos que nele estão previstos”; Tratado CEEA, art.º 193.º “Os Estados-Membros compromete-se a não submeter qualquer diferendo relativo à interpretação ou aplicação do presente Tratado a um modo de resolução diverso dos que nele estão previstos”; Tratado CEE, art.º 219º, correspondente ao art.º 292º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Os Estados-Membros comprometem-se a não submeter qualquer diferendo relativo à interpretação ou aplicação do presente Tratado a um modo de resolução diverso dos que nele estão previstos”. 116 v. nota 19. 117 No que respeita aos processos entrados no TJCE desde 1953 e 1997 (9911) entre acções e recursos directos, recursos de decisões do TPI e questões prejudiciais, 3639 representam os pedidos de decisão prejudicial, isto é, mais de um terço; v. Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Relatório Anual, 1997. 118 Ibidem.

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a propor um aumento do número de juizes e advogados gerais119. Todavia, tem-se vindo a verificar que o TJCE em média não pode proferir acórdãos em número superior a 200/ano, do que resulta naturalmente acumulação de processos e a colisão com o direito de qualquer pessoa a ver a sua causa examinada num prazo razoável por um Tribunal120. A consequência do prolongamento da duração do processo é particularmente preocupante em matéria prejudicial onde a duração processual no TJCE, somada à duração existente nos processos nacionais - tanto mais que o reenvio implica a suspensão da instância no que toca ao litígio - compromete a eficácia da aplicação do Direito Comunitário. E ponderante é o facto de que em 1975, em média, o TJCE não necessitava de mais de 6 meses para responder a uma questão prejudicial, enquanto que actualmente para proferir um despacho ou acórdão necessita, as mais das vezes, de mais de 27 meses121, ou seja, mais de dois anos. O paradoxo parece tornar-se evidente ao ter-se em conta que, por força o art.º 5.º CEE122, os Estados-Membros estão obrigados a absterem-se de quaisquer medidas que possam pôr em perigo a realização dos objectivos do Tratado e a tomarem todas as medidas capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do Tratado ou dos actos de aplicação. Vem-se colocando a questão de saber como é que o Tribunal de Justiça pode desempenhar eficazmente as suas funções e quais as modificações necessárias a fazer na organização jurisdicional para alcançar esse fim à luz da premência de “uma nova arquitectura judicial”123. Os processos que são submetidos ao TJCE devem percorrer numerosas etapas processuais, tal como se encontram estruturadas pela regulamentação existente, antes de poder ser proferido o acórdão ou despacho que põe fim à instância. O novo processo é, antes do mais, objecto de uma fase escrita que dá às partes e a alguns interessados a possibilidade de apresentarem os seus articulados. Em especial nos procedimentos prejudiciais, qualquer Estado-Membro pode apresentar observações ao Tribunal de Justiça. Todas as peças do processo escrito devem, em seguida, ser objecto de tradução. O juiz encarregado de preparar o processo pode então iniciar a apreciação do dossier, o que permite ao Tribunal de Justiça remeter o processo para uma secção de julgamento, escolhida em função da importância do caso, e salvo se não houver lugar à fase oral, determinar uma data para a audiência. Uma vez ouvidas as alegações das partes, o Advogado-Geral encarregado do processo prepara as suas conclusões e, depois de estas serem apresentadas, o processo é submetido a deliberação. No termo desta, o acórdão adoptado é traduzido em todas as línguas oficiais, o que permite chegar-se por fim à prolação do acórdão ou á adopção do despacho. No total, decorreram entretanto cerca

119 Memorandum do TJCE ao Conselho de 22 de Julho de 1978, Boletim CE n.º 7/8 – 1978. 120 v. Art.º 6.º Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de Novembro de 1950 (Texto oficial português constante da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, que o aprova para ratificação) “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. (...)” 121 v. nota 117. 122 Correspondente ao art.º 10º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997, “Os Estados-Membros tomarão todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do presente Tratado ou resultantes de actos das instituições da Comunidade. Os Estados-Membros facilitarão à Comunidade o cumprimento da sua missão. Os Estados-Membros abster-se-ão de tomar quaisquer medidas susceptíveis de pôr em perigo a realização dos objectivos do presente Tratado.” 123 Jacqué/Weiler, Sur la Voie de l’Union Européenne – Une Nouvelle Architecture Judiciaire, in Revue Trimestrelle de Droit Européen, 1990, p. 441-456.

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de vinte meses, dos quais boa parte foi consagrada ás múltiplas traduções das peças processuais exigidas pela regulamentação anterior . É mediante a chamada de atenção para os diferentes passos a dar no âmbito da apreciação de um processo submetido ao TJCE que Sua Excelência, o Presidente do TJCE, Rodríguez Iglésias124, veio dar a conhecer que “o Tribunal conseguiu no ano de 1997 aumentar de modo significativo o número de acórdãos e despachos decisórios de processos já que proferiu 242 acórdãos face aos 193 de 1996 e 135 despachos”. Porém, ao analisarmos os números referentes aos processos de questões prejudiciais, pode concluir-se que o total das decisões acima referidas (e que respeita a acções e recursos directos, recursos de decisões do TPI e questões prejudiciais) equivale a pouco mais do que ao número daqueles processos de reenvio entrados no TJCE só até ao final do ano de 1997 (239) e dos que cerca de vinte meses antes haviam aí chegado (251)!125 Não será de se começar a questionar até onde é que se poderá continuar, sem mais, a falar da existência de um mecanismo de cooperação que institucionalizou o diálogo entre os Tribunais Nacionais e o Tribunal de Justiça para evitar o resultado de os distintos aparelhos judiciais nacionais cristalizaram diferentes aplicações da ordem comunitária, assim destruindo o carácter unitário da regulamentação que se quis lograr através do processo da sua criação e isenção nos diversos ordenamentos nacionais?126 Uma etapa concreta do desenvolvimento da organização jurisdicional comunitária teve início com a inserção no Tratado pelo Acto Único Europeu127 de um novo art.º 168.º-A128 que, a pedido do TJCE e após consulta da Comissão e do Parlamento Europeu habilita o Conselho, deliberando por unanimidade, a criar uma nova jurisdição encarregada de conhecer em primeira instância certas categorias de recursos apresentados por pessoas singulares ou colectivas, mas não os recursos directos introduzidos por Estados-Membros e instituições da Comunidade ou questões prejudiciais nos termos do art.º 177.º129 do Tratado. A decisão do Conselho de instituir o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias foi tomada em 24 de 124 A actividade do Tribunal de Justiça em 1997, in Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias -Relatório Anual, 1997. 125 v. nota 117. 126 Ramos, Rui Manuel Moura, Reenvio Prejudicial e Relacionamento Entre Ordens Jurídicas na Construção Comunitária, in Legislação – Cadernos de Ciência e Legislação, 4/5, Abril/Dezembro, 1992, p. 95-119, especialmente p. 103. 127 Assinado no Luxemburgo e na Haia, respectivamente, em 17 e 28 de Fevereiro de 1986; entrou em vigor em 09 de Julho de 1987, foi publicado no DR, I Série, n.º 296, de 26 de Dezembro de 1986 e no JO L 169, de 29 de Junho de 1987. 128 Correspondente ao art.º 225º do Tratado de Amsterdão, de 2 de Outubro de 1997 “1. É associada ao Tribunal de Justiça uma jurisdição encarregada de conhecer em primeira instância, sem prejuízo de recurso para o Tribunal de Justiça limitado às questões de direito e nas condições estabelecidas pelo respectivo estatuto, de certas categorias de acções determinadas nas condições definidas no n.º 2. O Tribunal de Primeira Instância não têm competência para conhecer das questões prejudiciais submetidas nos termos do art.º 177º/234º. 2. A pedido do Tribunal de Justiça e após consulta do Parlamento Europeu e da Comissão, o Conselho, deliberando por unanimidade, determina as categorias de acções a que se refere o n.º 1 e a composição do Tribunal de Primeira Instância e adopta as necessárias adaptações e disposições complementares ao Estatuto do Tribunal de Justiça. Salvo decisão em contrário do Conselho, são aplicáveis ao Tribunal de Primeira Instância as disposições do presente Tratado relativas ao Tribunal de Justiça, e nomeadamente as disposições do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de justiça. 3. Os membros do Tribunal de Primeira Instância serão escolhidos de entre pessoas que ofereçam todas as garantias de independência e possuam a capacidade requerida para o exercício de funções jurisdicionais; são nomeados de comum acordo, por seis anos, pelos Governos dos Estados-Membros. De três em três anos proceder-se-á a uma substituição parcial. Os membros cessantes podem ser nomeados de novo. 4. O Tribunal de Primeira Instância estabelece o respectivo regulamento processual de comum acordo com o Tribunal de Justiça. Esse regulamento será submetido à aprovação unânime do Conselho” 129 v. nota 19.

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Outubro de 1988 130. Um ano mais tarde, no Outono de 1989, aquele Tribunal entrou em actividade, com uma competência ratione materiae pontual e pouco homogénea, associado no plano institucional ao TJCE e apoiado na sua infraestrutura administrativa131. Com a criação de uma nova jurisdição comunitária visava-se aliviar de Trabalho o TJCE132 e aperfeiçoar as garantias jurisdicionais de que beneficiam os particulares133. A experiência dos primeiros anos de actividade do TPI confirmou a bem fundada orientação tomada aquando do Acto Único Europeu. A prática demonstrou que o duplo grau de jurisdição permite melhorar a verificação dos factos, clarificar e apreciar melhor as questões particulares de Direito antes da decisão da jurisdição suprema. Constitui, pois, aquela instância um factor de desenvolvimento do Direito em si. Apesar da transferência de competências para o TPI, o número de casos pendentes no TJCE a aguardar decisão, como já se pôde referir, não cessou de aumentar e a duração dos processos ante o mesmo Tribunal não diminui, muito pelo contrário. O Tratado da União Europeia contemplou o Tribunal de Primeira Instância no art.º 168.º-A134 por meio do qual, com excepção dos reenvios prejudiciais, pode ver-lhe confiado o tratamento, sem prejuízo do recurso para o Tribunal de Justiça, limitado às questões de Direito, de todas as categorias de acções determinadas de acordo com o processo previsto no n.º 2 desse mesmo preceito (pedido do Tribunal de Justiça, consulta do Parlamento e da Comissão, decisão do Conselho por unanimidade)135. O simples peso dos números quanto ao uso do mecanismo do pedido de decisão prejudicial faz colocar a questão sobre se certas delas não poderiam ser resolvidas pelo TPI a fim de se aliviar efectivamente o TJCE. Ao focar este problema cumpre desfazer a ideia de que qualquer decisão prejudicial seja da exclusiva competência da “jurisdição suprema”, pois que a sua finalidade é assegurar a uniformidade de interpretação e aplicação do Direito Comunitário. Ora, para esse efeito, em sede de jurisdições nacionais, parece suficiente que uma jurisdição comunitária se pronuncie e que a sua decisão se imponha em toda a Comunidade independentemente de ela ser proveniente do TJCE ou TPI. Além disso, frequentemente as questões prejudiciais visam determinar como é que as normas de carácter técnico devem ser aplicadas a um caso específico, prática corrente da administração da justiça, não havendo necessidade de tal ser efectivado pelo juiz superior. Não se prejudicariam nem a interpretação normativa uniforme e por arrastamento a respectiva aplicação, nem o desenvolvimento comunitário em geral se esses casos fossem resolvidos pelo TPI e se sobre tal permanecessem dúvidas o TJCE

130 JO L 319, de 25 de Novembro de 1988, com Rectif. no JO L 241, de 17 de Agosto de 1989; Versão definitiva: JO C 215, de 21 de Agosto de 1989. 131 Jung, Hans, A Organização Jurisdicional Ante o Futuro, in O Sistema Jurisdicional Comunitário e a Sua Contribuição Para a Integração Europeia; Colecção Divulgação do Direito Comunitário, ano 5, n.º 13, 1993, p. 43-65. 132 Após o, início da sua actividade verificando-se desde logo a transferência de 153 casos do TJCE, o TPI deu como findos desde 1989, 1303 processos, proferiu 567 acórdãos; v. nota 84. 133 v. Decisão 88/591 do Conselho, de 24 de Outubro. 134 Do Tratado da U.E., Assinado em Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992, v. nota 128. 135 Na prática foi desmentido o receio, muitas vezes expresso antes da criação do Tribunal, de que os recursos frequentes e até sistemáticos, introduzidos ante o TJCE dos acórdãos do TPI tornariam ilusório o aliviar dos trabalhos naquela instância superior, porque em média somente cerca de 30% das decisões impugnáveis do TPI são objecto de recurso. Dos 567 acórdãos proferidos pelo TPI entre 1989 e 1997, 190 traduziram-se em decisões impugnáveis.

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funcionaria sempre como Tribunal de recurso nos casos que a lei determina136, com observância da necessária independência, suporte do respeito das normas democraticamente legitimadas e dos direitos fundamentais que devem exprimir-se plenamente em todo o espaço comunitarizado. A dificuldade evidencia-se a propósito da determinação das categorias de questões prejudiciais para as quais podia ser encarada uma competência do TPI137 mas, numa visão menos lata do carácter supremo do TJCE, aquele Tribunal “primário” poderia mesmo decidir sem que fosse necessária uma decisão superior, como sucederia ao atribuir-se a outra jurisdição - uma jurisdição intermédia - ou a secções especializadas em si existentes a competência para responder às questões prejudiciais em matérias que, pela sua natureza, não justificam a intervenção do Tribunal “máximo”, sobretudo quando este a propósito já tenha definido jurisprudência clara e constante.

Isso levaria por certo a um alívio real do trabalho no TJCE mediante uma efectiva repartição de tarefas entre as duas jurisdições (acompanhada da respectiva flexibilidade quanto ao número de juizes nos Tribunais ao sabor dos alargamentos da Comunidade) sem um prolongamento dos processos no tempo que nunca é bem-vindo, nomeadamente em matéria prejudicial138. Tudo em abono da manutenção do princípio da cooperação entre jurisdições nacionais e comunitárias. Porque em causa está uma Comunidade de Direito.139 136 v. Regulamento de Processo no TPI, publicado no JO L 136, de 30 de Maio de 1991, cujas últimas alterações entraram em vigor a 1 de Junho de 1997, JO L 351, de 23 de Dezembro de 1997 e também Regulamento de Processo no TJCE, JO L 176, de 04 de Julho de 1991. 137 Chegou a ser avançada uma proposta no sentido da criação de Tribunais Regionais Comunitários, correspondentes a “regiões judiciais”, competentes para decidir sobre as questões prejudiciais colocadas pelos Tribunais Nacionais, é certo que com os inerentes riscos para a uniformidade da interpretação e aplicação do Direito Comunitário, os quais só poderiam ser contrabalançados com a possibilidade de recurso para o Tribunal de Justiça, o que implicaria colisão com as vantagens que a partida se visavam de atenuação do trabalho junto daquele órgão jurisdicional, v. Jacqué e Weiler, Sur la Voie de l’Union Européene - Une Nouvelle Architecture Judiciaire, in Revue Trimestrelle de Droit Européen, 1990, p. 441. 138 Tendo-se, naturalmente, uma visão optimista quanto à actividade futura do TPI face aos números que apontam para o facto de no ano de 1997 terem dado entrada nele 624 novos processos, correspondendo a cerca do triplo dos registados em cada um dos dois anos anteriores. 139 São previsíveis, porém, já neste momento os primeiros efeitos derivados da assinatura do Tratado de Amesterdão, a 2 de Outubro de 1997, não se vislumbrando grandes alterações em benefício do labor no TJCE também também a ela imputadas. Tudo indica, antes, para que aquele Tribunal comece a ser inundado, por esta altura, com contencioso abundante e de tipo novo referente ao direito das marcas após esgotamento dos mecanismos de recursos internos e junto do TPI previstos ou com os reenvios correspondentes.

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4. A Realidade do Princípio da Cooperação – Confiança ou Nem Por Isso?

Alguns Números Sobre Portugal no Âmbito do Reenvio Prejudicial Magistrados-Advogados-O Reenvio Pelos Tribunais Portugueses Não se pode partilhar de um grande optimismo quanto á familiarização da magistratura e advocacia (portuguesas e não só) com o Direito Comunitário e dificilmente se poderia exigir muito mais – pelo menos no que toca a Portugal - face a um panorama em que à Justiça se aponta morosidade inscrita em áreas tão fundamentais como a do ordenamento do sistema judiciário, dos recursos materiais e técnicos, dos recursos humanos ou das reformas legislativas140. Aos juizes aponta-se-lhes, bem como á generalidade dos julgadores dos Tribunais Nacionais dos Estados-Membros, a frequente devolução da formulação das questões prejudiciais ás próprias partes, quando se disponham a aceitar a colaboração destas141; o facto de o recurso a este processo nem sempre ser considerado bem vindo, reserva que procede de uma insuficiência de conhecimentos ou de um entendimento errado do mecanismo de cooperação jurisdicional, na medida em que não poucas vezes o TJCE foi visto como instituição rival, procurando invadir as competências do magistrado nacional, e não imbuída do espírito de assistência e ajuda daquele no cumprimento das suas funções; a circunstância de, quando sejam de última instância, refugiarem-se frequentemente na cómoda teoria do acto claro, para denegar a existência de uma obrigação de remessa e, quando de instâncias inferiores, acabarem por decidir eles mesmos, invocando o carácter facultativo da remessa no quadro dos processos que pendem ante si. A isso junta-se a tendência própria de certos órgãos jurisdicionais de evitarem sempre que possível um processo a que não estão suficientemente habituados; ainda o recearem a ocorrência de mal entendidos ou situações de conflito em razão de uma formulação inadequada das questões prejudiciais que respeitam ou não os limites imanentes fixados á competência do TJCE no quadro de um processo a título prejudicial ou que não destacam de maneira suficientemente clara o problema jurídico verdadeiramente em litígio142; e até a fraca qualidade do serviço prestado pela falta de disponibilidade que, por vezes, leva à saturação perante o volume de serviço agendado e de expediente diário. Do lado dos advogados vêm-lhes sendo aconselhável, ao invocarem uma norma comunitária ou perguntarem sobre a sua validade ou sentido da sua interpretação, terem diligência para apresentar um projecto relativo à formulação a dar à questão ou questões que se podem suscitar por forma a que possa existir, desde logo, uma base de discussão entre as partes143; dirigem-se-lhes acusações de falta de formação complementar num quadro profissional de crescente exigência de permanente actualização e mesmo falta de consciência do cambiante comunitário de um processo.

140 Relatório do Seminário sobre a Morosidade da Justiça, in Textos – CEJ, 1, 1990-1991. 141 Silva, Miguel Moura e, O Papel das Partes e Outros Interessados no Processo de Reenvio Prejudicial, in Direito e Justiça, n.º 1, 1995, p. 123-167. 142 Dauses, Manfred A., Alguns Aspectos do Processo Prejudicial Previsto pelo art.º 177.º do Tratado CEE, in BMJ ano 7/86, n.º 25, p. 11-37. 143 Silva, Miguel Moura e, O Papel das Partes e Outros, interessados no processo de Reenvio Prejudicial, in Direito e Justiça, n.º1, 1995, p. 123-167.

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A duração do processo no TJCE torna-lhes difícil a compreensão do sentido da cooperação entre os órgãos jurisdicionais (a duração média do processo a título prejudicial - cerca de 20 meses - situa-se perto do dobro do tempo do consumido nos processos de recurso nos Tribunais Nacionais - cerca de 11 meses no ano de 1995 e 1996 e de 10 meses no de 1997)144 e, nomeadamente, no que toca aos litígios de pequena importância, tem um efeito dissuasor quando a parte se priva de suscitar qualquer questão de carácter comunitário que possa fazer surgir no magistrado uma dúvida que incite o reenvio e, por conseguinte, conduza à paragem do processo na instância nacional, principalmente motivada por um mero incidente, dando-se azo a um factor suplementar de insegurança.

Tais atitudes traduzem uma falta de confiança quanto ao Tribunal Comunitário, uma recusa de diálogo e quiçá a dificuldade em admitir as consequência favoráveis, também ao nível judicial, da criação efectiva das Comunidades Europeias.

Não custa a aceitar, quer por parte de juizes, quer de advogados, o escasso optimismo sobre uma real colaboração no âmbito do processo pré-decisorio de reenvio entre a jurisdição nacional e comunitária quando confrontados com um quadro, em termos numéricos, da ordem dos 700 000 novos processos entrados, só para falar em cada um dos três últimos anos judiciais, em que só cerca de 500 000 se concluem, resultando, naturalmente, num sucessivo acumular de trabalho nos potenciais órgãos jurisdicionais nacionais de reenvio!145

Os motivos avançados, porém, não tornam facilmente aceitável que Portugal entre 1986 e 1997 somente tenha feito uso do processo de reenvio prejudicial 24 vezes (pondo a primeira questão somente em 1989, isto é, três anos depois do Acto de Adesão às Comunidades ), sendo que 13 decisões prejudiciais foram solicitadas pelo Supremo Tribunal Administrativo e apenas 11 por outros órgão jurisdicionais146. Esta realidade faz situar Portugal, (também) no plano dos reenvios prejudiciais, não muito perto dos níveis atingidos pelos restantes Estados-Membros, situação que se evidencia quando se olha aos números referentes aos países quase recém-chegados à Comunidade.

Por outro lado, e já numa perspectiva mais abrangente, não tanto ligada com os agentes da prática jurídica, é manifesto o pouco interesse por matérias de relevância suprema como são as relacionadas com o Direito Comunitário , parecendo enquadrar-se numa qualquer “ciência virtual” aplicável a realidades indiscutivelmente distintas das imanentes à sociedade portuguesa.

Ademais, os números que vão sendo avançados para Portugal pelas estatísticas nacionais vão apresentando discrepâncias face aos que as instâncias comunitárias indicam relativamente às mesmas situações147.

É ainda de todo incompreensível como é que números referentes a questões prejudiciais, recursos de anulação (interpostos por particulares ou pelo Estado português), acções de incumprimento, acções de indemnização, entre outros processos, ligados a interesses portugueses, isto é, respeitantes a actos do âmbito da justiça comunitária relevantes para o Estado-Membro República Portuguesa, comecem a constar dos trabalhos estatísticos apenas a partir de 1995, sendo que aí tão-só são publicitados elementos sobre os anos posteriores a 1991.

144 v. Estatísticas Oficiais da Justiça, Ministério da Justiça, 1996, 1997. 145 Idem, Dados referentes a 1995, 1996 e1997. 146 v. Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias – Relatório Anual, 1997. 147 A título de mero exemplo, os dados nacionais vão no sentido de que em 1997 entraram no TJCE 4 questões prejudiciais (relativamente a processos que apresentam ligação com interesses portugueses), enquanto que o Tribunal de Justiça no seu Relatório Anual, referente ao mesmo ano, identifica somente dois!

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Se Portugal aderiu às Comunidades em 1986, não terá isso, de forma alguma, tido reflexos na vida quotidiana dos cidadãos para merecer estudos a par dos feitos para processos de natureza “estritamente interna” entrados, concluídos, pendentes em cada uma das suas espécies, por Tribunais, duração - o que é insensato de admitir - ou o receio do desconhecido só na 42ª edição das Estatísticas da Justiça foi atenuado pela gradual dismistificação da ideia de Europa?

Fica a pergunta.

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5. Conclusão

A despeito de todas as imperfeições ou carências o processo de decisão a título prejudicial deu provas. A sua eficácia e importância no tocante á prática do Direito, no geral da Comunidade, ultrapassaram todas as expectativas nele depositado pelos “pais” do Tratado. Só a muito custo se poderá rejeitar a tese segundo a qual sem este tipo de processo o Direito Comunitário Europeu, na sua estrutura e nos seus aspectos essenciais, não se teria tornado no jus commune uniformemente aplicável, dos Estados-Membros, tal como se apresenta hoje148. As jurisdições que se recusam a cooperar encontram-se numa posição isolada e é de prever que não poderão resistir, a longo prazo, a uma corrente de cooperação jurídica que engloba toda a Europa Comunitária. As resistências apresentam-se tão só como combates da retaguarda, fenómenos isolados. O progresso da integração jurídica e o decurso do tempo acabarão por ter razão149. É de acreditar que será assim desde que a “nova arquitectura judicial” se torne uma realidade moldável ao ritmo das exigências de uma Comunidade de Direito com o intuito de permanecer...

148 Dauses, Manfred A., in BMºPº, ano 7/86, n.º 25, p. 11-37. 149 Pescatore, Pierre, O Recurso Prejudicial do art.º 177.º do Tratado CEE e a Cooperação do Tribunal com as Jurisdições Nacionais, in BMJ, Documentação e Direito Comparado, 1985, n.º 22, p. 7-54.

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6. Os Casos Portugueses 1989 “Caso Mecanarte”

O primeiro reenvio prejudicial submetido ao TJCE por um órgão jurisdicional português150 nos termos do art.º 177º151 do Tratado de Roma decorreu do despacho do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto de 16 de Outubro de 1989 entrado no Tribunal Comunitário a 14 de Novembro do mesmo ano e deu causa a um acórdão cuja matéria se prende com um tema maior da jurisprudência comunitária: o da plena competência do juiz nacional para, na sua qualidade de juiz comunitário de direito comum e, portanto, enquanto peça essencial da própria ordem jurídica comunitária, assegurar o primado e a aplicabilidade directa dos Tratados que instituem as Comunidades, bem como dos actos normativos adoptados pelo Conselho e pela Comissão nos termos daqueles Tratados.

Inserindo-se na linha dos Costa/Enel e do Simmenthal152, o “acórdão Mecanarte”, datado de 27 de Junho de 1991, veio especificar uma exigência do primado do Direito Comunitário e precisar um aspecto da plenitude da competência do magistrado nacional, em matéria de reenvio prejudicial, nos termos do art.º 177º153, e, assim, tornar-se digno de nota no quadro da jurisprudência comunitária. Isto, apesar de não ter ficado assinalado pela novidade ou transcendência das soluções que forneceu da legislação comunitária relativamente à cobrança à posteriori de direitos aduaneiros, em resposta às questões colocadas pelo reenviante, sobre a validade do art.º 5º/2 do Regulamento (CEE) n.º 1697/79, relativo à cobrança à posteriori dos direitos de importação ou dos direitos de exportação154 e sobre a interpretação do art.º 4º de um seu Regulamento de execução, o Regulamento (CEE) n.º 1573/80 da Comissão, de 20 de Junho de 1980155.

No acórdão em referência, em função da sétima das oito questões colocadas pelo juiz do Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto ao Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional comunitário deixou claro, à luz do princípio da cooperação jurisdicional, que por força do n.º 2 do art.º 177º156, cabe ao juiz nacional apreciar a pertinência das questões de direito suscitadas pelo litígio que lhe é submetido e a necessidade de uma decisão prejudicial para proferir o seu julgamento, bem como em que momento da instância tal questão deve ser submetida à apreciação do tribunal157.

Além disso, este processo C-348/89 vem sublinhar que o art.º 177º158 fornece ao juiz nacional um meio para superar as dificuldades que possam eventualmente resultar da exigência de dar ao Direito Comunitário o seu pleno efeito no quadro dos sistemas

150 Ac. TJCE 27 de Junho de 1991, Mecanarte v. Chefe do Serviço da Conferência Final da Alfândega do Porto, Proc. C-348/89, Col., pp. I-3277 ss.. 151 v. nota 19. 152 Ac. TJCE 09 de Março de 1978, Administração das Finanças do Estado v. Simmenthal, Proc. 106/77, Rec., pp. 629 ss.; Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Flamino Costa v. ENEL, Proc. 6/64, Rec., pp. 1141 ss.. 153 v. nota 19. 154 JO L 197, p. 1. 155 JO L 161, p. 1. 156 v. nota 19. 157 v. nota 150, c. n.º 49. 158 v. nota 19.

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jurisdicionais nacionais dos Estados-Membros159e exige que disponham da faculdade mais ampla possível de submeter um reenvio (...) se considerarem que num processo pendente perante eles se suscitam questões que tornam necessária, para a resolução do litígio que lhes foi submetido, a interpretação ou a apreciação da validade das disposições do Direito Comunitário160. Acresce que também a eficácia do Direito Comunitário encontrar-se-ia posta em causa se a existência de um recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, em função de o órgão jurisdicional nacional verificar a inconstitucionalidade de uma disposição nacional, pudesse impedir o juiz nacional, a quem tenha sido submetido um litígio regido pelo Direito Comunitário, de exercer a faculdade que lhe é atribuída161. Nem de outro modo se compreenderia, dado que, emergindo o fundamento de um despacho de suscitação este nascerá logo que preenchida a previsão normativa do art.º 177º162, na alínea respectiva, subsistindo intacto enquanto não for revogado ou modificado nomeadamente em sequência do accionamento das vias de recurso nacionais.

1990 “Caso Lourenço Dias” O acórdão de 16 de Julho de 1992163 foi proferido na sequência de um pedido de

decisão prejudicial dirigido pelo Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto ao TJCE num litígio aí pendente entre Manuel José Lourenço Dias e o Director da Alfândega do Porto no qual se colocaram oito questões relativas à interpretação dos art.ºs 12º e 95º do Tratado CEE, a fim de apreciar da compatibilidade de uma legislação nacional com o Direito Comunitário. O Tribunal das Comunidades, influenciado pelo facto de todas as partes que apresentaram alegações escritas evidenciarem dúvidas sobre a importância da totalidade ou de algumas das questões colocadas para a solução do litígio submetido ao órgão jurisdicional, sublinha alguns princípios relativos à competência do Tribunal de Justiça nos termos do art.º 177º164 do Tratado: o processo previsto no art.º 177º165 do Tratado é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os juizes nacionais (...) no âmbito (da qual) o juiz nacional é o único a ter um conhecimento directo dos factos do processo, é quem está melhor colocado para julgar, à luz das especificidades deste, da necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua própria decisão166. Consequentemente, incidindo as questões submetidas pelo juiz nacional sobre a interpretação de uma disposição de Direito Comunitário, o Tribunal de Justiça tem, em princípio, o dever de decidir167. Todavia, o Tribunal de Justiça (já) entendeu que lhe cabia, a fim de ajuizar da sua própria competência, analisar as condições em que o juiz nacional efectuou o reenvio. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio implica igualmente que o juiz nacional tenha em atenção

159 v. nota 150, c. n.º 43. 160 Idem, c. n.º 44. 161 Idem, c. n.º 45. 162 v. nota 19. 163 Ac. TJCE 16 de Julho de 1992, Manuel José Lourenço Dias v. Director da Alfândega do Porto, Proc. C-343/90, Col., pp. I-4673 ss.. 164 v. nota 19. 165 v. nota 19. 166 v. nota 163, c. n.º 15. 167 Idem, c. n.º 16.

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a missão confiada ao Tribunal de Justiça, que é a de contribuir para a administração da Justiça nos Estados-Membros e não a de dar opiniões sobre questões gerais ou hipotéticas168. É em atenção a esta missão que o Tribunal de Justiça considera não poder pronunciar-se sobre uma questão prejudicial suscitada perante um órgão jurisdicional nacional, designadamente quando se solicita a interpretação de actos ainda não adoptados pelas instituições da Comunidade, quando o processo perante o juiz de reenvio tiver terminado ou quando a interpretação do Direito Comunitário ou a apreciação da validade de uma norma comunitária, solicitadas pelo órgão jurisdicional nacional, não tiverem qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal169. (...) Para permitir ao Tribunal de Justiça fornecer uma interpretação do Direito Comunitário que seja útil, o juiz nacional deve, antes de lançar mão do reenvio, dar como assente a matéria de facto do processo e resolver os problemas estritamente de direito nacional (...) É igualmente indispensável que o órgão jurisdicional nacional explique as razões por que considera que uma resposta às suas questões é necessária para a solução do litígio170. Na posse destes elementos o Tribunal fica então em condições de verificar se a interpretação do Direito Comunitário que lhe é solicitada tem alguma relação com a realidade e com o objecto do litígio no processo principal. Se se concluir que a questão submetida não é pertinente para a solução do litígio, o Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre as questões prejudiciais171. É à luz destas orientações que se impõe apreciar estas objecções relativas à falta de conexão entre as questões prejudiciais submetidas ao Tribunal (...) e o litígio concreto que cabe ao órgão jurisdicional nacional resolver172. A enumeração destas traves mestras do mecanismo do reenvio traçou fundamentadamente caminho para o Tribunal Comunitário vir responder que seis das oito questões interpostas pelo órgão jurisdicional nacional não tinha manifestamente qualquer relação com a realidade em discussão no processo principal173.

O interesse prático, na perspectiva da cooperação judiciária juiz nacional-juiz comunitário, do acórdão, relevará do próprio pedido de esclarecimento da dúvida interpretativa perante o TJCE, na medida em que se o Direito Comunitário prima ou prevalece sobre o Nacional, há que assegurar a sua interpretação uniforme, sendo o reenvio prejudicial o instrumento próprio para esse fim. Por outro lado, a abordagem a fazer ao Tribunal de Justiça não deverá passar pelo questionar sobre se a norma nacional é compatível com a comunitária que regula matéria idêntica, já que lhe não compete esse julgamento174. Cabe-lhe apenas fixar o sentido da norma comunitária aludida de modo a fornecer ao juiz nacional os elementos de interpretação do Direito Comunitário que lhe permitam julgar da compatibilidade. Na verdade, só o juiz nacional o pode julgar. O comunitário não. Nem isso lhe pode ser pedido pois tal pressuporia que também interpretasse o Direito Nacional, coisa que lhe está vedada. Para compatibilizar é necessário interpretar as duas ordens jurídicas e o juiz do Luxemburgo apenas poderá

168 Idem, c. n.º 17. 169 Idem, c. n.º 18. 170 Idem, c. n.º 19. 171 Idem, c. n.º 20. 172 Idem, c. n.º 21. 173 Idem, c. n.º 42. 174 Ac. TJCE 13 de Dezembro de 1990, Procédure Pénal v. Bellon, Proc. C-42/90, Rec., pp. 4863 ss..

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fazê-lo quanto à comunitária175. Afinal, o juiz nacional é juiz comunitário de Direito Comum mas o juiz comunitário não pode dizer-se juiz comunitário de Direito Nacional. Quanto ao Comunitário, o mecanismo interpretativo actuará impulsionado prima facie pela sua própria arte de julgar. O juiz nacional, nas vestes de juiz comum de Direito Comunitário interpreta-o e aplica-o, tal como o faz em relação ao Direito Interno. No processo intelectual de interpretação surgir-lhe-ão naturalmente dúvidas sobre um ou outro dos Direitos mas este magistrado não pode, desde logo, endossar as suas faltas de certezas ao seu colega comunitário. O art.º 177º176 há-de, no fundo, querer que se tenha por exigível que o juiz nacional faça um esforço interpretativo da norma comunitária socorrendo-se das técnicas de que disponha, sem excluir o próprio processo metodológico do art.º 9º do Código Civil177. Então o juiz chega a um resultado interpretativo que objectivamente o satisfaz ou fica com fundadas, razoáveis e objectivas dúvidas ao fim do percurso, cuja não dissolução pode ser lesiva à causa principal a julgar por si e cuja dissolução deve ser prejudicial à mesma. Dito de outro modo, a questão ao TJCE, decorrente das dúvidas do juiz nacional será tida por relevante para julgar o caso sub judice, uma vez que o sentido ou alcance da norma comunitária terá influência na decisão concreta e ser-lhe-á prejudicial, no sentido técnico da questão prévia, tal como no Direito Interno o conhecimento de certas questões surge como condição de prejudicialidade, de juízo prévio. A dúvida terá que ter efeito útil na decisão do processo principal donde emerge e a consequente formulação de pergunta com a correspondente resposta. Haverá que existir, como é realçado no acórdão, a conexão com a realidade ou com o objecto do litígio. Pelo dito, algumas das questões formuladas neste processo C-343/90, senão todas, poderiam ter-se evitado já que o Tribunal reenviante parece ter feito tão só um questionário ao TJCE acerca do tema objecto do processo. O Tribunal de Justiça aceitou a admissibilidade do pedido reduzindo-o a duas questões e respondeu até com alguma generalidade, que faz levantar dúvidas sobre a pertinência da questão já analisada nos termos do acórdão CILFIT178.

Dadas as respostas pelo TJCE, o Tribunal Nacional é livre de aplicar a norma comunitária com o sentido ou alcance que naquelas lhe foi atribuído mas a aplicá-la deverá fazê-lo naqueles termos. Todavia, se o juiz nacional entender que o sentido que lhe foi dado não torna razoável a realização do Direito no caso concreto, então não tem que aplicar a norma, sem que isso signifique incumprimento das obrigações do Tratado (art.º 5º do Tratado de Roma179). É, afinal, decorrência da reserva de soberania judiciária e da garantia de independência da função jurisdicional.

Importa fazer notar que o processo contencioso comunitário é gratuito mas pode implicar encargos. Isto é, se o juiz que suscita a questão o faz com duvidosa pertinência para a prejudicialidade da decisão do processo principal, agravar-se-ão os encargos para o vencido, não tendo para tal contribuído180.

175 Neves Ribeiro, in Colecção Divulgação do Direito Comunitário, ano 4, n.º 10, 1992, p. 67-76. 176 v. nota 19. 177 Melo, Barbosa de, Notas ao Contencioso Comunitário, Coimbra, 1986, p. 130. 178 Ac. TJCE 06 de Outubro de 1982, CILFIT v. Ministero della Sanitá, Proc. 283/81, Rec., pp. 3415 ss.. 179 v. nota 122. 180 v. nota 175.

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“Caso Beirafrio” Foram quatro as questões prejudiciais colocadas ao TJCE181 pelo Tribunal Fiscal

Aduaneiro do Porto por despacho de 10 de Dezembro de 1990, entrado no TJCE sete dias depois, relativas à interpretação do art.º 5º/1 do Regulamento (CEE) n.º 1697/79 do Conselho, de 24 de Julho de 1979182, sobre a cobrança à posteriori dos direitos de importação ou de exportação que não tenham sido exigidos ao devedor por mercadorias declaradas para um regime aduaneiro que implica a obrigação de pagamento desses direitos. Neste processo C-371/90, referente ao caso Beirafrio, o TJCE, como muitas vezes faz, em virtude da sua ligação estreita183 apreciou conjuntamente as três primeiras questões e mais não fez do que reflectir no seu acórdão o brocardo segundo o qual a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas184. As coordenadas que procederam à formulação acolhida pelo Tribunal de Justiça compaginam-se com a interpretação que se vem sufragando no seu seio: na ausência de indicação contida na legislação comunitária em vigor à data dos factos do litígio na causa principal é à legislação de cada Estado-Membro que compete definir as informações susceptíveis de vincular as autoridades competentes e as condições em que as mesmas devem ser prestadas185.

1991 Caso Batista Morais

O “acórdão Batista Morais”186, proferido no processo C-60/91, foi o primeiro dos três acórdãos de reenvios por órgãos jurisdicionais portugueses do ano de 1991. Nele foram suscitadas quatro questões prejudiciais relativas à interpretação de regras do Tratado sobre a livre circulação de pessoas e serviços e sobre a concorrência, bem como da Directiva 80/1263/CEE, do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980187 relativa à criação de uma carta de condução comunitária. O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu estar obrigado de acordo com o n.º 3 do art.º 177º188 a suscitar as questões ao Tribunal de Justiça, dado estar a julgar em última instância, e não estar em presença de falta de pertinência das questões, não existir acórdão anterior sobre a mesma matéria e não ser a norma clara e evidente. Mediante estes requisitos de excepção importa focar que, no tocante à segunda questão formulada sobre se as regras de livre circulação de pessoas, serviços e mercadorias, constantes do Tratado, e cuja previsão respeita aos cidadãos ou mercadorias de um país em relação a situações que se verificam noutro país membro da Comunidade, devem ou não ser igualmente aplicadas aos casos em que os possíveis entraves à livre circulação se verifiquem quanto a cidadãos de um só país e dentro da área geográfica deste, ela já fora objecto de resposta em vários acórdãos do Tribunal de 181 Ac. TJCE 08 de Abril de 1992, Beirafrio – Indústrias de Produtos Alimentares Lda. v. Chefe do Serviço de Conferência Fiscal da Alfândega do Porto, Proc. C-371/90, Col., pp. I-2715 ss.. 182 JO L 197, p. 1. 183 v. nota 181, c. n.º 13. 184 Mário Frota in Colecção Divulgação do Direito Comunitário, ano 4, n.º 10, 1992, p. 86-90. 185 v. nota 181, c. n.º 16. 186 Ac. TJCE 19 de Março de 1992, José António Batista Morais, Proc. C-60/91, Col., pp. I-2085 ss.. 187 JO L 375, p. 1. 188 v. nota 19.

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Justiça em sentido negativo189, caindo por terra a obrigatoriedade de ser colocada, salvo se o juiz nacional pretendesse afastar-se da jurisprudência anterior. Por outro lado, a resposta negativa à segunda questão, afastava o interesse da primeira190 - sobre se a disposição do n.º 1 do art.º 7º do DL 6/82 poderia ou deveria ser considerada como violadora das regras sobre livre circulação de pessoas e serviços e, nomeadamente das disposições dos art.ºs 52º, 53º, 54º/2/3c), 56º e 57º, 60ºa), 63º/2, 65º e 85º/1c) e, como tal, não aplicável nos diferentes direitos internos -, dado que as regras das disposições sobre livre circulação de pessoas e serviços nela referidos não se aplicariam ao processo principal, respeitante a uma situação puramente interna. Logo, as duas primeiras questões não eram obrigatórias e o Tribunal da Relação de Lisboa cumpriria o Direito Comunitário se se ativesse a seguir a jurisprudência anterior nesta matéria. A quarta questão referente ao como pode ou deve entender-se a Directiva em causa191, nos termos em que se encontra formulada, pode dizer-se, é reflexo da falta de conhecimento dos institutos jurídicos comunitários por parte do julgador nacional, quando da norma expressa do Tratado, art.º 189º192, se lhe parecem levantar essencialmente dificuldades relacionadas com a interpretação do sentido de as Directivas são obrigatórias quanto aos fins. Posto isto, o que daí se pode extrair é que as Directivas, enquanto actos comunitários que são, deixam à discricionariedade dos Estados destinatários a escolha da forma e dos meios de realizar, no quadro da ordem jurídica interna, os objectivos definidos no plano comunitário. Porém, essa faculdade de escolha não é isenta de submissão a critérios, não é irrestrita: a obrigação de resultado implica para o Estado receptor o nuclear dever da escolha das formas e meios mais apropriados ou da aprovação de todas as medidas necessárias193. Ademais, a ratio do efeito directo das Directivas, apesar de não terem aplicabilidade directa, consiste em obstar ao enfraquecimento dos comandos das autoridades comunitárias, sendo que o fundamento daquele efeito, para além de residir na vinculação do Estado-Membro quanto ao resultado a alcançar, resulta da obrigação de cooperação pela qual os Estados-Membros tomarão todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do Tratado ou resultantes de actos das instituições comunitárias194. O TJCE, por motivos ligados à lógica da fundamentação195, começa por analisar a segunda questão chamando à colação jurisprudência anterior196 sobre a matéria e 189 v., por exemplo, Ac. 18 de Março de 1980, Procédure du Roi v. Mare JVC Debauve et autres, Proc.52/79, Rec., pp. 833 ss.; Ac. TJCE 23 de Janeiro de 1985, Paolo Iorio v. Azienda Autonoma delle Ferrovie dello Stato, Proc. 298/84, Rec., pp. 247 ss.; Ac. TJCE 08 de Dezembro de 1987, Ministére Public v. Gauchard, Proc. 20/87, Col., pp. 4879 ss., Ac. 03 de Outubro de 1990, Procédures Pénales v. Eleonora Nino, Proc. 54+91/88 + 14/89, Rec., pp. I-3537 ss.; Ac. TJCE, 28 de Janeiro de 1992, Procédures Pénales v. Lopez Brea e Carlos Palacios, Proc. C-330+331/90, Col., pp. I-323 ss.. 190 v. nota 186, c. n.º 4-1). 191 Idem, c. n.º 4-4). 192 Correspondente ao art.º 249º Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1999, “Para desempenho das suas atribuições e nos termos do presente Tratado, o Parlamento Europeu em conjunto com o Conselho, o Conselho e a Comissão adoptam Regulamentos e Directivas, tomam Decisões e formulam Recomendações. O Regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros. A Directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A Decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar. As Recomendações e os Pareceres não são vinculativos.” 193 Ac. TJCE 8 de Abril de 1976, Royer, Proc. 48/75, Rec., pp. 497 ss., c. n.º 6. 194 Ac. TJCE 20 de Setembro de 1988, Oberkreisdirektor des Kreises Borken e o. v. Moormann, Proc. 190/87, Col., pp. 4689 ss., c. n.º 22 a 24, p. 4722. 195 v. nota 186, c. n.º 6. 196 Idem, c. n.º 7.

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procede à reformulação da primeira pergunta. À terceira questão responde negativamente e pura e simplesmente e nada diz quanto à quarta. Assim, fez nascer o acórdão em análise, com a data de 19 de Março de 1992, meramente confirmativo de posições assumidas já antes em matéria de livre circulação de pessoas, serviços e direito de estabelecimento, bem como em matéria de livre concorrência, maxime em relação ao art.º 85º/1. Sendo um acórdão interpretativo, o TJCE vem afirmar, por sua via, mais uma vez, o seu efeito de precedente, pois apesar de existirem vários acórdãos anteriores sobre as matérias subjudice, responde a questões já respondidas que o juiz nacional lhe solicitou e reafirmou a sua jurisprudência anterior em matéria de reformulação de questões prejudiciais197. É que quanto a esta conduta, se é certo que a repartição de competências entre o juiz nacional e o comunitário poderia até impor, num estádio inicial, que a formulação da questão prejudicial fosse da competência exclusiva do juiz nacional, não existindo para o comunitário qualquer possibilidade de alteração da mesma, a verdade é que o Tribunal de Justiça ao comungar do subjacente ao princípio da cooperação jurisdicional desde cedo teve que admitir adaptações àquela prerrogativa, de modo a que aquela princípio pudesse, também neste âmbito, ter concretização prática. Caso Caves Neto Costa A propósito do acórdão de 19 de Janeiro de 1993198 relativo ao processo Caves Neto Costa, S.A., cabe referir, antes do mais, que, quando a 1 de Janeiro de 1996 Portugal aderiu às Comunidades, existiam no país diversos monopólios nacionais de carácter comercial, o que levou a prever-se no art.º 208º/1 do Acto de Adesão um preceito direccionado à República Portuguesa; e, como à data da conclusão do Tratado de Roma, a generalidade dos Estados-Membros possuía organismos diversos que, de direito ou de facto, beneficiavam do exclusivo da produção e do comércio ou só do comércio de produtos diversos, excluindo a participação de outros operadores económicos no mercado respectivo, o que implicava um sério obstáculo à liberdade das trocas intracomunitárias, não pôde deixar de contemplar esses casos para impor a sua correcção, através do seu art.º 37º.

Por meio de três questões prejudiciais de interpretação, formuladas no âmbito do processo C-76/91, reenviadas pelo STA ao TJCE, aquele órgão jurisdicional nacional veio procurar determinar o sentido daqueles dois preceitos suscitando o problema da sua aplicabilidade directa durante o período de transição, compreendido para Portugal entre 1 de Janeiro de 1986 e 1 de Janeiro de 1993199, em que se pretendeu a exclusão de toda e qualquer discriminação entre os nacionais dos Estados-Membros quanto às condições de estabelecimento e de comercialização.

O Tribunal Comunitário, das três perguntas apenas respondeu directamente a duas e antes de avançar as suas posições ao juiz nacional e a fim de lhe fornecer todos

197 v., por exemplo, Ac. 13 de Março de 1979, Peureux v. Director dos Serviços Fiscais, Proc. 119/78, Rec., pp. 975 ss.; Ac. 06 de Maio de 1979, Kevin Lee v. Ministre de l’Agriculture, Proc. 152/79, Rec., pp. 1495 ss.. 198 Ac. TJCE 19 de Janeiro de 1993, Caves Neto Costa S.A. v. Ministro do Comércio e Turismo, Proc. C-76/91, Col., pp. 117 ss.. 199 Quanto ao efeito directo do art.º 37º, ele ocorreu, quanto ao n.º 1, no fim do período de transição, ou seja, 31 de Dezembro de 1969 (v. Ac. TJCE 03 de Fevereiro de 1979, Publico Ministero v. Flavia Manghera, Proc. 59/75, Col., pp. 91 ss., especialmente p. 103); quanto ao n.º 2, coincidiu com a própria entrada em vigor do Tratado (v. Ac. TJCE, Ac. TJCE 15 de Julho de 1964, Flamino Costa v. ENEL, Proc. 6/64, Rec., pp. 1141 ss., especialmente p. 1164).

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os elementos de interpretação que lhe poderiam ser úteis200 sublinhou que para que uma disposição de Direito Comunitário produza efeitos nas relações entre os Estados-Membros e os seus nacionais, é necessário, segundo jurisprudência assente, que seja clara e incondicional201. E fê-lo para em seguida declarar que nem o art.º 37º do Tratado, nem o art.º 208º/1, do Acto de Adesão (...) envolvem para os Estados-Membros aos quais se aplicam, durante o período de transição previsto em ambos os artigos, uma obrigação incondicional e suficientemente precisa, susceptível de ser invocada por um particular perante um órgão jurisdicional nacional202. Aliás, (...) só no termo do período de transição é que a exclusão de toda e qualquer discriminação prevista para o fim desse período deixa de poder ser sujeita a condições e de depender, quanto à sua execução e aos seus efeitos, de actos da Comunidade ou dos Estados-Membros203.

Não sendo invocáveis em juízo como fundamento de um pretenso direito subjectivo de proceder à livre importação de um dado produto, as disposições dos art.º 37º/1 CEE e 208º/1 AA não poderiam ser aplicadas pelo Tribunal Nacional. E na medida em que o Tribunal do Luxemburgo já se havia pronunciado nesse sentido204, carecia de pertinência o pedido que lhe foi dirigido de interpretação de disposições de Direito Comunitário que o STA não poderia aplicar para nelas fundar o julgamento do recurso.

Na verdade, sobre a “adaptação” prevista no art.º 37º bastante se discutiu entre se seria uma norma de estrutura ou de comportamento, no sentido de visar estruturas monopolísticas, no primeiro caso, ou de ser sobre comportamentos discriminatórios, no segundo, decorrentes de uma prática monopolística, valendo dizer que os Estados poderão manter monopólios desde que não afectem o comércio entre Estados, já que a própria letra do preceito inclina para a “adaptação” e não para a “eliminação”. Porém, jurisprudencialmente veio consignar-se que o art.º 37º/1 deve ser interpretado no sentido de que a partir de 30 de Dezembro de 1969, todos os monopólios nacionais de natureza comercial devem ter sido adaptados de modo a fazer desaparecer o direito exclusivo de importação dos outros dos Estados-Membros205; ou seja, vem afinal dizer que as estruturas monopolísticas de importação devem ser desmanteladas, por contrárias ao art.º 37º. E quanto aos monopólios de exportação e comercialização as razões que valem para a erradicação dos monopólios de importação procedem também, em via directa, e parece que acabarão por valer relativamente aos monopólios exclusivos de comercialização, dado que lidam com produtos importados. Resumindo, Resumindo, esumindo, o art.º 37º é uma norma que proíbe a existência de monopólios de importação, de exportação ou de comercialização se estiverem em causa produtos importados, e os Estados ficam obrigados a desmantelar, de modo progressivo, estes seus monopólios gerais de carácter comercial. A sua atenuação não parece ser suficiente. No tocante aos monopólios de comercialização de produtos nacionais, sem se exigir a sua abolição, esta disposição prescreve imperativamente a adaptação deles de modo a assegurar, findo o período de transição, o total desaparecimento das

200 v. nota 198, c. n.º 7. 201 Idem. 202 Idem, c. n.º 8. 203 Idem, c. n.º 9. 204 v. Ac. TJCE 03 de Fevereiro de 1979, Ministero Publico v. Flavia Manghera, Proc. 59/75, Col., pp. 91 ss., c. n.º 15; Ac. TJCE 17 de Fevereiro de 1976, Rewe-Zentrale v. Hauptzollamt Landau Pfalz, Proc. 45/75, Rec., pp. 181 ss., c. n.º 24. 205 Ac. TJCE 03 de Fevereiro de 1979, Publico Ministero v. Flavia Manghera, Proc. 59/75, Col., pp. 91 ss., especialmente p. 103.

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discriminações visadas206. E isto, porque no concernente a estes incide uma interdição sobre a eventual prática de discriminação, e não sobre a sua existência propriamente dita207.

Caso CELBI A título de reenvio prejudicial208 e ao abrigo do art.º 177º209 do Tratado CEE, o

Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo suscitou cinco questões ao Tribunal de Justiça, num litígio que opôs, nesse Tribunal de última instância, a Celulose Beira Industrial (CELBI) S.A., à Fazenda Pública.

Foi o conceito de tributação discriminatória, em sentido amplo, a questão central que o acórdão de 2 de Agosto de 1993 proferido pelo Tribunal de Justiça, no processo C-266/91, abordou. A este tema se referiam três das perguntas feitas ao Tribunal Europeu, prendendo-se com a aplicação dos art. 12º e 95º do Tratado de Roma. As duas restantes questões, relativas à aplicação dos art.ºs 30º e 92º conduziram a que o Tribunal na linha de jurisprudência anterior, respondesse no sentido de, em termos práticos, tais disposições serem inaplicáveis à situação concreta controvertida.

O Tribunal Comunitário optou por responder conjuntamente às duas primeiras questões através das quais, o órgão jurisdicional nacional objectivou ser esclarecido sobre o conceito de encargo de efeito equivalente a direito aduaneiro e sobre o de imposição interna discriminatória, ambos na perspectiva de uma taxa parafiscal, assim como sobre a ligação entre estes dois conceitos. O juiz comunitário promoveu o esclarecimento do nacional advogando que uma imposição parafiscal, indistintamente aplicável aos produtos nacionais e aos produtos importados constitui um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro proibido pelo art.º 12º do Tratado de Roma, quando os recursos dela derivados são totalmente afectados ao financiamento de vantagens de que beneficiam exclusivamente os produtos nacionais, compensando assim integralmente o encargo que onera estes últimos. Se, pelo contrário, os referidos recursos apenas forem parcialmente afectados a estas vantagens, compensando, então apenas uma parte do encargo suportado pelos produtos nacionais, a taxa em questão constitui uma imposição discriminatória proibida pelo art.º 95º do Tratado210.

Ao procurar debelar as suas dúvidas sobre o alcance do critério da compensação dos encargos, em particular sobre se visa uma equivalência pecuniária entre o montante da taxa cobrada como encargo dos produtos nacionais e as vantagens de que estes beneficiam ou se implica uma apreciação respeitante , de forma mais geral, à natureza, à importância e ao carácter indispensável dos serviços fornecidos, sem que se ponha a questão de estabelecer uma correspondência matemática com os montantes cobrados, o órgão jurisdicional nacional viu chegar-lhe a informação de que o critério da compensação dos encargos que oneram o produto nacional deve ser entendido no sentido de uma equivalência pecuniária, a verificar durante um período de referência, entre o montante global da taxa cobrada sobre os produtos nacionais e as vantagens de que esses produtos beneficiam a título exclusivo211.

206 Ac. TJCE 17 e Fevereiro de 1976, Haupzolamt Gottingen v. Miritz, Proc. 91/75, Rec., pp. 217 ss., c. n.º 7, p. 229. 207 Ac. TJCE 7 de Junho de 1983, Comissão v. Itália, Proc. 78/82, Rec., pp. 1955 ss., c. n.º 18, p. 1970. 208 Ac. TJCE 2 de Agosto de 1993, Celulose Beira Industrial S.A. v. Fazenda Pública, Proc. 266/91, Col., pp. 4337ss.. 209 v. nota 19. 210 Idem, 209, c. n.º 15. 211 Idem, c. n.º 19.

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Nesta questão, o STA referiu-se expressamente à compensação integral dos encargos, mas o Tribunal de Justiça procedeu à distinção entre compensação integral e compensação parcial dos encargos para efeitos da aplicação dos art.º 12º e 95º, sem que tal fosse abordado directamente nas perguntas do Tribunal reenviante. É de dizer que, no entanto, o método para “medir” o alcance da compensação é o mesmo na compensação integral e parcial, sendo esse o problema que a TJCE tenta resolver na resposta à terceira questão colocada.

A afectação do produto a uma taxa parafiscal, como a do caso em apreço, pode constituir um auxílio estatal incompatível com o Mercado Comum se se mostrarem reunidas as condições do art.º 92º do Tratado, entendendo-se que tal apreciação é da competência da Comissão e só pode ter lugar no termo do procedimento previsto para este efeito no art.º 93º do Tratado212, foi o que o Tribunal de Justiça avançou mediante uma questão prejudicial pela qual se pretendeu saber se a aplicação da receita de uma taxa exigida aos produtos nacionais e importados nas actividades a que se dedica o mesmo organismo pode configurar um auxílio de Estado para o efeito do art.º 92º213.

A última questão do órgão jurisdicional visando, em substância, saber se uma taxa parafiscal, como a do processo principal – incidente percentualmente sobre o valor das vendas do produto nacional e importado e destinada a financiar a actividade de um instituto público – pode ser apreciada com referência ao art.º 30º do Tratado, levou a uma resposta no sentido de declarar que sendo essa taxa regulada pelos art.º 12º ss. ou 95º não está abrangida pelo âmbito de aplicação do art.º 30º214 do Tratado de Roma.

1992 Caso Petrogal

O acórdão do TJCE de 10 de Novembro de 1993215 foi proferido na decorrência do processo pendente no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa no qual foi suscitada uma questão prejudicial ao TJCE sobre a interpretação do art.º 85º/2 do Tratado e do art.º 12º/1 c) do Regulamento (CEE) n.º 1984/83216 da Comissão, de 22 de Junho de 1983, relativo à aplicação do n.º 3 do art.º 85º do Tratado e certas categorias de acordos de compra exclusiva, em matéria de concorrência, no quadro de um litígio entre a Sociedade de Petróleos de Portugal -Petrogal- e as Sociedades Correia, Sousa e Crisóstomo, Lda.. A estipulação de um prazo indeterminado ou superior a dez anos, em violação da al. c) do n.º 1 do art.º 12º do Regulamento (CEE) n.º 1984/83, de 22 de Junho de 1983, num acordo de Estação de Serviço previsto no art.º 10º do mesmo Regulamento, determina, por força do art.º 85º/2, do Tratado, a sua nulidade total ou por causa da nulidade incidir apenas nesse ponto, é possível proceder à sua redução, fazendo-o vigorar pelo período de dez anos, máximo ali permitido?217, foi, em concreto, o que o juiz nacional quis ver esclarecido, tendo do Tribunal de Justiça obtido uma resposta que veio no sentido de que, efectivamente, os acordos de Estação de Serviço anteriores à data da adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa, celebrados por 212 Idem, c. n.º 24. 213 Idem, c. n.º 6-4). 214 Idem 157, c. n.º 28. 215 Ac. TJCE 10 de Novembro de 1993, Petróleos de Portugal – Petrogal S.A. v. Correia Simões e Co. Lda. e Correia Sousa e Crisóstomo Lda., Proc. C-39/92, Col. pp. I-5659 ss.. 216 JO L 173, p. 5, Rectif. no JO L 79, p. 38. 217 v. nota 215, c. n.º 5.

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duração indeterminada ou superior a dez anos, podem beneficiar da isenção por categoria prevista no Regulamento (CEE) n.º 1984/83 da Comissão, de 22 de Junho de 1983, relativo à aplicação do n.º 3 do artigo 85º do Tratado a certas categorias de acordos de compra exclusiva, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art.º 15º deste diploma, desde que satisfaçam os requisitos por este exigidos, à excepção do relativo à duração, contido no n.º 1 , al. c), do art.º 12º218.

O TJCE considerou apenas que o art. 12º/1 c) - que declara que o art.º 10º não é aplicável quando o acordo é celebrado por tempo indeterminado ou por mais de dez anos - de harmonia com o Acto de Adesão de Portugal e Espanha às Comunidades Europeias, não se aplica aos acordos já em vigor à data da adesão, até à cessação do acordo ou, o mais tardar, até à cessação da vigência do Regulamento, em 31 de Dezembro, desde que antes de 1 de Janeiro de 1989 o fornecedor tenha exonerado o revendedor de todas as obrigações que impeçam a isenção. E tomou esta posição tendo em conta que o contrato entre a Petrogal e as Sociedades dava corpo a um acordo pelo qual esta parte, enquanto revendedora, se comprometera perante o fornecedor, em contrapartida da concessão de vantagens económicas ou financeiras especiais, a comprar só a este, a uma empresa a ele ligada ou a uma terceira empresa que ele haja encarregado da distribuição dos seus produtos para fins de revenda numa estação de serviço designada no acordo, certos combustíveis para veículos a motor à base de produtos petrolíferos ou certos combustíveis para veículos a motor à base de produtos petrolíferos especificados no acordo, conforme preceitua o art. 10º do Regulamento. Além de ponderar que, nos termos do art. 12º/1 c), aquela disposição não é aplicável quando o acordo é celebrado por tempo indeterminado ou por mais de dez anos.

Esta decisão do Tribunal Comunitário limita-se, em escassos considerandos, a concretizar o sentido das disposições do Regulamento sem, se perder em deambulações sequer sobre o que sejam isenções por categoria que é, no fundo, sobre o que versa o diploma, adoptando, ao contrário do que muitas vezes sucede, uma redacção sintética mas suficiente para efeitos da boa fundamentação do acórdão.

Face à argumentação exaustiva de uns casos, apresenta-se noutros, tal como neste, conciso e objectivo. 1993 Caso Nunes Tadeu Foi um refugio por parte de um magistrado do STA na teoria do acto claro, que motivou o reenvio prejudicial219 num litígio pendente naquele órgão jurisdicional entre a Fazenda Pública, o Ministério Público e Américo João Nunes Tadeu, em que este reclama o reembolso do imposto automóvel que pagou na importação para Portugal de um automóvel usado, proveniente de outro Estado-Membro. Em linhas gerais, o sujeito comprou um automóvel usado na Bélgica, regressou a Portugal, pagou o imposto automóvel exigido220 pela Alfândega do Porto, registou a 218 Idem, parte decisória do Acórdão. 219 Ac. TJCE 9 de Março de 1995, Fazenda Pública e Ministério Público v. Américo João Nunes Tadeu, Proc. C-345/93, Col., pp. I-479 ss.. 220 O DL 154/89, de 11 de Maio de 1989, DR, I Série, n.º 107, de 10 de Maio de 1989, p. 1858, (em alteração ao regime do imposto especial sobre veículos, do imposto de compensação e do imposto sobre veículos, ao dar nova redacção ao DL 131/86, de 12 de Junho, DL 159/87, de 3 de Abril, L 34/83, de 21 de Outubro e DL 143/78, de 12 de Junho) dispõe: “1. O imposto automóvel (IA) é um imposto interno incidente sobre os veículos automóveis ligeiros de passageiros (...) e importados, no estado de novos ou

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viatura, e, em seguida, requereu ao Tribunal Fiscal Aduaneiro do Porto a devolução do imposto pago, alegando traduzir a exigência do mesmo uma incompatibilidade com o art.º 95.º do Tratado CEE. Em face disto, o juiz da primeira instância dá provimento ao recurso e anula o acto tributário admitindo linearmente a existência de violação do princípio da não discriminação consagrado naquele preceito, dado que os veículos usados adquiridos em Portugal estão isentos de imposto automóvel o mesmo não acontecendo com os adquiridos noutro Estado-Membro. O juiz não teve duvidas e por isso não reenviou, já que considerou a jurisprudência do Tribunal Comunitário sobre a matéria clara e adquirida, decerto em resultado do raciocínio mecânico-causal aplicado ao princípio da não discriminação em matéria de fiscalidade indirecta221. Todavia, mediante recurso que foi daquela decisão interposto para o STA pelo Ministério Público e Fazenda Pública e estando, em caso de dúvida, obrigado a reenviar, o juiz superior, enquanto juiz ad quem, submeteu ao Tribunal de Justiça, no âmbito do processo C-345/93, duas questões prejudiciais objectivando, primariamente, avaliar da decisão do juiz da primeira instância face ao princípio da não discriminação, nos termos em que deve ser entendido ao abrigo do art.º 95.º e ainda saber se a imposição tributária nacional deveria ser tomada como um encargo de efeito equivalente a um direito aduaneiro.

A classificação do imposto automóvel como imposição interna na acepção do art.º 95.º é linear na medida em que se trata de um imposto que se aplica indistintamente ao veículos montados e fabricados em Portugal e aos importados, quer novos quer usados e se integra num sistema geral de imposições internas que incidem sobre categorias de produtos segundo um critério objectivo (...), a cilindrada dos veículos. O juiz comunitário antes mesmo de proceder às respostas não deixou de lembrar ao reenviante que já o havia dito no âmbito do seu acórdão de 16 de Julho de 1992, Lourenço Dias222.

Assim, o juiz comunitário, neste acórdão de 9 de Março de 1995, mais não fez do que realçar que a cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao art.º 95.º do Tratado CEE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional 223. Por outro lado, se o imposto em questão constitui uma imposição interna na acepção do art.º 95.º do Tratado CEE, ao aplicar-se sem distinção ao veículos montados ou fabricados no Estado-Membro onde é cobrado e aos importados novos ou usados, não pode ser qualificado como direito aduaneiro ou encargo de efeito equivalente, no sentido subjacente aos preceitos dos art.ºs 9.º e 12.º do Tratado224. usados, ou montados ou fabricados em Portugal, e que sejam matriculados; 2. (...); 3. O imposto é de natureza específica, monofásica e variável em função da cilindrada, conforme tabela anexa (...); 4. O montante do imposto liquidado sobre automóveis usados importados, com mais de dois anos contados desde a atribuição da primeira matrícula, será objecto de uma redução de 10% sobre os valores resultantes da aplicação da tabela referida no n.º anterior”. 221 Rogério Leitão, in Colecção Divulgação do Direito Comunitário, ano 7, n.º 19, p. 81-86. 222 v. nota 163. 223 v. nota 219, c. n.º 20. 224 Idem, c. n.º 7.

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Caso SEIM As questões prejudiciais subjacentes ao processo C-446/93225 submetidas ao Tribunal de Justiça pelo Tribunal Tributário de Segunda Instância de Lisboa, ao abrigo do disposto no art.º 177.º226 do Tratado, foram suscitadas no quadro de um recurso interposto pela Sociedade SEIM – Sociedade de Importações e Exportações de Materiais, Lda. naquele Tribunal Tributário de Segunda Instância de Lisboa. Neste segundo reenvio português de 1993, o Tribunal Nacional pede que seja definida a natureza jurídica de uma decisão desfavorável a um pedido de dispensa de pagamento de direitos de importação ou de exportação devidos e que sejam interpretadas as disposições que fixam as condições de aceitação desse tipo de pedidos, constante daqueles preceitos. Perante as dúvidas, o órgão nacional de reenvio procede às interrogações que considerou deverem ser esclarecidas para ser possível decidir no caso sub judice. Porém, face às questões de interpretação colocadas, para além de uma outra sobre validade, o Governo português vem afirmar que as mesmas não eram admissíveis uma vez que o órgão jurisdicional nacional procedeu a uma errada interpretação do Regulamento a ter em conta para a solução da situação e, assim, não tinham qualquer relação directa com a situação a julgar. Só que o art.º 177.º227 do Tratado, alicerçado numa separação nítida de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, parece não permitir que este (e muito menos o Governo de um Estado-Membro) censure os fundamentos do pedido de interpretação.

A rejeição do pedido de esclarecimento apresentado por um órgão jurisdicional nacional, de facto, só é possível se for manifesto que a interpretação do Direito Comunitário ou a apreciação da validade da regra comunitária, solicitadas pelo órgão jurisdicional, não tem qualquer relação com a realidade nem com o objecto da causa principal228, mas o juiz comunitário desatendeu os argumentos aduzidos pela República Portuguesa em desabono da tese da inadmissibilidade das perguntas e respondeu não só à questão sobre a validade mas também às de interpretação por considerar existir uma intersecção entre o objecto das questões postas e o da causa principal ou inexistir um pedido que, de modo manifesto, não apresentasse qualquer relação com o litígio concreto.

Em particular, quanto à questão de interpretação de disposições de Direito Comunitário com o objectivo de resolver um problema de Direito Interno respeitante à repartição de competências entre tribunais de um Estado-Membro, mais exactamente ao problema da caracterização jurídica da decisão das autoridades nacionais que indeferiu o pedido de dispensa de pagamento apresentado com base no Direito Comunitário, que constitui, segundo o juiz nacional, condição prévia necessária para resolver, em Direito Interno, a questão da determinação do Tribunal competente para a solução do processo litigioso, certas ideias fulcrais vieram a ser realçadas pelo TJCE. Foram elas: compete à ordem jurídica de cada Estado-Membro designar o órgão jurisdicional competente para decidir os litígios que põem em causa direitos individuais, derivados da ordem jurídica comunitária, entendendo-se, no entanto, que os Estados-Membros são responsáveis por assegurar, em todas as circunstâncias, a protecção efectiva desses

225 Ac TJCE 18 de Janeiro de 1996, SEIM v. Subdirector Geral das Alfândegas, Proc. C-446/93., Col. pp. I-73 ss.. 226 v. nota 19. 227 v. nota 19. 228 v. Ac. 16 de Julho de 1981, Salonia v. Poidomani e Giglio, Proc. 126/80, Rec., pp. 1563 ss., c. n.º 6, p. 1577.

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direitos. Com esta reserva, não compete ao Tribunal de Justiça intervir na solução de problemas de competência que possa suscitar, no quadro da organização judiciária nacional, a qualificação de certas situações jurídicas assentes no Direito comunitário. Todavia, o Tribunal de Justiça é competente, no quadro de um pedido prejudicial, para indicar ao juiz nacional os elementos de Direito Comunitário que podem concorrer para a solução do problema que se lhe coloca229.

O TJCE assumiu-se, assim, com o dever de elucidar as duvidas do juiz nacional procurando somente fundamentação necessária à sua vontade de responder, o que se afigura legítimo à luz do bom espírito da cooperação jurisdicional, contribuindo para a qualificação jurídica das pretensões materiais em conflito.

1995 Caso Pascoal e Filhos

O acórdão de 17 de Julho de 1997230, foi proferido na sequência de sete questões prejudiciais suscitadas no quadro de um litígio entre a Sociedade Pascoal e Filhos Lda. e a Fazenda Pública a respeito da cobrança à posteriori de direitos aduaneiros sobre importações de bacalhau. As perguntas, relativas à interpretação da Decisão 86/283/CEE do Conselho, de 30 de Junho de 1986 sobre a associação dos Países e Territórios Ultramarinos à Comunidade Económica Europeia231, e do Regulamento (CEE) n.º 2913/92 do Conselho, de 12 de Outubro de 1992, que estabelece o Código Aduaneiro Comunitário232, tiveram por base a decisão do Tribunal Tributário de Segunda Instância entrada no Tribunal de Justiça em 27 de Março de 1995. O Tribunal Comunitário, neste processo C-97/95, começou por analisar a segunda questão; a seguir respondeu, em conjunto, às terceira, quarta e quinta questões, depois, à primeira, à sexta e, por ultimo, à sétima233. Tomando em conta as observações avançadas quer pelo Governo Português, quer pela Comissão, para fundamentarem a inadmissibilidade da segunda questão, relativa ao Código Aduaneiro Comunitário, o Tribunal de Justiça defende que não se justifica a resposta à mesma já que a interpretação (...) solicitada pelo juiz nacional não apresenta qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio234. Através das terceira quarta e quinta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no fundo, por um lado, se uma comunicação dirigida às autoridades do Estado de importação pelas autoridades do Estado de exportação, após a realização de um controlo à posteriori de um certificado EUR.1, em que estas últimas se limitam a afirmar que o certificado em questão foi indevidamente emitido e deve, por conseguinte, ser anulado, sem especificar os motivos que justificam essa anulação, deve ser havida como «resultado de controlo» na acepção do art.º 25º/3 do Anexo II da Decisão 86/283/CEE do Conselho e, por outro, se as autoridades do Estado de importação têm o direito de dar início a uma acção para cobrança de direitos

229 Ac. TJCE 9 de Julho de 1985, Bozetti, Proc. 179/84, Rec., pp. 2301ss., c. n.ºs 17 e 18. 230 Ac TJCE 17 de Julho de 1997, Pascoal e Filhos v. Fazenda Pública, Proc. C-97/95, Col., pp. I-4209 ss.. 231 JO L 175, p. 1. 232 JO L 302, p. 1. 233 v. nota 230, c. n.º 21. 234 Idem, c. n.º 26.

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aduaneiros não cobrados, unicamente com base nessa comunicação, sem procurar averiguar a real origem das mercadorias importadas235. O Tribunal Comunitário entendeu por bem responder positivamente quer à primeira, quer à segunda parte da pergunta236. Na sequência da primeira questão formulada, o Tribunal do Luxemburgo aclara ao órgão questionante nacional que a responsabilidade do exportador a que se refere o art.º 10º/1 do Anexo II, não se estende aos direitos aduaneiros que se verifica serem devidos pela importação na Comunidade Europeia de mercadorias que são objecto de um certificado EUR.1, mesmo quando este foi emitido com base numa indicação falsa fornecida pelo exportador, quanto à origem das mercadorias e que é anulado na sequência de um controlo à posteriori237. A tributação do importador de boa fé pela aplicação dos direitos devidos por mercadoria objecto de infracção aduaneira praticada pelo exportador, e na qual o importador não teve intervenção a qualquer título, afronta os princípios da justiça, não locupletamento à custa alheia, proporcionalidade, segurança jurídica e boa fé?238 foi a sexta dúvida apresentada pelo órgão jurisdicional nacional ao órgão comunitário. Face a ela, e, em observância de uma prática corrente do TJCE, que, até ver, parece ter-se tornado regra (quase geral), o órgão da comunidade reformula os moldes em que foi posta pelo Tribunal Nacional. Assim, entendendo que a sexta questão baseia-se na eventualidade de o exportador ser responsável pela dívida aduaneira, por causa do seu pedido fraudulento de certificado EUR.1 e também porque, se o importador pagasse essa dívida, pagaria a divida de um terceiro, o que lesaria os seus interesses financeiros e seria contrário aos princípios da justiça, do não locupletamento à custa alheia, da proporcionalidade, da segurança jurídica e da boa fé239, o TJCE afirma, sem mais, que esta hipótese é incorrecta240 e, posto isto, procede á análise de, se em circunstâncias como as do caso em discussão, no processo principal, o facto de se impor o pagamento da divida aduaneira ao importador é conforme aos princípios gerais cujo respeito o Tribunal de Justiça garante241. In fine, perante o depreendido daquela pergunta diz que o facto de se impor ao importador de boa fé o pagamento dos direitos aduaneiros devidos pela importação de uma mercadoria que foi objecto de uma infracção aduaneira praticada pelo exportador, e na qual o importador não teve intervenção a qualquer título, não ofende os princípios gerais de Direito cujo respeito o Tribunal de Justiça garante242. Questionado sobre se a emissão de um certificado EUR.1 com base na Decisão 86/283, sem (...) controlo prévio para verificar a origem real das mercadorias (...), constitui um caso de força maior susceptível de impedir a cobrança à posteriori dos direitos aduaneiros devidos por um importador de boa fé243, o Tribunal respondeu negativamente244.

235 Idem, c. n.º 28. 236 Idem, v. c. n.º 42. 237 Idem, c. n.º 47. 238 Idem, c. n.º 20. 239 Idem, c. n.º 48. 240 Idem, c. n.º 49 241 Idem, c. n.º 50. 242 Idem, c. n.º 61. 243 Idem, c. n.º 62. 244 Idem, c. n.º 67.

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Caso Queijo ERU O “acórdão Queijo ERU”245 foi proferido no processo C-164/95 pela Quarta Secção do Tribunal de Justiça, a 17 de Junho de 1997, por força de um pedido de decisão prejudicial submetido àquele Tribunal, por acórdão de 25 de Janeiro de 1995, do STA, no processo pendente naquele Tribunal, que decidiu suspender a instância, entre Fábrica de Queijo ERU Portuguesa, Lda. e Alfândega de Lisboa, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 29 de Maio de 1995. Aquele pedido de decisão prejudicial em que foram colocadas quatro questões prejudiciais, teve por objecto a solicitação de esclarecimentos sobre a interpretação das subposições 04062090 e 04069011 do Regulamento (CEE) n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de Julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística, e à pauta aduaneira comum246, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CEE) n.º 3174/88 da Comissão, de 21 de Setembro de 1988, que modifica o Anexo I do Regulamento (CEE) n.º 2658/87247, e pelo Regulamento (CEE) n.º 316/91 da Comissão, de 7 de Fevereiro de 1991, relativo à classificação de certas mercadorias na nomenclatura combinada248. Novamente o Tribunal Comunitário reformulou as questões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional e examinou-as em conjunto249. Ao entender que o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a subposição 04062090, tal como se encontrava formulada na altura dos factos em causa no processo principal, deve ser interpretada no sentido em que nela se inclui um queijo ralado que, no momento da importação, se apresenta, por causa do modo de embalagem e de conservação utilizado, sob uma forma aglomerada e que, depois de desembalado e exposto às condições ambiente, se desagrega em grânulos irregulares (...) e caso tal não aconteça (...) se normas posteriores, nomeadamente as constantes do Regulamento n.º 316/91, podem ter incidência na classificação dessa mercadoria250, o Tribunal conclui, em conformidade com a proposta do Advogado-Geral, pela positiva quanto à primeira parte da dúvida. Para tal argumentou que nem o facto de ser um produto obtido a partir de um queijo com um teor em humidade superior ao do queijo habitualmente utilizado para produzir queijo ralado, nem o modo de embalagem ou conservação do produto, podem, para efeitos da nomenclatura combinada, retirar-lhe a sua característica objectiva de queijo ralado251.

É, porém, de questionar se as dúvidas colocadas através do reenvio seriam dispensáveis de uma apresentação ao Tribunal, uma vez que o juiz nacional já aceitava, logo à partida, que a tese da recorrente ERU, ao referir na sua pergunta que se tratava de queijo ralado - dizendo que segundo o exportador, tratava-se de produto designado por queijo ralado antes de embalado252 - veio, desde logo abrir caminho para a resposta “a seu gosto” por parte do órgão jurisdicional reenviado.

Se era, logo à partida, queijo ralado, a desnecessidade das perguntas parece efectivamente elevar-se.253

245 Ac. TJCE 17 de Junho de 1997, Fábrica de Queijo ERU Portuguesa Lda. v. Alfândega de Lisboa, Proc. C-164/95, Col. I-3441 ss.. 246 JO L 256, p. 1. 247 JO L 298, p. 1. 248 JO L 37, p. 25. 249 v. nota 245, c. n.º 12. 250 Idem. 251 Idem, c. n.º 21. 252 v. nota 245, c. n.º 11. 253 v. Colecção Divulgação do Direito Comunitário, n.º 28, 1997, p. 59-67.

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Caso UCAL O processo C-347/95254, teve por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do art.º 177º255 do Tratado CEE, pelo Supremo Tribunal Administrativo, destinado a obter no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre a Fazenda Pública e a União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa , UCRL (UCAL), uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos art.ºs 9º, 12º e 95º do Tratado de Roma, bem como do art.º 33º da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – sistema comum do imposto do valor acrescentado: matéria colectável uniforme256. O juiz comunitário, perante as três questões prejudiciais colocadas, resolveu responder às duas primeiras conjuntamente, que se destinavam a apurar se as taxas de comercialização de lacticínios, do caso sub judice, eram susceptíveis de constituir encargos de efeito equivalente a direitos aduaneiros de importação na acepção dos art.ºs 9º e 12º do Tratado ou imposições internas discriminatórias proibidas pelo art.º 95º do Tratado257. A terceira pergunta, respondida separadamente, visava esclarecimentos sobre se as taxas como as objecto do litígio no processo principal, devem ser consideradas impostos sobre o volume de negócios n acepção do art.º 33º da Sexta Directiva258.

O magistrado do TJCE vem assumir-se como um verdadeiro e tolerante orientador da conduta a adoptar pelo nacional para dar solução à questão principal, mais, aparece como um autêntico pedagogo, espelhando a vontade de colaborar do TJCE, pacientemente consciente da falta de maturidade jurídico-comunitária nacional. Fez uso frequentemente de expressões como incumbirá (...) ao juiz nacional (...) verificar (...)259, (...) o juiz nacional tomará em consideração (...)260, (...) o juiz nacional verificará (...)261 ao longo dos considerandos e transportou-as mesmo para a parte decisória do acórdão propriamente dita.

Caso Pechim O quinto reenvio prejudicial português262 de 1995 levou, ao contrário dos

restantes, a que o Tribunal Comunitário, proferisse no processo C-326/95 em vez de um acórdão, um despacho por meio do qual veio declarar, a 13 de Março de 1996, a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

Efectivamente, deu entrada no Tribunal de Justiça a 16 de Outubro de 1995, uma decisão não datada proveniente do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa pela qual se solicitou ao Tribunal de Justiça resposta às seis questões prejudiciais levantadas por Maurício Pechim e esposa, bem como pelas Confecções Têxteis de Vouzela, Lda.,

254 Ac. TJCE 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa, UCRL (UCAL), Proc. C-347/95, Col., pp. I-4911 ss.. 255 v. nota 19. 256 JO L 145, p.1 257 v. nota 254, c. n.º 16. 258 Idem, c. n.º 30. 259 Idem, c. n.º 26. 260 Idem, c. n.º 27. 261 Idem, c. n.º 28. 262 Desp. TJCE 13 de Março de 1996, Banco de Fomento Exterior S.A. v. Amândio Maurício Pechim, Maria da Luz Lima Barros Raposo Pechim e Confecções Têxteis de Vouzela Lda. (CTV), Proc. C-326/95, Col. pp. I-1385 ss..

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relativas à interpretação dos art.ºs 59º, 90º e 92º do Tratado, sendo que o Banco de Fomento Exterior, SA, havia movido no órgão jurisdicional de reenvio um processo de execução contra aqueles no processo principal, que, enquanto demandados, consideraram irregular.

O Tribunal de Justiça, uma vez que a decisão de reenvio não contem qualquer indicação dada pelo juiz nacional quanto à situação de facto e de direito do litígio, submetido à sua apreciação nem as razões por que considera serem necessárias à solução do litígio as respostas às questões prejudiciais enunciadas pelos demandados no processo principal e uma vez que o quadro factual e regulamentar só poderia ser estabelecido através de uma análise dos articulados das partes no processo principal263 declarou, nos termos do art.º 92º do Regulamento de Processo do TJCE264, que as questões prejudiciais colocadas são manifestamente inadmissíveis 265e assim, que o pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Cível da Comarca de Lisboa é inadmissível266.

É que a necessidade de se chegar a uma interpretação do Direito Comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam estas questões. E, para além disso, as informações fornecidas nas decisões de reenvio não servem apenas para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis, mas também para dar aos Governos dos Estados-Membros, bem como às demais partes interessadas, a possibilidade de apresentarem observações, nos termos do art.º 20º do Estatuto do Tribunal de Justiça267. Incumbe ao Tribunal garantir esta possibilidade.

É exacto (...) que a exigência que impende sobre o juiz nacional de definir o quadro factual e regulamentar das questões que coloca é menos imperativa na hipótese de as questões se prenderem com aspectos técnicos precisos e permitirem ao Tribunal dar uma resposta útil mesmo que o juiz nacional não tenha feito uma apresentação exaustiva da situação de direito e de facto268. Todavia, é manifestamente inadmissível o pedido de um juiz nacional cuja decisão de reenvio não contém nenhuma indicação quanto à situação de facto e de direito do litígio submetido à sua apreciação nem as razões por que considera serem necessárias à solução do litígio as respostas às questões prejudiciais, como sucedeu com o caso presente.

1996 Caso ICT

263 Idem, c. n.º 11. 264 De 19 de Junho de 1991, publicado no JO L 176, de 04 de Julho de 1991 (v. nota 136): “1. Se o Tribunal de Justiça for manifestamente incompetente para conhecer de um pedido, ou se este for manifestamente inadmissível, pode, ouvido o Advogado-Geral, proferir imediatamente despacho fundamentado, pondo assim termo à instância; 2. O Tribunal pode, a todo o tempo e oficiosamente, verificar se estão preenchidos os pressupostos processuais; decide nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 91º do presente Regulamento.” 265 v. nota 262, c. n.º 12. 266 Idem, parte decisória do Acórdão. 267 v. nota 57. 268 v. nota 262, c. n.º 8.

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O primeiro reenvio prejudicial de 1996269 teve lugar no processo C-93/96, relativo à imposição de um direito antidumping sobre as importações de fios originários do Brasil para a Comunidade e deu entrada no Tribunal das Comunidades mediante acórdão do STA de 14 de Fevereiro de 1996. Foi objecto deste pedido de decisão prejudicial a interpretação do Regulamento (CEE) n.º 738/92 do Conselho, de 23 de Março de 1992, que cria um direito antidumping definitivo sobre as importações de fios de algodão originários do Brasil e da Turquia270, medida esta que sucedeu ao Regulamento (CEE) n.º 2818/91 da Comissão, de 23 de Setembro de 1991, que cria um direito antidumping provisório sobre as importações aos fios de algodão originários do Brasil, Egipto e Turquia, e concluiu o processo antidumping relativo aos fios de algodão originários da Índia e Tailândia271.

Três foram as questões suscitadas no âmbito do litígio que no processo principal, opôs a Indústria e Comércio Têxtil, SA (ICT) à Administração Aduaneira Portuguesa, a propósito da fixação de direitos antidumping em aplicação daquele primeiro Regulamento. O Tribunal de Justiça, analisando conjuntamente272 as três dúvidas, entendeu que o órgão jurisdicional nacional perguntou se a majoração prevista no art.º 1º/3 do Regulamento n.º 738/92 (que determina que o preço franco-fronteira comunitário que serve de base à aplicação do direito antidumping é de 1% por cada mês decorrido sobre o trigésimo dia posterior ao da chegada das mercadorias ao território aduaneiro da Comunidade sem que o pagamento tenha sido efectuado) deve ser aplicada sempre que for convencionado que o pagamento das mercadorias importadas terá lugar mais de 30 dias depois da sua chegada ao território aduaneiro da Comunidade, mesmo que a diferença entre o preço em caso de pagamento diferido e o correspondente ao preço CAD seja superior, percentualmente, à majoração a aplicar, e, na afirmativa, se a majoração deve incidir sobre este último preço ou sobre o preço pagável em caso de pagamento diferido273. A resposta que avança tem por base o facto de uma majoração ter por finalidade compensar, de forma automática e em percentagens constantes, a vantagem comercial que o pagamento diferido de uma mercadoria pode representar, e isto a fim de evitar que se pratique uma forma de dumping através da concessão de facilidades de pagamento e que não seja contornado, desse modo, o objectivo prosseguido pela instituição de um direito antidumping274. O art. 3º/2 do Regulamento n.º 1495/80 da Comissão, de 11 de Junho de 1980, que estabelece as disposições de execução de determinadas disposições dos art.ºs 1º, 3º e 8º do Regulamento (CEE) n.º 1224/80275, de 28 de Maio de 1980, relativo ao valor aduaneiro das mercadorias276, conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.º 220/85 da Comissão, de 29 de Janeiro de 1985277, determina que os montantes dos juros resultantes de um acordo de financiamento concluído pelo comprador e relativo à compra de mercadorias importadas não devem ser incluídos no valor aduaneiro determinado por aplicação do Regulamento 1224/80, desde que os montantes dos juros sejam distintos do preço efectivamente pago ou a pagar pelas mercadorias, que o acordo de financiamento considerado tenha sido reduzido a escrito e que o comprador

269 Ac. TJCE 29 de Maio de 1997, Indústria e Comércio Têxtil S.A. (ICT) v. Fazenda Pública, Proc. C-93/96, Col., pp. I-2881 ss.. 270 JO L 82, p.1. 271 JO L 271, p.17. 272 v. nota 269, c. n.º 8. 273 Idem. 274 Idem, c. n.º 19. 275 JO L 154, p.14. 276 JO L 134, p.1. 277 JO L 25, p. 7.

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possa provar, se assim lhe for pedido, que tais mercadorias são efectivamente vendidas ao preço declarado como efectivamente pago ou a pagar mas também que a taxa de juro exigida não excede o valor normalmente praticado em tais transacções no momento e nos países onde o financiamento foi posto à disposição278.

O Tribunal de Justiça declarou, então, por acórdão de 29 de Maio de 1997, que a majoração prevista (...) deve ser aplicada sempre que for convencionado que o pagamento das mercadorias importadas terá lugar mais de 30 dias depois da sua chegada ao território aduaneiro da Comunidade, mesmo que a diferença entre o preço em caso de pagamento diferido e o correspondente ao preço CAD seja superior, percentualmente, à majoração a aplicar e que esta majoração deve incidir sobre o preço efectivamente pago ou a pagar pelas mercadorias quando são vendidas para exportação com destino ao território aduaneiro da Comunidade, com exclusão do montante dos juros devidos em contrapartida do prazo de pagamento concedido, na condição de este ter sido objecto de um «acordo de financiamento» na acepção do artigo 3º/2, do Regulamento (CEE) n.º 1495/80 da Comissão, de 11 de Junho de 1980, que estabelece as disposições de execução de determinadas disposições dos artigos 1º, 3º e 8º do Regulamento (CEE) n.º 1224/80 do Conselho, relativo ao valor aduaneiro das mercadorias, conforme alterado pelo Regulamento (CEE) n.º 220/85 da Comissão, de 29 de Janeiro de 1985, e de o montante dos juros reflectir a taxa de juro normalmente praticada279.

Caso Codiesel No “caso Codiesel” – Sociedade de Apoio Técnico à Indústria Lda. contra

Conselho Técnico Aduaneiro, foram apresentadas duas questões ao Tribunal de Justiça sobre o Regulamento (CEE) n.º 950/68 do Conselho, de 28 de Junho de 1968, relativo à pauta aduaneira comum280, com a redacção dada pelo Regulamento (CEE) n.º 3331/85 do Conselho, de 5 de Dezembro de 1985281.

A respeito da decisão prejudicial282 proferida neste processo C-105/96 em virtude do acórdão do STA, de 28 de Fevereiro de 1996, apresentado no Tribunal das Comunidades a 1 de Abril do mesmo ano, julga-se de destacar as observações feitas pelo juiz comunitário nos considerandos 12 e 13 do relatório preliminar, atendendo à forma e matéria das questões formuladas, relacionadas, substancialmente, com a fixação de uma posição pautal de dada mercadoria: A título liminar deve recordar-se que, nos termos do art.º 177º283 do Tratado, que se funda numa clara separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, este último está unicamente habilitado a pronunciar-se sobre a interpretação ou validade de um texto comunitário a partir dos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional nacional (v. designadamente, acórdão de 4 de Julho de 1985, Drunert, 167/84, Rec., p. 2235, c. n.º 12)284. Todavia, mantém-se no âmbito dos poderes do Tribunal de Justiça, perante questões eventualmente formuladas de maneira inadequada ou ultrapassando as funções que lhe são atribuídas pelo art.º 177º285, extrair do conjunto dos elementos 278 v. nota 269, c. n.º 15. 279 Idem, parte decisória do Acórdão. 280 JO L 172, p.1. 281 JO L 331, p.1. 282 Ac. TJCE 17 de Junho de 1997, Codiesel – Sociedade de Apoio Técnico à Indústria Lda. v. Conselho Técnico Aduaneiro, Proc. C-105/96, Col. pp. I-3465 ss.. 283 v. nota 19. 284 v. nota 282, c. n.º 12. 285 v. nota 19.

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fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional e, nomeadamente, da fundamentação do acto de reenvio, os elementos de Direito Comunitário que requerem uma interpretação – ou, se for caso disso, uma apreciação de validade – tendo em conta o objecto do litígio (v. acórdão de 29 de Novembro de 1978, Pigs Marketing Board, 83/78, Colect., p. 821, c. n.º 26)286.

Estas palavras do juiz comunitário antecedem a resposta conjunta às questões colocadas, sobre matérias relacionadas com a atribuição de classificações pautais aduaneiras, que, aliás, a esta altura da actividade do Tribunal Comunitário, só excepcionalmente lhe deveriam ser remetidas, por sobre o tema já existir bastante e variada jurisprudência. Na verdade, as questões prejudiciais apresentadas, bem como os esclarecimentos tecidos pelo órgão jurisdicional comunitário, vieram, de novo, pôr a claro o pouco à-vontade com que a magistratura, e não só, lida com conceitos técnicos de classificação pautal, porquanto muitos outros casos de classificação pautal provenientes de outros Tribunais de outros Estados-Membros foram já submetidos à apreciação do Tribunal de Justiça. Aliás, já no processo C-164/95, em que foi proferido o “acórdão Queijo ERU” (por sinal também com a data de 17 de Junho de 1997, como sucedeu com o acórdão em análise), se colocou questão similar, tudo indicando que no presente reenvio apenas se alterou a forma de perguntar a classificação pautal a atribuir, só que naquele caso do queijo a pergunta foi feita directamente e neste de forma menos evidente, sendo que, em substância, o pretendido era saber qual o artigo pautal que deveria ser atribuído à mercadoria em questão, no caso, um aparelho de alimentação eléctrica sem interrupção. Apesar de tudo, o objectivo primacialmente visado, a colaboração do Tribunal de Justiça com a jurisdição nacional efectivou-se em nome da boa justiça para o casu.

Caso Fricarnes Em referência ao “acórdão Fricarnes, SA”287, proferido no processo C-28/96 e

decorrente de um pedido de decisão prejudicial suscitado num litígio pendente no STA entre Fazenda Pública e Fricarnes SA, afigura-se pertinente admitir o facto de a decisão de suspensão da instância nacional ser das que, por razões de pouco peso, vão contribuindo para o acentuar dos números referentes à morosidade que implica a tomada das decisões pelo TJCE, especificamente, as relativas aos reenvios entrados nessa instituição comunitária.

Senão veja-se: as três questões chegadas ao Tribunal de Justiça por força deste “processo Fricarnes”, ao serem ipsis verbis as levantadas no “processo UCAL” mediante um acórdão do mesmo órgão jurisdicional nacional, de 11 de Outubro do mesmo ano, levaram o Tribunal das Comunidades a usar de técnica e terminologia em tudo equivalentes nos dois acórdãos, a resolvê-los na mesma Secção -a quinta- e a proferi-los no mesmo dia –17 de Setembro de 1997.

Porém, enquanto que as questões formuladas no “processo Fricarnes” entraram na Secretaria do Tribunal Comunitário a 1 de Fevereiro de 1996, o pedido de decisão prejudicial do “processo UCAL”, chegou àquele Tribunal cerca de três meses antes, isto é, a 13 de Novembro de 1995, com a agravante de o reenvio promovido pelo primeiro dos dois acórdãos do órgão jurisdicional nacional ter sido o último a dar entrada no TJCE.

286 v. nota 282, c. n.º 13. 287 Ac. TJCE 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. Fricarnes S.A., Proc. C-28/96, Col., pp. I-4939 ss..

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Esta realidade faz questionar, naturalmente, as causas e os efeitos da diferença de tempo necessário para a entrada de um e outro dos pedidos - e quiçá de todo e qualquer um - de esclarecimentos sobre a interpretação ou validade de disposições comunitárias.

Para além disso, não parecem evidenciar-se líquidas as razões que possam ter levado a, num caso, o Tribunal de Justiça ser capaz de dar uma resposta mais rápida do que noutro. É que apesar de o pedido de colaboração no “caso Fricarnes” ter chegado ao TJCE três meses depois do UCAL, o Tribunal acabou por formular as respostas para ambos no mesmo dia. Assim, se o TJCE conseguiu responder ao reenvio do “caso Fricarnes” em cerca de 20 meses, não se torna difícil concluir que também poderia ter usado do mesmo lapso de tempo para responder ao “UCAL”, em vez de ter “obrigado”, no que se refere a este caso, o processo na instância nacional a estar parado 23 meses. Não se afiguraria, assim, impossível que a prolação do “acórdão UCAL”, em vez de ser levada a cabo em Setembro de 1997, pudesse ter tido lugar em Junho do mesmo ano, ou seja, igualmente 20 meses depois de ter-se apresentado no Tribunal, tanto mais que o objecto dos pedidos de decisão prejudicial era o mesmo, não podendo assumir-se como justificação dos diferentes prazos uma eventual maior dificuldade de uma das situações face à outra.

Por outro lado, a mais que evidente similitude dos acórdãos salta à vista com a leitura dos considerandos 6 a 13, assim como 15 a 27 quanto às primeira e segunda questões do “caso Fricarnes” e considerandos 34 a 41 referentes à terceira pergunta e os considerandos 4 a 11 e 13 a 25, no tocante às primeira e segunda questões do “processo UCAL” e considerandos 30 a 37 sobre a terceira dúvida, já para não falar da parte decisória dos acórdãos que só difere quanto à inserção da taxa de comercialização, num caso de carne, noutro de lacticínios, no âmbito do art.º 95º do Tratado CE.

Não teria, portanto, pertinência, face ao exposto, que estes dois acórdãos nascessem de uma apreciação conjunta dos dois reenvios em causa, já que é em tudo equivalente o seu objecto, poupando-se, assim, tempo na tarefa decisória de duas causas na de uma só? E até ao nível dos órgãos jurisdicionais nacionais, não teria vantagens a remissão de uma só vez, isto é, num mesmo acto de reenvio, das questões dos dois casos em litígio que suscitaram dúvidas iguais, sensivelmente na mesma altura, visto até que, como se verifica pela data dos acórdãos do TJCE, não é difícil que se “encontrem” ao nível do Tribunal Comunitário, entenda-se, na mesma secção, ao mesmo tempo e sejam esclarecidos obedecendo aos mesmos parâmetros formais e técnicos?

Afigura-se que uma resposta positiva não seria, de todo em todo, impossível, dando pontos à cooperação jurisdicional.

Caso Solisnor Com a mesma data dos acórdãos do TJCE dos processos UCAL e Fricarnes, foi

proferido o acórdão do “caso Solisnor” – Estaleiros Navais, S.A.288, que, como aqueles, não trouxe novidades em matéria de interpretação do art.º 33º da Sexta Directiva289.

No reenvio prejudicial ordenado pelo STA no âmbito deste processo C-130/96 suscitou-se a questão de saber se o imposto de selo previsto no art.º 91º da Tabela Geral (entretanto revogado pelo art.º 3º do DL 223/91, de 18 de Junho) era admissível à luz do art. º 33º da Sexta Directiva, relativa ao IVA, ao que o Tribunal de Justiça veio responder que tal imposto não enfermava de qualquer ilegalidade sob o ponto de vista 288 Ac. TJCE, 17 de Setembro de 1997, Fazenda Pública v. Solisnor – Estaleiros Navais S.A., Proc. C-130/96, Col. pp. I-5053 ss.. 289 JO L 145, p.1.

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do Direito Comunitário. É que o referido preceito daquela Directiva, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à manutenção de uma imposição nacional que tenha as características de um imposto do selo cobrado sobre os contratos de empreitada e fornecimentos de material ou de quaisquer artigos de consumo, com exclusão de uma parte importante das operações económicas no Estado-Membro em causa290.

Aliás, nas condições particularmente estritas, ditadas pelas exigências de articulação entre o princípio da soberania fiscal dos Estados-Membros e a eficácia do sistema fiscal harmonizado em toda a Comunidade, são raros os casos em que os impostos se têm revelado incompatíveis com o art.º 33º da Sexta Directiva291.

Mas, apesar dos inúmeros casos já resolvidos jurisprudencialmente pelo TJCE sobre a mesma matéria, os órgãos jurisdicionais nacionais, também portugueses, continuam a questionar o Tribunal Comunitário e este, não desrespeitando o “acordo” de cooperação jurisdicional tem vindo a responder.

Caso Queijo ERU À semelhança do sucedido em 1995, voltaram a dar entrada no Tribunal de

Justiça, a 4 de Outubro de 1996, por despacho de 10 de Julho de 1996 do STA, duas questões prejudiciais destinadas a obter, no litígio pendente naquele órgão jurisdicional nacional entre Fábrica de Queijos ERU Portuguesa, Lda. e Subdirector-Geral das Alfândegas, uma decisão a título prejudicial292 sobre a interpretação do art.º 14º/2 do regulamento (CEE) n.º 1999/85 do Conselho, de 16 de Julho de 1985, relativo ao regime do aperfeiçoamento activo293 e dos art.ºs 27º e 28º do Regulamento (CEE) n.º 3677/86 do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, que estabelece certas disposições de execução do Regulamento n.º 1999/85294, conforme alteração dada pelo Regulamento (CEE) n.º 2281/88 da Comissão, de 25 de Julho de 1988295.

As questões suscitadas, neste processo C-325/96, a propósito de um pedido de prorrogação do prazo de reexportação de mercadorias submetidas ao regime de aperfeiçoamento activo foram analisadas em conjunto296 pelo Tribunal do Luxemburgo. Visando, no essencial, esclarecimentos do TJCE sobre se o prazo de seis meses estabelecido pelo art.º 28º do Regulamento 3677/86 é improrrogável ou se, pelo contrário, pode ser prorrogado pela aplicação da disposição genérica em matéria de prorrogação que consta do art.º 27º do referido Regulamento, as dúvidas do magistrado nacional mereceram resposta direccionada para o art.º 28º do Regulamento (CEE) n.º 3677/86 do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, dever efectivamente ser interpretado no sentido de (que) os prazos de reexportação nele fixados não podem ser prorrogados297, aliás, no sentido que vinha sendo defendido pela Eru Portuguesa298.

290 v. nota 288, c. n.º 20. 291 c. n.ºs 13 e 14 Ac. Solisnor; c. n.ºs 32 a 34 Ac. UCAL; c. n.ºs 36 a 38 Ac. Fricarnes, v., respectivamente, notas 288, 254 e 287. 292 Ac. TJCE 16 de Dezembro de 1997, Fábrica de Queijo ERU Portuguesa Lda. v. Subdirector-Geral das Alfândegas e Ministério Público, Proc. C-325/96, Col., pp. I-7249 ss.. 293 JO L 188, p. 1. 294 JO L 351, p. 1. 295 JO L 200, p. 20. 296 v. nota 292, c. n.º 15. 297 Idem, c. n.º 25. 298 Idem, v. c. n.º16.

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1997 Caso Pechim O despacho do Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 1997299 teve origem nas

questões prejudiciais de interpretação dos art.ºs 59º, 90º e 92º do Tratado de Roma que, no âmbito do mesmo litígio, pela segunda vez, o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa entendeu submeter à apreciação do Tribunal das Comunidades.

De facto, já o despacho de 13 de Março de 1996 ditara, no seio do processo C-326/95, a inadmissibilidade do reenvio despoletado pelo órgão jurisdicional nacional e foi com base nele que o magistrado do Tribunal reenviante português entendeu por bem proceder à correcção do modo como tinha anteriormente interrogado o Tribunal de Justiça e formular as mesmas questões, procurando esclarecer, ademais, a situação de facto e de direito, o quadro factual e regulamentar do litígio sub judice, assim como as razões da necessidade de resposta às perguntas, mediante a inclusão no seu despacho de reenvio da argumentação aduzida pelas partes no processo principal, já que havia sido a falta desses elementos que motivara o juiz comunitário a decidir-se pela inadmissibilidade do pedido de esclarecimentos.

Apesar do novo reenvio, o despacho de 30 de Junho veio reiterar a já declarada inadmissibilidade do pedido com fundamento no facto de ainda não se encontrar observada neste processo de reenvio C-66/97 a exigência de pronúncia, por parte do magistrado com dúvidas, sobre as razões da necessidade de obtenção de respostas do Tribunal de Justiça às questões e de tão-pouco ter sido clarificado o quadro regulamentar nacional aplicável ao caso concreto.

Neste enquadramento de uma contínua negação de qualquer resposta que possa contribuir para o avançar da solução para o caso concreto, não poderá deixar de se admitir que isso não deixará de funcionar como medida de entrave ao uso de um mecanismo, supostamente de cooperação, indispensável à manutenção da integridade da ordem jurídica europeia, como é o do reenvio. A paragem da instância nacional, implícita a um pedido de decisão prejudicial, que é em si mesma pouco favorável à celeridade da justiça, torna-se ainda mais gravosa pelas demoras que o “vai-vem” do processo de reenvio entre o Tribunal Nacional e o Tribunal Comunitário impõe. As incertezas das partes acentuam-se. E uma falta de motivação para promover o reenvio no tocante a Portugal apresentará naturalmente consequências não muito abonatórias, que sem dificuldades tocam a negação da justiça, já que se trata de um Estado-Membro não muito aberto a fazer uso deste processo e tendente a tornar letra morta “sempre que uma questão (...) seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie”.

Será propositado perguntar “estar-se-á a entrar na inflexão do modo tradicional de relacionamento do TJCE com os Tribunais Nacionais na utilização do mecanismo do reenvio?”, “onde está o tradicional lema do antes reformular que rejeitar sistematicamente posto em prática, reflexo de uma visão liberal do mecanismo?”, “estará em vez de um maior rigor no seu funcionamento a erguer-se um verdadeiro movimento de dificultação no acesso ao processo de reenvio?”, “a existir há já certo tempo esse rigor acrescido, a partir de que limite pode fazer reflectir-se junto dos órgãos jurisdicionais nacionais, e qual o estádio em que terá que ser travado para não ser 299 Desp. 30 de Junho de 1997, Banco de Fomento Exterior S.A. v. Amândio Maurício Martins Pechim, Maria da Luz Lima Barros Raposo Pechim e Confecções Têxteis de Vouzela Lda. (CTV), Proc. C-66/97, Col., pp. I-3757 ss., v. nota 262.

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beliscado o subjacente ao princípio da cooperação jurisdicional?”, “irá ao tradicional princípio de partilha de competências e de cooperação suceder-se o da hierarquia entre o órgão jurisdicional comunitário e os nacionais?”, “a cooperação, frequentemente substituída pela correcção abrirá caminho à subordinação e com ela o TJCE, tradicionalmente órgão superior do Direito Comunitário, acabará, enquanto Supremo Tribunal da União, como órgão supremo das jurisdições nacionais a lado do TPI nas vestes de Tribunal da União?”

O futuro o dirá.

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