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1 RENATA CARDOSO LAURIA O PAPEL DOS NOMES NA (DES)CONSTRUÇÃO DAS FÁBULAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Estudos de Linguagem. Subárea: Língua Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Rosane Santos Mauro Monnerat NITERÓI 2008

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RENATA CARDOSO LAURIA

O PAPEL DOS NOMES NA (DES)CONSTRUÇÃO DAS FÁBULAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração:

Estudos de Linguagem. Subárea: Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Rosane Santos Mauro Monnerat

NITERÓI

2008

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RENATA CARDOSO LAURIA

O PAPEL DOS NOMES NA (DES)CONSTRUÇÃO DAS FÁBULAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração:

Estudos de Linguagem. Subárea: Língua Portuguesa.

Aprovada em ____________________________

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Rosane Santos Mauro Monnerat – Orientadora – Universidade Federal Fluminense

Profª. Drª. Beatriz dos Santos Feres (UNIPLI)

Profª. Drª. Norimar Pasini Mesquita Júdice (UFF)

Profª. Drª. Maria Aparecida Lino Pauliukonis (UFRJ)

( Suplente )

Profª. Drª. Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)

( Suplente )

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e por sempre colocar pessoas tão especiais no meu caminho.

À querida professora e amiga Rosane Monnerat, pelo carinho com que me trata e por ser tão

dedicada e paciente. Um grande exemplo de profissional, sempre.

À minha família e aos meus amigos, pelo amor e compreensão infinitos.

Aos meus alunos, que são a razão maior de eu continuar buscando crescimento, como pessoa

e educadora.

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SINOPSE

Análise de algumas fábulas de Esopo e de Millôr

Fernandes, com base na Teoria Semiolingüística

de Análise do Discurso. Foco no papel

desempenhado pelos nomes na produção de

efeitos de sentido.

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SUMÁRIO

1. Apresentação e justificativa ............................................................................................. 07

2. Hipóteses e objetivos ......................................................................................................... 09

2.1 Hipóteses ........................................................................................................................... 09

2.2 Objetivos ........................................................................................................................... 09

2.2.1 Objetivos gerais .............................................................................................................. 09

2.2.2 Objetivos específicos ..................................................................................................... 09

3. Fundamentação teórica .................................................................................................... 11

3.1 Análise semiolingüística do discurso ................................................................................ 11

3.1.1 O processo de semiotização do mundo .......................................................................... 11

3.1.2 Os Sujeitos do Ato de Linguagem .................................................................................. 13

3.1.3 Sentido de língua e sentido de discurso: compreensão e interpretação ......................... 17

3.1.4 As competências dos Sujeitos no Ato de Linguagem ..................................................... 21

3.2 Modos de organização do discurso, gêneros e tipos textuais ............................................ 26

3.3 O modo narrativo de organização do discurso .................................................................. 31

3.4 A fábula ............................................................................................................................. 41

3.5 O texto e os fatores pragmáticos da textualidade .............................................................. 44

3.6 Coesão textual (ou conectividade seqüencial) .................................................................. 47

3.7 Coerência textual (ou conectividade conceptual) ............................................................. 51

3.7.1 As meta-regras de coerência .......................................................................................... 55

3.7.2 Figurativização e tematização ........................................................................................ 59

3.8 Classes de palavras ........................................................................................................... 61

3.9 Substantivo e adjetivo – visão tradicional ........................................................................ 64

3.9.1 Napoleão Mendes de Almeida ....................................................................................... 64

3.9.2 Carlos Henrique da Rocha Lima .................................................................................... 67

3.9.3 Celso Ferreira da Cunha & Luis Filipe Lindley Cintra .................................................. 68

3.9.4 Evanildo Bechara ........................................................................................................... 70

3.10 Substantivo e adjetivo – visões complementares ............................................................ 71

3.10.1 Mário Perini – A classe dos nominais .......................................................................... 72

3.10.2 Catherine Kerbrat-Orecchioni – Os subjetivemas “afetivo” e “avaliativo”-

axiologização e modalização .................................................................................................. 74

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3.10.3 Maria Helena de Moura Neves – Substantivos e adjetivos na gramática de usos da

língua portuguesa .................................................................................................................... 81

4. Procedimentos metodológicos .......................................................................................... 87

5. Análise do corpus ............................................................................................................... 88

5.1 “O leão, o asno e a raposa” / “O leão, o burro e o rato” ................................................... 88

5.2 “O velho e a morte” / “O miserável e a morte” ................................................................ 95

5.3 “A raposa cotó” / “O camelô acamelado” ....................................................................... 101

5.4 “A raposa e as uvas” ....................................................................................................... 107

5.5 “O lobo e o cordeiro” ...................................................................................................... 111

5.6 “A galinha dos ovos de ouro” ......................................................................................... 116

6. Aplicação pedagógica ...................................................................................................... 121

6.1 “O asno e o hortelão” / “O rei e o escravo” .................................................................... 121

6.2 “O lobo saciado e a ovelha” / “O lobo e o cordeiro” ...................................................... 123

6.3 “A velha e o médico” / “O escularápio” ......................................................................... 125

6.4 “O leão e o rato agradecido” / “Hierarquia” ................................................................... 128

6.5 Contabilizando os resultados .......................................................................................... 131

7. Conclusão ......................................................................................................................... 133

8. Referências ....................................................................................................................... 136

Resumo ................................................................................................................................. 142

Abstract ................................................................................................................................ 143

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1. Apresentação e justificativa

Em meu trabalho como professora de Língua Portuguesa, tenho buscado alternativas

para pôr em prática a interseção “texto/Gramática”, visto que o estudo das estruturas

gramaticais, quando feito de maneira reflexiva, propicia um maior domínio da Língua e,

conseqüentemente, facilita a compreensão e a produção de textos.

Os textos, por sua vez, são a matéria-prima de todo o trabalho com a língua. São o

ponto de partida, porque é neles que os alunos descobrirão os modos de construção textual e o

ponto de chegada, porque a partir da reflexão de textos produzidos pelos outros, o aluno será

capaz de produzir seus próprios textos.

Fazendo a ponte entre a gramática e o texto, portanto, o professor estará contribuindo

para um ensino mais consciente e produtivo dos conteúdos gramaticais.

Dessa forma, nesta pesquisa, pretende-se apresentar propostas de atividades que

englobem estudo do texto e da teoria gramatical, a fim de levar o aluno a perceber que ambos

são igualmente importantes. Afinal, o conhecimento das estruturas gramaticais da Língua

permite que se produzam textos mais coesos e coerentes, além de auxiliar o receptor no

processo de interpretação.

É conveniente ressaltar que tais atividades serão baseadas em fábulas, uma vez que são

textos curtos, de leitura agradável e que contribuem para a formação moral dos alunos. Os

conteúdos gramaticais abordados serão os nomes (substantivos e adjetivos), enfatizando-se o

papel que desempenham na coesão textual e, em específico, nas escolhas lexicais que

envolvem a coesão lexical.

Além disso, é importante enfatizar que as questões a serem propostas a partir da leitura

de fábulas também devem ser diversificadas e compatíveis com cada uma delas, pois não

basta que haja heterogeneidade na seleção dos textos; as tarefas apresentadas aos alunos

também precisam ser variadas, a fim de que seja possível explorar os aspectos mais

importantes para a interpretação.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) preconizam a diversidade de textos e

gêneros (o que demonstra a tentativa de se abandonar a crença na existência de um “gênero

prototípico” que possibilitaria o ensino de todos os gêneros em circulação social); acredita-se,

portanto, que o trabalho com fábulas seja pertinente, pois apesar de constituírem um material

riquíssimo, elas não são muito utilizadas em sala de aula.

Desse modo, é preciso que se incentive a inserção – no sentido de “acréscimo”, é

claro, não de “troca” ou de “exclusividade” – da fábula no âmbito escolar, visto que (como o

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texto publicitário, por exemplo) ela tem caráter lúdico e desperta um maior interesse no aluno,

o qual costuma demonstrar certa resistência à leitura, causada talvez pela não-variação de

gêneros textuais. E, como já se afirmou, a diversificação de gêneros é fundamental, já que

favorece o reconhecimento das características próprias de cada um desses gêneros, de modo

que se possa adequá- los às situações de formalidade ou informalidade.

Neste trabalho, a fundamentação teórica tratará, inicialmente, da Teoria

Semiolingüística de Análise do Discurso (desenvolvida por Patrick Charaudeau). Essa teoria

apresenta o processo de semiotização do mundo, a noção de “Sujeitos do Ato de Linguagem”

e a diferença entre “sentido de língua” e “sentido de discurso” (e, conseqüentemente, a

diferença entre “compreensão” e “interpretação”), além de discutir as competências dos

Sujeitos no Ato de Linguagem. Em seguida, abordar-se-á a questão dos modos de organização

do discurso, gêneros e tipos textuais, a partir da qual se classifica a fábula como um gênero

textual de tipo narrativo, que pode ser usado no domínio pedagógico. Haverá um

aprofundamento sobre o Modo Narrativo de organização e, depois, sobre o gênero “fábula”. O

próximo passo será conceituar “texto” e apresentar os fatores pragmáticos da textualidade, a

fim de abordar a coesão e a coerência, bem como os fatores responsáveis por cada uma delas.

Também serão apresentadas as “meta-regras de coerência” propostas por Charolles, as quais

serão aplicadas a uma fábula. Passar-se-á, então, ao estudo das classes de palavras, com foco

nos substantivos e nos adjetivos (abordados por diferentes estudiosos, sob duas perspectivas:

a tradicional e a discursiva).

Em seguida, apresentar-se-ão análises comparativas de alguns pares de fábulas, cujas

marcas de intertextualidade ganharão destaque, bem como os mecanismos de coesão lexical (a

reiteração e os diversos tipos de substituição) e os valores semânticos expressos por alguns

nomes. Além disso, serão estudados os papéis que esses nomes desempenham nos processos

de figurativização e de tematização, no que se refere à codificação lingüística.

Finalmente, serão propostas atividades didáticas, também formuladas a partir de pares

de fábulas. A primeira dessas atividades servirá como avaliação final das duas turmas de

primeiro ano do Ensino Médio – de aproximadamente trinta alunos cada (de quinze a dezoito

anos de idade) – com que trabalho em um colégio estadual situado em Niterói. A partir dos

resultados obtidos com a aplicação da tarefa, será possível chegar a algumas conclusões a

respeito dos tópicos abordados.

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2. Hipóteses e objetivos

2.1 Hipóteses

No estudo dos nomes por meio de fábulas, é de se esperar que o aluno reconheça, em

cada texto, as funções de identificação e de caracterização (desempenhadas, respectivamente,

pelos substantivos e pelos adjetivos), bem como o papel que essas palavras assumem na

coesão textual.

Além disso, supõe-se que as atividades propostas possam contribuir para a formação

moral dos alunos, visto que as fábulas costumam apresentar ensinamentos importantes

relacionados à ética, de maneira lúdica e numa linguagem acessível.

Supõe-se que a análise das fábulas revele o predomínio de figuras no desenvolvimento

da narrativa e de temas na moral. Afinal, é por meio das figuras que se alcança o nível

temático subjacente à mesma. Sugere-se, assim, a prevalência do texto figurativo no gênero

“fábula”.

2.2. Objetivos

A proposta de atividades (baseadas em fábulas) que abordam simultaneamente estudo

do texto e teoria gramatical tem diferentes objetivos:

2.2.1 Objetivos Gerais

• Elaborar atividades que ajudem a ampliar a competência discursiva do aluno;

• Capacitar o aluno para a realização de uma leitura crítica do mundo;

• Estimular a reflexão do aluno, bem como o desenvolvimento de auto-estima;

• Contribuir para a formação moral do aluno, por meio das mensagens subjacentes às

fábulas.

2.2.2 Objetivos Específicos

• Demonstrar que o trabalho com a teoria gramatical pode ser produtivo, desde que seja

realizado de maneira contextualizada e integrada ao texto;

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• Ajudar o aluno a identificar a moral de cada história (por meio do reconhecimento de

itens lexicais retomados, por exemplo);

• Levar o aluno a perceber o encadeamento lógico do texto e os mecanismos de coesão

textual;

• Incentivar a observação do papel dos substantivos no texto, que é nomear entidades;

• Estimular o reconhecimento, no texto, do valor expressivo dos adjetivos, cujo papel é

caracterizar atributos;

• Discutir os efeitos de sentido criados pelo uso de determinados nomes nas fábulas.

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3 Fundamentação teórica

A base para a construção da proposta a ser apresentada encontra-se na obra de diversos

autores e estudiosos, cujas reflexões não se pode deixar de comentar.

3.1 Análise semiolingüística do discurso

Um dos suportes teóricos desse trabalho é a Teoria Semiolingüística de Análise do

Discurso, desenvolvida por Patrick Charaudeau.

A Semiolingüística parte de uma visão psico-sóciolingüística, apoiando-se nas idéias

de Bakhtin, desenvolvidas principalmente em duas linhas de pesquisa, a francesa (Benveniste,

Greimas, Barthes) e a anglo-saxônica (Grice, Austin, Searle).

Charaudeau (2005) assim define a Semiolingüística:

Semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do sentido e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em diferentes sistemas semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito intencional, com um projeto de influência social, num determinado quadro de ação; lingüística para destacar a matéria principal da forma em questão – a das línguas naturais. Estas, por sua dupla articulação, pela particularidade combinatória de suas unidades (sintagmático-paradigmática em vários níveis: palavra, frase, texto), impõem um procedimento de semiotização do mundo diferente das outras linguagens. (p. 13)

3.1.1 O processo de semiotização do mundo

A semiotização do mundo envolve um duplo processo: o de transformação (sob a ação

de um sujeito falante, o “mundo a significar” é transformado em “mundo significado”) e o de

transação (esse “mundo significado” torna-se um objeto de troca com um outro sujeito, que

funciona como destinatário deste objeto).

O processo de transformação abrange quatro operações: identificação, qualificação,

ação e causação. A identificação consiste em conceituar e em nomear os seres,

transformando-os em “identidades nominais”, a fim de que se possa falar deles; a

qualificação, por sua vez, consiste em caracterizar esses seres, transformando-os em

“identidades descritivas”. A ação transforma os seres do mundo em “identidades narrativas”,

capazes de agir ou de sofrer ações, e a causação postula que a sucessão dos fatos do mundo é

explicada em “relações de causalidade”, ou seja, os seres agem em função de certos motivos.

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Já o processo de transação se baseia em quatro princípios: o de alteridade, o qual

fundamenta o aspecto contratual do ato comunicativo, pois o sujeito comunicante e o sujeito

interpretante devem reconhecer suas semelhanças (saberes compartilhados e motivações

comuns) e diferenças (o papel particular de cada um); o de pertinência, que exige que o ato de

linguagem seja adequado ao contexto e à finalidade; o de influência, segundo o qual o sujeito

comunicante tem como objetivo atingir seu parceiro, que pode reagir ou não ao estímulo; e o

de regulação, que assegura um mínimo de intercompreensão entre os envolvidos no ato de

linguagem, a fim de que este possa ser concluído com sucesso.

É essencial enfatizar que os processos de transformação e de transação são

interdependentes.

Com efeito, as operações de identificação, de qualificação, etc. do processo de transformação não se fazem livremente. Elas são efetuadas sob ‘liberdade vigiada’, sob o controle do processo de transação, segundo as diretivas deste último – o qual confere às operações uma orientação comunicativa, um sentido. (Charaudeau, op.cit., p. 16)

Dessa maneira, o duplo processo de semiotização do mundo, proposto por Patrick

Charaudeau, numa tentativa de demonstrar o valor semântico-discursivo (o sentido

comunicativo) existente em todos os fatos de linguagem, pode ser resumido no seguinte

esquema:

Fonte: Charaudeau (op. cit., p. 17)

O fato de existir uma variedade infinita de textos construídos com base no esquema

acima levou ao estudo de suas semelhanças e diferenças, uma vez que surgiu a necessidade de

classificar esses textos a partir de um critério reconhecidamente válido.

No entanto, antes que se possa tratar dos modos de organização discursiva, é

imprescindível que seja apresentada a definição de discurso e de alguns termos relacionados a

ele.

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3.1.2 Os Sujeitos do Ato de Linguagem

Segundo Charaudeau (2001b), o discurso é o lugar em que se encena a significação e

pode-se valer, de acordo com seus objetivos, de um ou de diversos códigos semiológicos.

Assim, o termo discurso relaciona-se ao fenômeno da encenação do Ato de

Linguagem. Essa encenação depende de um dispositivo que envolve dois circuitos:

• Circuito externo – Representa o local do fazer psicossocial (o situacional).

• Circuito interno – Representa o local da organização do dizer

Faz-se, conseqüentemente,

uma oposição entre encenação discursiva e encenação linguageira , na medida em que a segunda, incluindo o aspecto situacional do ato de linguagem, engloba a primeira. Note-se que, mesmo possuindo um dispositivo próprio que lhe confere autonomia, a encenação discursiva não se constrói independentemente da encenação linguageira . A encenação discursiva promoverá a realização de gêneros e de estratégias que não estão, obrigatoriamente, ligados às circunstâncias de produção. (Charaudeau, 2001b, p. 26)

O termo discurso também pode fazer referência a um conjunto de conhecimentos

partilhados, o qual é construído – quase sempre inconscientemente – pelos indivíduos que

fazem parte de um determinado grupo social. Os discursos sociais (ou imaginários sociais)

indicam como as práticas sociais são representadas em um certo contexto socio-cultural e

como essas práticas são racionalizadas em relação ao valor: popular/aristocrático,

sério/descontraído, polido/impolido etc.

A colocação dos sujeitos da linguagem no centro das teorias lingüísticas é uma postura

atual, que ainda não se tornou unânime. Na verdade, durante muito tempo (até que surgisse a

Teoria da Enunciação), considerava-se a língua como um objeto abstrato, e era preciso

delinear seus sistemas internos. O termo sujeito, por sua vez, tinha apenas uma realidade

gramatical e não existia como ser da enunciação. “Com a Teoria da Enunciação, a presença

dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis, são

levados em consideração.” (Charaudeau, 2001b, p. 27)

Quanto ao Ato de Linguagem, eis as hipóteses apresentadas pelo autor:

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• Ele é um fenômeno que associa o dizer (local da instância discursiva auto-definida

como uma encenação de que fazem parte seres de palavra) e o fazer (local da

instância situacional auto-definida pelo espaço ocupado pelos responsáveis por

este Ato de Linguagem). Essa realidade nos faz considerar que esse Ato é uma

totalidade composta de um circuito interno (dizer) e de um circuito externo

(fazer), que são indissociáveis.

• Todo Ato de Linguagem (em seu processo duplo de produção e de interpretação)

constitui uma interação.

• Cada Ato de Linguagem é o resultado da ação de seres psicossociais que

testemunham, mais ou menos conscientemente, as práticas sociais e as

representações imaginárias de uma comunidade (de que fazem parte). Logo, os

Atos de Linguagem não são totalmente conscientes; são subsumidos por um

determinado número de rituais sociolinguageiros.

Todas essas hipóteses definem um quadro teórico, que pode ser representado pelo

seguinte esquema:

Fazer-Situacional

(Charaudeau, 2001b, p. 29) Eis os termos usados no esquema e suas respectivas definições:

• Sujeitos – O sujeito pode ser visto como uma localidade de produção da

significação linguageira, para a qual essa significação volta, a fim de formá-lo.

Desse modo, o sujeito não é nem um indivíduo específico, nem um ser coletivo

Circuito Interno – Dizer

Circuito Externo – Fazer

Relação Contratual

EUe TUd EUc TUi

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determinado: é uma abstração, base da produção/interpretação da significação,

especificada conforme os papéis que ele assume no ato linguageiro. Pode-se falar

em: sujeito comunicante (EUc), sujeito enunciador (EUe), sujeito destinatário

(TUd) e sujeito interpretante (TUi).

• Parceiros – O termo refere-se à idéia de “pessoas associadas”, numa relação

recíproca de fazer-valer: “tais ‘pessoas’ se consideram, por isso mesmo, dignas

umas das outras (reconhecimento mútuo). Na interação linguageira, vemos dois

parceiros: o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), implicados

no jogo que lhes é proposto por uma relação contratual”. (Charaudeau, 2001b, p.

30) Essa relação não tem como base os estatutos sociais dos parceiros, fora da

situação linguageira, uma vez que depende do “desafio” formado no e pelo Ato de

Linguagem. Tal desafio traz uma expectativa (O Ato de Linguagem será bem

sucedido ou não?). Dessa forma, para que os parceiros existam, é necessário que

eles se reconheçam (e se construam) uns aos outros com os estatutos que

imaginam. Logo, a relação contratual baseia-se em componentes mais ou menos

objetivos, os quais se tornam pertinentes pelo jogo de expectativas que abrange o

ato linguageiro. Esses componentes podem ser de três tipos:

- Comunicacional – Trata-se do quadro físico da interação: os parceiros

encontram-se presentes? Eles podem se ver? São únicos ou vários? Eles

utilizam canal oral ou gráfico? etc.

- Psicossocial – Relacionado aos estatutos que os parceiros são capazes de

reconhecer um no outro: sexo, idade, posição hierárquica, categoria socio-

profissional, relação de parentesco, etc.

- Intencional – Considerado um conhecimento a priori que cada parceiro tem

ou constrói para si mesmo a respeito do outro, de forma imaginária,

apelando a saberes supostamente partilhados (intertextualidade).

O sujeito comunicante (EUc) é o detentor da iniciativa no processo de

produção. O dizer é encenado em função dos três componentes citados, por meio da

percepção que se tem do ritual linguageiro de que se participa. O componente

intencional promove a integração das hipóteses de saber que o sujeito comunicante

(EUc) é levado a construir sobre o sujeito interpretante (TUi).

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O sujeito interpretante (TUi), por sua vez, detém a iniciativa do processo de

interpretação. Ele estabelece uma interpretação (a qual pode ser muda ou se expressar

por uma interação qualquer) em função dos mesmos três componentes, a partir das

hipóteses de saber que elabora sobre o sujeito comunicante.

• Protagonistas – Na interação linguageira, encontram-se dois protagonistas: o

sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd), definidos como seres de

fala da encenação do dizer, que é produzida pelo sujeito comunicante (EUc) e

interpretada pelo sujeito interpretante (TUi). Os seres de fala (EUe e TUd)

assumem diversas faces, de acordo com os papéis que os parceiros do Ato de

Linguagem lhes atribuem em função da relação contratual.

É essencial que se diferenciem mais alguns termos:

• Ato de Linguagem – Como já se disse, ele faz referência à encenação linguageira

como um todo, com os dois circuitos: externo (o da relação contratual entre

parceiros) e interno (o da encenação do dizer, com os dois protagonistas).

• Ato de Fala – Não representa o todo do Ato de Linguagem, visto que se refere

exclusivamente à encenação do dizer, em que o sujeito enunciador e o sujeito

destinatário desempenham determinados papéis.

• Estratégia discursiva – Considera o efeito possível que se produz pelo

ajustamento (o jogo) entre o Ato de Fala (a encenação do dizer) e a relação

contratual do fazer.

É importante que se mostre, ainda que superficialmente, o sentido atribuído a outros

termos já mencionados:

• Locutor / Interlocutor – Referem-se aos parceiros EUc e TUi, quando se

encontram em situação de comunicação dialógica por meio do canal oral.

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• Scriptor / Leitor – Dizem respeito aos mesmos parceiros especificados acima,

sempre que a situação comunicativa for não-dialógica, quando o canal for gráfico

ou escritural.

3.1.3 Sentido de língua e sentido de discurso: compreensão e interpretação

De acordo com Charaudeau (1995), se considerarmos um texto fora das circunstâncias

em que foi produzido, ele será portador de um sentido plural, aberto; nesse caso, lida-se com

o discurso, em plena “discursividade”. No entanto, se levarmos em conta a situação que

produziu o texto, este continuará portando um sentido plural, mas agora filtrado, ordenado,

organizado pelo projeto de fala de seu criador; nessas circunstâncias, lida-se com um texto,

em plena “textualidade”.

O texto resulta de vários componentes de um processo denominado processo de

comunicação “e que consiste em uma transação de sentido entre dois parceiros ligados, em

parte, por uma mesma finalidade de ação. [...] Esse sentido é, portanto, o resultado de uma co-

construção e [...] só se realiza plenamente ao estar finalizado” 1. (Charaudeau, 1995, p. 10)

A definição apresentada possib ilita uma primeira simulação desse processo em que

cada parceiro desempenha sua própria função. De um lado, o sujeito comunicante (produtor-

diretor de sentido), que tem que significar, para determinadas finalidades, um mundo

oferecido a um outro, configurando-o (sentido-forma) por meio de um ato de discurso. De

outro lado, o sujeito interpretante (receptor-decodificador), que tem que reconhecer, para

finalidades específicas, um mundo já significado por um outro, decodificando-o (forma-

sentido) por meio de um ato de interpretação.

2

(Charaudeau, 1995, p.11)

Essa simulação refere-se aos quatro princípios em que se baseia o postulado de

intencionalidade: o princípio da alteridade, segundo o qual todo processo comunicativo é

construído por meio de uma interação (real, ou suposta) entre dois parceiros; o princípio da

1 et qui consiste en une transaction de sens entre deux partenaires liés, en partie, par une même finalité actionnelle. [...] Ce sens est le résultat d’une co-construction et qu’il ne se réalise pleinement que finalisé. 2 Monde Sujet Monde Siginifié Sujet Monde Intérpreté à signifier Communiquant (finalisé par Sc) Interprétant (finalisé par Si)

Mundo Sujeito Mundo Significado Sujeito Mundo Interpretado a significar Comunicante (finalizado por Sc) Interpretante (finalizado por Si)

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influência, que determina que cada parceiro busca transformar os pensamentos ou

comportamentos do outro; o princípio de regulação, que postula que cada um dos parceiros

deve administrar a troca de modo a torná- la possível; o princípio da pertinência, segundo o

qual deve haver um certo saber comum entre os parceiros, a fim de validar o processo de

comunicação.

Logo, o texto é uma configuração de sentido que se dá ao término desse processo. “Ele

se institui em objeto de transação num quadro de intencionalidade que determina uma

finalidade interacional; ele é, pois, pleno, de um lado, das ‘condições de realização’ desse

processo, as quais determinam, em parte, os dois parceiros (ça parle), de outra parte, do

‘projeto de fala’ (parole) próprio a cada um deles (je parle)”3. (Charaudeau, 1995, p. 11)

Numa segunda simulação, serão apresentadas as operações de construção do sentido a

que se entregam, cada um a seu modo, o sujeito comunicante e o sujeito interpretante.

Para que possa significar o mundo em direção ao outro, o sujeito comunicante precisa

intervir em duas esferas de organização do sentido: a da “tematização” e a da “relação”.

Na esfera da “tematização”, ele se envolve em diversos tipos de operações

linguageiras, as quais articulam sentido e formas: identificação (desempenhada pelos

substantivos), qualificação (desempenhada pelos adjetivos), representação dos fatos e das

ações (desempenhada pelos verbos e advérbios) e explicação (desempenhada pelos

operadores lógicos).

A fim de que a semiotização do mundo se realize, é preciso que o sujeito comunicante

mobilize o sentido das palavras e suas regras de combinação para construir um sentido literal,

explícito; ou seja, um sentido de língua medido a partir de critérios de coesão. Esse processo

ocorre num movimento centrípeto (que agrupa, aglutina) de estruturação do sentido, em que

se atribuem traços distintivos aos vocábulos, caracterizando-os e fornecendo a rede de

relações em que se inserem.

Além disso, é necessário que se construa um sentido que corresponda a sua

intencionalidade. Para que isso aconteça, é necessário que se siga um processo semântico-

cognitivo que consiste – num movimento centrífugo (que espalha) de estruturação do sentido

– em relacionar palavras e seqüências portadoras de sentidos de língua com outras palavras e

seqüências armazenadas na memória do sujeito. Esse processo (geralmente denominado

intertextualidade ou interdiscursividade) se dá por meio de inferências, visto que o sujeito

3 Il s’institue en objet de transaction dans un cadre d’intentionnalité qui determine une finalité interactionnelle, il est donc gros d’une part des "conditions de réalisation" de ce procesus, lesquelles surdéterminent, en partie les deux partenaires ("ça parle"), d’autre part du "projet de parole" propre a chacun d’eux ("je parle").

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comunicante faz a construção de um sentido indireto ou implícito, um sentido de discurso,

medido segundo critérios de coerência.

Na esfera da “relação”, o sujeito comunicante dedica-se a operações cujo papel é

significar simultaneamente a finalidade do ato de comunicação e a identidade dos

protagonistas da transação. Para que isso aconteça, devem ser fornecidos índices semiológicos

que recordem a situação sócio- institucional em que os parceiros se encontram, isto é, os

“cenários” (roteiros, scripts) de ação e as “identidades” sócio-comunicativas pelas quais eles

estão conectados e que fazem parte do contrato de comunicação; devem ser igualmente

fornecidos, por meio da organização enunciativa de seu discurso, os índices de sua

“identidade discursiva”.

A colocação em texto baseia-se não só na descrição do sentido, mas também na

problematização do mesmo em função das obrigações acarretadas pelo contrato de

comunicação e do projeto de fala peculiar ao sujeito comunicante, através de uma

determinada organização dos espaços de “tematização” e de “relação” que formará um

sentido de língua e um sentido de discurso.

Contrato de Comunicação 4

(Charaudeau, 1995, p.13)

A fim de que possa decodificar o texto que lhe é apresentado e tentar encontrar nele o

“mundo já significado” pelo sujeito comunicante com um objetivo que deveria ser

compartilhado pelos dois, o sujeito interpretante deve realizar operações diversas a partir do

“cotexto” (ou seja, a partir da percepção das marcas formais do texto):

De um lado, faz-se necessário reconhecer o sentido das palavras que é resultante de

uma categorização semântico-lingüística, reconhecer as “instruções de sentido” – ou

“moléculas sêmicas” – mais prováveis (o que constitui, na realidade, um cálculo de

probabilidade) que se unem aos vocábulos e cuja coesão contextual deverá possibilitar o

reconhecimento das operações de identificação, de qualificação etc., as quais lideraram a

formação do sentido da língua do mundo significado pelo sujeito comunicante. Esse processo

4 Contrat de communication Monde Sujet Monde Siginifié Sujet Monde Intérpreté à signifier Communiquant (finalisé par Sc) Interprétant (finalisé par Si)

Mundo Sujeito Mundo Significado Sujeito Mundo Interpretado a significar Comunicante (finalizado por Sc) Interpretante (finalizado por Si)

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de ordem categorial que culmina no reconhecimento do sentido de língua é denominado

“compreensão”.

Por outro lado, é preciso que se reconheça o sentido resultante de uma categorização

semântico-discursiva; em outras palavras, é necessário que se (re)construa o sentido indireto,

implícito a partir da intertextualidade que pode haver entre seqüências do texto que portam

sentido de língua e outras seqüências encontradas no cotexto. Essas operações se dão por

meio de inferências e possibilitam a (re)construção da “problematização” do sentido do

discurso encontrado no mundo significado pelo sujeito comunicante (a não ser que o sujeito

interpretante elabore uma finalização que lhe seja peculiar, havendo outra forma de mal

entendido). A verossimilhança do sentido do discurso é medida pelo grau de coerência do

trabalho inferencial. Logo, é necessário que se reconheça o quadro contratual em que está

inscrito o ato de comunicação e que superdetermina o objetivo deste, bem como a identidade

de seus parceiros, pois se relacionarmos as marcas do texto às características desse quadro, ele

passa a outras inferênc ias capazes de testemunhar a finalização do mundo significado

(estabelecimento de “objetivos comunicativos”) pelo sujeito comunicante.

É pelo grau de ajustamento do trabalho inferencial texto-quadro contratual que se medirá a justeza (quer dizer, a “validação”) do sentido do discurso.

Esse processo duplo (discursivo e situacional) de ordem inferencial que leva ao reconhecimento-construção do sentido de discurso problematizado e finalizado pode ser chamado “interpretação”. (Charaudeau, 1995., p.14) 5

O termo compreensão pode ser adotado num sentido amplo ou restrito.

No sentido amplo, faz menção ao conjunto do processo cognitivo que o sujeito realiza

ao se deparar com um texto; no sentido restrito, refere-se somente a uma parte desse processo,

o qual consiste no reconhecimento do sentido de língua encontrado num texto, a partir do qual

será possível construir vários outros sentidos inferenciais.

Desse modo, ninguém é capaz de atingir a totalidade significante de um texto. Afinal,

se considerarmos que todos os textos são plenos de potencialidades significantes, estas são

apenas parcialmente (e diferentemente) ativadas por cada leitor, visto que a tarefa de

decodificação não se resume ao reconhecimento do sentido da língua; exige que se construa

um sentido de discurso em função de competências para reconhecer-construir inferências –

umas provindas da colocação em relação intertextual; as outras, de colocações em relações

5 C’est au degré d’ajustement du travail inferentiel texte-cadre contractuel que se mesurera la justesse (c’est-à-dire la “validation”) du sens de discours. Ce double processus (discursif et situationnel) d’ordre inférentiel qui aboutit à la reconnaissance-construction du sens de discours problématisé et finalisé peut s’appeler "interprétation".

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situacionais. Essa atividade inferencial que encerra o ato de decodificação recebe o nome de

ato de interpretação.

Logo, pode-se concluir que o ato de compreensão limita-se ao reconhecimento do

sentido da língua, enquanto o ato de interpretação consiste em relacionar esse sentido de

língua às condições pragmáticas de cada ato de comunicação. Assim, o “mundo significado”

que o sujeito comunicante cria (e que se acha contido num texto) passa a ser para diversos

receptores possíveis, de um lado, um mundo comumente significado (“compreensão”) e, por

outro lado, um mundo diversamente significado (“interpretação”).

3.1.4 As competências dos Sujeitos no Ato de Linguagem

Segundo Charaudeau (2001a), o uso comum do termo competência é referente à

aptidão para se fazer algo com uma determinada finalidade (que prevê o resultado), a partir

dos conhecimentos que se tem e pelo manuseio de algum material. Assim, a competência

implica, ao mesmo tempo, “saber-fazer” e “conhecimento”. Além disso, o juízo de

competência envolve “fazer estritamente o necessário para (atingir um objetivo)”, e nada

mais.

Sob essa perspectiva, qualquer criação artística, qualquer atividade em que haja algo

de imponderável (invenção, imaginação) não pode ser julgada em termos de competência,

visto que esta pressupõe um ato de produção, construção (cujo objeto corresponde ao que se

espera) e, obviamente, não lida com o imprevisto.

No entanto, as ciências da linguagem apresentam uma outra noção de competência

(que se opõe radicalmente à do discurso cotidiano): não é um juízo, mas um mecanismo para

produzir linguagem – e construir sentidos.

Para que haja sentido, é preciso que o dito esteja vinculado ao conjunto das condições dentro das quais o dito está dito. Isso é o que, freqüentemente, em análise do discurso, tem-se denominado as condições de produção. As mesmas, não obstante, não são de todo iguais às condições de interpretação, já que se trata de dois sujeitos que se acham envolvidos em processos cognitivos distintos. (Charaudeau, 1995, p. 13) 6

A construção do sentido, mediante qualquer Ato de Linguagem, procede de um sujeito

que se dirige a outro sujeito, numa situação de intercâmbio específica, que determina

parcialmente a escolha dos recursos de linguagem que podem ser utilizados.

6 Para que haya sentido, es preciso que lo dicho esté vinculado con el conjunto de las condiciones dentro de las cuales lo dicho está dicho. Esto es lo que, a menudo, en análisis del discurso, se ha denominado las condiciones de producción. Las mismas, no obstante, no son del todo iguales a las condiciones de interpretación, ya que se trata de dos sujetos que se hallan envueltos en procesos cognitivos distintos.

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A partir daí, Charaudeau foi levado a elaborar um modelo que se dá em quatro níveis,

com quatro tipos de competência correspondentes para o sujeito: nível situacional e

competência situacional; nível semântico e competência semântica; nível lingüístico e

competência lingüística; nível discursivo e competência discursiva.

• Competência situacional – Exige que todo sujeito que se comunica seja capaz de

construir seu discurso em função da identidade dos parceiros (“Quem fala com

quem?”, em termos de status, papel social e colocação nas relações hierárquicas), da

finalidade do intercâmbio (“Estou aqui para dizer o quê? Com que intenção?”, em

termos de fins discursivos), do propósito (“De que maneira se estrutura aquilo ‘sobre o

que se fala’?”, em termos de temas – macro e micro-temas) e das circunstâncias

materiais (“O que determina as situações de intercâmbio orais/interlocutivas ou

escritas/monolocutivas?”, em termos das variantes que dão dimensões específicas à

situação global de comunicação). A competência situacional determina o que está em

jogo com um Ato de Linguagem, e isso é fundamental, já que não existe Ato de

Linguagem sem propósito.

• Competência semântica – Refere-se aos conhecimentos supostamente

compartilhados, à organização do saber. Trata dos critérios usados para estruturar a

tematização (saberes de discernimento e saberes de crença) de um Ato de Linguagem

(“Falar de quê?”, em termos de assunto).

- Saberes de discernimento – Originam-se de percepções e definições mais

ou menos objetivas em relação ao mundo. Percepções advindas de

experiências compartilhadas: fala-se, por exemplo, do nascer e do pôr do

sol; conhecimento científico: por exemplo, sabe-se que a Terra gira ao

redor do sol.

- Saberes de crença – Remetem aos sistemas de valores (mais ou menos

regrados) que ocorrem num mesmo grupo social, sustentam os juízos de

seus membros e, às vezes, sugerem sua razão de ser, em termos de

identidade (opiniões coletivas). Isso requer uma aptidão muito mais

complexa, uma vez que se baseia fundamentalmente na experiência social e

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que se expressa de maneira explícita ou implícita (por meio de inferências).

Vale ressaltar que

inferência é um processo cognitivo que gera uma informação semântica nova, a partir de uma informação semântica anterior, em um determinado contexto. (...) Não ocorre apenas quando o leitor estabelece elos lexicais, organiza redes conceituais no interior do texto, mas também quando o leitor busca, extratexto, informações e conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os “vazios” textuais. (Dell’Isola, 2001, p. 44)

Assim, o universo individual de cada leitor interfere na leitura, visto que

leva a inferências definidas por diversos contextos (psicológico, cultural,

situacional, social, dentre outros).

• Competência lingüística – Diz respeito à construção gramatical e ao emprego das

palavras do léxico. Dá-se por meio do uso apropriado dos vários tipos de construção

(como a voz ativa e a voz passiva, por exemplo), dos marcadores lógicos (os

conectores), do sistema pronominal, da anáfora, da modalidade e de tudo o que está

relacionado ao aparato formal da enunciação. Além disso, envolve o reconhecimento

e o uso adequado das palavras, em função do valor de identificação e da força

portadora de verdade que elas apresentam. Vale ressaltar que é nesse nível,

precisamente, que se constrói o texto. Este pode ser considerado o resultado de um Ato

de Linguagem produzido por um determinado sujeito numa situação de intercâmbio

social definida e portadora de uma forma peculiar. A competência lingüística está

relacionada a um “saber fazer” em termos de composição de texto: a composição do

texto em seu entorno (o paratextual), como a disposição de elementos alheios ao texto

(por exemplo, a diagramação das páginas de um periódico e a organização em seções e

sub-seções); a composição interna, por outro lado, diz respeito à organização em

partes, ao vínculo entre elas, bem como a todo o sistema de iterações e anáforas entre

uma e outra.

• Competência discursiva – Exige que cada sujeito que se comunica e interpreta seja

capaz de manipular (Eu) / reconhecer (Tu) as estratégias de encenação que se

depreendem das necessidades inerentes à situação. Essas estratégias remetem aos

Modos de Organização do Discurso: organização enunciativa (relativa às atitudes

enunciativas que o sujeito comunicante constrói em função dos elementos de

identificação e inter-relação da situação comunicativa, bem como em função da

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imagem de si mesmo que deseja transmitir e da que atribui ao outro), organização

descritiva (que consiste em saber nomear e qualificar os seres do mundo, de maneira

objetiva e/ou subjetiva), organização narrativa (referente à descrição das ações do

mundo em que os atores intervêm) e organização argumentativa (relativa às

seqüências causais que explicam os acontecimentos, bem como às provas do

verdadeiro, do falso ou do verossímil).

Vejamos, na página seguinte, um quadro sinóptico proposto por Charaudeau (2007)

sobre a competência linguageira:

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A COMPETÊNCIA LINGUAGEIRA

? A identidade

? A finalidade

? As circunstâncias materiais

? A organização do saber

(Imaginários sociodiscursivos)

? A construção gramatical

? O emprego das palavras do léxico

Os Modos de Organização

• Enunciativo

• Descritivo

• Narrativo

• Argumentativo

A competência situacional

A competência semântica

A competência lingüística

A competência discursiva

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3.2 Modos de organização do discurso, gêneros e tipos textuais

Visto que há diferentes classificações de gêneros e tipos textuais, serão apresentadas

as propostas de diferentes autores para a criação de uma tipologia textual. Em seguida, será

explicitada a tentativa feita por Maria Auxiliadora Bezerra (2005) de sistematizar essas

propostas.

Com base na teoria semiolingüística proposta por Charaudeau, Carneiro (2005) propõe

que os textos sejam classificados inicialmente em modos de organização discursiva

(descritivo, narrativo, dissertativo e conversacional) e em tipos textuais, “classificação

apoiada no conceito de função textual (Grosse, 1976): normativos (regulamentar), fáticos

(contatar), expressivos (automanifestar-se), apelativos (convencer), didáticos (ensinar),

instrucionais (instruir), informativos (informar) e preditivos (prever)”. (p.62) Todos esses

tipos estão relacionados à finalidade que assumem na interação social e podem realizar-se por

gêneros diferentes, como a carta, a notícia ou a receita, por exemplo.

Ieda de Oliveira (2003) também afirma que os textos estruturam-se de acordo com a

função que desempenham. Assim, a autora aponta a existência de quatro modos de

organização do discurso (os quais diferem um pouco dos apresentados por Agostinho

Carneiro): o narrativo (cuja função é contar ou relatar), o descritivo (que tem a função de

descrever), o argumentativo (em que se busca argumentar, a fim de persuadir o interlocutor)

e o enunciativo (cuja função de gerir os demais modos de organização é metadiscursiva).

O termo “tipo de texto”, por sua vez, refere-se a cada um dos diferentes ramos da

atividade humana (ex: literário, científico, jornalístico etc.).

A noção de tipo de texto, portanto, é inseparável da de situação comunicativa, dependendo, portanto, de aspectos extratextuais, ao passo que a de modos de organização discursiva é intratextual, o que não significa que não haja correlação entre cada um desses modos e determinadas circunstâncias comunicativas propensas a fazê-lo aparecer. O que cada um deles tem de essencial e típico, no entanto, são traços de natureza intratextual. (Oliveira, 2003, p. 42)

É importante salientar que os tipos de texto subdividem-se em “gêneros textuais”, os

quais podem ser segmentados em “subgêneros”. Assim, por exemplo, o tipo literário contém

o gênero poesia, o qual apresenta alguns subgêneros, como a ode e o soneto.

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No entanto, raramente um texto apresenta somente um dos modos de organização,

visto que estes costumam se misturar. O que ocorre, na verdade, é a predominância de um

deles em cada texto.

De acordo com Helênio Fonseca de Oliveira (2004), nas aulas de redação, os textos

eram tradicionalmente classificados como descritivos (“seqüências de aspectos”), narrativos

(“seqüências de fatos”) e dissertativos (“seqüências de opiniões”).

Entretanto, o termo “dissertação” parece ser problemático, pois é utilizado para

identificar uma variedade excessiva de textos. Além disso, para muitas pessoas, dissertar é

simplesmente expor um tema, escrever sobre ele. Percebe-se claramente que esse ponto de

vista diverge da definição já apresentada, segundo a qual a dissertação é uma seqüência de

opiniões que deve levar o destinatário a crer na veracidade de uma determinada tese.

Desse modo, alguns estudiosos passaram a fazer a distinção entre “dissertação

argumentativa” e “dissertação expositiva”, o que elevaria o número de “tipos” textuais para

quatro: descrição, narração, dissertação argumentativa (ou “texto argumentativo”) e

dissertação expositiva (ou “texto expositivo”). Aliás, alguns autores acrescentam a essa lista o

texto injuntivo (instrucional).

É evidente, no entanto, que essas categorias não dão conta da imensa variedade de “tipos” de textos orais e escritos existentes nas mais variadas culturas. [...] Uma tipologia textual necessita de no mínimo dois critérios – um estritamente textual (referente à estrutura do texto) e um situacional, que o associe com a situação comunicativa em que é produzido e interpretado. [...] Há, pois, certa correlação, mais estreita ou mais frouxa, conforme o caso, entre os tipos de estrutura textual e os gêneros textuais. [...] Os gêneros são fruto de um terceiro critério, que trata o texto como um produto cultural. (Oliveira, 2004, p. 184)

Segundo Marcuschi (2005), os gêneros textuais auxiliam na ordenação e estabilização

das atividades comunicativas cotidianas. Eles são fenômenos históricos, que surgem a partir

de novas necessidades e atividades sócio-culturais (advindas das inovações tecno lógicas, por

exemplo), integrando-se funcionalmente numa determinada cultura. Dessa forma, os gêneros

podem ser caracterizados não somente por suas particularidades estruturais e lingüísticas, mas

sobretudo pelas funções comunicativas, cognitivas e institucionais que desempenham.

Além disso, em alguns casos, o suporte ou o ambiente em que o texto se encontra

determinam seu gênero. Como ilustração, suponhamos que um rapaz copie um poema de

amor numa folha de papel. Ele pode simplesmente entregar o texto em forma de bilhete à

moça por quem está apaixonado ou, caso descubra o endereço eletrônico dela, pode enviá- lo

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em forma de e-mail. Comprova-se, assim, que um “mesmo texto” pode realmente variar de

gênero.

Vale ressaltar que nenhum gênero criado é completamente novo, visto que se baseia

em outro já existente. As mensagens eletrônicas, por exemplo, têm identidade própria, mas

fundamentam-se nos gêneros carta e bilhete.

É necessário também que se faça a distinção entre tipo textual e gênero textual, e que

se defina domínio discursivo.

Ainda de acordo com Marcuschi (op. cit.), a expressão tipo textual é utilizada para

designar “uma espécie de seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua

composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}”. (p. 22) Em

geral, os tipos textuais compreendem as seguintes categorias: narração, argumentação,

exposição, descrição, injunção.

A expressão gênero textual, por sua vez, é usada de maneira mais vaga para fazer

referência aos textos materializados encontrados em nosso cotidiano, “que apresentam

características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e

composição característica”. (Marcuschi, op. cit., p. 22) No entanto, muitos livros didáticos

ainda apresentam erroneamente a expressão “tipo de texto” em vez de “gênero de texto” em

afirmações como “O bilhete é um tipo de texto informal”. Há inúmeros gêneros, como:

telefonema, carta, bilhete, reportagem jornalística, piada, romance, fábula etc.

Usa-se, ainda, a expressão domínio discursivo para denominar “uma esfera ou

instância de produção discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem

discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos”. (Marcuschi, op. cit,

p. 23) Da perspectiva dos domínios, podemos falar, por exemplo, em discurso jurídico,

discurso jornalístico e discurso religioso, visto que envolvem atividades que não estão

relacionadas a um gênero específico, mas originam muitos deles.

Logo, a fábula pode ser considerada um gênero textual de tipo narrativo, que pode ser

utilizado no domínio pedagógico.

É necessário esclarecer que um gênero textual pode assumir a função de outro, o que

se denomina “intertextualidade inter-gêneros”. Também há casos em que se encontram várias

seqüências de tipos textuais diferentes num mesmo gênero (“heterogeneidade tipológica”). No

entanto, nada disso suprime o alto poder de organização das formas composicionais dos

gêneros, que são a representação de estruturas sociais recorrentes e peculiares de cada cultura.

Assim, “os gêneros textuais não são fruto de invenções individuais, mas formas socialmente

maturadas em práticas comunicativas [...] E há muitos gêneros produzidos de maneira

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sistemática e com grande incidência na vida diária, merecedores de nossa atenção”.

(Marcuschi, op.cit., p. 35)

Bezerra (2005), por sua vez, tentou sistematizar todas essas informações e conceitos

da seguinte maneira:

De acordo com os estudos voltados para o texto, há cinco tipos textuais (narrativo,

descritivo, argumentativo, explicativo e conversacional), cujas realizações empíricas

(romance, relatório, editorial, receita, telefonema, etc.) constituem os gêneros textuais.

Os estudos voltados ao discurso, por sua vez, consideram a existência de esferas

comunicativas (a esfera do relatar, a do expor, a do argumentar e a do narrar), dentro das

quais os gêneros discursivos se realizam (Ex.: autobiografia, relatório científico, carta do

leitor, fábula).

Logo, gênero (textual ou discursivo) representa a forma empírica do texto. A

utilização dos termos “tipo textual” e “gênero textual” envolve estrutura e uso, enquanto o

termo “gênero discursivo” envolve a interação entre interlocutores e a enunciação.

A fim de que seja possível comparar as diferentes tipologias apresentadas, observemos

parte do quadro proposto por Paulo (2006), que se encontra na próxima página:

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(p. 49)

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3.3 O modo narrativo de organização do discurso

Recebe o nome de “narrativa” o discurso verbal que remete a um mundo supostamente

real, material e espiritual, com espaço e tempo determinados. É importante enfatizar que só se

tem acesso a esse mundo por meio do discurso, uma vez que o autor tem o poder de escolher

as informações a serem dadas.

Há, pois, em simultâneo, distinção e ligação estreita entre, de um lado, o discurso verbal que nos instrui sobre esse mundo, a narração (também se diz, por vezes, a enunciação) e esse próprio mundo: lugares, tempo, personagens, ações, que chamaremos a narrativa propriamente dita, ou a “ficção” ou a diegese. Este último termo, que hoje se torna cada vez mais corrente, é tirado, com uma notória alteração do seu sentido, da distinção feita por Aristóteles entre mimesis (imitação direta, como se dá na representação teatral) e diegesis (imitação indireta, como se dá precisamente na narrativa). Mais exatamente, a diegese é o conjunto dos significados que são tidos como referentes a coisas existentes. (Lefebve, 1980, p.171)

Narração e diegese interligam-se e influenciam o caráter imaginal da narrativa. A

narração aponta a diegese, mas simultaneamente a disfarça e a denuncia, ao produzir

conotações e denotações.

Segundo Lefebve (op.cit.), a narrativa mostra-se paradoxal: por um lado, pretende ser

essencialmente “realista”, ao retratar o mundo e seus problemas sociais, políticos e morais;

por outro lado, sabe-se que esse “mundo representado” é fictício, o que lhe confere valor

literário.

A narrativa está baseada numa série de convenções que são reveladas no ponto de

vista que se adota sobre o real:

• A visão “por detrás” – Corresponde àquela do autor onisciente, que sabe mais que

as personagens de sua história e que informa o leitor sobre os sentimentos que elas

têm (ou sobre os que elas não experimentam). É comum que ele nos avise sobre o

que ocorrerá, mesmo que as personagens não o saibam.

• A visão “com” – Dá-se quando o autor conhece (ou finge conhecer) exatamente o

mesmo que as personagens.

• A visão “de fora” – Ocorre quando o autor finge que sabe menos que as

personagens e simplesmente descreve seu aspecto e seus atos. Suprime qualquer

tipo de análise psicológica e deixa de emitir juízos (ao menos explicitamente).

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De acordo com Labov (1972), pode-se definir “narrativa” como um método de

recapitulação de experiências passadas, em que a seqüência das orações produzidas

corresponde à seqüência temporal dos eventos vivenciados pelas personagens.

Segundo o autor, a estrutura narrativa é composta pelos seguintes elementos: resumo,

orientação, complicação, avaliação, resolução e coda:

• Resumo – Apesar de ser opcional, costuma aparecer no começo do texto,

sintetizando-o em uma ou duas frases.

• Orientação – É responsável por situar o interlocutor, uma vez que identifica o

tempo e o lugar da narrativa, bem como as personagens e a situação.

• Complicação – É o elemento fundamental da narrativa. Apresenta o desenrolar dos

fatos, ordenando-os temporalmente. Encerra-se no clímax, até que se inicie a

resolução.

• Avaliação – Incide sobre a complicação e pode tanto separá- la da resolução

quanto vir incorporada a esta. É possível também que a avaliação percorra toda a

narrativa. É o elemento que ressalta não só a forma como o narrador indica o

sentido do texto, mas também a importância de algumas unidades narrativas em

comparação a outras.

• Resolução – Apresenta o desfecho dos acontecimentos, indica o que ocorreu de

fato. As narrativas podem terminar na resolução ou trazer mais um elemento, a

coda.

• Coda – Traz a perspectiva verbal de novo ao presente, já que os acontecimentos

costumam ser narrados no passado.

Também existe a possibilidade de se considerar a narrativa como uma série de

respostas às seguintes perguntas, que estão subentendidas:

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- Resumo: “De que se tratava a narrativa?”

- Orientação: “Quem? Quando? O quê? Onde?”

- Complicação: “E o que aconteceu em seguida?”

- Avaliação: “Por que motivo se deu a narrativa?”

- Resolução: “O que ocorreu no final?”

Segundo Labov (op.cit.), a orientação, a avaliação e a coda até podem ser omitidas

numa narrativa, enquanto a complicação e a resolução são elementos essenciais.

É importante esclarecer que nem sempre é fácil aplicar a estrutura proposta por Labov

aos textos, já que a delimitação dos elementos entre uma fase e outra é tênue.

Analisemos também o esquema narrativo proposto por Fiorin & Savioli (1997), em

que a narrativa subdivide-se em quatro fases: a manipulação, a competência, a performance

e a sanção, partes estas mais ou menos correspondentes às apresentadas por Labov.

• Manipulação – Uma personagem (isolada ou coletiva, animada ou inanimada)

induz outra a querer e/ou dever fazer algo. Também pode ser que uma personagem

imponha a si mesma uma obrigação.

• Competência – A personagem que realizará a transformação central da narrativa

adquire saber(es) e poder(es).

• Performance – É quando ocorre a transformação central da narrativa e se instaura

uma relação de perda e ganho: quando uma personagem ganha algo, outra perde.

• Sanção – A personagem que realizou a transformação central da narrativa recebe

castigo ou recompensa por seus atos.

Apesar de também não ter uma aplicação simples, a proposta de Fiorin & Savioli

(op.cit.) mostra-se mais flexível e própria para uso pedagógico, visto que não se baseia na

sucessão temporal, mas seus elementos pressupõem-se logicamente:

Para fazer alguma coisa, o sujeito precisa querer e/ou dever fazê-la

(manipulação) e saber e poder fazê-la (competência). Depois de fazê-la, o seu fazer é avaliado (sanção). Quando falta um dos componentes, podemos reconstruí-lo. Assim, se se diz que Maria ganhou na loteria, não é preciso narrar que ela tinha um cartão (poder ganhar). Isso é pressuposto. (p. 58)

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Vejamos agora como o esquema proposto por Fiorin & Savioli (op.cit.) – acrescido da

moral, que é lembrada por alguns estudiosos (como Bronckart, 1999) e típica das fábulas – se

aplica à seguinte narrativa:

O corvo e o espantalho

Certa manhã de abril, num grande milharal, um corvo assíduo no roubo do milho decidiu que

perdera o medo de um espantalho que o assustava todas as manhãs. Armou-se de coragem e passou a bicá-lo, sem que houvesse qualquer reação do boneco. Estraçalhou-o até o final da manhã e comeu o milho que queria. No dia seguinte, procurou o espantalho para enganá-lo e comer o milho, ou para bicá-lo, mas não o encontrou. O vazio tomou conta de seus olhos.

Moral da história: Muitas vezes não podemos viver sem a presença daquele que nos espanta.

(Gazolla, 2005, p. 101)

Manipulação: Certa manhã de abril, num grande milharal, um corvo assíduo no roubo do milho decidiu que perdera o medo de um espantalho que o assustava todas as manhãs. Competência: Armou-se de coragem Performance: e passou a bicá-lo, sem que houvesse qualquer reação do boneco. Estraçalhou-o até o final da manhã e comeu o milho que queria. Sanção: No dia seguinte, procurou o espantalho para enganá-lo e comer o milho, ou para bicá-lo, mas não o encontrou. O vazio tomou conta de seus olhos. Moral: Moral da história: Muitas vezes não podemos viver sem a presença daquele que nos espanta.

De acordo com Charaudeau (1992), tem-se estudado o modo de organização

Narrativo há muito tempo e por diversos ângulos, visto que ele ainda é o principal objeto de

ensino de uma longa tradição escolar, a qual insiste em tratá- lo basicamente de três formas:

• por uma prática de exercícios que se resume à produção de textos escritos em

situações comunicativas não-autênticas;

• por uma classificação de textos – denominados narrativos – utilizada pelos gêneros

literários (que se baseiam em critérios de diferentes ordens, tanto de forma quanto de

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conteúdo), o que produz a falsa idéia de que há homogeneidade num texto e limita a

análise do seu modo de organização a partir dos critérios de gênero;

• por uma pedagogia da explicação de texto, a qual cria um discurso argumentativo

sobre narrativas literárias (ou quaisquer outras formas literárias). Essa atividade exige

qualidades de estilo (quase literárias). Além disso, a explicação deve estender-se,

simultaneamente, ao conteúdo e à forma. Logo, misturam-se tipos de atividades

discursivas, devido à situação específica de cada exercício. Afinal, a escola é

geralmente centrada na língua, não na situação comunicativa.

Também é importante ressaltar que essa mesma tradição escolar parece não fazer

distinção entre termos como “narração”, “narrativa” e “história”, utilizando-os para fazer

referência à exposição de uma seqüência de acontecimentos (reais ou imaginários) inseridos

num determinado contexto.

Desse modo, foi escolhido para uso no presente trabalho o termo “modo de

organização Narrativo”, que designa uma sucessão de ações que se influenciam mutuamente,

transformando-se num encadeamento progressivo.

No entanto, antes de descrever os componentes da ordem narrativa, é preciso que se

discuta o que é contar.

Contar não é apenas descrever uma série de acontecimentos ou fatos, como se

encontra nos dicionários, pois é possível que essa descrição não constitua uma narrativa, a

qual exige um “contador” (que poderá receber o nome de narrador, escritor, testemunha etc.),

uma “intencionalidade” (desejo de transmitir algo – uma espécie de representação da

experiência do mundo – a alguém), um “destinatário” (que se poderá denominar leitor,

ouvinte, espectador etc.) e alguma coisa que, de certa forma, reúna todos os fatores que darão

um sentido próprio a sua narrativa. Ou seja, toda narrativa requer um contexto.

É fundamental que se esclareça o seguinte:

A narrativa é uma totalidade, o narrativo um de seus componentes. A

narrativa corresponde à finalidade do “que é contar?”, e para fazê-lo descreve, ao mesmo tempo, ações e qualificações, isto é, utiliza os modos de organização do discurso que são o Narrativo e o Descritivo . É preciso, então, não confundir narrativa e modo Narrativo (ou Descritivo), a primeira englobando os dois outros. (Charaudeau, 1992, p. 715)

Descritivo e Narrativo diferenciam-se pela forma de se ver o mundo e pelos papéis

desempenhados pelo sujeito que descreve ou narra.

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Enquanto o Descritivo nos leva a descobrir um mundo que é somente mostrado (de

maneira imutável), o Narrativo, por sua vez, faz-nos descobrir um mundo constituído no

desenrolar de uma sucessão de ações que se influenciam mutuamente, transformando-se num

encadeamento progressivo.

Assim, o sujeito que descreve assume os papéis de observador (que percebe os

detalhes), de sábio (capaz de fazer a identificação, a nomeação e a classificação dos

elementos e suas propriedades) e de alguém que descreve (capaz de mostrar e evocar),

enquanto o sujeito que narra funciona como uma testemunha que participa (ainda que apenas

na ficção) dessas ações, sob o efeito das quais os seres passam por transformações.

Pode-se dizer que o Modo de Organização Narrativo se caracteriza por uma dupla articulação:

- A construção de uma sucessão de ações segundo uma lógica (lógica de ação) que vai constituir a trama de uma história (em sentido restrito); chamar-se-á: organização da lógica narrativa .

- A realização de uma representação narrativa, isto é, daquilo que faz com que esta história, e sua organização de ações se torne um universo narrado; chamar-se-á: organização do processo de narração. (Charaudeau, 1992, p. 716)

São três os componentes da lógica narrativa, que estão interligados: os actantes, os

quais desempenham um determinado número de “papéis” ligados à ação a que estão sujeitos;

os processos, que interligam os actantes, atribuindo uma “orientação funcional” à sua ação; as

seqüências, cuja função é integrar actantes e processos numa finalidade narrativa, de acordo

com determinados “princípios de organização”: princípio de coerência, princípio de

intencionalidade, princípio de encadeamento e princípio de localização.

Segundo o princípio de coerência, em um ponto qualquer da seqüência, deve ser

possível compreender uma ação a partir de sua dupla função de fechamento/abertura. Ou seja,

essa ação cumpre simultaneamente duas tarefas: marca a realização de um processo, ao

apresentar um resultado positivo ou negativo de uma conduta iniciada na abertura, e

possibilita o desenvolvimento de um novo processo. A fim de exemplificação, observemos a

fábula “A macaca”, de Alfonso Francia (adaptada de um texto de F. M. de Samaniego), na

qual se destacou uma ação com função de fechamento/abertura:

Era uma vez uma macaca que andava saltando de galho em galho. Enquanto saltava, viu uma bela nogueira carregada de nozes. Colheu uma noz e mordeu-a. Como a casca era amarga, a macaca jogou a noz fora e ficou sem provar o delicioso alimento que havia dentro.

Na vida acontece o mesmo. Existem pessoas que começam a fazer uma atividade: aprender uma profissão, tocar um instrumento, começar uma escultura, etc. Essas pessoas, quando tropeçam nas primeiras dificuldades, abandonam a tarefa que iniciaram e, assim, ficam sem saborear as satisfações que teriam tido com o trabalho iniciado, uma vez que teriam superado as dificuldades do começo.

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(Francia, 2005a, pp. 27-28) De acordo com o princípio de intencionalidade, a motivação, que se encontra na

“intenção” do sujeito, é o que atribui sentido narrativo a uma seqüência de ações, uma vez que

lhe dá uma finalidade. Essa motivação marca o momento em que o sujeito toma consciência

da situação de falta em que se encontra, dando início a um processo de busca do

preenchimento dessa falta, no qual pode ter êxito ou fracassar. Eis um exemplo, destacado na

fábula “A raposa e o dragão”, de Esopo (2004):

Havia uma figueira no caminho. E uma raposa, tendo visto um dragão dormindo, invejou o seu tamanho. Querendo ficar igual a ele, deitou-se ao seu lado e tentou distender-se, até que, exagerando em seu esforço, acabou por romper-se.

Moral: Assim sofrem os que desejam competir com os mais fortes; com efeito, eles próprios se prejudicam mais rapidamente do que conseguem atingi-los. (p. 26)

O princípio de encadeamento, por sua vez, determina o seguinte: ao se combinarem os

princípios de coerência e de intencionalidade, são produzidas seqüências de extensão variável,

cujos modos de encadeamento podem ser quatro, a saber, sucessão, paralelismo, simetria e

encaixe:

- Sucessão – As seqüências são organizadas de modo linear e consecutivo; cada uma

delas é o motivo que desencadeia a próxima. A fim de exemplificação, considere-se a

seguinte fábula de Esopo, cujas seqüências em sucessão foram marcadas:

O gato e o galo

Um gato, que tinha apanhado um galo, buscava um pretexto para comê-lo.(1) Acusou-o,

então, de importunar os homens, pois suas cantorias durante a noite não os deixavam dormir. (2) O galo respondeu que assim fazia para lhes ser útil, porque os acordava para os trabalhos habituais. (3) O gato acusou-o, então, de ultrajar a natureza, acasalando-se com a mãe e as irmãs. (4) O galo respondeu que só fazia isso no interesse dos donos, porque assim elas botavam ovos em quantidade. (5) E o gato disse então: “Ora, talvez tu apresentes muitos e bons argumentos, mas eu não deixarei de comer-te”. E o devorou. (6)

Moral: A fábula mostra que uma natureza má, resolvida a praticar o mal, mesmo que não

encontre um bom pretexto, o faz abertamente. (Esopo, 2006, p. 22)

- Paralelismo - Cada seqüência é comandada por um actante-agente diferente e

desenvolve-se de modo autônomo, sem que haja uma relação de causa e efeito. Observemos o

exemplo, em que se numeraram algumas seqüências e se sublinharam os respectivos actantes:

O morcego, a sarça e a gaivota

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O morcego, a sarça e a gaivota, tendo fundado uma sociedade, resolveram dedicar-se à vida comercial. Assim, tendo o morcego tomado emprestado o dinheiro necessário ao negócio (1), a sarça encarregou-se dos tecidos (2), e a gaivota, terceira associada, tomou a seu cargo o cobre. (3) E fizeram-se ao mar. Entretanto, sobreveio uma violenta tempestade e, tendo o navio soçobrado, os três sócios perderam tudo, porém alcançaram a terra. Certamente por isso, desde aquela época, a gaivota permanece sempre alerta nas praias, não tenha o mar lançado o seu cobre em algum lugar...; por sua vez o morcego, temendo os seus credores, não se mostra de dia, e somente de noite sai em busca de alimento; por seu turno, a sarça agarra-se à roupa dos passantes, tentando reconhecer ali o seu patrimônio.

Moral: Esta fábula mostra que voltamos mais tarde às coisas pelas quais já tivemos algum interesse.

(Esopo, 2004 , p. 140)

- Simetria - Duas seqüências, cada qual regida por seu actante-agente, são

desenvolvidas de tal maneira que a realização positiva de uma (processo de melhoramento)

provoca, ao mesmo tempo, a realização negativa da outra (processo de degradação).

Vejamos, como exemplo, um trecho da fábula “O lobo e a raposa”, de La Fontaine (2005), em

que a raposa, presa no fundo de um poço, convence o lobo a descer até lá num cântaro

(processo de degradação), a fim de que ela própria fosse transportada para o alto (processo de

melhoramento):

Desça num cântaro que eu lá coloquei rapidamente. Embora por menos mal que pudesse ela enfeitasse a história, O lobo fosse um tolo de nela acreditar; Ele desceu, e seu peso transportando a outra parte. Reguindou para o alto comadre raposa. (p. 263)

- Encaixe - Pode haver microseqüências numa seqüência mais ampla, a fim de detalhar

determinados aspectos desta. Observemos a seguinte fábula, em que foram destacadas

algumas microseqüências:

Releitura da fábula "A Cigarra e a Formiga", de La Fontaine

Era uma vez uma formiguinha e uma cigarra que eram muito amigas. Durante todo o Outono, a formiguinha trabalhou sem parar, a fim de armazenar comida para

o período de Inverno. Não aproveitou nada do Sol, da brisa suave do fim da tarde, dos lindos pôr-do-sol do Outono nem da conversa com as amigas. Só vivia para o trabalho!

Enquanto isso, a cigarra não desperdiçou um minuto sequer: cantou durante todo o Outono, dançou, aproveitou os tempos livres, sem se preocupar muito com o Inverno que estava a chegar.

Então, passados alguns dias, começou a arrefecer. Era o Inverno que estava a bater à porta. A formiguinha, exausta, entrou na sua singela e aconchegante toca, repleta de comida.

Entretanto, alguém chamava pelo seu nome do lado de fora da toca e, quando abriu a porta, ficou surpresa: era a sua amiga cigarra, vestida com um maravilhoso casaco de lã e com uma mala e uma guitarra nas mãos.

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- Olá, amiga! - cumprimentou a cigarra. - Vou passar o Inverno em Paris. Será que você podia cuidar da minha toca?

- Claro! Mas o que aconteceu para você ir para Paris? A cigarra respondeu-lhe: - Imagine você que, na semana passada, eu estava a cantar num restaurante e um produtor

gostou tanto da minha voz que fechei um contrato de seis meses para fazer espetáculos em Paris. A propósito, amiga, deseja algo de lá?

A formiguinha respondeu: - Desejo, sim: se você encontrar por lá um tal de La Fontaine, o que escreveu a nossa história,

mande-o esfregar-se em urtigas... Moral da história: Aproveite a sua vida, saiba dosear trabalho e lazer, pois trabalho

em demasia só traz benefício nas fábulas do La Fontaine. (Texto retirado do site: http://web.educom.pt/escolovar/inverno_cigarra_formiga2.htm)

Finalmente, de acordo com o princípio de localização, as seqüências precisam ser

situadas no Espaço e no Tempo, o que pode influenciar o princípio de coerência nas aberturas

e nos fechamentos das seqüências. Observemos, na fábula a seguir, marcas de Espaço e de

Tempo:

O corvo e o espantalho

Certa manhã de abril, num grande milharal, um corvo assíduo no roubo do milho decidiu que perdera o medo de um espantalho que o assustava todas as manhãs. Armou-se de coragem e passou a bicá-lo, sem que houvesse qualquer reação do boneco. Estraçalhou-o até o final da manhã e comeu o milho que queria. No dia seguinte, procurou o espantalho para enganá-lo e comer o milho, ou para bicá-lo, mas não o encontrou. O vazio tomou conta de seus olhos.

Moral da história: Muitas vezes não podemos viver sem a presença daquele que nos espanta. (Gazolla, 2005, p. 101)

Quanto aos componentes do processo de narração, é preciso que se façam alguns

esclarecimentos:

Quem conta (uma história) não é quem escreve (um livro) nem quem é (na vida). Dito de outra forma, mesmo se aparentemente se trata de uma pessoa, como na autobiografia, não se pode confundir o indivíduo , ser psicológico e social, o autor, ser que escreveu, por exemplo, um romance, e o narrador, “ser de papel” que conta uma história.

A mesma observação pode ser feita a propósito do leitor: não se pode confundir tal indivíduo com o leitor real em que ele se torna e ao qual é pedido um mínimo de competência de leitura; nem este leitor real com o leitor, “ser de papel”, que se acha implicado na história como destinatário de uma história contada por um narrador. (Charaudeau, 1992, p. 40)

Logo, toda narrativa depende da articulação de dois espaços de significação: o espaço

extratextual (em que estão o autor e o leitor “reais”, cujo objeto de troca vem a ser o texto

falado ou escrito) e o espaço intratextual (em que se encontram o narrador e o leitor-

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destinatário, seres “de papel”, de identidade discursiva, que têm como objeto de troca uma

forma particular de texto).

Também é importante que se especifiquem tanto a relação instaurada entre narrador e

história contada quanto a relação estabelecida entre narrador e personagem(ns).

Assim, pode ser que o narrador conte a história de um outro (em ele) ou conte sua

própria história (em eu). É possível também que haja muitos narradores.

Quando conta a história de um outro, em terceira pessoa, o narrador pode utilizar o

tempo passado (se desejar um efeito de distanciamento) ou o tempo presente (se quiser um

efeito de atualização).

Segundo Weinrich (1968), o mundo narrado e o mundo comentado são caracterizados,

principalmente, pelos tempos verbais empregados no discurso. É óbvio que “tempo verbal”

não tem, nesse sentido, relação alguma com o tempo em si, mas equivale ao “comportamento

do falante articulado nos dois grupos temporais do mundo comentado e do mundo narrado”.

(p. 201).

Dessa maneira, os tempos do mundo narrado (pretérito perfeito simples, pretérito

imperfeito, pretérito mais que perfeito e futuro do pretérito) e os do mundo comentado

(presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente, futuro do presente composto)

funcionam como marcas lingüísticas de que o conteúdo da comunicação em que se inserem

deve ser entendido, respectivamente, como um relato ou como um comentário.

Há, geralmente, uma concordância entre os tempos da narrativa e os tempos do relato.

Quando essa concordância é rompida, tem-se um caso de metáfora temporal, ou seja, a

presença inesperada de um determinado grupo de tempos que dá ao texto um tom expressivo

diferenciado. É o que acontece, por exemplo, quando, num texto jornalístico claramente

comentador (formado à base do presente e do futuro do presente), usa-se um futuro do

pretérito, tempo do mundo narrado que rompe com o padrão dos tempos já utilizados. Nesse

caso, o futuro do pretérito passa a ter um valor expressivo de cautela, o que dá ao discurso um

aspecto de descomprometimento por parte do autor em relação ao fato relatado e limita a

veracidade da notícia.

Assim, parece clara a importância do emprego apropriado dos tempos verbais como

um aspecto gramatical capaz de indicar as intenções do locutor e, conseqüentemente, a

interpretação que se deve dar a um texto.

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O narrador pode ser totalmente exterior, quando não é personagem da história que

conta, ou pode ser testemunha dos acontecimentos da história, quando é personagem

secundário e conta o que acontece com outros. Ao contar sua própria história, em primeira

pessoa, o narrador pode encaixar na história principal, cujo herói é ele mesmo, histórias

relativas a outros personagens. Quando há muitos narradores, diferentes histórias se

entrelaçam, cada uma com seu próprio narrador. Nesse caso, aparece um narrador primário

que prevalece no texto, no qual se encaixa(m) a(s) história(s) de um ou mais narrador(es)

secundário(s).

Além disso, o narrador pode assumir dois pontos de vista: externo e interno, de acordo

com a origem de seu saber sobre as personagens.

Se seu saber lhe vem de uma simples observação da aparência física da

personagem, falar-se-á de ponto de vista externo, objetivo. Se, para descrever a personagem, o narrador apela para uma interpretação,

para suposições sobre o que sente ou pensa esta, falar-se-á então de ponto de vista interno, subjetivo. (Charaudeau, 1992, p.62)

O ponto de vista externo diz respeito não só à aparência física da personagem, mas

também aos seus fatos e gestos visíveis, ou seja, tudo o que poderia ser percebido ou

verificado por qualquer sujeito que estivesse no lugar do narrador. O ponto de vista interno,

por outro lado, trata da interioridade da personagem, de seus pensamentos, sentimentos e

impulsos interiores (dos quais ela pode, ou não, ter conhecimento), que dependem das

decisões do narrador e de como cada personagem vê a si mesma.

3.4 A fábula

Sabe-se que as fábulas constituem um gênero popular, já que retratam idéias morais do

cidadão comum. Logo, apresentam linguagem coloquial.

Nas palavras de Sousa (2003),

A fábula costuma ser conceituada como uma breve narrativa alegórica, de caráter individual, moralizante e didático, independente de qualquer ligação com o sobrenatural. [...] Seres irracionais e, às vezes, até mesmo coisas e objetos, contracenam entre si, ou com pessoas, ou com deuses mitológicos. Tais cenas simbolizam situações, comportamentos, interesses, paixões e sentimentos, humanos ou não, que nem sempre podem ser focalizados explicitamente. (pp. XXX e XXXI)

Num dos capítulos introdutórios do livro “A tradição da fábula: de Esopo a La

Fontaine”, Maria Celeste Consolin Dezotti afirma que diferentes personagens utilizam

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narrativas para comunicar mensagens. Essas narrativas são interpretadas a partir de

orientações indicadas na própria instância de enunciação ou por meio de textos

metalingüísticos que podem preceder uma narrativa (promítio) ou segui- la (epimítio).

Também há fábulas sem orientação alguma, as quais podem ser desvendadas a partir de

indícios textuais ou situacionais.

Interpretar uma fábula é, pois, como interpretar um enigma. Aliás, não é por acaso que os antigos gregos, muito antes de rotularem a fábula de mythos, denominaram-na ainos, um cognato de ainigma , de que a nossa palavra “enigma” é mera transliteração; posteriormente, mesmo a fábula esópica chegou a ser nomeada de Aisopeion ainigma , o que deixa entrever sua condição alegórica, cujo sentido se capta a partir de um esforço interpretativo. (Dezotti, 2003., pp.22 e 23)

A fábula passa da narrativa à lição; o ouvinte, do prazer à reflexão. Um movimento

semelhante direciona o enigma na direção de uma solução e o ouvinte (seduzido pelo charme

da alegoria) na direção das boas soluções que lhe sugere a moral enfim decifrada. A narrativa

opera uma sedução; a moral, uma convicção. E é o deslizamento da narrativa à moral que

opera a conversão da sedução em convicção na alma do leitor. A fábula é um gênero que, a

princípio e de fato, procede da combinação entre o artifício agradável de uma ficção pouco

verossímil e a aspiração a um ensinamento muito verdadeiro.

Dezotti (op.cit.) afirma que “fábula é um ato de fala que se realiza por meio de uma

narrativa. [...] O narrar está a serviço dos mais variados atos de fala: mostrar, censurar,

recomendar, aconselhar, exortar, etc. Essa característica formal, muito simples, aliás, pode ser

uma explicação para a popularidade e a resistência desse gênero através dos tempos”. (p. 22)

Proveniente do conto popular e com o propósito de exaltar a moralidade, a fábula é um

gênero literário cuja evolução divide-se em três períodos.

O primeiro deles é o das fábulas orientais, que foram levadas da Índia para a China, o

Tibet e a Pérsia, e culminaram na Grécia com Esopo. No Oriente, a fábula foi utilizada por

muito tempo como veículo de doutrinação budista. O Pantchatantra, redigido em sânscrito,

alcançou o Ocidente por meio de uma tradução árabe do século VIII, cujo título era Fábulas

de Bidpay, a qual foi retraduzida posteriormente do árabe para muitas línguas.

O segundo período da fábula teve início com as inovações formais de Fedro, a quem

se atribui o mérito de ter fixado a forma literária do gênero, garantindo- lhe um lugar na

poesia. As histórias de Fedro, escritas em verso e inspiradas nos textos de Esopo, são sátiras

amargas contra pessoas e costumes da época.

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A Idade Média cultivou com insistência a tradição esópica. Entre as muitas versões da época, divulgadas sob o nome de Ysopets (Esopetes), a mais famosa ficou sendo a de Marie de France, do século XII. As fabliaux (fabuletas) medievais, embora não sejam propriamente fábulas, guardam com elas algumas analogias. Por meio dos personagens animais, os poetas fazem críticas e pretendem instruir divertindo” (Claret, 2006, p.14)

Do terceiro período participam todos os fabulistas modernos, dos quais La Fontaine é

considerado o mestre. No século XVIII, surgiram muitos de seus seguidores, como Bocage e

Garret (em Portugal), John Gay e Bernard Mandeville (na Inglaterra), Christian Gellert (na

Alemanha) e Ivan Krilov (na Rússia). No Brasil, destacaram-se no gênero Luís de

Vasconcelos, Catulo da Paixão Cearense, Antônio Sales, José Oiticica e o Marquês de

Maricá. Além disso, Monteiro Lobato e Millôr Fernandes podem ser considerados “ponto de

chegada da história do gênero fábula em nossa literatura” (Dezotti, op.cit., p.18).

Na introdução que Neide Smolka preparou para “Fábulas completas”, de Esopo

(2004), ela afirma que as fábulas são

mais criativas e profundas quando, através de discussões entre animais irracionais ou entre objetos e por meio de seu comportamento e suas atitudes, o autor consegue fazer com que os homens efetivamente reflitam e se conscientizem da incoerência de sua conduta e de seu relacionamento social, apesar de serem os únicos animais racionais que vivem na natureza. (pp. 6 e 7)

De acordo com Altoé & Debona (1998),

Em nosso mundo de mulheres e homens descuidamos muito da sabedoria. E vamos, às vezes, tocando de qualquer jeito a vida. É bom ir, então, ao mundo dos animais e das plantas para reaprender, e sentir de novo o sabor da vida. É o que fazemos lendo fábulas e apólogos. É gostoso. Saboroso. E ajuda a possuir sabedoria. Os animais, as plantas e outros seres, nós os entendemos com seus limites e valores. Nas fábulas e nos apólogos aprendemos a recuperar em nós a animalidade perdida e resgatar os valores essenciais e a razão para conviver. [...] Fazendo experiência desses valores, será possível fazer o nosso mundo fraterno e feliz. (p. 5)

Ainda a respeito das fábulas, Sousa (2003) afirma: “Muito mais do que simples

preceitos a serem seguidos, essas narrativas alegóricas simbolizam o elogio das virtudes e a

censura dos vícios, com uma constante preocupação ética que ultrapassa, freqüentemente, a

simples e despretensiosa observação dos fatos cotidianos.” (p. XXIII)

Além disso, “vivemos hoje profundas e aceleradas mudanças na sociedade; o modo de

ser, de pensar, de sentir e agir das pessoas se transforma. A escola não pode ficar alheia a tais

transformações. O novo modelo de ensino na aprendizagem exige dos educadores atividades

prazerosas.” (Altoé & Debona, 2002, p. 5)

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É como nos alerta Vasconcelos (2006):

Negar o universo simbólico lúdico, sob o argumento de que esse não é o papel da instituição escolar, é negar o trajeto do desenvolvimento humano e sua inserção cultural. É desviar a função da escola do processo de construção de valores e de um sujeito crítico, autônomo e democrático. É negar, principalmente, as possibilidades da criatividade humana. (p. 72)

Antunes (2004) faz questão de enfatizar que

o falar sério através de linguagem leve muitas vezes permite ao elemento novo prender-se a estruturas mentais conhecidas, gerando a segurança na novidade e o prazer na repetição. O discurso puramente lógico, convenhamos, é bem mais ‘chato’ que a atmosfera de sedução presente no relato metafórico, que apresenta-se forte em conteúdo mas engraçado ou irônico em sua forma. (p. 12)

E é preciso que seduzamos constantemente nossos alunos, a fim de mudar a situação

atual, pois grande parte deles não suporta mais uma escola que “parece respeitar apenas o seu

próprio ritual. A aula corre soberana a despeito do fato de o mundo das crianças estar cada

vez mais marcado pelos meios de massa e suas múltiplas variações”. A escola não pode mais

“fazer de conta que o ‘mundo de fora’ pouco importa ao ‘mundo de dentro’.” (Citelli, 2002, p.

19)

Logo, é importante incentivar a leitura de fábulas, já que essa é uma forma prazerosa

de se tornar mais sábio.

3.5 O texto e os fatores pragmáticos da textualidade

De acordo com Val (1991), texto pode ser definido como “ocorrência lingüística

falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e

formal” (p. 3).

Há uma série de fatores que influenciam a produção e recepção dos textos, como: as

intenções de quem os produz; as idéias que os interlocutores fazem de si mesmos, dos outros

e do tema do discurso; tudo aquilo que os interlocutores podem ver e ouvir, no caso da

comunicação face a face; o contexto sociocultural do discurso, já que delimita os

conhecimentos partilhados pelos interlocutores e define as regras sociais da interação

comunicativa.

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Além disso, o texto precisa ser identificado pelo receptor como um todo significativo,

cujos constituintes lingüísticos devem se apresentar reconhecivelmente integrados.

Assim,

Um texto será bem compreendido quando avaliado sob três aspectos:

a) o pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação informacional e comunicativa;

b) o semântico-conceitual, de que depende sua coerência;

c) o formal, que diz respeito à sua coesão. (p. 5)

Denomina-se “textualidade” o conjunto de características que transformam seqüências

de frases em textos propriamente ditos. Há sete fatores responsáveis por ela: coerência,

coesão, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e

intertextualidade.

A coerência é apontada como o fator fundamental da textualidade, uma vez que é

responsável por dar sentido ao texto. Ela depende do conhecimento partilhado pelos

interlocutores.

A coesão, por outro lado, é construída por meio de mecanismos gramaticais e lexicais.

Ela é responsável pela unidade formal do texto, constitui a maneira de a coerência manifestar-

se lingüisticamente.

A intencionalidade está relacionada ao valor ilocutório do discurso, ou seja, ela diz

respeito ao objetivo do produtor numa determinada situação comunicativa (convencer, pedir,

informar, alarmar, ofender etc.).

A aceitabilidade refere-se à expectativa do receptor de que o texto em questão seja

coeso, coerente e relevante, a fim de possibilitar a aquisição de novos conhecimentos.

A situacionalidade diz respeito àquilo que confere pertinência e relevância ao texto

quanto ao contexto em que acontece. Afinal, o texto deve adequar-se à situação

sociocomunicativa.

A informatividade determina o grau de interesse do receptor pelo texto. Refere-se à

medida na qual as ocorrências desse texto são conhecidas ou não, esperadas ou não, no plano

formal e no conceitual. O esperado é que o texto se mantenha num grau mediano de

informatividade, no qual se combinem informações novas e já conhecidas.

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O último fator é a intertextualidade, que está relacionada aos fatores que tornam o uso

de um texto dependente do conhecimento de outro(s) texto(s), que passa(m) a funcionar como

seu contexto.

Mira Mateus (1996), por sua vez, define texto como “um objeto materializado numa

dada língua natural, produzido numa situação concreta e pressupondo os participantes locutor

e alocutário, fabricado pelo locutor por seleção sobre tudo o que, nessa situação concreta, é

dizível para (e por) esse locutor a um determinado alocutário” e textualidade como “o

conjunto de propriedades que uma manifestação da linguagem humana deve possuir para ser

um texto (discurso)”. (p. 134)

Dentre os fatores responsáveis pela textualidade, a autora destaca a conectividade, que

pode ser seqüencial (coesão) – quando a interdependência semântica de ocorrências textuais

resulta de processos lingüísticos de seqüencialização, ou seja, de ordenação linear dos

elementos lingüísticos – ou conceptual (coerência), quando a interdependência semântica de

ocorrências textuais é garantida pelo conhecimento de mundo.

A conectividade seqüencial é assegurada pelos seguintes mecanismos: a coesão

gramatical e a coesão lexical. Por outro lado, a conectividade conceptual (coerência textual)

resulta da interação entre os elementos cognitivos que as ocorrências textuais apresentam e o

conhecimento de mundo do leitor.

Assim, uma condição cognitiva sobre a coerência de um texto é a suposição da normalidade do(s) mundo(s) criado(s) por esse texto: um texto é coerente se os elementos/esquemas cognitivos ativados pelas expressões lingüísticas forem conformes àquilo que sabemos ser (i) a estrutura dos estados, processos e eventos; (ii) as relações lógicas entre estados de coisas; (iii) as propriedades características dos objetos de um mundo “normal”. (Mira Mateus, op. cit., pp. 146-147)

Por isso, sempre que um texto apresenta um estado de coisas / mundo “anormal”,

instruções específicas são fornecidas para preparar o receptor. Além disso, é possível que a

ordem linear das seqüências textuais seja determinada pela ordem de percepção ou de

conhecimento dos estados de coisas descritos. Por fim, a distribuição de informação própria

de um determinado texto e a escolha dos tópicos (com a conseqüente escolha das informações

relevantes – e que, portanto, devem ser explicitadas no texto – e das que podem permanecer

implícitas, por serem irrelevantes ou inferíveis) determinam, muitas vezes, uma ordenação

linear das seqüências textuais que difere da ordenação temporal ou lógica dos estados de

coisas apresentados.

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3.6 Coesão textual (ou conectividade seqüencial)

De acordo com Fiorin & Savioli (1997),

Um texto tem coesão quando seus vários enunciados estão organicamente articulados entre si, quando há concatenação entre eles.

A coesão de um texto, isto é, a conexão entre os vários enunciados obviamente não é fruto do acaso, mas das relações de sentido que existem entre eles. Essas relações de sentido são manifestadas sobretudo por certa categoria de palavras, as quais são chamadas conectivos ou elementos de coesão. [...] O uso adequado desses elementos de coesão confere unidade ao texto e contribui consideravelmente para a expressão clara das idéias. (pp. 271 e 272)

Segundo Duarte (2003, p. 89), os processos de seqüencialização que garantem (ou

possibilitam a recuperação de) uma ligação lingüística relevante entre os elementos que

aparecem na superfície do texto podem ser classificados como instrumentos de coesão. Esses

processos podem ser organizados da seguinte maneira:

(DUARTE, op.cit., p. 90)

Observemos, inicialmente, os mecanismos relacionados à coesão gramatical.

A coesão frásica dá-se na superfície do texto, a nível sintagmático e oracional. Dentre

os mecanismos desse tipo de coesão, destacam-se:

• Aqueles que garantem os nexos seqüenciais entre núcleos, complementos e

especificadores, como a ordem interna de vocábulos nos sintagmas, além de

fenômenos de concordância interna ao sintagma nominal, os quais demonstram (por

meio da presença de marcas idênticas de gênero e número) a dependência de

determinantes, adjetivos e quantificadores, em relação ao núcleo nominal.

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• Os que garantem a recuperabilidade (ou identificação) da estrutura de argumentos de

um determinado predicador, destacando a relação gramatical que existe entre cada

argumento e o predicador, como por exemplo: “a ordem básica de palavras de cada

língua natural, o uso de formas casuais dos pronomes pessoais, as preposições que

assinalam relações gramaticais”. (Duarte, op. cit., p. 90)

• Fenômenos de concordância que indicam, por meio de marcas idênticas de número e

pessoa, ou de número e gênero, o nexo relacional entre termos da oração.

A coesão interfrásica é garantida por processos de seqüencialização que exprimem

muitos tipos de interdependência semântica das frases que aparecem na superfície textual. Dá-

se por meio da parataxe, que engloba a coordenação, e da hipotaxe (subordinação). O termo

justaposição tem sido usado para caracterizar conexões paractáticas nas quais o grau de

independência sintática das unidades ligadas é alto (como ocorre quando são conectados

períodos simples e compostos a fim de formar unidades textuais superiores) e não há conector

explícito.

Os elementos lingüísticos que operam a articulação entre frases são as conjunções e os elementos prosódicos entoação e pausa demarcadora. São estes elementos, juntamente com expressões (em geral adverbiais e preposicionais) que os podem acompanhar, explicitando um determinado valor conectivo, que assinalam e exprimem a coesão interfrásica. (Duarte, op. cit., p. 94)

A coesão interfrásica é também denominada junção. Esta subdivide-se em conjunção (ou

junção aditiva, a qual se baseia na relação semântica de compatibilidade), disjunção (ou

junção alternativa, que ocorre na conexão seqüencial de frases que exprimem conteúdos

proposicionais alternativos), contrajunção (ou junção contrastiva, a qual consiste numa

situação que destoa do curso normal dos acontecimentos e que pode expressar a não-

satisfação de condições – necessárias, prováveis ou possíveis – para que uma determinada

situação aconteça) e subordinação (que une seqüencialmente frases cujos conteúdos

proposicionais estabelecem entre si uma relação de hierarquia, no que se refere à dependência

semântica).

A coesão temporal se dá por meio de conexões de seqüência temporal entre períodos,

marcadas por conectores como: antes, durante, então, entretanto, depois, em seguida. Esse

tipo de coesão também pode se caracterizar pelo uso (correlativo) de determinados tempos

verbais e de expressões adverbiais ou preposicionais de valor temporal e datas.

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O paralelismo estrutural caracteriza-se pela presença de aspectos gramaticais

comuns, da mesma ordem de vocábulos ou da mesma estrutura de frase em fragmentos

contíguos de um texto. Esse mecanismo é geralmente acompanhado de processos lexicais

coesivos (como oposição semântica e reiteração) e costuma utilizar ordens de palavras

marcadas.

A coesão referencial é a propriedade de um texto em que, por meio do uso de formas

lingüísticas adequadas, sinaliza-se que os seres designados por uma determinada expressão:

aparecem pela primeira vez nesse texto; já foram citados no discurso anterior; encontram-se

no espaço físico em que ocorre a situação comunicativa; existem ou não como objetos únicos

na memória do locutor e do alocutário.

Esse tipo de coesão subdivide-se em:

• Coesão exofórica (ou referência) – Ocorre toda vez que um determinado objeto (numa

situação comunicativa concreta) é apresentado ao alocutário/ leitor/ ouvinte através de

uma certa instrução lingüística, cuja forma varia de acordo com o conhecimento que o

locutor tem – e acredita que o alocutário tenha – daquele objeto. Dessa forma, caso o

locutor suponha que um determinado objeto tem uma identidade incontroversa para o

alocutário (no espaço cognitivo definido pelo discurso precedente e pela situação),

poderá usar um nome próprio ou uma descrição definida para se referir a esse objeto.

Por outro lado, quando o locutor acha que o objeto em questão não tem uma

identidade incontroversa no espaço cognitivo ativado pelo texto, usa expressões

referenciais indefinidas. É o que geralmente ocorre nas aberturas de narrativa.

• Coesão endofórica (ou co-referência) – Ocorre quando, num texto, algumas

expressões precisam ser interpretadas como referencialmente dependentes de outras

que aparecem no discurso anterior ou subseqüente. A co-referência, mais

especificamente, pressupõe que um ou mais fragmentos textuais sejam interpretados

como equivalentes a um outro fragmento textual (do ponto de vista referencial),

constituindo uma cadeia referencial (ou cadeia anafórica), ou seja, “uma seqüência

de expressões tais que, se uma delas tem um dado referente, as outras têm também

esse mesmo referente”. (Mira Mateus, op.cit., p. 144) O termo que estabelece o

referente dos outros membros é denominado antecedente; o(s) termo(s) cujo referente

é definido pelo antecedente chama(m)-se termo(s) anafóricos. Para que haja uma

cadeia anafórica é preciso que o(s) termo(s) anafórico(s) não tenha(m) referência

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autônoma; o referente é estabelecido pelo co-texto, por meio do antecedente. Além

disso, o antecedente e os termo(s) anafórico(s) devem ter os mesmos traços de pessoa,

número e gênero. Os termos anafóricos podem ter realização lexical (sendo

geralmente pronomes anafóricos, pronomes pessoais ou pronomes demonstrativos) ou

podem ser nulos (categorias sintaticamente vazias, o que caracteriza uma elipse). A

cadeia anafórica pode apresentar a ordem linear “antecedente/termo(s) anafórico(s)”

(anáfora) ou a ordem linear “termo(s) anafórico(s)/antecedente” (catáfora).

A coesão lexical, por sua vez, é um processo que funciona por contigüidade

semântica, ou seja, traços semânticos idênticos ou opostos são compartilhados (total ou

parcialmente) por expressões lingüísticas num texto.

Os processos de coesão lexical podem ser esquematizados da seguinte maneira:

(DUARTE, op.cit., p. 114)

A reiteração baseia-se na repetição de expressões lingüísticas; a contigüidade

semântica é caracterizada pela identidade dos traços semânticos. Vejamos um exemplo na

seguinte fábula de Esopo:

O cisne e seu dono

Dizem que os cisnes cantam na hora de sua morte. Ora um certo indivíduo, deparando com um cisne posto à venda, e tendo ouvido dizer que o cisne era um animal muito melodioso, comprou-o. E certo dia, tendo convidados para o jantar, aproximou-se do cisne e pediu-lhe que cantasse durante o festim. Contudo, nessa ocasião o cisne permaneceu em silêncio; mas posteriormente, como pensasse que estava prestes a morrer, lamentou-se cantando um treno. Então o dono, ouvindo-o, disse-lhe: “Mas se tu não cantas senão quando estás para morrer, eu fui um tolo quando te fiz um pedido, em vez de te sacrificar”.

Moral: Assim também certos indivíduos, que não querem fazer determinadas amabilidades de

maneira espontânea, fazem-nas forçadamente. (In: Sousa, 2003, p.125)

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A substituição pode ocorrer de diferentes maneiras:

• Sinonímia – Uso de expressões lingüísticas que compartilham a generalidade dos

traços semânticos. Ex.: O ladrão foi entregue ao delegado pelo segurança da loja, que

gritava: “Peguei o gatuno safado!”.

• Antonímia – Uso de expressões lingüísticas com traços semânticos contrários. Ex.:

Você falou mesmo a verdade?! Para mim, essa história não passa de uma grande

mentira!

• Hiperonímia – Uso de uma primeira expressão lingüística que mantém relação classe-

elemento com outra. Ex.: Adoro flores! Minha casa é cheia de rosas!

• Hiponímia – Uso de uma primeira expressão lingüística que mantém relação

elemento-classe com outra. Ex.: Por que você está reclamando do coitado do gato?

Você já deveria saber que felinos soltam pêlos!

• Holonímia – Uso de uma primeira expressão lingüística que mantém relação todo-

parte com outra. Ex.: O prédio é maravilhoso! Os apartamentos são muito

confortáveis!

• Meronímia – Uso de uma primeira expressão lingüística que mantém relação parte-

todo com outra. Ex.: Um sorriso que encantou a Sapucaí... Juliana Paes brilhou

como Rainha da Viradouro!

3.7 Coerência textual (ou conectividade conceptual)

De acordo com Koch & Travaglia (2002),

A coerência está diretamente ligada à possibilidade de estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto. Este sentido, evidentemente, deve ser do todo, pois a coerência é global. [...] Portanto, para haver coerência é preciso que haja possibilidade de estabelecer no texto alguma forma de unidade ou relação entre seus elementos. [...] esta unidade resulta numa forma de organização superior que relaciona os elementos entre si. (pp. 21 e 22)

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A coerência baseia-se na continuidade de sentidos entre os conhecimentos ativados

pelas expressões do texto (conhecimento de mundo). Essa continuidade refere-se à maneira

como os componentes do mundo textual são mutuamente relevantes e acessíveis. Estabelece-

se, assim, uma coesão conceitual cognitiva entre os elementos textuais por meio de processos

cognitivos que se dão entre os usuários (produtor e receptor) do texto e são não somente de

tipo lógico, visto que também dependem de diversos aspectos socioculturais e de fatores

interpessoais, como:

a) as intenções comunicativas dos participantes da ocorrência comunicativa de que o texto é o instrumento (o que caracteriza o nível argumentativo); b) as formas de influência do falante na situação de fala; c) as regras sociais que regem o relacionamento entre pessoas ocupando determinados “lugares sociais” – pais/ filhos, professor/ aluno, patrão/ empregado, marido/ mulher, vendedor/ comprador, etc. (Koch & Travaglia, op.cit., p. 26)

Os dois autores apresentam diversos tipos de coerência, mencionados por Van Dijk &

Kintsch (1983), apud Koch; Travaglia (2002):

• Coerência semântica – Diz respeito à relação entre significados dos elementos das

frases em seqüência num texto (local) ou entre elementos do texto como um todo.

• Coerência sintática – Refere-se aos dispositivos sintáticos para expressar a coerência

semântica. É o caso dos conectivos, do uso de pronomes e de sintagmas nominais

(definidos e indefinidos), etc.

• Coerência estilística – Está relacionada ao fato de que os usuários devem utilizar em

seus textos elementos lingüísticos – como o léxico, os tipos de estrutura, frases, etc. –

que pertençam a ou constituam o mesmo estilo ou registro lingüístico.

• Coerência pragmática – Baseia-se na definição de texto como uma seqüência de atos

de fala, os quais são relacionados de maneira que, a fim de que a seqüência de atos

seja considerada adequada, tais atos devem satisfazer as mesmas condições

encontradas numa determinada situação comunicativa.

Embora sejam vários os fatores responsáveis pela coerência, Koch & Travaglia (op.

cit.) destacam os principais:

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• Elementos lingüísticos – Apesar de não ser possível perceber o sentido de um texto

observando somente as palavras que o constituem e sua estruturação sintática, os

elementos lingüísticos certamente contribuem para o estabelecimento da coerência,

uma vez que funcionam como pistas para ativar os conhecimentos arquivados na

memória do receptor, levando-o a fazer inferências. Assim, todo o contexto lingüístico

(co-texto) é fundamental no processo de construção da coerência.

• Conhecimento de mundo – O conhecimento de mundo, adquirido ao longo da vida, é

fundamental para que se estabeleça a coerência. Desse modo, caso um texto trate de

assuntos desconhecidos por nós, o alcance do sentido torna-se mais difícil, fazendo

com que esse texto nos pareça incoerente. É importante esclarecer que o conhecimento

de mundo não é arquivado em nossa memória aleatoriamente; todas as informações

recebidas são armazenadas em blocos, denominados modelos cognitivos. Eis alguns

desses modelos:

- Frames – Conjuntos de conhecimentos arquivados na memória sob um

determinado “rótulo”, mas sem qualquer espécie de ordenação. Ex.: escola

(quadro, carteira, professor, recreio, etc.), igreja, clube,...

- Esquemas – Conjuntos de conhecimentos arquivados em seqüência causal ou

temporal. Ex.: como colocar uma televisão em funcionamento, um dia na vida

de um motorista de ônibus,...

- Planos – Conjuntos de conhecimentos a respeito da forma de agir para que se

alcance um certo objetivo. Ex.: como vencer uma partida de xadrez.

- Scripts – Conjuntos de conhecimentos sobre maneiras de agir bastante

estereotipadas em determinada cultura, até mesmo em termos de linguagem.

Ex.: os rituais de religião (missa, casamento, batizado), os costumes

jurídicos,...

- Superestruturas ou esquemas textuais – Conjuntos de conhecimentos

adquiridos à medida que nos deparamos com os diferentes tipos de textos e

passamos a compará-los.

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• Conhecimento compartilhado – Como cada pessoa armazena conhecimentos na

memória de acordo com suas próprias experiências, duas pessoas nunca partilharão o

mesmo conhecimento de mundo. No entanto, é necessário que produtor e receptor

tenham conhecimentos em comum. Quanto maior for o grau de conhecimento

compartilhado entre eles, menor será a necessidade de explicitude do texto, visto que o

leitor será capaz, por exemplo, de fazer inferências. Para que haja coerência num

texto, é preciso que nele se equilibrem informações dadas, “velhas” (aquelas que

formam o co-texto, que pertencem ao contexto situacional, que são de conhecimento

geral numa certa cultura e/ou que se reportam ao conhecimento comum do produtor e

do receptor) e informações novas.

• Inferências – Permitem que o receptor de um texto estabeleça relações implícitas

entre segmentos de um texto e os conhecimentos requisitados para compreendê- lo; ou

então, entre dois elementos (geralmente frases ou trechos) desse texto, a fim de

compreendê- lo e interpretá- lo.

• Fatores de contextualização – São aqueles que fixam o texto numa situação

comunicativa específica. Dividem-se em dois tipos: os contextualizadores

propriamente ditos (que colaboram para situar o texto e, conseqüentemente, para

conferir-lhe coerência, como o local, a data, a assinatura, o timbre, elementos gráficos,

etc.) e os perspectivos ou prospectivos (que adiantam expectativas a respeito do

conteúdo e da forma do texto, como título, o autor e o começo do texto).

• Situacionalidade – Pode ser observada atuando em duas direções: da situação para o

texto (ao determinar em que proporção a situação comunicativa influi na

produção/recepção do texto e, logo, no estabelecimento da coerência) e do texto para

a situação (o texto tem reflexos importantes sobre a situação de comunicação, uma

vez que o mundo textual nunca é idêntico ao mundo real, o qual é recriado pelo

produtor e interpretado pelo receptor, conforme os objetivos, interesses e crenças de

cada um). É essencial enfatizar que a situacionalidade exerce um importante papel na

construção da coerência, visto que uma seqüência lingüística considerada incoerente

em uma situação pode ser coerente em outra.

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• Informatividade – Refere-se ao nível de previsibilidade (ou expectabilidade) da

informação presente no texto. Este será tanto menos informativo, quanto mais

esperada ou previsível for a informação que apresenta. Logo, se trouxer somente

informações redundantes ou previsíveis, terá um baixo grau de informatividade. Por

outro lado, informações novas e imprevisíveis aumentam o grau de informatividade de

um texto.

• Focalização – Diz respeito ao ponto de vista assumido pelo produtor e pelo receptor

do texto, de acordo com a ênfase que cada um deles dá a partes do conhecimento que

possui. O produtor dá certas pistas ao receptor sobre o que está sendo focalizado e o

receptor as utiliza para melhor compreender o texto.

• Intertextualidade – No processo de produção/recepção de um texto, recorre-se ao

conhecimento prévio (no que diz respeito à forma ou ao conteúdo) de outros textos.

Assim, no caso da intertextualidade implícita, é fundamental que o receptor reconheça

o texto-fonte e os motivos de sua retomada para que possa construir o sentido desse

novo texto.

• Intencionalidade e aceitabilidade – A intencionalidade diz respeito à maneira como

o produtor faz uso dos outros fatores de textualidade para organizar seu texto, a fim de

realizar determinadas intenções e produzir os efeitos desejados. A aceitabilidade, em

contrapartida, refere-se ao esforço que o receptor faz para calcular o sentido do texto,

utilizando as pistas fornecidas pelo produtor, além do conhecimento de mundo, da

situação, etc.

• Consistência e relevância – Cada enunciado de um texto deve ser consistente com os

enunciados anteriores, para que não haja contradição. Além disso, todos os enunciados

que formam o texto precisam ser relevantes para um mesmo tópico discursivo, isto é,

eles precisam de um tema em comum.

3.7.1 As meta-regras de coerência

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De acordo com Charolles (1988), a fim de que uma seqüência de morfemas possa ser

considerada uma frase (do ponto de vista de um locutor-ouvinte nativo), é necessário que siga

uma determinada ordem combinatória e que seja organizada de acordo com o sistema da

língua. Conseqüentemente, um conjunto de frases depende desses mesmos fatores para que

seja admitido como um texto.

Assim, o autor propõe quatro regras para que os textos sejam bem formados

(denominadas meta-regras de coerência):

• Meta-regra de repetição – Para que seja coerente, um texto precisa conter elementos

de recorrência estrita. As repetições são asseguradas pelo uso de diferentes recursos

(que favorecem o desenvolvimento temático contínuo do enunciado), como:

- Pronominalização – O uso de pronomes possibilita a repetição, à distância, de

uma frase inteira ou de um sintagma. Essa retomada pode ocorrer de frente

para trás (anáfora) – o que é mais comum – ou no sentido inverso (catáfora).

- Definitivação e referenciação dêitica contextual – Tornam possível a retomada

(declarada ou virtual) de substantivos de uma frase (ou de uma seqüência)

para outra. Vale ressaltar que, quando o nome repetido está no contexto

imediato que o precede, é mais natural que se empreguem os dêiticos

contextuais. É importante esclarecer que o uso de artigos definidos nos títulos

das fábulas não segue o padrão – que volta a ocorrer no corpo desses textos –

de se utilizarem artigos indefinidos para apresentar novos elementos, os quais

só aparecem precedidos de artigo definido quando são retomados. A quebra

desse padrão pode ser justificada pela questão do domínio público, já que o

leitor faz uma idéia (a qual pode-se confirmar ou não) do que cada nome do

título representa.

- Substituição lexical – Evita retomadas lexemáticas e garante retomadas

estritas. Certas restrições semânticas regulamentam (com rigor) o uso de

substituições. No português, por exemplo, termos mais genéricos não podem

anteceder seus representantes.

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- Recuperação pressuposicional e retomada de inferência – A retomada está

relacionada aos conteúdos semânticos não-manifestos que devem ser

reconstruídos para que as recorrências se tornem explícitas. Pressuposições

são partes consubstanciais do enunciado, resistentes a determinadas provas

lingüísticas (como interrogação, negação e encadeamento). Inferências, por

sua vez, são menos fortes (visto que não são mantidas sob negação), podem

estar ligadas ao léxico e, muitas vezes, remetem a conhecimento de mundo ou

a leis do discurso.

• Meta-regra de progressão – A fim de que seja microestruturalmente ou

macroestruturalmente coerente, um texto precisa ter em seu desenvolvimento uma

contribuição semântica renovada com freqüência, mas de maneira equilibrada. É

preciso balancear continuidade temática e progressão semântica (ou rêmica). Logo,

se um texto apresenta o desenvolvimento de diversas séries temáticas profundas, estas

devem constituir, na superfície, conjuntos seqüenciais homogêneos, a fim de que esse

texto seja macroestruturalmente coerente.

• Meta-regra de não-contradição – A coerência de um texto depende de que não se

introduzam no seu desenvolvimento elementos semânticos que venham a contradizer

conteúdos apresentados (ou pressupostos) anteriormente ou deduzíveis por inferência.

É importante enfatizar que o contexto é responsável por determinar a idéia de

contradição.

• Meta-regra de relação – Para que uma seqüência ou um texto tenham coerência, é

necessário que os fatos denotados no mundo representado se relacionem diretamente.

Essa regra, assim como a anterior, tem natureza fundamentalmente pragmática, uma

vez que também depende do conhecimento de mundo de quem avalia a congruência

do texto. Vale destacar que um bom teste para que se revele uma incongruência é a

impossibilidade de ligar duas frases por meio de um conector natural.

Além disso, é preciso ter em mente que todo discurso tem alguma forma de coerência,

pelo menos para quem o produz. Portanto, é essencial que o receptor de um texto tente

alcançar o ponto de vista do produtor, a fim de “desvendar” possíveis problemas de coerência.

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Vejamos agora como as meta-regras de coerência aplicam-se à seguinte fábula de

Esopo:

O lobo saciado e a ovelha

Um lobo já estava saciado de alimento quando viu uma ovelha estirada ao chão. Ao perceber que ela tinha caído de medo dele, chegou perto e pôs-se a encorajá-la dizendo que a libertaria se ela lhe dissesse três sentenças verdadeiras. Então ela começou dizendo, em primeiro lugar, que não quis encontrá -lo; em segundo, disse que, já que esse encontro tinha sido inevitável, queria tê-lo encontrado cego; e, em terceiro lugar, acrescentou: “Tomara que todos os lobos tenham morte cruel, pois vocês, malvados, embora nada sofram de nossa parte, nos combatem com malvadeza”. E o lobo, reconhecendo que ela não mentia, libertou-a.

A fábula mostra que, muitas vezes, a verdade tem força até junto dos inimigos. (In: Dezotti, op. cit., p. 60)

Como prevê a meta-regra de repetição, o texto contém diversos elementos de

recorrência estrita:

• Pronominalização – Há exemplos de anáfora, como em: “Um lobo já estava

saciado de alimento quando viu uma ovelha estirada ao chão. Ao perceber que ela

tinha caído de medo dele, chegou perto e pôs-se a encorajá-la dizendo que a

libertaria se ela lhe dissesse três sentenças verdadeiras” (linhas 1 a 3). O uso de

cores diferentes mostra a relação entre os termos “lobo” e “ovelha” e os pronomes

referentes a cada um deles.

• Definitivação – Na primeira linha, apresenta-se o termo “um lobo”, retomado na

linha 6 como “o lobo”.

• Referenciação dêitica contextual – Eis um bom exemplo: “Então ela começou

dizendo, em primeiro lugar, que não quis encontrá- lo; em segundo, disse que, já

que esse encontro tinha sido inevitável, queria tê- lo encontrado cego.” (linhas 3 e

4)

• Recuperação pressuposicional e retomada de inferência – Em “disse que, já que

esse encontro tinha sido inevitável, queria tê- lo encontrado cego” (linha 4), “já

que” é um marcador de pressuposição, pois introduz uma informação tida pelo

interlocutor como consensual. Afinal, é óbvio que, se houvesse a possibilidade, a

ovelha teria evitado encontrar o lobo. Quanto à retomada de inferência, pode-se

dizer que a própria moral (“A fábula mostra que, muitas vezes, a verdade tem

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força até junto dos inimigos”) serve de exemplo, uma vez que remete à fábula

inteira e leva o leitor a aplicar o ensinamento à vida.

De acordo com a meta-regra de progressão, é necessário que continuidade temática e

progressão semântica se equilibrem num texto. Um exemplo disso é o trecho “Ao perceber

que ela tinha caído de medo dele, chegou perto e pôs-se a encorajá-la dizendo que a libertaria

se ela lhe dissesse três sentenças verdadeiras” (linhas 1 a 3), em que há retomada de

elementos (a fim de garantir a continuidade temática) e se apresenta um novo tópico: “três

sentenças verdadeiras”. Esse tópico permite a progressão semântica, visto que o leitor passa a

esperar as três sentenças que a ovelha deve proferir para ser libertada pelo lobo.

Ao se observar o contexto, é possível dizer que a fábula em questão também atende às

meta-regras de não-contradição e de relação (as quais têm natureza pragmática); afinal,

não traz idéias que se chocam e todos os fatos apresentados têm relação direta uns com os

outros. Essas características ficam evidentes, sobretudo, por meio de uma conexão

interfrástica bem elaborada.

3.7.2 Figurativização e tematização

Segundo Fiorin & Savioli (1997), os elementos concretos presentes no texto são

denominados figuras, enquanto os elementos abstratos chamam-se temas.

Figuras são palavras ou expressões correspondentes a algo que se encontra no mundo

natural, o qual abrange tanto o mundo real quanto os mundos fictícios criados pela

imaginação humana. É o caso dos substantivos concretos (ex.: navio, lebre) e dos adjetivos

que exprimem características físicas (ex.: enorme, orelhuda). Temas, por sua vez, são

palavras ou expressões correspondentes a elementos que servem para organizar, categorizar,

ordenar a realidade apreendida pelos sentidos. É o caso dos substantivos abstratos (ex.:

atenção, tristeza) e dos adjetivos que exprimem características psicológicas (ex.: desatento,

feliz).

Logo, existem dois patamares de concretização da estrutura narrativa e,

conseqüentemente, dois tipos de texto: o figurativo e o temático. Os textos figurativos

representam o mundo real e criam um efeito de realidade, à medida que constroem cenas reais

com pessoas, animais, cores, etc. Os textos temáticos, por outro lado, tentam classificar,

ordenar e interpretar a realidade, a fim de explicar os fatos e as coisas do mundo.

É importante esclarecer que a classificação de um texto como figurativo ou temático é

decorrente da predominância de elementos concretos ou abstratos, e não da exclusividade

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desses elementos. Afinal, pode haver algumas figuras em textos temáticos e alguns temas em

textos figurativos.

Como o nível temático e o nível figurativo são dois níveis sucessivos de concretização, podemos ter textos temáticos, isto é, sem a cobertura figurativa, mas todo texto figurativo pressupõe, sob as figuras, um tema. Assim, para entender um texto figurativo é preciso alcançar seu nível temático. [...] Um texto figurativo sempre joga com dados concretos para, por meio deles, revelar significados mais abstratos. (Fiorin & Savioli, op. cit., pp. 72-73)

Assim, figuras não têm significado em si mesmas e, se analisadas de forma isolada,

podem levar a idéias bastante variadas e a noções imprecisas. O sentido é criado por meio do

encadeamento coerente dessas mesmas figuras, ao se depreender o tema subjacente a elas.

A ruptura da coerência interna da rede de figuras pode tornar um texto inverossímil.

No entanto, se esse rompimento for intencional, podem-se criar novos significados para o

texto, por meio de novos efeitos de sentido. Vale ressaltar que as múltiplas significações

possíveis de uma figura são controladas pelo contexto, que determina se são coerentes ou não.

É preciso lembrar também que um mesmo tema pode ser expresso por diferentes redes

figurativas, o que fica bastante claro quando diversos autores produzem textos sobre um

mesmo assunto.

Os textos predominantemente temáticos, por sua vez, exigem que o leitor seja capaz

de englobar todos os temas desenvolvidos (subtemas) dentro de um tema geral que resuma de

modo amplo todo o conjunto. É importante enfatizar que, como as figuras, os temas também

devem ser encadeados de modo coerente. Aliás, para que se possa alcançar o tema geral de

um texto, é preciso confrontar os subtemas e fazer a depreensão da unidade que subjaz à

diversidade.

Figuras e temas fazem parte do léxico (repertório de palavras) da língua, que pode

também ser expresso por meio de7:

• Gíria – Vocabulário especial utilizado por um determinado grupo social. Ex.: “Pra

mim já chega! Eu tô bolada (“chateada”)! Agora quem não quer sou eu!” (Em

“Tremendo vacilão”, interpretada por Perlla);

7 É válido esclarecer que os exemplos a serem dados são trechos de músicas populares, a fim de que haja o mínimo de contextualização. Quando preciso, alguns comentários a respeito do significado dos termos serão feitos, em itálico, entre parênteses.

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• Regionalismo – Vocabulário típico de uma dada região. Ex.: “Imensa varanda. Dá

jerimum (“abóbora”, no Nordeste), dá muito mamão, pé de jacarandá. Eu posso

vender. Quanto você dá?” (Em “Bancarrota Blues”, de Chico Buarque e Edu Lobo);

• Jargão – Vocabulário específico de uma certa especialidade profissional. Ex.: “Déficit

(“carência”) habitacional, é favela para todo canto. Me lembro de uma reforma

agrária, que ia segurar seu pai no campo” (Em “Carta ao presidente”, de Marcelo D2,

que utilizou metaforicamente – num sentido mais amplo – o jargão “déficit”, que está

relacionado à Economia);

• Estrangeirismo – Termos estrangeiros já incorporados à língua. Ex.: “Criar meu web-

site, fazer minha home-page. Com quantos gigabytes se faz uma jangada, um barco

que veleje?” (Em “Pela Internet”, de Gilberto Gil, que usou termos do inglês,

relacionados à Internet);

• Arcaísmo – Palavras ou expressões que já caíram em desuso. Ex.: “Tem carne de sol

e tem frutos do mar; cordão de ceroula (“cueca”), produtos do lar. Catálogo novo,

preço de primeira. Daqui do país, só não vendo a bandeira” (Em “Meu foguete

brasileiro”, de Antonio Nóbrega e Bráulio Tavares).

• Neologismo – Palavras criadas recentemente. Ex.: “Virá lapidar o sonho até gerar o

som. Como querer Caetanear o que há de bom” (Em “Sina”, de Djavan, que criou um

verbo em referência a Caetano Veloso).

O autor de um texto, a fim de criar um determinado efeito de sentido, pode escolher

figuras pertencentes a uma região específica do léxico. No entanto, uma boa leitura desse

texto depende não só da identificação da escolha feita, mas também da verificação do papel

que essa escolha desempenha no estabelecimento do sentido. Por exemplo, as gírias, os

neologismos, os regionalismos e os estrangeirismos são capazes de caracterizar personagens

por meio da linguagem utilizada por eles. Os arcaísmos, por sua vez, conseguem recuperar

uma determinada época ou ridicularizar personagens que ainda insistem no uso dos termos em

questão. Por fim, os jargões caracterizam a competência de quem os utiliza.

3.8 Classes de palavras

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Segundo Pinilla (2007), o estudo das classes de palavras ainda tem papel central nas

aulas de Língua Portuguesa, mesmo que fique restrito a um conhecimento da nomenclatura

adotada pela NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira). Esta “reconhece dez classes de

palavras: substantivo, artigo, adjetivo, numeral, pronome, verbo, advérbio, preposição,

conjunção, interjeição”. (Pinilla, op. cit., p. 171)

No entanto, a determinação da classe de uma palavra é tarefa bastante trabalhosa, visto

que o limite entre uma classe e outra pode ser tênue – e é justamente isso que ocorre com os

substantivos e os adjetivos, como se verá mais adiante. Além disso, essa classificação ainda

parece ser feita sem critérios bem definidos (ou a partir de uma mistura de critérios) para que

os vocábulos possam ser analisados em seus diferentes aspectos (semântico, morfológico e

funcional).

É imprescindível, portanto, destacar os critérios propostos por Mattoso Câmara Jr.

(1973) para a classificação de palavras, critérios esses fundamentais para que se apontem as

semelhanças de forma, sentido e função entre elas.

Há, em princípio, três critérios para classificar os vocábulos formais de uma língua. Um é o de que eles de maneira geral significam do ponto de vista do universo biossocial que se incorpora na língua; é o critério semântico. Outro, de natureza formal ou mórfica, se baseia em propriedades de forma gramatical que podem apresentar. Um terceiro critério [...] é o funcional, ou seja, a função ou papel que cabe ao vocábulo na sentença. (p. 77)

Desse modo, encontram-se, muitas vezes, definições incompletas de classes de

palavra, as quais privilegiam um único critério (geralmente o semântico). A fim de

exemplificação, Pinilla (op. cit.) apresenta um quadro das definições mais comuns em

gramáticas e livros didáticos, no qual se apontam os critérios utilizados para a classificação.

Eis o trecho que traz as definições de “substantivo” e de “adjetivo”:

Substantivo É o nome de todos os seres (critério semântico) que existem ou que imaginamos existir.

Adjetivo É toda e qualquer palavra que, junto de um substantivo (critério funcional), indica uma qualidade, estado, defeito ou condição (critério semântico).

(p. 172)

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Com base nesses mesmos critérios, a autora (op. cit.) apresenta um quadro alternativo

de classificação, proposto por Oliveira et alii. (1977), do qual se transcreverá apenas o trecho

inicial:

Classe / Critério Funcional (função ou papel na oração)

Mórfico (caracterização da estrutura da palavra)

Semântico (modo de significação: extralingüístico e intralingüístico)

Substantivo Palavra que funciona como núcleo de uma expressão ou como termo determinado.

Palavra formada por morfema lexical (base de significação) e morfemas gramaticais.

Palavra que designa os seres ou objetos reais ou imaginários.

Adjetivo Palavra que funciona como especificador do núcleo de uma expressão (ao qual atribui um estado ou qualidade).

Palavra formada por morfema lexical (base de significação) e morfemas gramaticais.

Palavra que especifica e caracteriza seres animados ou inanimados, reais ou imaginários, atribuindo-lhes estados ou qualidades.

(In: Pinilla, 2007, p. 178)

Apesar de ser uma tarefa nem sempre fácil, separar as palavras em classes pode ser

muito produtivo. Afinal, atribuir propriedades relevantes a cada classe como um todo é bem

mais simples do que analisar vocábulos separadamente.

Além disso, Pinilla (2004) faz questão de enfatizar que ensinar a língua de maneira

mais produtiva depende do conhecimento da forma de atuação de cada classe na organização

e na produção de textos. “Sob esse ponto de vista, o estudo das classes deveria contribuir para

ampliar a expressão oral e escrita do aluno, permitindo- lhe explorar, com mais

expressividade, as possibilidades combinatórias das palavras na construção do texto.” (p.123)

Atualmente, os livros didáticos de língua portuguesa apresentam duas tendências

diferentes no trabalho com classes gramaticais. Os mais conservadores deixam o tema claro,

ainda que ligado ao estudo de textos, enquanto outros (mais inovadores) optam por não

especificar os tópicos relacionados às classes de palavras, tratando delas diretamente nos

exercícios.

Essas tendências acarretam dois problemas. “O primeiro é o efeito de evidência do

conceito, que afeta primordialmente a tendência conservadora. O segundo é o efeito de

apagamento do conceito, que afeta a tendência inovadora”. (Dias, 2001, p. 126) Quando se

destaca o conceito, omitem-se os casos que o contrariam, fazendo com que a flexibilidade da

palavra seja apagada no texto. Por outro lado, quando as definições não são fornecidas

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“parece que a proposta dos autores é de não apresentar a gramática como tópico, fugindo dos

conceitos de classe gramatical. No entanto, esse conceito retorna pela via do exercício, na sua

feição mais apática” (Dias, op. cit., p. 134), o que oferece ao aluno somente uma visão

fragmentada dos assuntos abordados. Assim, o ideal é que se tente equilibrar a caracterização

gramatical dos vocábulos com o levantamento do papel que desempenham no texto.

Dessa forma, serão analisadas, a seguir, duas abordagens diferentes para o estudo das

classes selecionadas para este trabalho: uma, mais tradicional, que focaliza os substantivos e

os adjetivos; outra, mais recente, de cunho descritivo, que trata da chamada “classe dos

nominais” (Perini, 2000, p. 45). Além disso, os substantivos e os adjetivos serão também

estudados sob uma perspectiva discursiva.

3.9 Substantivo e adjetivo – visão tradicional

A perspectiva tradicional pode ser representada pelas idéias de alguns estudiosos,

como: Napoleão Mendes de Almeida, Carlos Henrique da Rocha Lima, Celso Ferreira da

Cunha & Luis Filipe Lindley Cintra, e Evanildo Bechara.

Serão discutidas, a seguir, as abordagens para o estudo dos substantivos e dos

adjetivos propostas por esses autores:

3.9.1 Napoleão Mendes de Almeida

Almeida (1999) defende as seguintes idéias:

SUBSTANTIVO: Existem palavras que sempre designam coisa , ser,

substância. Toda a palavra que encerra essa idéia denomina-se substantivo. Substantivo é, pois, como o próprio nome está a indicar, toda a palavra que especifica substância, ou seja, coisa que possua existência, ou animada (homem, cachorro, laranjeira) ou inanimada (casa, lápis, pedra), quer real (sol, automóvel), quer imaginária (Júpiter, sereia), quer concreta (casa), quer abstrata (pureza). (p. 80)

[...] ADJETIVO: Uma terceira classe de palavras existe, a dos adjetivos (lat. ad=

junto + jectum = posto, colocado), à qual pertencem todas as palavras que se referem a substantivo para indicar-lhe um atributo: homem inteligente, cachorro bom, laranjeira alta. (p. 81)

Percebe-se uma mistura de critérios nas definições apresentadas, uma vez que a de

substantivo baseia-se em traços semânticos, enquanto a de adjetivo fundamenta-se na função

desempenhada (indicar atributos).

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Não se menciona a possibilidade de um substantivo nomear uma ação. Assim, não

seria possível explicar, por exemplo, que “cantar” é um substantivo na frase “O cantar dos

pássaros é belo”.

Além disso, é importante ressaltar que, apesar da estreita relação entre substantivos e

adjetivos, as definições dessas classes aparecem separadas pelo conceito de “artigo”, o que

pode ser inconveniente (a não ser que se reforce o papel dos artigos no processo de

substantivação). Mais adiante, em capítulos distintos, cada classe é estudada de forma

individual.

Os capítulos relacionados aos substantivos e aos adjetivos serão brevemente

analisados e alguns trechos, transcritos e comentados.

O capítulo intitulado “Substantivo” inicia-se com a classificação em: comum/próprio;

concreto/abstrato; primitivo/derivado; simples/composto.

Um fato que chama atenção é a nota acrescentada após a definição de “substantivo

abstrato”, em letras miúdas: “Nota – A classificação dos substantivos em concretos e

abstratos pertence mais à filosofia que à gramática; encerra ou gera sutilezas ou discrepâncias

de nenhum proveito para o idioma”. (p. 86) Essa nota dá a impressão de que o autor fica, de

certa forma, incomodado com o uso de alguns termos tradicionais (que ele considera inúteis).

Por outro lado, ele utiliza o termo “locuções substantivas” para se referir a

“substantivos formados por mais de uma palavra” e cita como exemplos os substantivos

próprios que designam “entidades, organizações, corporações juridicamente constituídas:

Associação dos Comerciários, A Casa do Professor, O Diário do Povo”. (p. 85) O termo

“locução substantiva” não é encontrado com freqüência em outras gramáticas, que costumam

classificar essas expressões simplesmente como substantivos próprios. Desse modo, o autor

soa um pouco contraditório; afinal, ele mesmo propõe um termo que poderia ser considerado

igualmente “inútil”, sem nenhum proveito para o idioma.

Outro fato que precisa ser destacado é o modo como Almeida (op. cit.) aborda os

substantivos coletivos. Após a definição, encontra-se o seguinte comentário, que introduz (e,

de certa forma, justifica) a lista de coletivos que será fornecida depois:

Somente a quem ler um dicionário inteiro e muito bom será facultado

respigar um belo rol de coletivos, que a qualquer curiosidade satisfaça; até que alguém assim proceda, esta listinha, que não pode ser completa, oferece um aspeto diferente das que até agora se viram. Ao contrário de apresentar já o coletivo, para depois discriminar os indivíduos, oferece primeiro o indivíduo – coisa, animal, pessoa – porque aqui é que está a necessidade do consulente; a quem não souber o significado do coletivo corso, qualquer dicionário o mostrará de pronto, mas a quem necessitar saber o coletivo de sardinha, quando em cardume no mar, dificilmente será dado descobrir que é corso . (p. 86)

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Realmente, faz sentido organizar uma lista no formato “indivíduo ? coletivo”,

conforme a justificativa do autor. Entretanto, após oito páginas e meia de itens formulados

dessa maneira (Ex: abelha – enxame, cortiço, colméia; anedota – anedotário, repertório),

propõe-se um questionário, do qual faz parte a seguinte tarefa: “Explique o significado dos

seguintes coletivos: matilha, vara, alcatéia, cáfila”. (p. 96) Ora, para que o aluno possa

realizá-la, ele terá (teoricamente, é claro) que ler a lista inteira, até encontrar os coletivos

solicitados, o que contraria o “ideal de praticidade” apresentado anteriormente. Afinal, para a

realização dessa tarefa, seria mais prático usar uma lista no tradicional formato “coletivo ?

indivíduo”.

Por fim, é importante destacar mais duas perguntas do questionário em questão:

- Que são substantivos concretos fictícios? Exemplos. - Os substantivos eletricidade e Júpiter são concretos ou abstratos? (p. 96)

Essas perguntas não parecem compatíveis com o conteúdo da nota redigida a respeito

da distinção entre substantivos concretos e abstratos. Afinal, se o autor considera essa

classificação inútil, não deveria abordá- la em duas questões (das doze que são propostas).

Já no capítulo denominado “Adjetivo”, Almeida (op. cit.) indica o tênue limite entre

substantivos e adjetivos, apresentando os conceitos de “adjetivo substantivado” e de

“substantivo adjetivado”:

Do fato de vir o adjetivo qualificando o substantivo, resulta muitas vezes que, tirando-se o substantivo, continua sendo este facilmente subentendido, sem prejuízo para o sentido; assim é que se diz “o cego” – “um avarento” – “aquele perverso etc. Tais adjetivos assumem então o caráter do substantivo, e é disso confirmação o fato de poderem vir acompanhados de um artigo. Sempre que tal acontece, tais adjetivos se dizem adjetivos substantivados. Adjetivo substantivado é, pois, o adjetivo que exerce função de substantivo.

Vice-versa, o substantivo pode passar para a classe dos adjetivos. Tal sucede sempre que o substantivo se relaciona com outro substantivo, passando, pois, a ser modificador, e, por conseguinte, a funcionar como adjetivo: menino prodígio , filho homem, laranja lima , comício monstro , homem máquina .

Prodígio , homem, lima e máquina são substantivos, mas, por virem modificando substantivos, tornam-se adjetivos. Diz-se, nesses casos, que o substantivo está adjetivado. Substantivo adjetivado é, portanto, o substantivo que exerce função de adjetivo. (p. 137)

O termo “adjetivo substantivado” é bastante comum em outras gramáticas, o que não

acontece com “substantivo adjetivado”. Na verdade, ambos são desnecessários; afinal, basta

que se saiba que os substantivos têm o papel de identificar e que os adjetivos têm a função de

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caracterizar. Apesar disso, o autor demonstra dar importância a essa nomenclatura, uma vez

que propõe exercícios sobre o tema:

- Que é adjetivo substantivado? Construa uma oração com adjetivo nessas

condições. - Que é substantivo adjetivado? Construa uma oração com substantivo

nessas condições. (p. 141) É preciso esclarecer que não se está afirmando que a permeabilidade entre as duas

classes deve ser ignorada. A crítica é somente a respeito dos termos utilizados, que parecem

desnecessários. Prova disso é este item do mesmo questionário: “‘Um guerreiro moço’ – ‘Um

moço guerreiro’: Nessas frases, qual o substantivo e qual o adjetivo?”. Afinal, essa atividade

trata o tema de maneira bem mais direta e prática.

Por fim, faz-se necessário dizer que as flexões de gênero, de número e de grau são

tratadas em capítulos à parte. De qualquer forma, elas não são questões centrais, neste

momento.

3.9.2 Carlos Henrique da Rocha Lima

Eis as definições propostas por Rocha Lima (1994), as quais também aparecem em

capítulos diferentes:

Substantivo é a palavra com que nomeamos os seres em geral, e as qualidades, ações, ou estados, considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam. (p. 66)

Adjetivo é a palavra que restringe a significação ampla e geral do substantivo. (p. 96)

Nesse caso, os dois conceitos parecem privilegiar as funções em questão (“nomear” e

“restringir a significação”).

Entretanto, é preciso que se tenha muita cautela ao afirmar que substantivos nomeiam

ações, qualidades e estados, visto que – fora de contexto, é claro – as classificações mais

recorrentes para esses termos são “verbo” e “adjetivo”. Por exemplo, se pedirmos para

qualquer pessoa citar uma qualidade, é bem mais provável que ela diga “alegre” (que

geralmente é um adjetivo), em vez de “alegria” (a resposta desejada).

A seguir, alguns trechos dos capítulos referentes aos substantivos e aos adjetivos serão

transcritos e comentados.

Rocha Lima (op. cit.) não se opõe à distinção entre substantivos concretos e abstratos,

mas faz observações bastante pertinentes:

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Muitos substantivos podem ser variavelmente abstratos, ou concretos – conforme o sentido em que se empregam.

Deste modo, redação, por exemplo, é nome abstrato, quando significa ‘o ato de redigir’, numa frase como esta: A redação das leis requer clareza e precisão.

Com o sentido, porém, de ‘trabalho escolar escrito’, já passa a nome concreto: Na redação deste aluno, assinalei, a lápis vermelho, vários erros graves . (p. 67)

Os exemplos utilizados enfatizam a importância do contexto para que se classifique

uma palavra como substantivo concreto ou abstrato.

Além disso, o autor chama atenção para o seguinte fato: “Substantivos abstratos de

qualidade tornam-se concretos quando se usam no plural: a riqueza (abstrato) – as riquezas

(concreto) / o bem (abstrato) – os bens (concreto)”. (op. cit., p. 67) Destaca também o

processo de personificação de coisas abstratas (denominado “alegoria”), muito comum em

peças de teatro, em que pode haver personagens como a Fama, o Amor, a Morte.

Quanto aos substantivos coletivos, a lista aparece no formato mais comum

(coletivo ? indivíduo).

As questões de gênero, de número e de grau (que se optou por não abordar neste

momento) são discutidas nos próprios capítulos “Substantivo” e “Adjetivo”. Aliás, não há

muito a se comentar, de modo mais específico, sobre o tratamento dado aos adjetivos no

capítulo que lhes foi destinado, pois este está baseado justamente nas variações de gênero, de

número e de grau.

3.9.3 Celso Ferreira da Cunha & Luis Filipe Lindley Cintra

Segundo Cunha & Cintra (1985), “substantivo é a palavra com que designamos ou

nomeamos os seres em geral” (p. 171) e “o adjetivo é essencialmente um modificador do

substantivo” (p. 238).

Vale destacar que o conceito de “substantivo” fundamenta-se em um critério

semântico (designação de seres), enquanto o conceito de “adjetivo” é baseado em um critério

funcional (função de modificar substantivos).

É importante ressaltar que, apesar de também tratarem dos substantivos e dos adjetivos

em capítulos diferentes, os autores enfatizam a linha tênue que há entre as duas classes em

questão:

É muito estreita a relação entre o SUBSTANTIVO (termo determinado) e o ADJETIVO (termo determinante). Não raro, há uma única forma para as duas classes de palavras e, nesse caso, a distinção só poderá ser feita na frase. Comparem-se, por exemplo:

Uma preta velha vendia laranjas.

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Uma velha preta vendia laranjas. Na primeira oração, preta é substantivo, porque é a palavra-núcleo,

caracterizada por velha , que, por sua vez, é adjetivo, na medida em que é a palavra caracterizadora do termo-núcleo. Na segunda oração, ao contrário, velha é substantivo e preta adjetivo.

Como vemos, a subdivisão dos nomes portugueses em substantivos e adjetivos obedece a um critério basicamente sintático, funcional. (p. 239)

Nota-se, assim, o intuito de deixar claro que há mais de um critério para a

classificação de palavras e que esta não deve ser considerada como algo fixo, pois depende do

contexto e da disposição de cada frase.

No capítulo referente aos substantivos, o autor indica como pertencentes a essa classe:

“os nomes de pessoas, de lugares, de instituições, de um gênero, de uma espécie ou de um dos

seus representantes (...); os nomes de noções, ações, estados e qualidades, tomados como

seres”. (p. 171) Além disso, destaca-se que as funções exercidas pelo substantivo são,

exclusivamente, as de núcleo do sujeito, núcleo do objeto (direto e/ou indireto) e núcleo do

agente da passiva. Palavras de outra classe que desempenhem um desses papéis serão

equivalentes a substantivos (pronomes substantivos, quaisquer palavras substantivadas ou

numerais).

O autor (op. cit.) também faz distinção entre substantivos concretos – que “designam

os seres propriamente ditos” (p. 171) – e substantivos abstratos, que “designam noções, ações,

estados e qualidades, considerados como seres”. As duas definições podem gerar dúvidas,

visto que se utilizam termos de significação ampla (como seres e noções). Além disso,

sentimentos e defeitos poderiam ter sido incluídos na lista dos itens designados pelos

substantivos abstratos.

Quanto à lista de substantivos coletivos oferecida, esta também segue o padrão mais

usual nas gramáticas tradicionais: coletivo ? indivíduo.

Já no capítulo relacionado aos adjetivos, Cunha & Cintra (op. cit.) afirmam que as

palavras dessa classe servem:

• para dar características aos seres, aos objetos ou às noções que os substantivos

nomeiam. Assim, o adjetivo indica- lhes: qualidades ou defeitos (homem bondoso /

mau), o modo de ser (mulher simples), a aparência ou aspecto (rosa vermelha) e o

estado (árvore florida );

• para criar com os substantivos uma relação de espaço, de tempo (compra mensal), de

finalidade (loção hidratante), de matéria (tapete emborrachado), de procedência

(azeite espanhol), etc. O autor os denomina adjetivos de relação.

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Faz-se necessário comentar que o termo “adjetivo de relação” não aparece com

freqüência em outras gramáticas. Na verdade, parece dispensável a criação de mais esse

termo, uma vez que a noção de “característica” engloba todos os casos de adjetivação.

Também é importante ressaltar que Cunha & Cintra (op. cit.) dão destaque ao processo

de substantivação do adjetivo, que ocorre quando este passa de termo subordinado a termo

nuclear do sintagma nominal. (Ex.: Tenho dificuldade para lidar com o inesperado.)

Quanto às funções sintáticas exercidas pelo adjetivo, pode-se afirmar que: “a rigor, o

ADJETIVO só existe referido a um substantivo. Conforme se estabeleça a relação entre os

dois termos na frase, o ADJETIVO desempenhará as funções sintáticas de ADJUNTO

ADNOMINAL ou de PREDICATIVO.” (p. 255)

Outro processo destacado é o “emprego adverbial do adjetivo”, que se dá quando este

modifica a ação expressa pelo verbo. (Ex.: Ontem, no parque, a criança caiu feio.) Vale

comentar que o exemplo utilizado pelos autores (“O menino dorme tranqüilo.” – p. 257)

pode gerar dúvida, ao ser interpretado como um caso de predicado verbo-nominal, em que o

adjetivo não funciona como advérbio (O menino dorme. Ele está tranqüilo.).

É importante que se valorize a iniciativa dos autores de enfatizar o valor estilístico do

adjetivo, visto que este confere precisão e expressividade aos enunciados, além de revelar a

sensibilidade e a imaginação do enunciador.

O capítulo trata ainda de questões que, no momento, não nos são relevantes, como: o

uso de orações adjetivas, a referência aos adjetivos pátrios, as flexões dos adjetivos (gênero,

número e grau).

3.9.4 Evanildo Bechara

Bechara (1999), por sua vez, trata dos substantivos e dos adjetivos em seqüência,

dentro de um mesmo capítulo (denominado “Formas e funções”). Ele propõe as seguintes

definições:

Substantivo – é a classe de lexema que se caracteriza por significar o que convencionalmente chamamos objetos substantivos, isto é, em primeiro lugar, substâncias (homem, casa, livro) e, em segundo lugar, quaisquer outros objetos mentalmente apreendidos como substâncias, quais sejam qualidades (bondade, brancura), estados (saúde, doença), processos (chegada, entrega, aceitação). (p. 112)

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Adjetivo – é a classe de lexema que se caracteriza por constituir a delimitação, isto é, por caracterizar as possibilidades designativas do substantivo, orientando delimitativamente a referência a uma parte ou a um aspecto do denotado.

O adjetivo pertence a um inventário aberto, sempre suscetível de ser aumentado. (p. 142)

Desse modo, observamos nesse texto (como ocorre em outras gramáticas) a tendência

à exemplificação por meio de termos exclusivamente positivos, o que poderia levar o leitor a

pensar que os comentários não valem para os termos negativos. Afinal, identificar “bondade”

e “brancura” como qualidades parece fácil, mas seria mais complicado lidar, por exemplo,

com os termos “maldade” e “sujeira”, que também são substantivos. Talvez essas questões se

resolvessem com a troca do termo “qualidades” por “qualificações”, mas não fica claro se as

características negativas são consideradas qualidades ou estados pelo autor.

É válido ressaltar que, ao tratar da classificação do substantivo como próprio ou

comum, Bechara (op. cit.) aborda o processo de passagem de substantivos próprios a comuns.

A partir desse processo, características que eram atribuídas a um único ser (em geral,

conhecido historicamente) transferem-se para um grupo maior de seres e passam a ser

representadas pelo nome (não mais próprio) daquele ser. É o que acontece em frases como

“Meu vizinho é um judas.”, em que a palavra “judas” é um substantivo comum, que significa

“traidor, falso amigo” (em referência a Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Jesus).

Quanto à listagem dos substantivos coletivos, o autor (op. cit.) a divide em “conjunto

de pessoas”, “grupo de animais” e “grupo de coisas”. A partir daí, distribui os coletivos

(também no formato “coletivo ? indivíduo”) entre essas subdivisões, ainda que alguns se

repitam. É o que ocorre com “bando”, por exemplo, que aparece em “conjunto de pessoas”

como coletivo “de ladrões, desordeiros, de assassinos, malfeitores e vadios” (p. 115) e em

“grupo de animais” como sinônimo de “revoada” (coletivo de aves, pardais).

Em relação aos adjetivos, Bechara também se preocupa mais com as variações de

gênero, de número e de grau, que – como já se disse – não são muito relevantes para esta

pesquisa. É necessário mencionar que o autor também trata do processo de substantivação do

adjetivo; no entanto, não se retomará a questão neste tópico, pois o autor apresenta idéias já

discutidas pelos outros autores estudados.

3.10 Substantivo e adjetivo – visões complementares

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Alguns estudiosos, por sua vez, apresentam abordagens distintas (em relação às que

foram apresentadas) para o trabalho com substantivos e adjetivos, ainda que não se usem

esses termos. No entanto, a proposta de novas idéias não deve ser vista como uma forma de

desmerecer a base tradicional, e sim como um acréscimo de informações para complementá-

la.

Serão discutidas, a seguir, as idéias de três autores que se enquadram nesse perfil mais

inovador: Mário Perini, Catherine Kerbrat-Orecchioni e Maria Helena de Moura Neves.

3.10.1 Mário Perini – A classe dos nominais

É sempre válido relembrar as seguintes palavras de Perini (2000):

Uma coisa que nos poderiam ter dito na escola (mas, em geral, não disseram) é para quê a gente precisa separar as palavras em classes. Ora, a razão é semelhante à que nos obriga a separar os animais em classes, ordens, espécies etc.: classificamos as palavras para podermos tratar delas com um mínimo de economia. (p. 41)

Afinal, atribuir propriedades relevantes a cada classe como um todo (a partir de traços

morfológicos e sintáticos em comum) é bem mais simples do que analisar palavras

separadamente.

Além disso, é importante que se avalie o potencial funcional de cada classe, pois

palavras pertencentes a uma mesma classe podem ter potencial funcional distinto. “Entende-

se por potencial funcional o conjunto de funções sintáticas que uma palavra pode

desempenhar”. (Perini, 1995, p. 314)

No entanto, como já se disse, a determinação da classe de uma palavra é tarefa

bastante trabalhosa. É o que ocorre com os substantivos e os adjetivos, tradicionalmente

definidos como “nomes de coisas” e “qualidades”, nessa ordem. Se aceitarmos essas

definições, encontraremos três classes de palavras, e não duas:

Há as palavras como João, xícara e alto-falante, que só podem ser nomes de coisas; depois, há as palavras como paternal, genial e triangular, que só podem expressar qualidades; e, finalmente, há as palavras como maternal, amigo, magrelo, trabalhador, verde, que podem ser as duas coisas. E o pior é que estas últimas são as mais numerosas. O mínimo que podemos concluir é que a distinção entre substantivos e adjetivos, tal como formulada nas gramáticas comuns, é inadequada. (Perini, 2000., p. 44)

Numa tentativa de solucionar esse problema, Perini (1995) afirma que “existe uma

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maneira de descrever com rigor esses tipos de comportamento gramatical e que essa maneira

nos leva a uma classificação significativamente diferente da tradicional (grifo nosso).” (p.

322), já que não se conseguiu, até hoje, uma definição tradicional capaz de separar

substantivos e adjetivos, de forma clara.

O autor (2000) tende a acreditar que substantivos e adjetivos são uma grande classe, dentro da qual se distinguem muitos tipos de comportamento gramatical. [...] As diferenças de comportamento dentro dessa grande classe (que podemos chamar a classe dos nominais) provêm principalmente de diferenças de significado. [...] Acontece que, até hoje, ninguém teve a idéia de usar xícara para exprimir uma qualidade; e é por isso, somente, que xícara continua sendo apenas nome de uma coisa. Também não ocorreu a ninguém utilizar paternal para designar uma coisa (um novo tipo de escola?) e é por isso que paternal ainda é tão nitidamente qualificativo. A distinção entre a classe dos “adjetivos” e a dos “substantivos” simplesmente não existe. (pp. 45 e 46)

São, portanto, classes abertas, cujas listas de palavras são imensas. “Os falantes nunca têm

um conhecimento completo dessas listas, e estão sempre aprendendo novos elementos, e

esquecendo outros” (Perini, 1995, p. 318)

Assim, ele propõe a criação de uma grande classe que englobe os três casos

exemplificados: a classe dos nominais. Nela se distinguem vários tipos de comportamento

gramatical (provenientes, em geral, de diferenças de significado).

De um modo geral, os nomes dividem-se em três grupos:

• Os que podem funcionar como núcleo de um sintagma nominal, mas não como

modificador. Ex.: Lúcia, nariz, sofrimento.

• Os que podem funcionar como modificador, mas não como núcleo de um sintagma

nominal. Ex.: triangular, fraterno, habitacional.

• Os que podem funcionar tanto como núcleo de um sintagma nominal quanto como

modificador. Ex.: amigo, palhaço, pobre, azul, idoso.

Segundo o autor, uma palavra como “amigo”, por exemplo, não é considerada um

substantivo que, de vez em quando, passa para a classe dos adjetivos (nem o contrário); é

apenas uma palavra cujo potencial funcional inclui as duas possibilidades (que estão num

mesmo patamar): ser núcleo de um sintagma nominal (Ex.: Meu melhor amigo está

desempregado.) e ser modificador (Ex.: Tenho um cãozinho amigo.). Logo, “não há razão

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para se considerar uma dessas funções como básica, e a outra como derivada”. (Perini, 1995,

p. 323) Simplesmente, pode haver diferentes usos para uma mesma palavra.

Observa-se, então, uma certa flexibilidade no uso dos nominais, de acordo com a

necessidade de comunicação. É isso que acontece na seguinte fábula, em que a palavra

“colorido” é usada como adjetivo no primeiro parágrafo e, mais adiante, como substantivo:

As duas roseiras

Eram duas roseiras, cada uma mais bonita que a outra. Cresciam juntas, alimentavam-se da mesma terra, do mesmo ar, do mesmo sol. Eram as mais lindas daquele jardim colorido . Ambas sonhavam que resplandeciam, que perfumavam e enfeitavam a casa, a igreja... que davam suas flores para compor os ramalhetes das noivas, para... Estavam sempre conversando entre si. Certo dia, a mais bela ficou por longo tempo silenciosa, triste mesmo. A outra notou.

- Que está acontecendo? Nem parece a mesma hoje... - Estou muito preocupada porque, se somos tão perfeitas e temos tantas

possibilidades de tornar mais agradável a vida dos outros, se desfrutamos nós mesmas do que somos e possuímos, a abelha pode, em vez de mel, fabricar veneno, e a serpente... Você não fica triste? Vou deixar-me definhar e morrer, não quero servir para nada que seja mau.

- Não seja boba – disse-lhe a outra. Quem busca o mal, sempre vai acabar encontrando. E o bem, não é tão fácil de ser encontrado. Não podemos deixar de oferecer o nosso perfume, o nosso colorido e a alegria àqueles que nos vêem e se aproximam de nós. O bem deve brilhar mais que o mal. Já basta todo o mal que há no mundo.

- Muito obrigada. Ainda bem que está do meu lado e me dá forças... - Sim, mas também tenho medo agora, sabe? Ao vê-la, descobri que nós também

carregamos no nosso interior o mal e a morte. Desde aquele dia, as duas roseiras se tornaram ainda mais amigas.

(Adaptação do texto de Francia, 2005b, pp. 187 e 188) Dessa forma, comprova-se que a distinção entre substantivos e adjetivos faz mais

sentido numa perspectiva funcional: “Substantivos são, pois, todas as palavras que podem ser

complementos do predicado e não podem ser nem modificadores nem predicativos; adjetivos

são as palavras que podem ser complementos do predicado, e também modificadores e

predicativos”. (Perini, 1995, p. 327)

Na fábula acima, por exemplo, a primeira ocorrência da palavra “colorido” pode ser

classificada como um adjetivo porque funciona como modificador do termo “jardim” (“Eram

as mais lindas [roseiras] daquele jardim colorido.”). Por outro lado, essa mesma palavra – sem

alteração semântica expressiva – passa a ser classificada como substantivo no quarto

parágrafo do texto (“Não podemos deixar de oferecer o nosso perfume, o nosso colorido e a

alegria àqueles que nos vêem”), pois funciona como um dos núcleos do objeto direto e não

desempenha os papéis de modificador ou de predicativo.

3.10.2 Catherine Kerbrat-Orecchioni – Os subjetivemas “afetivo” e “avaliativo” –

axiologização e modalização

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De acordo com Kerbrat-Orecchioni (1980), toda unidade lexical é, de certo modo,

subjetiva, visto que as “palavras” da língua não passam de símbolos substitutivos e

interpretativos das “coisas”. As produções discursivas que autorizam as línguas não poderiam,

de maneira alguma, ser como uma espécie de “análogo” de realidade, uma vez que recortam a

seu modo o universo referencial; conferem uma “forma” particular à “substância” do

conteúdo, organizando o mundo (por “abstração generalizante”) em classes, a partir de eixos

semânticos parcialmente arbitrários.

É válido esclarecer que o eixo de oposição “objetivo/subjetivo” não é dicotômico, mas

gradual. Na língua, as unidades lexicais recebem diferentes cargas de subjetividade, tornando

os enunciados mais ou menos objetivos/subjetivos, como se pode observar no seguinte gráfico

de exemplificação proposto por Kerbrat-Orecchioni:

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solteiro amarelo pequeno bom (Kerbrat-Orecchioni, op.cit., p. 72)

OBJETIVO SUBJETIVO

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Assim, as palavras utilizadas como exemplo representam o progressivo grau de

envolvimento do falante. Afinal, classificar alguém como “solteiro” depende simplesmente de

observação; o estado civil é um fato. A noção de “amarelo” é um pouco menos fixa, visto que

um mesmo objeto pode ser considerado “amarelo” por uma pessoa e “laranja” por outra. A

noção de “pequeno” é bem pessoal, como se pode observar em situações como a seguinte: um

livro de trinta páginas é certamente pequeno para quem gosta de ler, mas enorme para quem

não tem hábito de leitura; por fim, a idéia de “bom” é ainda mais pessoal, pois se baseia quase

exclusivamente na subjetividade: por exemplo, um homem público que faz doações

constantes a orfanatos pode ser considerado “bom” por algumas pessoas e “exibicionista” por

outras; é uma questão de opinião, não só de simples observação.

A subjetividade é impressa nas palavras por meio de traços de afetividade, de

modalização e de axiologia (juízo de valor). Vejamos como isso ocorre no uso dos

substantivos e dos adjetivos:

• Substantivos:

A maioria dos substantivos afetivos e avaliativos deriva-se de verbos ou de adjetivos

(Ex.: alegrar ? alegria; grande ? grandeza).

Para denominar certo indivíduo, pode-se dizer, por exemplo, que “é um engenheiro”

ou que “é um idiota”. No primeiro caso, o termo apresenta uma propriedade objetiva,

facilmente verificável (engenheiro), mas a noção de “idiota” traz simultaneamente dois tipos

de informação, indissociáveis: uma descrição e um juízo de valor (no caso, de depreciação).

Logo, palavras como “idiota” têm uma carga maior de subjetividade e devem ser evitadas

num discurso que se pretende objetivo.

A descrição dos substantivos axiológicos apresenta alguns problemas delicados:

a) Pode acontecer que o traço avaliativo tenha um suporte significante específico. É o

caso dos termos pejorativos terminados em “-aço” (Ex.: animalaço ? sujeito muito

ignorante), em “-ete” (Ex.: pobrete ? homem desgraçado), em “-ebre” (Ex.: casebre ? casa

pequena ou pobre), em “-astro” (Ex.: poetastro ? mau versejador), etc.;

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b) O traço axiológico se encontra no nível do significado da unidade lexical, que é

definida por sua relação triangular com o significante, de um lado, e com aquilo que é

denotado, de outro.

A barreira que, em princípio, separa o significante do significado não é de todo

impermeável: uma palavra que tem a conotação de “vulgar” tende a vulgarizar, por contágio,

o significado e, conseqüentemente, o denotado a que remete; inversamente, os termos

estilisticamente “normais” que designam realidades sexuais ou escatológicas tendem a ser

percebidos como “vulgares”, na medida em que a desvalorização conferida ao conteúdo

estende-se ao significante.

Dessa maneira, entre o significante e o significado existe, em princípio, independência

dos respectivos sistemas de valorização (ou desvalorização), compensada por uma tendência

parcial à contaminação. Por sua vez, o significado e o denotado são intimamente solidários, já

que o significado é a imagem lingüística abstrata do denotado, e os semas que o compõem são

a imagem das propriedades pertinentes do denotado. Há entre eles (o significado e o

denotado) solidariedade geral dos respectivos sistemas de (des)valorização, compensada por

uma tendência parcial à autonomia.

Acredita-se que os próprios objetos referenciais constituem o centro de cristalizações

axiológicas e o objeto de julgamentos avaliativos que variam de uma sociedade para outra.

Convém, então, distinguir (num primeiro momento teórico) os valores axiológicos localizados

no nível da representação referencial (e que podem refletir-se em todo tipo de práticas

simbólicas) e os que se inscrevem nos significados lexicais. Além disso, a partir do referente e

graças à ação mediatizadora da competência ideológica, as conotações axiológicas, após certo

tempo, acabam por “passar” à língua;

c) O valor axiológico de um termo (ou, mais precisamente, o valor atribuído a um de

seus sememas) pode ser mais ou menos estável ou instável. Isto é: há termos que são

claramente marcados com uma conotação positiva ou negativa, bem como há termos que só

recebem determinada conotação em dialetos, socialetos ou idioletos particulares. A sociedade

européia, por exemplo, persiste na desvalorização da esfera do sexual e do escatológico;

valoriza o “alto” e o “grande”, em relação ao “baixo” e ao “pequeno”. Assim, ao se lidar com

temas desvalorizados, é muito comum o uso da hiperonímia e do eufemismo;

d) A variabilidade dos valores axiológicos suscetíveis de vir a investir uma mesma

unidade lexical não contribui em nada para facilitar sua análise. Só é possível atribuir

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qualquer valor a uma unidade significante com base em nossa intuição semântica, apoiada

eventualmente em certas considerações formais (como o uso de “mas” e de “até”).

Na ausência de métodos que permitam localizar automaticamente os axiológicos,

certos traços característicos das línguas naturais podem perturbar a economia dos valores

positivos e negativos, como por exemplo:

– Os fenômenos de “contra-valorização compensatória” (que consiste em passar a

valorizar o termo da oposição que se havia desvalorizado) e de “valorização por

contraste” (o que significa que, para um mesmo sujeito, o valor axiológico de um

termo pode variar, de acordo com a relação opositiva em que se considera: “x”

pode muito bem estar marcado positivamente em relação a “y” e negativamente

em relação a “z”);

– Os axiológicos, que – por suas propriedades semânticas – estão predestinados a

serem utilizados ironicamente, baseando-se a ironia no ato de expressar, sob a

aparência de valorização, um juízo de desvalorização. Os índices da inversão

semântica, por sua vez, nem sempre se deixam localizar facilmente;

– Os efeitos muitas vezes curiosos da ação do contexto verbal: expressão do excesso

(por exemplo, se a honestidade é sempre uma qualidade e a desonestidade é

sempre um defeito, como é possível dizer que alguém é “demasiado honesto” ou

“demasiado desonesto”?), efeitos paradoxais da atenuação (ao compararmos, por

exemplo, as frases “É uma posição forte.” e “É uma posição um pouco forte.”, o

valor positivo da primeira torna-se negativo na segunda, devido ao uso do

atenuante), fenômenos de contaminação cotextual (um texto carregado de

axiológicos ultrapassa o âmbito da conotação e é atingido até em suas unidades

mais objetivas);

e) Considerando-se o papel argumentativo dos axiológicos, chega-se ao problema mais

geral de relação que existe entre valor semântico e função pragmática – relação que se

manifesta no fato de que a freqüência dos axiológicos em geral e das categorias (positiva e

negativa, em particular) varia de acordo com a perspectiva ilocutória global do discurso.

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– Os axiológicos são naturalmente mais numerosos nos enunciados de intenção

avaliativa do que nos enunciados que têm pretensões descritivas;

– Os discursos elogiosos (como o discurso publicitário, cuja finalidade é tornar o

produto mais atrativo, a fim de vendê- lo melhor) exploram massivamente a

existência de termos laudatórios na língua;

– Simetricamente, os discursos polêmicos (uma vez que se propõem a desqualificar

um “alvo”) se caracterizam por mobilizar com essa finalidade muitos axiológicos

negativos, de “descrédito”. A esse respeito, pode-se questionar sobre as relações

que se dão entre os conceitos de “axiológico” e de “injúria”. A partir daí, é

possível concluir que os termos pejorativos estão sempre prontos para funcionar

como injúrias e que estas estão relacionadas à pragmática da linguagem, com o

propósito de fazer o receptor reagir à agressão verbal (por um mecanismo de

“estímulo ? resposta”), expressando a raiva ou fugindo. Logo, o traço axiológico

é uma propriedade semântica de certas unidades lexicais que lhes permite, em

determinadas circunstâncias, funcionar pragmaticamente como injúrias.

Desse modo, pode-se concluir que os axiológicos (elogiosos ou injuriosos) são

implicitamente enunciativos e desempenham o papel de detonadores ilocutórios com efeitos

imediatos e, às vezes, vio lentos. Portanto, seu uso exige infinitas precauções. E é por isso que

a língua culta prefere atenuá-los com recursos como lítotes (modo de afirmação por meio da

negação do contrário, como em “Ele não é nada bobo.”, em vez de “Ele é muito esperto.”) ou

eufemismo (somente no caso dos pejorativos, visto que se trata de amenizá- los). Assim, o

enunciador pode se posicionar a respeito de um determinado assunto sem confessar-se

abertamente como a fonte do juízo de valor.

• Adjetivos:

Os adjetivos podem ser divididos da seguinte maneira:

Adjetivos

Objetivos Subjetivos

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solteiro/casado

adjetivos de cor Afetivos Avaliativos

macho/fêmea dilacerador

alegre Não-axiológicos Axiológicos

patético grande bom

distante lindo

quente correto

abundante (Kerbrat-Orecchioni, op.cit., p. 84)

Faz-se necessário esclarecer que, neste momento, é válido tratar exclusivamente dos

adjetivos subjetivos (afetivos e avaliativos), pois são os que pertencem ao nível interpretativo

da linguagem.

- Os adjetivos afetivos enunciam, simultaneamente, uma propriedade do objeto que

determinam e uma reação emocional do sujeito falante causada por esse objeto. Implicam um

compromisso afetivo do enunciador e manifestam a presença dele no interior do enunciado.

Logo, devem ser evitados em discursos objetivos.

O valor afetivo pode ser inerente ao adjetivo ou, pelo contrário, derivar de um

significante prosódico (relacionado à pronúncia, ao tom de fala), tipográfico (por meio de

pontos de exclamação, por exemplo) ou sintático (uso de adjetivos antepostos, em expressões

como “o pobre homem”, que traz a conotação de piedade).

- Os adjetivos avaliativos não-axiológicos são aqueles que – sem enunciar juízo de

valor ou compromisso afetivo do locutor (ao menos em relação a sua estreita definição

lexical, pois no contexto podem naturalmente ganhar nuances afetivas ou axiológicas) –

implicam uma avaliação qualitativa ou quantitativa dos objetos denotados pelos substantivos

a que se referem e cujo uso se baseia numa norma dupla: a interna do objeto qualificado e a

específica do falante (que exprime subjetividade). Logo, o uso de adjetivos avaliativos

depende da experiência pessoal de cada um. Isso significa que em frases como “Nossa casa é

grande” pode-se até ter a impressão de que “grande” é uma qualidade absoluta, mas tal

impressão é ilusória; repousa sobre uma artimanha lingüística, a elipse. Na verdade, existe aí

uma comparação implícita: “Nossa casa é maior que o normal” (Ou seja, a casa é grande em

comparação à idéia que o enunciador tem de “casa-padrão”).

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- Os adjetivos avaliativos axiológicos são aqueles cujo emprego também implica uma

dupla norma:

(1) Só é possível comparar axiologicamente dois objetos pertencentes a uma

mesma categoria.

(2) Aplica-se ao objeto denotado pelo substantivo um juízo de valor, positivo ou

negativo.

Assim, os avaliativos axiológicos são duplamente subjetivos, visto que são usados de

acordo com a natureza particular do sujeito da enunciação (cuja competência ideológica é

refletida) e manifestam uma tomada de posição a favor ou contra o objeto denotado. Por essa

razão, também se evita o uso de axiológicos em enunciados de caráter científico, que devem

ser bastante objetivos.

Dentre os adjetivos axiológicos, há os que estão marcados de um modo relativamente

estável por um traço de (des)valorização agregado ao semema da unidade; há também aqueles

que – de acordo com o idioleto e com o contexto – só ocasionalmente podem receber uma

carga de conotação axiológica. O adjetivo “bom”, por exemplo, é intrinsecamente axiológico,

já que não se pode negar seu valor semântico de avaliativo positivo. Por outro lado, até os

adjetivos não-marcados na língua podem se tornar axiológicos em certas condições de uso e,

em compensação, os adjetivos marcados podem ter sua conotação usual invertida (Por

exemplo, em expressões como “um filme magnificamente imoral”, em que o adjetivo

“imoral” passa de injurioso a elogioso).

Logo, o contexto é o principal responsável pela especificação do valor axiológico de

um termo, além da presença de “pistas” textuais (Ex.: o uso de verbos introdutórios, como

“tratar-se de”; a coordenação com “mas”, indicador de contra-expectativa).

Vale destacar que a abordagem proposta por Kerbrat-Orecchioni (op. cit.)

complementa as idéias tradicionais, à medida que reforça a importância de se enfocar a

subjetividade no estudo das classes de palavras, para que não fique restrito à mera descrição

de estruturas lingüísticas.

3.10.3 Maria Helena de Moura Neves – Substantivos e adjetivos na gramática de usos da

língua portuguesa

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Em sua Gramática de usos do português, Neves (2000) apresenta os itens lexicais e

gramaticais da língua e, ao explicitar o uso de cada um deles em textos reais, trata das regras

que determinam seu funcionamento em todos os níveis, do sintagma ao texto. O objetivo é

“buscar os resultados de sentido, partindo do princípio de que é no uso que os diferentes itens

assumem seu significado e definem sua função, e de que as entidades da língua têm de ser

avaliadas em conformidade com o nível em que ocorrem, definindo-se, afinal, na sua relação

com o texto” (Neves, op. cit., p. 13).

Desse modo, os substantivos e os adjetivos são amplamente analisados em capítulos

diferentes, nos quais se evidencia a grande variedade de significados e de funções que podem

assumir. Assim, abordam-se diferentes usos de palavras pertencentes às duas classes em

questão, a partir de exemplos retirados de textos literários. Aliás, o maior diferencial da

proposta de Neves (op. cit.) em relação às já apresentadas é justamente a iniciativa de

priorizar a aplicação dos conteúdos discutidos e de não omitir os casos geradores de dúvida

(que, em geral, são tratados como “exceção” por outras gramáticas ou simplesmente deixados

de lado).

Uma vez que os comentários a respeito dos substantivos seguem o mesmo padrão das

abordagens já apresentadas (mesmas subclassificações e observações similares sobre as

variações de gênero, de número e de grau), não é necessário repeti- los neste momento. No

entanto, destacar-se-á a subclassificação proposta para os adjetivos, a qual se mostra

inovadora e proveitosa.

Segundo a autora (op. cit.), os adjetivos podem ser:

• Qualificadores ou qualificativos – Apontam, para o substantivo qualificado, uma

propriedade que não necessariamente forma o feixe das propriedades que o

determinam. Isso “pode implicar uma característica mais, ou menos, subjetiva, mas

sempre revestida de certa vaguidade. Essa atribuição de uma propriedade constitui

um processo de predicação, e, por isso, esses adjetivos podem ser considerados

de tipo predicativo.” (p. 185). Um exemplo pode ser encontrado no seguinte

trecho do Hino Nacional, cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada: “És belo,

és forte, impávido colosso”. 8

8 Na tentativa de manter o cuidado com a contextualização dos exemplos (conforme a proposta de Maria Helena de Moura Neves), todos os exemplos de adjetivos qualificadores e classificadores serão retirados de letras de músicas, a fim de tornar a abordagem da base teórica mais agradável e de confirmar a aplicação dessa teoria em textos diferentes dos já citados pela autora.

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• Classificadores ou classificatórios – Inserem o substantivo a que se referem numa

subclasse e portam uma indicação objetiva sobre ela. “Constituem, pois, uma

verdadeira denominação para a subclasse, e, portanto, são denominativos, e não

predicativos, possuindo um caráter não-vago.” (p. 186). Como exemplo, eis um

verso de “Água mineral”, de Carlinhos Brown: “Olha, olha, olha, olha a água

mineral!”.

Quanto aos adjetivos qualificadores pode-se afirmar que:

a) São graduáveis (Ex.: “Quando ela passa, o mundo inteirinho se enche de

graça e fica mais lindo por causa do amor” – “Garota de Ipanema”, de Tom

Jobim e Vinicius de Moraes);

b) São intensificáveis (Ex.: “Ando meio desligado, eu nem sinto os meus pés

no chão” – “Ando meio desligado”, de Sérgio Dias Baptista, Rita Lee e

Arnaldo Dias Baptista);

c) Fazem parte desse grupo todos os adjetivos formados com prefixos

intensificadores (Ex.: “Superfantástico! No Balão Mágico, o mundo fica

bem mais divertido!” – “Superfantástico”, de Ignácio Ballesteros, Difelisatti

e Edgard Poças) e todos os adjetivos que admitem sufixo superlativo (Ex.:

“Sou belíssima, sou belíssima ! E um grande amor me espera ao meu lado”

– “Belíssima”, de Vanessa Barum) ou sufixo diminutivo com valor de

intensificação (Ex.: “De olhos vermelhos, de pêlos branquinhos, de pulo

bem leve, eu sou o coelhinho” – música infantil composta por Duhilia

Madeira).

Quanto aos adjetivos classificadores pode-se dizer que expressam diversos valores

semânticos:

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a) De modalização epistêmica (quando exprimem conhecimento ou opinião do

falante) – Podem transmitir idéia de certeza/asseveração (Como em “Mas é

claro que o sol vai voltar amanhã” – “Mais uma vez”, de Renato Russo) ou de

eventualidade (Como em “É impossível não crer em Ti, é impossível não Te

encontrar” – “É impossível”, de Mauro Cezar Esteves da Cunha e Alexandre

Leite);

b) De modalização deôntica (quando expressam consideração, por parte do

falante, de necessidade por obrigatoriedade) – É o que ocorre, por exemplo, em

“É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir” – “Tocando em

frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira;

c) De avaliação psicológica (quando expressam propriedades que definem o

substantivo na relação estabelecida com o falante) – Pode ocorrer de duas

formas: Na direção da coisa nomeada para o falante (Como em “No sonho

você veio provocante, me deu um beijo doce e me abraçou” – “Dormi na

praça”, de Fátima Leão e Elias Muniz) ou na direção do falante para a coisa

nomeada (Como em “Apaixonada por você, eu vejo o vento te levar” –

“Abandonada”, de Michael Sullivan e Paulo Sérgio Valle);

d) De avaliação de propriedades intensionais (quando exprimem propriedades

que descrevem o substantivo) – Em relação à qualidade, os adjetivos podem

ser: eufóricos (de indicação para o bom, o positivo), disfóricos (de indicação

para o ruim, o negativo) ou neutros. Ex.: “Um dia feliz (eufórico) às vezes é

muito raro (neutro); falar é complicado (disfórico), quero uma canção”

(“Fácil”, de Wilson Sideral). Já em relação à quantidade, os adjetivos são, em

princípio, neutros. Com substantivos concretos, eles indicam dimensão ou

medida (Ex.: “Aquele fio de cabelo comprido já esteve grudado em nosso

suor” – “Fio de cabelo”, de Marciano e Darci Rossi); com substantivos

abstratos, eles exprimem intensificação (Ex.: “Cheia de charme... Um desejo

enorme de se aventurar” – “Cheia de charme”, de Guilherme Arantes),

atenuação (Ex.: “Eu só tenho um simples desejo: Hoje eu só quero que o dia

termine bem” – “Simples desejo”, de Jair Oliveira e Daniel Carlomagno) e

definição (quando há ligação a uma base quantitativa) do modo, ou qualidade,

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do estado de coisas (Ex.: “Pai, pode ser que daí você sinta qualquer coisa entre

esses vinte ou trinta longos anos em busca de paz” – “Pai”, de Fábio Jr.);

e) De avaliação de termos lingüísticos – Os adjetivos são epilingüísticos9, pois

predicam o substantivo empregado de autenticação, legitimando-o em seu uso

(Ex.: “Não sentem o momento crítico, talvez apocalíptico. Os Tigres Asiáticos

são o exemplo típico: agora mais parecem gatinhos raquíticos e asmáticos”, em

“Globalização”, de Fauzi Beydoun), e de relativização – o que torna o uso

desse substantivo apenas aproximado, já que a aplicabilidade do mesmo torna-

se relativa (Ex.: “Tem de ser um lance legal, tem que ter um certo sabor, muita

calma durante, loucuras no final”, em “Lance Legal”, de Guilherme Arantes).

Em relação aos adjetivos qualificadores, é importante dizer que podem constituir

sozinhos enunciados exclamativos, em função atributiva, como acontece no seguinte trecho

de uma música do grupo “Babado Novo”: “Safado! Cachorro ! Sem-vergonha! Eu dou duro

o dia inteiro e você, colchão e fronha!” (composta por Durval Luz e Nino Balla).

Os adjetivos classificadores, por sua vez, geralmente correspondem a sintagmas

nominais do tipo “de + nome” (locuções adjetivas). “Eles têm, portanto a mesma

distribuição, no texto, que essas locuções, e freqüentemente se coordenam com elas” (p. 192),

o que se pode observar no trecho “Ritmo de festa que balança o coração; festa divertida,

colorida, de emoção” (“Ritmo de festa”, de Sílvio Santos e Roque).

O caráter não-vago que esses adjetivos apresentam faz com que todos os adjetivos

com prefixos de valor numérico (como o sublinhado em “A burrice está na mesa. Veja que

beleza! Refinada, poliglota”, versos de “Burrice”, de Tom Zé) sejam classificadores, bem

como os adjetivos derivados de nomes próprios (como o marcado nos versos de “A Gravata”,

também de Tom Zé: “Moderna, bem colorida, para a vítima se alegrar, é um processo

freudiano para a autopunição”).

Além disso, existem prefixos que dão força predicativa a adjetivos classificadores. É

o que ocorre, por exemplo, em “Não é a verdade, não é diversidade. Agora vende-se a ilusão

de uma vida anticorporativa” (“Anticorporativa”, de Sérgio Britto).

9 De acordo com Franchi (2006), “chamamos de atividade epilingüística a essa prática que opera sobre a própria linguagem, compara as expressões, transforma-as, experimenta novos modos de construção canônicos ou não, brinca com a linguagem, investe as formas lingüísticas de novas significações” (p. 97)

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Também vale ressaltar que vários adjetivos classificadores exprimem noções

adverbiais:

• Delimitação, ou circunscrição – O adjetivo reduz o domínio de extensão do que é

designado pelo nome, da perspectiva de um domínio de conhecimento (Ex.:

“Viajando através do Brasil... Seu patrimônio histórico hoje nos traz o tempo

imperial” – Em “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, antigo samba-enredo do

Salgueiro, composto por Djalma Sabiá e Duduca) ou de um ponto de vista

individual (Ex.: “Vem cá, não tenha medo... A água é potável, daqui você pode

beber. Só não se perca ao entrar no meu infinito particular.” – Em “Infinito

particular”, de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown).

• Localização no espaço – Os adjetivos localizam objetos, ações, estados e

processos. A localização pode ser absoluta (Ex.: “Rumores falam em guerrilha.

Foto no jornal, cadeia nacional.” – Em “Revoluções por minuto”, de Paulo

Ricardo e Luiz Schiavon) ou relativa (Ex.: “Da janela lateral do quarto de dormir

vejo uma igreja, um sinal de glória” – Em “Paisagem da janela”, de Beto Guedes).

• Localização no tempo – Os adjetivos (exofóricos ou endofóricos) podem

exprimir anterioridade (sempre pospostos, como em “A noite passada você veio

me ver; a noite passada eu sonhei com você”, versos de “La bella luna”, de

Herbert Vianna), posterioridade (pospostos, ou antepostos como em “Eu vou

tentar ser bem mais competente na escolha da próxima paixão” – trecho de “Não

chore, homem”, de Vanessa da Mata) ou concomitância (antepostos, ou pospostos

como em “Minhas roupas estampam em cores a beleza do caos atual” – trecho de

“Tubi Tupy”, de Lenine e Carlos Rennó).

• Quantidade de tempo transcorrido – Os adjetivos podem indicar, sempre em

relação a um passado, quantidade definida (Ex.: “Claridade na janela, deixa

entrar... Está na hora de acordar, coragem! Pra brilhar na escuridão de um novo

ciclo milenar, milenar...” – Em “Ciclo milenar”, de Jorge Vercilo e Maurício

Mattar) ou quantidade indefinida (Ex.: “Eu prefiro ser essa metamorfose

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ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo” – Em

“Metamorfose ambulante”, de Raul Seixas).

• Substituição no tempo – Os adjetivos, sempre antepostos, podem indicar

substituição no tempo, do presente para o passado (Ex.: “Sou apenas seu antigo

amor: o que chora, o que ri, mas precisa tanto de você” – Em “Antigo amor”, de

Benito di Paula) ou do passado para o presente (Ex.: “Vem! Nós dois vamos

tentar... Só um novo amor pode a saudade apagar” – Em “Caminhos cruzados”, de

Tom Jobim e Newton Mendonça).

• Aspecto – Os adjetivos conferem uma noção aspectual (aspecto pontual,

freqüentativo, durativo, etc.) à ação, estado ou processo referido pelo nome.

Pode haver implicação numérica, como em “Nos sábados e domingos, no meu

descanso semanal, tô quebrado e ainda tô duro, de salário e visual” (“Trabalhando

com a britadeira”, de José Luís Moro e Edgard Poças). No entanto, há casos em

que essa implicação numérica não ocorre (Ex.: “Dirá que a coisa vai mal, que

perdi a razão, a calma habitual”, em “Diga viver”, de Danilo Caymmi e Costa

Neto).

A abordagem proposta por Neves (op. cit.) diferencia-se das demais por seguir um

viés semântico, ao apontar uma série de significados que podem ser atribuídos aos textos por

meio do uso de substantivos e de adjetivos. Além disso, como já se afirmou, a autora

privilegia a contextualização dos exemplos utilizados, o que é essencial para o

estabelecimento da significação de cada termo.

4. Procedimentos metodológicos

Serão analisadas, a seguir, algumas fábulas de Esopo (considerado por muitos “o pai

da fábula”) e de Millôr Fernandes, que é um dos autores contemporâneos responsáveis pela

perpetuação desse gênero textual. É válido esclarecer que os textos selecionados dialogam,

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uma vez que Millôr Fernandes tornou-se mestre em parodiar10 fábulas de Esopo, com o

intuito de reforçar ou de transgredir as morais propostas.

Parece-nos que esse confronto é o cerne de nosso trabalho, pois visa a colocar face a

face a tradição (Esopo) – em sintonia com a doxa – e a transgressão (Millôr), na

desconstrução do texto.

Com base nas idéias de Duarte (2003), Fiorin & Savioli (1997), Kerbrat-Orecchioni

(1980) e Neves (2000), destacar-se-ão, nessas fábulas, as marcas de intertextualidade, bem

como os mecanismos de coesão lexical (a reiteração e os diversos tipos de substituição) e os

valores semânticos expressos por alguns nomes. Além disso, serão estudados os papéis que

esses nomes desempenham nos processos de figurativização e de tematização, no que se

refere à codificação lingüística, a fim de se comprovar a validade do seguinte quadro:

Figuras Temas - substantivos concretos - substantivos abstratos

- adjetivos objetivos - adjetivos subjetivos afetivos

- adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos - adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos

É importante enfatizar que esse padrão será seguido para o estudo de todas as fábulas.

Portanto, os referenciais teóricos apresentados na primeira análise – no que diz respeito ao

uso de termos específicos – serão omitidos nas outras, por estarem subentendidos.

A fim de facilitar a análise, os textos serão divididos em seis “blocos”, conforme a

relação de intertextualidade. Em cada um desses “blocos”, as fábulas serão analisadas

separadamente e depois se fará uma breve comparação entre elas.

Após essas análises comparativas, apresentar-se-á uma série de atividades didáticas,

também baseadas em quatro pares de fábula de Esopo e de Millôr Fernandes.

5. Análise do corpus

5.1 “O leão, o asno e a raposa” / “O leão, o burro e o rato”

1 0Segundo Sant’Anna (1999), “a paródia, por estar do lado do novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma. De avanço em avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmaticamente. Em contraposição, se poderia (sic) dizer que a paráfrase, repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma”. “Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar da intertextualidade das semelhanças. Enquanto a paráfrase é um discurso em repouso, [...] a paródia é o discurso em progresso”. “Na paráfrase alguém está abrindo mão de sua voz para deixar falar a voz do outro. Na verdade, essas duas vozes, por identificação, situam-se na área do mesmo. Na paródia busca-se a fala recalcada do outro”. (pp. 27-29)

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O leão, o asno e a raposa

Um leão, um asno e uma raposa selaram com libação uma sociedade entre eles e saíram à

caça. Assim que apanharam uma boa quantidade, o leão designou o asno para fazer a partilha. Ele, então, fez três partes iguais e convidou o leão a escolher. Enfurecido, o leão saltou sobre ele, devorou-o e depois designou a raposa para fazer a divisão. Ela, por sua vez, reuniu tudo em um só monte, tendo reservado para si uma pequena porção, e convidou o leão a fazer a escolha. E quando o leão lhe perguntou quem é que a ensinara a repartir daquela maneira, a raposa respondeu: “A desgraça do asno.”

A fábula mostra que os infortúnios do próximo se tornam, para os homens, fonte de sabedoria. (Esopo, in: Dezotti, 2003, p. 56)

Como já foi anteriormente observado, o uso de artigos definidos no título justifica-se

pela questão do domínio público, para que se ativem os estereótipos dos seres que cada nome

identifica.

A fim de seguir o padrão proposto, serão analisados, inicialmente, os mecanismos de

coesão lexical apontados por Duarte (2003, pp. 114-115).

Os exemplos de reiteração estão marcados na própria fábula com cores diferentes

(padrão a ser mantido em todas as análises). Pode-se verificar que a quantidade de termos

repetidos é grande, o que torna a linguagem mais simples e mais próxima da utilizada no

cotidiano, o que é uma característica das fábulas.

Quanto à substituição, pode-se fazer a seguinte observação: há dois casos de sinonímia

no texto: partilha (linha 2) / divisão (linha 4); desgraça (linha 6) / infortúnios (linha 8). Em

todos os casos, houve substituições lexicais por meio de vocábulos semanticamente neutros.

Em relação à proposta apresentada por Fiorin & Savioli (1997, pp. 71-96), o texto

pode ser classificado como figurativo, visto que a ocorrência de figuras é mais expressiva do

que a de temas, o que fica claro a partir da observação do seguinte quadro:11

FIGURAS (22) TEMAS (12)

leão / asno / raposa / quantidade / leão / asno / libação / sociedade / caça / boa / partilha /

partes / iguais / leão / leão / raposa / só / enfurecido / divisão / escolha / desgraça /

monte / pequena / porção / leão / leão / raposa / infortúnios / fonte / sabedoria

asno / fábula / próximo / homens

Assim, de acordo com as idéias de Kerbrat-Orecchioni (1980, p. 83 e seguintes),

verifica-se, nessa fábula, que substantivos concretos (leão, asno, raposa, quantidade, partes,

monte, porção, fábula, próximo, homem) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos

1 1 Como o quadro apresentará todos os nomes utilizados no texto (na ordem em que aparecem), não se omitirão os casos de reiteração , o que justifica a repetição de termos. Também é importante explicar que os números entre parênteses representam a quantidade de figuras e de temas encontrados na fábula.

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(iguais, só, pequena) são responsáveis pela figurativização, enquanto substantivos abstratos

(libação, sociedade, caça, partilha, divisão, escolha, desgraça, infortúnios, fonte, sabedoria),

adjetivos subjetivos afetivos (enfurecido) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (boa)

marcam a tematização. É importante lembrar que, embora não haja adjetivos objetivos na

fábula em questão, eles também marcam a figurativização.

Também vale enfatizar que, na moral, as figuras “fábula”, “próximo” e “homens”

aproximam a história da realidade, a fim de que o leitor chegue à conclusão de que o

ensinamento pode se aplicar à sua própria vida. Logo, como a raposa, devemos aprender com

as experiências alheias.

A respeito dos valores semânticos dos nomes no texto, podem-se fazer as seguintes

afirmações:

• Os nomes que designam os personagens já são uma “pista” para o leitor, pois o leão, o

asno e a raposa simbolizam, por estereótipos, poder, burrice e esperteza,

respectivamente (o que se confirma no decorrer da história, já que a esperta raposa não

repete a atitude estúpida do asno de equiparar-se ao poderoso leão).

• Com base nas idéias de Neves (2000. pp. 184-219), é possível dizer que:

– A expressão “boa quantidade” (em “Assim que apanharam uma boa

quantidade”- l. 2) é um exemplo de que o papel desempenhado por um nome

depende do contexto. Assim, o adjetivo “boa” (geralmente um qualificador

eufórico) anteposto a um substantivo concreto funciona como um

classificador neutro, exprimindo avaliação de propriedade intensional (boa

quantidade ? quantidade suficiente, satisfatória). Aliás, faz-se necessário

esclarecer que o substantivo “quantidade” (geralmente abstrato) é concreto

nesse texto, pois equivale a “porção”.

– O adjetivo classificador “iguais” (em “Ele, então, fez três partes iguais”- l. 2-

3) desempenha um papel fundamental na fábula, pois sinaliza que o asno

colocou-se (junto com a raposa) no mesmo patamar que o leão, despertando

a fúria deste, expressa pelo adjetivo qualificador disfórico “enfurecido” (em

“Enfurecido, o leão saltou sobre ele”- l. 3). Os adjetivos classificadores “só”

(em “Reuniu tudo em um só monte”- l. 4) e “pequena” (em “tendo reservado

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para si uma pequena porção”- l. 4-5), por sua vez, também são essenciais

para o desenrolar da história, visto que a disposição dos alimentos em um

monte único para o leão, após a retirada de uma quantidade pequena de

alimento pela raposa, deixou o poderoso animal bastante satisfeito, o que a

livrou de um destino semelhante ao do asno.

O leão, o burro e o rato

Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada que haviam empreendido juntos1 e colocaram numa clareira tudo que tinham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca e muita caça menor. O leão sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:

- Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por favor, você, que é o mais sábio de nós três, com licença do compadre rato, você, compadre burro, vai fazer a partilha desta caça em três partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, até o rio, beber um pouco de água, deixando nosso grande amigo burro em paz para deliberar.

Os dois se afastaram, foram até o rio, beberam água2 e ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:

- Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha? O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.

Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse: - Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de que concorda em que não podíamos suportar a presença de tamanha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava mais o compadre burro. Me faça um favor agora – divida você o bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberação sensata.

Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza3 morto por acaso. O leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato o chamou:

- Compadre leão, está pronta a partilha! O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde deixar de cumprimentar o rato:

- Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você chegou tão depressa a uma partilha tão certa?

E o rato respondeu: - Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o meu – é claro que

você precisa comer muito mais. Tracei uma comparação entre a sua força e a minha – é claro que você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha – e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!

- Inacreditável, inacreditável! Que compreensão! Que argúcia! – exclamou o leão, realmente admirado. – Olha, juro que nunca tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?

- Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.

Moral: Só um burro tenta ficar com a parte do leão.

1 A conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum. 2 Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato estava sujando a água que ele bebia. Mas isso é outra fábula. 3 Os ratos devem se contentar em se alimentar de ratos. Como diziam os latinos: Similia similibus curantur.

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(Fernandes, 2005, pp. 73-75)

Novamente, os exemplos de reiteração são muitos (o que, como já se afirmou, é típico

do gênero “fábula”) e estão destacados no texto com cores diferentes.

Em relação à substituição, as seguintes observações podem ser feitas:

• Há dois casos de sinonímia no texto: “trabalho” (l. 5)/ “esforço” (l. 6); “cultura” (l. 36)

/ “sabedoria” (l. 37).

• A meronímia ocorre uma vez, em “... dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma

paca e muita caça menor” (l. 2-3). Afinal, os termos “veados”, “perdizes”, “tatus” e

“paca” mantêm uma relação parte-todo com “caça”.

O texto pode ser considerado figurativo, uma vez que há mais figuras do que temas, como

se pode comprovar com o seguinte quadro:

Desse modo, é possível verificar que, nessa fábula, substantivos concretos (ex.: leão,

rato, rio), adjetivos objetivos (ex.: morto, cinza) e adjetivos subjetivos avaliativos não-

FIGURAS (91) TEMAS (62) leão / burro / rato / clareira / veados / perdizes / caçada / magnífico / trabalho / justa /

tatus / paca / caça / menor / leão / tronco / voz / partilha / sábio / licença / partilha / grande/

tonitruante / camaradas / esforço / conjunto / paz / tempo / trabalho / meticuloso /

burro / rato / burro / caça / partes / iguais / rato / partilha / violenta / patada / impressão /

rio / água / amigo / burro / rio / água / burro / presença / tamanha / inaptidão / burrice /

caça / partes / iguais / burro / leão / leão / leão / paciência / favor / calma / deliberação /

nuca / burro / chão / morto / leão / rato / rato / sensata / dúvida / pronta / partilha /

burro / bolo / caça / corpo / burro / rio / leão / justa / maravilhoso / caro / maravilhoso /

rato / menor / monte / caça / toda / caça / corpo / partilha / certa / simples / relação /

burro / ratinho / cinza / morto / leão / rio / rato / tamanho / claro / comparação / força /

matemática / maior / leão / leão / caça / rato / claro / volume / alimentação / posição

compadre / rato / floresta / intelectual / leão / partilha / espírito / inacreditável /

leão / burro /morto / parte / leão / meio ambiente inacreditável / compreensão / argúcia /

água / leão / rato / água / fábula / ratos / ratos / admirado / cultura / sabedoria / elogio /

latinos fúnebre / burro / conjugação / esforços

heterogêneos / destruição / comum

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axiológicos (ex.: conjunto, iguais) marcam a figurativização, enquanto substantivos abstratos

(ex.: paciência, compreensão, sabedoria), adjetivos subjetivos afetivos (ex.: inacreditável,

maravilhoso) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (ex.: certa, justa) são responsáveis

pela tematização.

Quando o leitor alcança a esfera temática de uma fábula, percebe que a moral traz

sempre um ensinamento. Nesse caso, o “conselho” é que se deve manter sempre a humildade,

principalmente perante os mais poderosos.

A respeito dos valores semânticos dos nomes no texto, pode-se afirmar que:

• Mais uma vez, os nomes que identificam as personagens sinalizam para o leitor o tipo

de comportamento que se pode esperar delas. É um procedimento discursivo normal –

e comum em fábulas – a personificação de animais, que se apresentam como

estereótipos de determinados comportamentos sociais. Sabe-se que o leão

(considerado o “rei dos animais”) é símbolo de poder, que o burro (como a própria

palavra, no sentido conotativo, já diz) representa “falt a de inteligência” e que o rato

simboliza covardia (o que se comprova pela conhecida pergunta “Você é homem ou é

um rato?”, muito usada para testar a coragem masculina) e também a esperteza. E

todas as “expectativas” se confirmam no desenrolar da fábula, pois o rato não tem

coragem de pegar uma quantidade maior de alimento, a fim de se preservar do mesmo

destino do “burro burro”(que morrera por causa da petulância de se equiparar ao

poderoso leão), comportamento este que revela, também, como o próprio leão

reconhece, a “argúcia” do rato.

• É válido ressaltar que a expressão “um burro” utilizada na moral (“Só um burro tenta

ficar com a parte do leão”) parece ser propositalmente ambígua, pois pode ser

interpretada como referência a um animal ou a um ser de pouca inteligência.

• Os adjetivos classificadores “juntos” (em “caçada que haviam empreendido juntos”-

l. 1) e “conjunto” (em “justa partilha do nosso esforço conjunto”- l. 6) são

fundamentais para o desenrolar da história, visto que justificam a partilha do que se

conseguira com a caça coletiva.

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• O adjetivo qualificador “tonitruante” (em “voz tonitruante que procurava inutilmente

suavizar”- l. 3-4), que significa “estrondosa” (em referência à voz do leão), simboliza

o poder do animal, que vem a se confirmar. Esse adjetivo mostra-se disfórico, já que

o leão tentava disfarçar a voz.

• O adjetivo classificador “matemática” (em “Estabeleci uma relação matemática entre

seu tamanho e o meu” - l. 30) indica delimitação ou circunscrição (hedge),

especificando o tipo de relação estabelecida pelo rato. Além disso, o uso desse

adjetivo pode suscitar os seguintes questionamentos (em aberto), considerando-se que

nas fábulas tradicionais há sempre a figura do bom e a do mau: Será que o leão não

tinha mesmo direito a uma parte maior da caça? Até que ponto a moral dele é “torta”,

em termos de justiça? Afinal, a fera certamente caçara presas maiores e, de acordo

com o próprio rato, tem maior necessidade de alimentos (“É claro que você precisa

comer muito mais.”/ “É claro que você precisa de muito maior volume de

alimentação do que eu.” – l. 30-32).

• O adjetivo qualificador eufórico “magnífico” (em “Agora que terminamos um

magnífico dia de trabalho”- l. 5) sinaliza o sucesso da caçada, o que reforça a

crueldade do leão. Afinal, mesmo após a divisão, devia haver bastante alimento para

os três animais.

• Os adjetivos qualificadores eufóricos “justa” (em “vendo a caça dividida de maneira

tão justa”- l. 26) e “certa” (em: “uma partilha tão certa”- l. 27-28), ao caracterizarem a

partilha solicitada pelo leão, demonstram o quanto essas noções são subjetivas.

Assim, por se considerar superior, o leão julgava ser justo e certo receber uma porção

maior de alimento. Trata-se, portanto, de genuínos adjetivos subjetivos axiológicos.

• O adjetivo qualificador eufórico “sábio”, que aparece de forma graduada em “Você,

que é o mais sábio de nós três” (l. 6-7), em referência ao burro, soa como ironia, visto

que não foi feita a partilha conforme o desejo do leão. No entanto, é preciso enfatizar

que o burro simplesmente seguiu a ordem recebida (dividir os alimentos em “três

partes absolutamente iguais”). Só lhe faltou sabedoria para prever que o leão exigiria

mais para si mesmo, por se julgar superior.

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• A expressão “grande amigo” (l. 9), utilizada pelo leão para se referir ao burro, é mais

um exemplo de que o papel dos nomes pode variar, de acordo com o contexto. Assim,

o adjetivo “grande” (geralmente classificador e relacionado à características

dimensionais) passa a qualificador (eufórico), ao anteceder a palavra “amigo”

(indicando importância, valor afetivo).

• O adjetivo qualificador eufórico “meticuloso”, intensificado por um advérbio (em

“um trabalho extremamente meticuloso”- l. 11), comprova que a estupidez do burro

não estava relacionada a dificuldades para realizar a tarefa, mas à ousadia de se

colocar no mesmo patamar do leão.

• O adjetivo qualificador disfórico “violenta” (l. 14), referente à patada que o leão deu

no burro, é importante porque justifica a morte instantânea deste.

• O adjetivo qualificador eufórico “sensata” (em “deixando- lhe calma para uma

deliberação sensata”- l. 21) mostra-se bastante subjetivo, uma vez que a deliberação

do burro (teoricamente sensata) foi considerada absurda pelo leão.

• As expressões “Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso!” (l. 27) e

“Inacreditável, inacreditável!” (l. 35) são bons exemplos de que adjetivos

qualificadores (nesse caso, eufóricos) podem constituir sozinhos enunciados

exclamativos.

• O adjetivo classificador de modalização epistêmica “claro”, em “É claro que você

precisa comer muito mais” (l. 30-31) e em “É claro que você precisa de muito maior

volume de alimentação do que eu” (l. 31-32), ao introduzir informações que

deixariam o leão satisfeito, demonstra a intenção do rato de bajular o leão, a fim de se

salvar.

• Em “Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!” (l. 33-34), pode-se dizer

que, morfologicamente, se esperaria o uso de adjetivos após o verbo de ligação “sou”.

No entanto, “intelectual” aparece substantivado, em função de predicativo

(conferindo um atributo ao sujeito), e o substantivo “espírito” – precedido pelo

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pronome adjetivo indefinido “todo”, que tem um viés semântico de intensificação –

cumpre o papel de caracterizar o sujeito.

Cabe destacar que as notas de rodapé podem funcionar como “mini-morais”. É o que

acontece com a primeira nota de rodapé dessa fábula (“A conjugação de esforços tão

heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum”), em que aparecem

vários temas (ex.: conjugação, esforços, heterogêneos, destruição). Outro exemplo pode ser

encontrado na terceira nota, que – apesar de se manter, inicialmente, na esfera figurativa (“Os

ratos devem se contentar em se alimentar de ratos”) – apresenta o ditado latino “Similia

similibus curantur”, que significa “As coisas semelhantes são curadas pelas coisas

semelhantes” ou “Os iguais são curados pelos iguais”. Assim, percebe-se que há uma

passagem para a esfera temática.

Dessa forma, pode-se concluir que Millôr Fernandes faz uma releitura da fábula de

Esopo, parodiando-a. Apesar de tratar do mesmo episódio (divisão dos frutos de uma caçada

coletiva), Millôr muda uma das personagens (o rato aparece no lugar da raposa) e altera a

moral (“Só um burro tenta ficar com a parte do leão”, em vez de “Os infortúnios do próximo

se tornam, para os homens, fonte de sabedoria”).

Essas modificações são muito interessantes, já que dão margem a novas interpretações

e permitem até mesmo uma mudança de foco na leitura. Afinal, a troca da raposa (símbolo de

esperteza) pelo rato (símbolo de covardia) parece sugerir que a atitude de bajular o leão pode

até ter sido a mais sábia, mas não deixou de ser covarde. Em relação à mudança da moral, é

possível afirmar que o autor não enfoca a questão do aprendizado, mas a da supremacia do

poder.

Ainda sobre a alteração da moral, pode-se dizer que Millôr prefere deixá- la na esfera

figurativa (apesar da ambigüidade da palavra “burro”, como já se discutiu), a fim de que

possa se encaixar em diferentes situações da vida real.

5.2 “O velho e a morte” / “O miserável e a morte”

O velho e a morte

Certa vez um velho seguia um longo trajeto carregando a lenha que cortara. Fatigado da caminhada, pôs o fardo no chão e invocou a Morte. Como a Morte lhe aparecesse e lhe perguntasse por que ele a invocara, o velho falou: “Para que levante do chão o meu fardo!”

A fábula mostra que todo ser humano ama a vida, ainda que miserável. (Esopo, in: Dezotti, 2003, p. 70)

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FIGURAS (13) TEMAS (4)

velho / longo / trajeto / lenha / fardo / chão / fatigado / caminhada / vida / miserável Morte / Morte / velho / chão / fardo / fábula / ser humano

Vale destacar que esse texto é uma fábula, mesmo que a personagem principal seja um

velho. Afinal, o ser humano não deixa de ser um animal e, de qualquer forma, o importante é

que haja no texto uma significação maior subjacente. Nesse caso, a lição que fica é a seguinte:

Mesmo que soframos durante a vida, ninguém deseja morrer.

Apesar de os exemplos de reiteração destacados serem apenas quatro, essa quantidade

é expressiva, visto que a fábula é bastante curta.

A respeito da substituição, pode-se dizer que há um exemplo de meronímia, pois os

termos “lenha” e “fardo” têm uma relação parte-todo. Vale destacar, no entanto, a carga

semântica do segundo termo em relação ao primeiro – “fardo” não é um vocábulo

semanticamente neutro, visto que acrescenta ao sentido primário um complementar, de

“peso”, “sofrimento”.

O texto é figurativo, visto que contém mais figuras do que temas. Observe-se o

quadro:

Assim, verifica-se que, nesse texto, substantivos concretos (velho, trajeto, lenha, fardo,

chão, Morte, fábula, ser humano) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos (longo)

são responsáveis pela figurativização, enquanto substantivos abstratos (caminhada, vida),

adjetivos subjetivos afetivos (fatigado) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos

(miserável) marcam a tematização.

Em relação aos valores semânticos dos nomes nessa fábula, é possível afirmar que:

• O nome Morte não aparece como substantivo abstrato; é alçado à categoria de

substantivo próprio, tanto que é iniciado por letra maiúscula.

• O nome “velho”, por ser um adjetivo substantivado, traz consigo uma carga de

atributo. Já indica que se trata de uma personagem debilitada, o que se comprova com

a interrupção da caminhada.

• Logo na primeira linha do texto, os adjetivos qualificadores disfóricos “longo” e

“fatigado” (disfóricos, nesse caso específico) sinalizam a dificuldade da caminhada.

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• O adjetivo qualificador disfórico “miserável”, na última linha do texto, permite

diferentes interpretações da moral, uma vez que pode ser atribuído à “vida” ou ao “ser

humano”.

O miserável e a morte

Um dia, um homem, um miserável, na verdade o mais miserável dos homens, não agüentando mais o peso do seu fardo, cansado, frustrado e suado, gritou aos céus pedindo que a morte o livrasse de tanto sofrimento. “Que tive eu na vida senão angústia e dor e tédio? Que tive eu senão a casca do fruto, o podre do maduro, a lágrima que sobrou do riso alheio?” E sentindo-se um tanto grandiloqüente pra sua humilde posição social, ajuntou: “Nunca dei uma dentro!” E, ainda mais, definitivamente trágico: “Morte, me livra desta carga!” Mas quando a morte, prestimosa e pressurosa como em todas as fábulas, apareceu subitamente à sua frente, radiosa e leve1 e lhe disse: “Pronto, amigo, aqui estou eu: que deseja de mim?”, o homem, apavorado diante da realidade2, saiu pela tangente: “Pois é, amiga, é como eu disse: gostaria que você me livrasse do meu fardo.” E, imediatamente, passou pra ela o saco de 80 quilos que tinha nas costas3. “Ah, miserável!”, esbravejou rindo a morte4, “com que então me chamas e, na hora em que apareço, usas um lamentável truque lingüístico, um jogo de palavras pueril pra fingir que querias outra coisa de mim? Pois bem, desgraçado, nunca mais me verás! Te condeno a viver eternamente!” E desapareceu como tinha surgido5.

Aí o homem, ainda mais desesperado com a perspectiva de viver para sempre, largou o fardo ali mesmo, pegou um táxi pra ir pra casa e, como não podia deixar de acontecer, o táxi bateu num poste, depois entrou numa padaria, depois caiu no canal do Mangue, depois invadiu uma praia de banhistas, tendo o homem morrido no desastre, embora o chofer tenha escapado e continue desaparecido. Moral: Saber morrer é o problema, que viver qualquer um vive.

(Fernandes, 1978, pp. 27-28)

Mais uma vez, há muitos exemplos de reiteração no texto, o que confirma essa

característica das fábulas. Quanto à substituição, pode-se dizer que ocorre a sinonímia:

“fardo” (l. 2) / “carga” (l. 7); “miserável” (l. 13) / “desgraçado” (l. 15).

A fábula em questão pode ser considerada um texto figurativo, já que contém mais

figuras do que temas:

1 A morte não é tão feia quanto se pinta. 2 Como diria o falecido: “Na prática a teoria é diferente”. 3 O homem era estivador. 4 A morte jamais perde seu senso de humor. Como não rir, sendo caveira? 5 Teria morrido? Eis uma pergunta: a morte morre?

FIGURAS (47)

homem / miserável / homens / fardo / suado / céus / morte / casca / fruto / lágrima / riso / morte / carga / morte / fábulas / amigo / amiga fardo / saco / costas / morte / truque / lingüístico / jogo de palavras / coisa / fardo / táxi / casa / táxi / poste / padaria / canal do Mangue / praia / banhistas / homem / chofer / desaparecido / morte / feia / falecido / diferente / homem / estivador / morte / caveira / pergunta / morte

TEMAS (27)

miserável / peso / cansado / frustrado / sofrimento / angústia / dor / tédio / podre / maduro / alheio / grandiloqüente / humilde / trágico / prestimosa / pressurosa / radiosa / leve / apavorado / realidade / miserável / lamentável / pueril / desgraçado / desesperado / desastre / problema

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Desse modo, pode-se verificar que, nesse texto, substantivos concretos (ex.: homem,

táxi, poste), adjetivos objetivos (ex.: suado, desaparecido) e adjetivos subjetivos avaliativos

não-axiológicos (ex.: diferente) são responsáveis pela figurativização. A tematização, por sua

vez, é marcada pelo uso de substantivos abstratos (ex.: sofrimento, angústia, dor), adjetivos

subjetivos afetivos (ex.: desesperado) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (ex.:

humilde).

A fábula também traz um ser humano como uma das personagens, o que comprova

que esse fato não a descaracteriza. A morte, por sua vez, aparece personificada no decorrer da

narrativa. No entanto, é importante ressaltar que a palavra “morte” é usada de maneira um

pouco ambígua nas notas de rodapé, já que também seria possível interpretá- la de maneira

abstrata.

O “sentido maior” subjacente ao texto refere-se à dificuldade humana de se lidar com

o sofrimento, com tudo o que é negativo.

Em relação aos valores semânticos dos nomes utilizados, é possível afirmar que:

• O adjetivo qualificador disfórico “miserável” aparece duas vezes logo na primeira

linha do texto. Inicialmente, identifica a personagem – nesse caso, é classificado como

figura – e, em seguida, caracteriza essa personagem (de forma graduada, inclusive),

desempenhando o papel de tema: “Um dia, um homem, um miserável, na verdade o

mais miserável dos homens (...) gritou aos céus” (l. 1-2). O termo é usado novamente

na linha 13, mas agora alçado à posição de núcleo do sintagma, já que o determinado

está em elipse: “‘Ah, (homem) miserável!’, esbravejou rindo a morte”.

• Os adjetivos qualificadores disfóricos “cansado”, “frustrado” e “suado” (l. 2) são

importantes para o desenvolvimento da fábula, uma vez que justificam a súplica do

miserável, ao caracterizá-lo. O mesmo ocorre com os substantivos abstratos

“angústia”, “dor” e “tédio” (l. 4), que reafirmam o estado emocional do homem.

• A palavra “céus” (em: “gritou aos céus pedindo que a morte o livrasse de tanto

sofrimento” - l. 2-3) é utilizada metaforicamente para representar alguma “força

superior” que fosse capaz de atender o pedido do homem.

• As expressões destacadas em “Que tive eu senão a casca do fruto, o podre do maduro,

a lágrima que sobrou do riso alheio?” (l. 4-5), formadas basicamente por nomes (visto

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que até mesmo a oração adjetiva poderia ser trocada pelo nome “restante”), também

reforçam o motivo do desespero do homem, uma vez que apontam (metaforicamente)

para todas as coisas negativas com que precisou lidar.

• Nas linhas 5 e 6, o uso do adjetivo qualificador eufórico “grandiloqüente” (cujo

significado é “de linguagem pomposa, formal”) – em referência ao homem de

“humilde posição social” que acabara de pronunciar frases metafóricas e

rebuscadas (como “Que tive eu senão a casca do fruto, o podre do maduro, a

lágrima que sobrou do riso alheio?” - l. 4-5) – indica que tal linguagem não era

habitualmente utilizada por ele, o que se pode comprovar pela expressão informal

que seguiu todo aquele discurso (“Nunca dei uma dentro!” - l. 6).

• O adjetivo classificador “social” (em “E sentindo-se um tanto grandiloqüente pra

sua humilde posição social” – l. 5-6) indica delimitação ou circunscrição (hedge); a

expressão “posição social” já se fixou em nossa Língua.

• Ainda sobre a expressão “N unca dei uma dentro” (l. 6), pode-se dizer que o

determinado (provavelmente o termo “bola”, neste caso, pois a expressão “dar uma

dentro” parece ser uma metáfora advinda do vocabulário futebolístico) está em elipse;

dessa forma, o determinante (o artigo indefinido “uma”, agora substantivado) passa a

valer pelo todo.

• O adjetivo qualificador disfórico “trágico” (l. 7), intensificado pelo termo

“definitivamente” sinaliza o final (também trágico) da história.

• A caracterização da morte, nas linhas 8 e 9, como “prestimosa”, “pressurosa”

(diligente, ágil), “radiosa” e “leve” apresentam o “lado bom” de algo que é sempre

visto de maneira negativa. Aliás, a própria nota de rodapé “A morte não é tão feia

como se pinta” confirma que há quem considere a morte uma espécie de “alívio” (o

que talvez justifique os casos de suicídio).

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• O adjetivo qualificador disfórico “apavorado” (l. 10) demonstra a mudança de atitude

do homem, ao se deparar com a morte: em vez de se alegrar (como seria esperado,

visto que ele próprio a invocara), recuou.

• O homem, arrependido, usa o nome “amiga” (l. 10) para se referir à morte, a fim de

bajular a mesma e livrar-se dela. A morte, por sua vez, chama-o pelo nome

“miserável” (l. 13) e caracteriza o truque lingüístico como “lamentável” (l. 14), o que

demonstra insatisfação.

• O termo “pueril” (em “Com que então me chamas e, na hora em que apareço, usas um

lamentável jogo de palavras pueril pra fingir que querias outra coisa de mim?” - l. 13-

15) demonstra a preocupação da morte em exibir também um vocabulário (e,

conseqüentemente, um tom) erudito, o que se comprova com a mudança dos verbos

para a segunda pessoa, cujo emprego não é muito comum em situações de

informalidade.

• O adjetivo disfórico “desesperado”, que aparece graduado em “o homem, ainda

mais desesperado com a perspectiva de viver para sempre” (l. 17), justifica a

ocorrência de uma série de fatos, os quais são apresentados por meio de gradação,

a fim de remeter o leitor a todos os percalços enfrentados por aquele homem até o

momento da morte.

Novamente, algumas notas de rodapé (ou trechos delas) funcionam como “mini-

morais”: “A morte não é tão feia quanto se pinta”, “Na prática a teoria é diferente”, “A morte

jamais perde seu senso de humor”.

Conclui-se, desse modo, que o texto de Millôr Fernandes é uma releitura da fábula de

Esopo e parece ser uma complementação, uma “resposta” daquele para a moral apresentada

por este. Afinal, enquanto Esopo enfoca o apego à vida (“Todo ser humano ama a vida, ainda

que miserável”), Millôr leva a questão mais adiante e alerta o leitor para a necessidade de se

aceitar a morte, que é inevitável para todos (“Saber morrer é o problema, que viver qualquer

um vive”).

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É interessante comparar também os títulos dados às duas fábulas. Assim, o título de

Esopo (“O velho e a morte”) dá ênfase à idade avançada do homem (que é mais uma

representação do apego à vida); o título escolhido por Millôr, por sua vez, enfatiza a

“miserabilidade” do homem (“O miserável e a morte”), a fim de mostrar que até mesmo “o

mais miserável dos homens” está representado na moral pela expressão “qualquer um” e é

capaz de simplesmente viver, pois a dificuldade maior (como já se disse) está em lidar com a

morte. Além disso, a análise dos títulos dos dois textos sugere a prevalência da

figurativização na fábula de Esopo, enquanto na de Millôr se ultrapassa o nível preliminar das

figuras, ampliando-se os aspectos temáticos.

5.3 “A raposa cotó” / “O camelô acamelado”

A raposa cotó

Uma raposa que teve o rabo mutilado em uma armadilha ficou enverg onhada e começou a achar insuportável a vida. Por isso, decidiu que precisava arrastar também as outras raposas à mesma situação, para disfarçar, com o padecimento comum, a sua desvantagem pessoal. Reuniu então todas as raposas e exortou-as a cortarem o rabo, dizendo que ele era não só um incômodo, mas também uma coisa supérflua, um peso grudado nelas. Então uma delas interrompeu e disse: “Ô minha cara, só que se isso não lhe conviesse, você não faria tal proposta.”

Essa fábula se aplica àqueles que dão sugestões aos vizinhos, não em função do bom senso, mas em função do que convém a eles próprios.

(Esopo, in: Dezotti, 2003, pp. 64-65)

Há dois exemplos de reiteração nessa fábula (“raposa” e “rabo”), que marcam

justamente os elementos centrais da história.

Trata-se de um texto figurativo, visto que apresenta mais figuras do que temas. Eis o

quadro comparativo:

Dessa forma, é possível constatar que, nessa fábula, substantivos concretos (ex.:

raposa, rabo, vizinhos), adjetivos objetivos (ex.: mutilado, grudado) e adjetivos subjetivos

avaliativos não-axiológicos (ex.: comum) são responsáveis pela figurativização. A

tematização, por outro lado, dá-se por meio do uso de substantivos abstratos (ex.: vida,

padecimento, desvantagem), adjetivos subjetivos afetivos (ex.: envergonhada) e adjetivos

subjetivos avaliativos axiológicos (ex.: insuportável, supérflua).

FIGURAS (14) TEMAS (12) raposa / rabo / mutilado /armadilha / raposas / envergonhada / insuportável / vida / comum / pessoal / raposas / rabo / coisa / situação / padecimento / desvantagem / peso / grudado / fábula / vizinhos incômodo / supérflua / cara / proposta / sugestões / bom senso

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O “sentido maior” desse texto é a tendência que o ser humano tem de evitar o

sentimento de inferioridade, o que pode levá- lo a boicotar o sucesso alheio.

Quanto aos valores semânticos dos nomes usados, pode-se afirmar que:

• Os adjetivos qualificadores disfóricos “cotó” (no título) e “mutilado” (l. 1)

representam a causa do sentimento de inferioridade da raposa, o qual é sinalizado pelo

adjetivo qualificador neutro “envergonhada” (l. 1). E esse sentimento desencadeia

toda a ação.

• O uso do adjetivo qualificador disfórico “insuportável” (l. 2) em relação à vida,

fornece uma pista falsa para o leitor, que passa a esperar o suicídio da raposa. No

entanto, essa expectativa não se confirma, visto que o animal se empenha em provocar

a decadência dos que lhe causam inveja.

• A contraposição dos adjetivos classificadores “comum” e “pessoal” (em “para

disfarçar, com o padecimento comum, a sua desvantagem pessoal” – l. 3) reforça,

mais uma vez, a injusta tentativa de compensação da raposa cotó. Afinal, as outras

raposas não são responsáveis pela frustração que lhe causam.

• Os nomes “incômodo”, “supérflua” e “peso” (l. 4-5) são utilizados pela raposa cotó

para convencer as outras raposas a cortarem os rabos.

• O adjetivo qualificador eufórico “cara” (l. 5) é utilizado ironicamente em referência à

raposa cotó. Afinal, um ser que pretende convencer outro a cortar o próprio rabo

apenas para diminuir o sentimento de inferioridade nunca seria apontado como “caro,

querido”. Pode ser também uma forma cristalizada de tratamento, cujo valor afetivo

está “desbotado”, enfraquecido.

• O descabimento das palavras que a raposa cotó dirigiu às outras raposas é reforçado

pelo uso da expressão cristalizada “bom senso” (linha 7) – que é um exemplo de

circunscrição (hedge) – para definir o que faltou à sugestão feita. Vale ressaltar que,

devido a essa cristalização, o adjetivo qualificador “bom” perde um pouco o caráter

eufórico.

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O camelô acamelado À maneira dos... curdos

Infeliz? Sim, o pobre camelô de Damasco era infeliz. Ficava ali, vendendo seus berloques na

praça, perto da mesquita, mas era um desgraçado. Num mundo em que todo mundo pretende ser diferente, tudo que ele queria era ser igual. O destino o fizera corcunda. E assim passara seus trinta anos de vida sem ser aceito no mundo dos homens, o que inclui sobretudo as mulheres. Pois estas nem o viam. Quando saía, às vezes, à noite, e, no escuro, arranjava uma namorada, o instante de carinho era interrompido com horror. Ao passar-lhe a mão nas costas, a moça descobria a corcova maldita. E imediatamente o rejeitava, enojada. O mundo é, definitivamente, dos chatos.

Sentindo-se envelhecer, ele um dia teve uma idéia genial – procurou a camela Deusa do deserto. Disse-lhe:

- Vê? Sou assim. Não encontro ninguém que me queira. Mas acho que podemos imitar os deuses ocidentais, que se ligavam também a seres não da sua espécie. Júpiter...

Disse a Deusa: - Já entendi. Já entendi. É verdade. Conheço bem a mitologia ocidental. Podemos imitá-la,

por que não? O camelô virou-se de costas para a Deusa e mostrou: - Vê? Sou um pouco da sua espécie. Não haverá por aí uma camelinha que queira casar

comigo? A cara da Deusa do deserto iluminou-se: - Claro! Como não!? Por acaso uma sobrinha minha. Mas o senhor, como marido, vai ter que

ter muita paciência. Ela é extremamente complexada. Nasceu sem corcova. Moral: Os cães passam e a caravana ladra. (Fernandes, 2005, pp. 199-200)

Como se pode verificar pelos termos em destaque, existem vários exemplos de

reiteração na fábula. Quanto à substituição, podem ser feitas as seguintes observações:

• As duas primeiras linhas do texto fundamentam-se na sinonímia, ainda que imperfeita,

dos termos “infeliz”, “pobre” e “desgraçado” (linhas 1 e 2), a fim de se enfatizar a

infelicidade do camelô. Dessa forma, são apresentados atributos negativos em

seqüência.

• Há um caso de antonímia nas linhas 2 e 3 (“Num mundo em que todo mundo pretende

ser diferente, tudo que ele queria era ser igual”), com o objetivo de ressaltar o quanto o

camelô se sentia excluído por ser corcunda.

• No trecho “E assim passara seus trinta anos de vida sem ser aceito no mundo dos

homens, o que inclui sobretudo as mulheres” (l. 3-4), o reforço do termo hiponímico

“mulheres” (em relação ao hiperônimo “homens”, referindo-se à humanidade) deixa

implícito que a maior frustração do camelô era ser rejeitado pelas mulheres,

principalmente.

Esse texto pode ser classificado como figurativo, já que o número de figuras é superior

ao de temas:

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Assim, pode-se averiguar que, nessa fábula, substantivos concretos (ex.: camelô,

berloques, homens), adjetivos objetivos (ex.: corcunda, ocidentais) e adjetivos subjetivos

avaliativos não-axiológicos (ex.: diferente, igual) são responsáveis pela figurativização. A

tematização, por sua vez, dá-se pelo emprego de substantivos abstratos (ex.: destino, vida,

carinho), adjetivos subjetivos afetivos (ex.: enojada, complexada) e adjetivos subjetivos

avaliativos axiológicos (ex.: chatos, genial).

A mensagem que existe por trás da fábula é a seguinte: O ser humano sempre reclama

de alguma coisa, sempre vê defeitos em si mesmo e nos outros.

Em relação aos valores semânticos dos nomes que aparecem no texto, pode-se dizer

que:

• No título, o adjetivo qualificador disfórico “acamelado” (não registrado nos

dicionários) reforça a idéia de que o camelô tinha características próprias de camelos

(no caso, a corcunda). Aliás, a escolha lexical “camelô acamelado” parece estar

baseada justamente na similaridade dos fonemas nas palavras “camelo” e “camelô”,

cujo único traço distintivo é a posição da sílaba tônica, o que acarreta a diferenciação

do último fonema – respectivamente, o arquifonema /U/ e o fonema vocálico posterior

/o/.

• O subtítulo “À maneira dos... curdos” faz referência ao povo que vive no Curdistão,

uma região asiática, onde deve haver muitos camelos.

• A anteposição do adjetivo qualificador disfórico “pobre” (l. 1) faz com que este

assuma novo significado (“triste”, em vez de “com poucos recursos financeiros”).

FIGURAS (41) TEMAS (21) camelô / Damasco / berloques / praça / infeliz / pobre / infeliz / desgraçado / mesquita / mundo / diferente / igual/ corcunda destino / anos / vida / aceito / instante/ mundo / homens / mulheres / namorada / carinho / horror / maldita / enojada / mão / costas / moça / corcova / mundo / chatos / idéia / genial / verdade / camela / Deusa / deserto / deuses / ocidentais / mitologia / claro / paciência / seres / espécie / Júpiter / Deusa / ocidental / complexada camelô / Deusa / espécie / camelinha / cara / Deusa / deserto / sobrinha / senhor / marido / corcova / cães / caravana

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• A escolha de Damasco, capital da Síria (na Ásia), como local de origem do camelô

parece ser mais uma referência aos camelos, visto que são animais bastante comuns

nessa região.

• O adjetivo qualificador disfórico “desgraçado” aparece substantivado na linha 2

(“Ficava ali, vendendo seus berloques na praça, perto da mesquita, mas era um

desgraçado.”), o que pode ser considerado um realce da condição de miserabilidade do

camelô. Algo semelhante acontece com o adjetivo qualificador disfórico “chatos” (em

“O mundo é, definitivamente, dos chatos” - l. 7), cuja substantivação reforça a chatice

do ser humano, que tem dificuldade para aceitar tudo que é diferente.

• No trecho “Num mundo em que todo mundo pretende ser diferente, tudo que ele

queria era ser igual”(l. 2-3), o contraste dos nomes sublinhados enfatiza o quanto o

camelô se sentia excluído. Esse sentimento de exclusão é confirmado, na linha 4, pelo

uso do adjetivo “aceito” (em “E assim passara seus trinta anos de vida sem ser aceito

no mundo dos homens, o que inclui sobretudo as mulheres”), que mostra como aquele

homem gostaria de se sentir.

• Ainda sobre o trecho “Num mundo em que todo mundo pretende ser diferente” (l. 2),

é válido comentar a “justaposição” do nome “mundo” (que identifica o universo, o

conjunto das coisas existentes) e do sintagma nominal “todo mundo” (com valor de

pronome indefinido), que ressalta a cristalização do termo “todo mundo”, equivalente

a “todos”.

• O adjetivo qualificador disfórico “corcunda” (em “O destino o fizera corcunda.” – l.

3) é, de certa forma, o centro dessa fábula, pois justifica toda a ação. Afinal, a

insatisfação causada por essa característica levou o camelô a procurar a camela Deusa

do deserto.

• Nas linhas 6 e 7, os nomes “horror” (que identifica o sentimento causado pelo

descobrimento da corcova), “maldita” (em referência à corcova) e “enojada” (que

caracteriza a possível pretendente, ao tocar a protuberância nas costas do camelô)

reforçam os traumas provenientes da peculiaridade do homem em questão.

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• O adjetivo qualificador eufórico “genial” (em “ele um dia teve uma idéia genial” – l.

8) é uma pista para o leitor de que a idéia do camelô levará à tentativa de modificar a

situação.

• A expressão nominal “Deusa do deserto” (l. 8), atribuída à camela, parece indicar que

ela seria capaz de ajudar o camelô; afinal, deuses costumam ser onipotentes. O uso da

inicial maiúscula sinaliza a personificação da deusa, até mesmo para justificar a

esperança do camelô de que ela própria se disporia a ser a noiva tão desejada.

• No trecho “Acho que podemos imitar os deuses ocidentais” (l. 10-11), há um exemplo

típico de circunscrição (hedge), visto que o adjetivo classificador “ocidentais” (de

localização absoluta no espaço) delimita o grupo de deuses a que o camelô faz alusão.

Na linha 13, aparece mais um caso de circunscrição (“mitologia ocidental”).

• Em “Sou um pouco da sua espécie.” (l. 16), o termo sublinhado corresponde ao

adjetivo qualificador disfórico “acamelado” (atenuado pelo marcador de intensidade

“um pouco”), a fim de indicar a semelhança com os camelos.

• Na frase “Não haverá por aí uma camelinha que queira casar comigo?” (l. 16), o

diminutivo “camelinha” (que traz uma carga de afetividade) parece ter sido usado para

comover a Deusa, talvez para que ela mesma se oferecesse para casar.

• Na linha 18, há um exemplo de adjetivo que constitui frase nominal (“Claro! Como

não!?”). Esse adjetivo também marca modalização epistêmica.

• Em “Ela é extremamente complexada. Nasceu sem corcova.” (l. 19), o adjetivo

qualificador disfórico “complexada” apresenta uma característica da sobrinha da

Deusa que demonstra provável compatibilidade com o camelô, o qual se sentia da

mesma maneira, mesmo que pelo motivo oposto.

• Ainda sobre o trecho “Ela é extremamente complexada. Nasceu sem corcova.” (l. 19),

pode-se dizer que a expressão sublinhada é uma locução adjetiva que corresponde ao

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adjetivo qualificador disfórico “descorcovada”, o qual não é dicionarizado, mas cujo

antônimo ( corcovado) o é.

Cabe destacar também que, na fábula em questão, faz-se referência a Júpiter como um

dos “deuses ocidentais, que se ligavam também a seres não da sua espécie” (l. 11). Trata-se do

deus supremo da Mitologia Romana, o qual utilizava o método de metamorfosear as amantes

em animais, a fim de ter relações sexuais com todas elas, sem despertar a desconfiança da

esposa (a deusa Juno).

Além disso, é válido ressaltar que a moral apresentada (“Os cães passam e a caravana

ladra.” – l. 20) é uma paródia que Millôr faz ao provérbio árabe “Os cães ladram e a caravana

passa”, o qual foi popularizado no Brasil, na década de setenta, pelo já falecido colunista

social Ibrahim Sued, que o repetia à exaustão, visto que as pessoas o gozavam por causa dos

tropeços de linguagem e gafes que cometia. Assim, ele se colocava como parte dessa

caravana, pois seguia adiante, apesar das críticas alheias. Millôr, por sua vez, ao inverter o

provérbio, utiliza os cães para representar as pessoas injustamente criticadas (posição em que

ele mesmo, muitas vezes, se encontrou, já que era tido como mero humorista, a despeito da

crítica social contida em grande parte de seus textos), o que é muito interessante, pois vem

reforçar a idéia da fábula como representação da vida humana. Além disso, ao usar o verbo

“ladrar” (próprio para cães) em referência à atitude da caravana, o autor inverte os papéis,

mostrando a irracionalidade dos muitos que se ocupam em desmerecer o próximo.

Conclui-se, dessa maneira, que ambas as fábulas tratam da dificuldade para se lidar

com tudo o que foge dos padrões convencionais. Contudo, Esopo enfoca a decisão de tentar

rebaixar o outro para não se sentir inferior, enquanto Millôr Fernandes parece defender que é

aconselhável simplesmente ignorar quaisquer tipos de críticas, pois elas sempre ocorrerão.

Vale destacar também que os títulos das duas fábulas seguem o mesmo padrão:

apresentam os nomes que identificam as personagens principais (“raposa” e “camelô”),

seguidos dos nomes que as caracterizam de maneira mais marcante e estabelecem a causa do

desconforto das mesmas (“cotó” e “acamelado”, respectivamente).

5.4 “A raposa e as uvas”

A raposa e as uvas

Uma raposa faminta avistou cachos de uvas suspensos em uma videira. Quis alcançá-los, mas não conseguiu. Então, afastando-se, disse para si mesma: “Estão verdes!”

Assim também certos homens que, por incapacidade, não conseguem realizar seus negócios, culpam as circunstâncias.

(Esopo, in: Dezotti, 2003, p. 66)

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O texto é tão conciso que não apresenta exemplos de reiteração ou de substituição.

Ainda que haja equilíbrio entre temas e figuras, predomina a figurativização:

Assim, substantivos concretos (ex.: raposa, cachos, homens) e adjetivos objetivos (ex.:

suspenso) são responsáveis pela figurativização, enquanto substantivos abstratos (ex.:

incapacidade, negócios, circunstâncias) e adjetivos subjetivos afetivos (ex.: faminta) marcam a

tematização.

O “sentido maior” dessa fábula é o hábito que temos de procurar justificativas externas

para nosso insucesso.

Quanto aos valores semânticos dos nomes utilizados, é possível afirmar que:

• O adjetivo qualificador disfórico “faminta” (em “Uma raposa faminta avistou cachos

de uvas suspensos em uma videira.” – l. 1) justifica a tentativa da raposa de alcançar

os cachos de uva.

• Ainda sobre o trecho “Uma raposa faminta avistou cachos de uvas suspensos em uma

videira.” (l. 1), pode-se dizer que o adjetivo classificador “suspensos” indica a

dificuldade que a raposa teria para alcançar os cachos de uvas.

• O adjetivo qualificador disfórico “verdes” (em “Estão verdes!” – l. 2) expressa o

consolo que a raposa criou para si própria, após a frustração de não ter conseguido

alcançar as uvas. Em vez de buscar estratégias para pegá- las, o animal convenceu-se

de que não valeria a pena fazer esse esforço. A “auto-enganação” da raposa comprova

que a esperteza que lhe é atribuída pode ser usada de forma negativa, uma vez que o

hábito de resolver tudo por meio de artimanhas pode levar à acomodação.

A raposa e as uvas

De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também não tem

FIGURAS (6) TEMAS (5) raposa / cachos / uvas / suspensos / faminta / verdes / incapacidade / negócios / videira / homens circunstâncias

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importância. Estão muito verdes.” E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra , perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar, esticou a pata e... conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!

Moral: A frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer outra.

(Fernandes, 1999, p.116)

Como se pode constatar pelos termos marcados, há vários exemplos de reiteração no

texto. Em relação à substituição, pode-se dizer que essa fábula apresenta um exemplo de

sinonímia – mesmo que imperfeita (“uvas grandes” - l. 3 / “uvas gordas” - l. 6) – e um

exemplo de hiponímia, já que o termo mais específico “terreno” (l. 9) é utilizado em vez de

“local” (l. 8), que é mais genérico.

O texto é predominantemente figurativo, como se pode observar:

Dessa forma, substantivos concretos (ex.: raposa, uvas), adjetivos objetivos (ex.:

redondas, inteiros) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos (ex.: grandes, gordas)

marcam a figurativização. A tematização, por outro lado, é caracterizada pelo uso de

substantivos abstratos (ex.: fome, raiva), adjetivos subjetivos afetivos (ex.: esfomeada, gulosa)

e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (ex.: deliciosa, maravilhosos).

A principal mensagem subjacente à fábula é a seguinte: às vezes, as justificativas que

inventamos para lidar melhor com nossa frustração coincidem com a realidade.

Em relação aos valores semânticos dos nomes usados, pode-se dizer que:

• Os adjetivos qualificadores disfóricos “esfomeada” e “gulosa” (l. 1) justificam a

vontade da raposa de alcançar as uvas.

• Na linha 1, a contraposição das locuções adjetivas classificadoras “de quatro dias”

(referente ao termo “fome”) e “de todos os tempos” (relacionada ao termo “gula”)

deixa claro que, de fato, a raposa precisava se alimentar, mas a gula – já característica

da personagem – era o principal motivo do esforço para pegar as uvas. Aliás, a fome e

FIGURAS (33) TEMAS (16) raposa / areal / deserto / sombra / parreiral / esfomeada / gulosa / fome / gula / precipício / cachos / uvas / uvas / grandes / deliciosa / maravilhosos / tentadoras / corpo / focinho / uvas / corpo / uvas / gordas / raiva / importância / cuidado / esforço / redondas / verdes / pedra / enorme / pedra / local / risco / avidez / frustração / cachos / uva / pedra / terreno / irregular / pata / julgamento / boa boca / cacho / inteiro / uvas / verdes

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a gula da raposa parecem constituir uma representação metafórica do desejo por tudo

aquilo que não se tem.

• Em “... caiu na sombra deliciosa do parreiral” (l. 2), o adjetivo qualificador eufórico

“deliciosa” (em relação à sombra do parreiral) leva o leitor a imaginar enormes

videiras, o que ajuda a justificar a dificuldade para alcançar as uvas.

• O uso da expressão classificadora “a perder de vista” (em “sombra deliciosa do

parreiral que descia por um precipício a perder de vista” - l. 2-3) reforça a idéia de

que uma queda ali poderia ser algo muito perigoso, até fatal.

• Nos trechos “Olhou e viu (...) cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras”

(l. 3-4) e “não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas” (l. 5-6), os adjetivos

qualificadores eufóricos “maravilhosos” e “tentadoras”, bem como os adjetivos

classificadores “grandes”, “gordas” e “redondas”, demonstram que não se tratava de

quaisquer frutos; as uvas realmente chamavam atenção, eram dignas de um esforço

maior para que fossem alcançadas. Vale ressaltar que os termos “gordas” e

“redondas” (eufóricos, como já se disse, visto que se referem a frutas) costumam ter

caráter disfórico (quando em referência a pessoas) ou neutro (no caso de “redondas”,

quando se aplica a objetos, em frases como “Comprei duas mesas redondas”, caso em

que o adjetivo é objetivo.).

• Em contrapartida, o adjetivo qualificador disfórico “verdes” – que aparece

intensificado em “Estão muito verdes” (l. 7) – mostra a justificativa que a raposa

inventou para consolar a si própria por não ter conseguido alcançar as uvas nas

primeiras tentativas.

• O adjetivo classificador “enorme”, no trecho “(...) quando viu à sua frente uma pedra

enorme” (l. 7-8), indica a possibilidade de se alcançarem as uvas (o que se confirma

no decorrer da fábula).

• Em “o terreno era irregular e havia o risco de despencar” (l. 9), o adjetivo

classificador “irregular” mostra que o terreno oferecia perigo, o que se comprova pelo

termo “risco”, usado logo em seguida.

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• O adjetivo classificador “inteiro” (em “Com avidez colocou na boca quase o cacho

inteiro.” – l. 10) confirma a já mencionada avidez com que a raposa estava disposta a

ingerir as uvas.

• O adjetivo qualificador disfórico “verdes” é utilizado, mais uma vez, em referência às

uvas (em “Realmente as uvas estavam muito verdes” - l. 10). No entanto, a

confirmação de que as frutas não estavam mesmo maduras é algo surpreendente para

o leitor, já que se tem a impressão de que o comentário inicial da raposa (claramente

motivado por despeito) revelar-se-á falso, a fim de mostrar que a frustração leva à

crítica.

• Na moral (“A frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer outra”), o

uso do adjetivo qualificador eufórico “boa”, no grau comparativo de igualdade, é

mais um fato inesperado. Afinal, não se esperaria que uma característica positiva

fosse atribuída à forma de se julgar um sentimento negativo.

Desse modo, pode-se concluir que a fábula de Millôr Fernandes é uma releitura da de

Esopo. O interessante é que Millôr escolheu manter, dessa vez, o título inalterado.

Provavelmente, a intenção era “enganar” o leitor, fazendo-o acreditar que a mesma história

seria contada com outras palavras. E, até um certo ponto, é exatamente isso o que acontece.

No entanto, o autor nos surpreende, ao ampliar a fábula, modificar seu desfecho e a moral.

5.5 “O lobo e o cordeiro”

O lobo e o cordeiro

Um lobo viu um cordeiro bebendo água de um rio e desejou devorá-lo por um motivo qualquer bem pensado. Por isso, tendo-se postado mais acima, pôs-se a acusá-lo de turvar a água e de impedi-lo de beber.Então, o cordeiro disse que bebia na ponta dos lábios e que, além do mais, não podia ser que ele, que estava mais abaixo, estivesse turvando a água do lado de cima.Vencido nessa acusação, o lobo disse: “Mas no ano passado você injuriou meu pai!” E como o outro dissesse que naquela época nem era nascido, o lobo lhe disse: “Mesmo que você se saia bem na defesa, eu não vou deixar de te comer!”.

A fábula mostra que junto daqueles cujo propósito é praticar a injustiça, nem uma defesa justa prevalece.

(Esopo, in: Dezotti, 2003, p. 59)

De acordo com a observação dos termos em destaque, pode-se dizer que há três

exemplos de reiteração na fábula. Como esta é bastante sucinta, não apresenta casos de

substituição.

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Predomina a figurativização:

Dessa forma, substantivos concretos (ex.: lobo, cordeiro), adjetivos objetivos (ex.:

nascido) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos (ex.: vencido) marcam a

figurativização, enquanto substantivos abstratos (ex.: acusação, defesa, injustiça) e adjetivos

subjetivos avaliativos axiológicos (ex.: justa) são responsáveis pela tematização.

A mensagem existente por trás da fábula é a seguinte: Quando alguém está

determinado a praticar o mal, não há boa justificativa que o faça mudar de idéia.

Quanto aos valores semânticos dos nomes usados no texto, é possível dizer que:

• A escolha dos nomes “lobo” e “cordeiro” para a identificação das personagens centrais

já é uma pista para o leitor do que ocorrerá na história, uma vez que o lobo é um

animal ligado à idéia de crueldade (geralmente apontado como “lobo mau”) e o

cordeiro costuma representar o inocente, o mártir, associado à imagem do “Cordeiro

de Deus”, na Igreja Católica.

• No trecho “desejou devorá- lo por um motivo qualquer bem pensado” (linhas 1 e 2), a

posposição do pronome indefinido “qualquer” (com valor de adjetivo, equivalente a

“banal”, por exemplo) ao nome “motivo” reforça a maldade do lobo, visto que nem

mesmo a fome é apontada como razão para devorar o cordeiro.

• O adjetivo classificador “vencido” (em “Vencido nessa acusação, o lobo disse” – l. 4-

5) mostra que a primeira desculpa dada pelo lobo não fazia sentido, o que justifica a

invenção de uma nova mentira.

• O adjetivo classificador “nascido” (em “... naquela época nem era nascido” – l. 5-6),

ao ser negado, comprova que a segunda acusação feita pelo lobo também era

improcedente. Além disso, o fato de que a época a que o cordeiro se referira

correspondia ao ano anterior (“Mas no ano passado você injuriou meu pai” – l. 5)

mostra que o animalzinho ainda era muito novo quando se encontrou com o lobo, o

que enfatiza a crueldade deste.

O lobo e o cordeiro

FIGURAS (15) TEMAS (8) lobo / cordeiro / água / rio / água / cordeiro / motivo / bem pensado / acusação / defesa / ponta / lábios / água / vencido / lobo / pai / propósito / injustiça / defesa / justa nascido / lobo / fábula

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Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu miserável crime.” “Que crime?” – perguntou o cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar. “O crime de sujar a água que eu bebo.” “Mas como posso sujar a água que bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?” – indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre sujo para um lobo” – retrucou dialeticamente o lobo. “E vice-versa” – pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso eu sujar a sua água se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo de qualquer maneira, pois como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro” – finalizou o lobo preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein moment!” – gritou o cordeirinho traçando lá o seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas faço-lhe uma proposta: se me deixar livre atrairei pra cá todo o rebanho.” “Chega de conversa” – disse o lobo – “vou comê-lo logo, e está acabado.” “Espera aí” – falou firme o cordeiro – “isso não é ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas.” “Está bem” – cedeu o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle. – “Qual é o animal mais estúpido do mundo?” “O homem casado” – respondeu prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem!” – disse o lobo, logo refreando, envergonhado, o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal branco de listras pretas ou um animal preto de listras brancas?” “Um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” – respondeu o cordeirinho. “Perfeito!” – disse o lobo, engolindo em seco. “Agora, por último, diga uma frase de Bernard Shaw.” “Vai haver eleições em 66” – respondeu logo o cordeirinho mal podendo conter o riso. “Muito bem, muito certo, você escapou!” – deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar o cordeiro quando apareceu o caçador e o esquartejou.

Moral: Quando o lobo tem fome não deve se meter em filosofias.

(Fernandes, 1999, pp.20-21)

Como se pode ver pelos termos em destaque, há muitos exemplos de reiteração no

texto.

Quanto à substituição, é válido apontar que o termo “cordeiro” é, às vezes, retomado

no diminutivo (“cordeirinho”). A fábula também apresenta um caso de hiperonímia: “Pois se

não foi você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral.” (l. 8) Além disso, há

exemplos de antonímia (ainda que imperfeita, em alguns casos): “a zebra é um animal branco

de listras pretas ou um animal preto de listras brancas?” (l. 17-18); “Por mais limpo que esteja

um cordeiro é sempre sujo para um lobo” (l. 6).

O texto é predominantemente figurativo:

FIGURAS (71) TEMAS (26) cordeirinho / água / refletida / rio / sombra / cavernosa / vida / miserável / crime / lobo / voz / cordeirinho / lobo / água / água / crime / tempo / crime / maneira / lavado / máquinas / automáticas / fazenda / lobologia / alemão / razão / cordeirinho / limpo / cordeiro / sujo proposta / livre / conversa / ético / lobo / lobo / cordeirinho / direito / irritado / lembrança / código / água / corrente / pai / mãe / ancestral / livros / estúpido / envergonhado / entusiasmo carne / cordeiro / lobo / cordeirinho / cordeirinho / perfeito / eleições / fome / filosofias kantiano / rebanho / lobo / cordeiro / lobo / milenar / jungle / animal / mundo / homem / casado / cordeiro / lobo / zebra / animal / branco / listras / pretas / animal / preto / listras / brancas / animal / sem cor / pintado / preto / branco / burro / cordeirinho / lobo / frase / Bernard Shaw / cordeirinho / certo / lobo / cordeiro / caçador / lobo

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Assim, substantivos concretos (ex.: cordeirinho, água, lobo), adjetivos objetivos (ex.:

refletida, preto, brancas) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos (ex.: súbito, limpo,

sujo) são marcadores da figurativização, ao passo que substantivos abstratos (ex.: razão,

direito), adjetivos subjetivos afetivos (ex.: irritado) e adjetivos subjetivos avaliativos

axiológicos (ex.: estúpido, certo) marcam a tematização.

A respeito dos valores semânticos dos nomes que aparecem na fábula, podem-se fazer

os seguintes comentários:

• Como na fábula de Esopo, as personagens principais também são identificadas pelos

nomes “lobo” e “cordeiro” (símbolos de maldade e de inocência, respectivamente). No

entanto, Millôr inclui um caçador na história, a fim de modificar o desfecho.

• O uso do nome “cordeiro” no grau diminutivo reforça a fragilidade do animal, perante

o lobo. Além disso, leva o leitor a sentir ternura pelo cordeirinho e a ter pena dele.

• Em “(...) quando viu refletida no rio a sombra do lobo” (linha 1), a escolha do nome

“sombra” (em vez de “imagem”, por exemplo) reforça a idéia de que a figura sombria

do lobo causava muito medo, bem como a voz do mesmo, à qual se atribuiu o adjetivo

qualificador disfórico “cavernosa” (em “ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa”

- l. 2). Portanto, a seleção lexical precisa – “sombra”, “cavernosa” – contribui para

caracterizar a situação.

• A anteposição do adjetivo qualificador disfórico “miserável” (em “Vais pagar com a

vida o teu miserável crime” – l. 2) faz com que este assuma novo significado

(“abominável, perverso”).

• O adjetivo qualificador neutro “lavado” (em “Mas como posso sujar a água que bebes

se sou lavado diariamente” – l. 4-5) comprova a falsidade da acusação feita pelo lobo

de que o cordeiro sujara a água.

• No trecho “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre sujo para um lobo” (l. -6),

o adjetivo qualificador disfórico “sujo” parece ter um sentido mais amplo (“vil,

desprezível”, em vez de “desasseado”).

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• Na linha 9, o autor utiliza um neologismo para se referir ao “estudo dos lobos”:

lobologia.

• Em “gritou o cordeirinho, traçando lá o seu alemão kantiano” (l. 11), o adjetivo

classificador “kantiano” – que indica delimitação ou circunscrição (hedge) – é uma

referência ao filósofo alemão Immanuel Kant, que buscava compreender os limites da

sensibilidade e da razão. A menção a Kant justifica a fala do cordeiro em alemão (“Ein

moment! Ein moment!” – l. 10-11).

• Ao ser impedido de continuar a conversa com o lobo, o cordeiro reclama e diz que

essa postura não é ética (“Isso não é ético! – l. 13). No entanto, o próprio cordeirinho

tinha acabado de fazer uma proposta egoísta e nada ética: atrair todo o rebanho para o

lobo, caso este o libertasse.

• Em “cedeu o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle” (l. 14-15), o

adjetivo qualificador disfórico “irritado” indica a possibilidade de o animal se tornar

ainda mais perigoso para o cordeirinho.

• Ainda sobre o trecho anterior, vale ressaltar o uso do estrangeirismo “jungle” (que

significa “selva”, em inglês). Além disso, o adjetivo classificador “milenar”, em

referência ao código da selva, mostra que este é muito antigo.

• A atribuição do adjetivo qualificador disfórico “estúpido” (no grau superlativo

relativo) ao termo “animal” – em alusão ao homem casado – é um mecanismo para

levar o leitor ao riso. O humor também se faz presente na caracterização da zebra

como “um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” (l. 18-

19).

• Em “‘Perfeito!’ – disse o lobo, engolindo em seco.” (l. 17), o adjetivo qualificador

eufórico “perfeito” aparece num enunciado exclamativo, como aprovação a uma

resposta do cordeiro. Algo parecido ocorre nas linhas 18 e 19, em que o adjetivo

qualificador eufórico “certo” (intensificado) também constitui uma exclamação:

“Muito bem, muito certo, você escapou!”.

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• A locução adjetiva “de Bernard Shaw” (utilizada, nas linhas 17 e 18, para mostrar o

autor da frase que o lobo queria como resposta) faz referência a George Bernard Shaw,

um famoso escritor irlandês, que tinha ideais socialistas e era conhecido por ser

polêmico e brilhantemente irônico (características que também costumam ser

atribuídas ao próprio Millôr Fernandes).

Desse modo, pode-se concluir que, apesar de apresentarem novamente o mesmo título

e a mesma situação inicial, a fábula de Esopo tem como foco a crueldade do lobo, o qual sai

vitorioso (e impune), ao passo que o texto de Millôr utiliza o humor para fazer um alerta sobre

a importância de agir logo (em vez de gastar muito tempo pensando). Além disso, a inclusão

do caçador na segunda história parece indicar que há um animal ainda mais cruel do que o

lobo: o homem, capaz até de esquartejá- lo.

5.6 “A galinha dos ovos de ouro”

A galinha dos ovos de ouro

Um homem tinha uma bela galinha que botava ovos de ouro. Por imaginar que dentro dela havia uma massa de ouro, ele a matou, descobrindo a seguir que ela era igual às demais galinhas. Assim, ele, que esperava encontrar a riqueza em bloco, até do pequeno lucro se privou.

[A fábula mostra] Que a gente deve dar-se por satisfeito com os bens presentes e evitar o desejo insaciável.

(Esopo, in: Dezotti, 2003, pp. 48-49)

Ao se observarem os termos destacados, pode-se afirmar que existem dois exemplos

de reiteração nessa fábula.

A substituição ocorre apenas uma vez (por meio da hiperonímia), quando o termo

mais genérico “riqueza” (linha 3) é usado no lugar de “ouro” (linhas 1 e 2), que é mais

específico.

Há predomínio da figurativização:

FIGURAS (12) TEMAS (6) homem / galinha / ovos / de ouro / massa / de ouro bela / riqueza / lucro / igual / galinhas / pequeno / fábula / bens / presentes satisfeito / desejo / insaciável

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Assim, substantivos concretos (ex.: homem, galinha, ovos), adjetivos e locuções

adjetivas objetivos (ex.: presentes, de ouro) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos

(ex.: igual, pequeno) são responsáveis pela figurativização, ao passo que substantivos

abstratos (ex.: lucro, desejo) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (ex.: bela) marcam

a tematização.

A mensagem subjacente à fábula coincide com o ditado popular “Quem tudo quer,

nada tem” (ou “Quem tudo quer, tudo perde”), visto que ambição demais pode levar à perda

até do que já se possui.

Em relação aos valores semânticos dos nomes utilizados no texto, é possível dizer que:

• O adjetivo qualificador eufórico “bela” (em “Um homem tinha uma bela galinha” – l.

1) mostra que não se tratava de uma galinha qualquer; portanto, realça a imprudência

do homem que decide matá- la. Também é importante ressaltar que a anteposição

desse adjetivo ao nome “galinha” dá ênfase ao atributo.

• A locução adjetiva classificadora “de ouro” (em “galinha que botava ovos de ouro”–

l. 1) justifica a decisão de matar o animal, uma vez que o valioso metal desperta a

ambição do homem.

• A expressão classificadora “igual às demais galinhas” (em “descobrindo a seguir que

ela era igual às demais galinhas” – l. 2) comprova o equívoco do homem, pois o

animal morto não tinha nada de extraordinário.

• Em “esperava encontrar a riqueza em bloco” (l. 2-3), a expressão classificadora

reforça a ganância do homem.

• O uso do adjetivo qualificador disfórico “pequeno” (em “até do pequeno lucro se

privou” - l. 3) atenua um pouco a estupidez do homem; afinal, comprova que os ovos

de ouro conseguidos “naturalmente” não rendiam tanto dinheiro quanto se imagina.

• Em “Que a gente deve dar-se por satisfeito com os bens presentes e evitar o desejo

insaciável” (l. 4), o adjetivo classificador “presentes” (relacionado ao substantivo

“bens”) e o adjetivo qualificador eufórico “satisfeito” (atribuído ao substantivo

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“gente”, em referência a todos nós, seres humanos) reforçam a idéia de que

precisamos nos contentar com tudo o que já temos. O adjetivo qualificador disfórico

“insaciável” também serve de alerta para os ambiciosos (sempre tão empenhados em

almejar mais do que têm, que se esquecem de valorizar o que já conseguiram).

A galinha dos ovos de ouro Era uma vez um homem que tinha uma Galinha. Subitamente, em um dia inesperado, a Galinha pôs um

ovo de ouro. Ouro! Outro dia, outro ovo. Outro ovo de ouro! O homem mal podia dormir. Esperava todas as manhãs pelo ovo de ouro – clara, gema, gala, tudo de ouro! – que o tirava da miséria aos poucos, e aos poucos o ia guindando ao milionarismo. O fato, que antigamente poderia passar despercebido, na data de hoje atraía verdadeiras multidões. E não só multidões. Rádios, jornais, televisão, tudo entrevistava o homem, pedindo-lhe impressões, querendo saber detalhes de como acontecera o espantoso acontecimento. E a Galinha, também, ia dando aqui e ali seus shows diante dos jornais, câmaras, microfones. Certa vez até, num esforço de reportagem, conseguiu pôr um ovo diante da câmara da TV Tupi. Porém o tempo passou e muito antes que o homem conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar ovos de ouro. Desesperado, o homem foi ocultando o fato, até que, certo dia, não se contendo mais abriu a galinha para apanhar os ovos que ela tivesse lá dentro. Para sua decepção não havia mais nenhum.

Então o homem – espírito bem moderno – resolveu explorar o nome que lhe ficara do acontecimento e abriu um enorme restaurante, com o sugestivo nome de Aos Ovos de Ouro. E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a Galinha propriamente dita.

Moral: Cria galinhas e deita-te no ninho. (Fernandes, 1999, pp.89-90)

Como se pode observar pelos termos destacados, há vários exemplos de reiteração na

fábula.

Quanto à substituição, pode-se apontar um exemplo de antonímia, mesmo que esta

não seja perfeita: “que o tirava da miséria aos poucos, e aos poucos o ia guindando ao

milionarismo” (l. 4). Há também um exemplo de holonímia: “Esperava todas as manhãs pelo

ovo de ouro – clara, gema, gala, tudo de ouro! – que o tirava da miséria aos poucos” (l. 2-3).

O texto é predominantemente figurativo:

FIGURAS (51) TEMAS (23) Homem / Galinha / dia / Galinha / ovo / de ouro / inesperado / miséria / milionarismo / Ouro / dia / ovo / ovo / de ouro / homem / fato / despercebido / data / verdadeiras / manhãs / ovo / de ouro / clara / gema / gala / impressões / detalhes / espantoso / de ouro / multidões / multidões / rádios / jornais / acontecimento / esforço / tempo / rico / televisão / homem / Galinha / shows / jornais / desesperado / fato / decepção / espírito / câmaras / microfones / reportagem / ovo / câmara / moderno / nome / acontecimento / TV Tupi / homem / Galinha / ovos / de ouro / sugestivo / propriamente dita Homem / dia / galinha / ovos / homem / enorme / Restaurante / nome / Aos Ovos de Ouro / dinheiro/ Galinha / galinhas / ninho

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Assim, substantivos concretos (ex.: homem, ovo), locuções adjetivas objetivas (ex.: de

ouro) e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos (ex.: enorme) marcam a

figurativização, ao passo que substantivos abstratos (ex.: impressões, tempo), adjetivos

subjetivos afetivos (ex.: verdadeiras) e adjetivos subjetivos avaliativos axiológicos (ex.:

espantoso, sugestivo) são responsáveis pela tematização.

A mensagem transmitida por meio dessa fábula é a seguinte: Muitas pessoas, quando

alcançam o sucesso, nem precisam se preocupar mais em realizar efetivamente a atividade

que as tornou famosas; podem tirar proveito do “nome” que passaram a ter.

Quanto aos valores semânticos dos nomes usados no texto, é possível dizer que:

• A identificação do animal é feita inicialmente pelo substantivo “Galinha”, o qual

aparece grafado com letra maiúscula, a fim de se enfatizar que a galinha era especial,

não era uma galinha qualquer. No entanto, a partir do momento em que a Galinha

parou de pôr ovos de ouro, passou a ser identificada pelo substantivo comum

“galinha”, escrito com letra minúscula mesmo.

• A locução adjetiva classificadora “de ouro”, atribuída aos ovos postos pela galinha,

justifica novamente a decisão de sacrificá- la.

• O uso do nome “ouro” numa frase exclamativa (“Ouro!” – l. 2) enfatiza a ocorrência

de algo extraordinário, ao indicar surpresa.

• A especificação das partes do ovo (“clara, gema, gala, tudo de ouro!” – l. 3) reforça a

idéia de que o ovo era de ouro maciço.

• O nome “miséria” (l. 3) comprova que o homem era muito pobre, o que faz um

contraponto com a riqueza que seria trazida pelos ovos de ouro, representada no texto

pelo neológico “milionarismo”.

• O uso da oração adjetiva explicativa “que antigamente poderia passar despercebido”

(l. 4) parece fazer referência à fábula de Esopo, na qual não se descrevem grandes

comoções causadas pelos ovos de ouro.

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• Em “querendo saber detalhes de como acontecera o espantoso acontecimento” (l. 6), o

adjetivo qualificador “espantoso”, geralmente disfórico, assume valor eufórico.

• O uso do estrangeirismo “shows” (l. 7) parece enfatizar o grau da comoção causada

pela “Galinha dos ovos de ouro”.

• O adjetivo qualificador disfórico “desesperado” (l. 9) realça o estado em que o

homem ficou quando percebeu que a galinha não punha mais ovos de ouro, o que

justifica a decisão de abrir o animal.

• A expressão “espírito bem moderno” (l. 12), em referência ao homem, chama a

atenção do leitor para a descrição de uma atitude bastante comum nos dias de hoje: a

exploração da imagem criada, seja ela baseada na verdade ou não.

• O fato de o homem ter dado o nome “Aos Ovos de Ouro” ao restaurante indica que o

novo negócio funcionaria para ele como uma lembrança daquilo que lhe dera a

oportunidade de progredir.

• A moral (“Cria galinhas e deita-te no ninho.”) faz menção ao ditado popular “Cria

fama e deita-te na cama”, que também expressa a idéia de que o sucesso permite que

a pessoa não precise mais se esforçar tanto para conseguir algo.

Assim, é possível concluir que, mesmo que essas fábulas de Esopo e de Millôr

Fernandes tenham, mais uma vez, o mesmo título e a mesma situação inicial, Esopo mantém o

enfoque na questão da moralidade, aconselhando o leitor a contentar-se com o que tem;

Millôr, por outro lado, satiriza a história e faz uma crítica à futilidade vivenciada em nossa

sociedade. Também é válido ressaltar que Millôr Fernandes acrescenta símbolos da

modernidade ao texto (a mídia, representada por elementos como “rádios”, “jornais” e

“televisão”), a fim de aproximá-lo ainda mais do leitor.

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6 APLICAÇÃO PEDAGÓGICA

A seguir, serão propostas – ainda com base em pares de fábulas de Esopo e de Millôr

Fernandes – quatro atividades (acompanhadas das prováveis respostas), as quais já foram ou

serão aplicadas em minhas aulas. É importante lembrar que trabalho com duas turmas do

primeiro ano do segundo grau, numa escola estadual localizada em Niterói. Numa das turmas,

há trinta e um alunos; na outra, vinte e nove. Como o nível de desempenho dos alunos

costuma ser equilibrado, não será feita a distinção entre turmas; assim, considerar-se-á o

número total de estudantes (sessenta) para a contabilização dos resultados.

A fim de analisar tal desempenho, a última das quatro atividades propostas (baseada

nas fábulas “O leão e o rato agradecido”, de Esopo, e “Hierarquia”, de Millôr) será aplicada

como avaliação bimestral. É válido esclarecer que as outras três atividades não poderão ter os

resultados descritos neste trabalho, uma vez que o período de conclusão do mesmo coincidirá

com as férias escolares, o que impossibilitará a aplicação das tarefas remanescentes neste ano

letivo. Conseqüentemente, o gráfico a ser apresentado (bem como qualquer averiguação de

resultados) dirá respeito apenas às questões referentes a essas duas fábulas.

6.1 “O asno e o hortelão” / “O rei e o escravo” Texto 1: O asno e o hortelão

Um asno que prestava serviços a um hortelão comia pouco e estafava-se demais.Por

isso, pediu a Zeus que o livrasse do hortelão, fazendo que fosse vendido a um outro dono. E Zeus o atendeu, dispondo que ele fosse vendido a um poteiro. Mas ele tornou a ficar descontente, pois carregava mais peso do que antes, transportando tanto a argila quanto as vasilhas. Então pediu de novo a troca de dono e foi vendido a um curtidor, indo, pois, parar na casa de um dono pior que os anteriores. Ao ver os afazeres à sua volta disse, entre gemidos: “Ai de mim, desgraçado, era melhor ter ficado com os donos anteriores, pois estou vendo que esse aqui vai faturar até a minha pele!”

A fábula mostra que os empregados sentem saudade dos donos anteriores, sobretudo quando experimentam os novos.

(Esopo, in: Dezotti, op. cit., p.34) 1- Indique os substantivos que identificam os três donos que o asno teve:

____________________ ____________________ ____________________ [Prováveis respostas: “hortelão”, “poteiro” e “curtidor”.]

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2- Marque a alternativa que completa adequadamente a seguinte frase: O ser mais poderoso da fábula é...

( ) ... o asno, pois teve vários donos ótimos, de profissões diferentes. ( ) ... o hortelão, pois conseguiu se livrar do asno preguiçoso. ( ) ... Zeus, pois satisfez todos os desejos do asno. [Provável resposta: “... Zeus, pois satisfez todos os desejos do asno.”] 3- Complete as lacunas com as palavras do quadro, de modo que o pequeno texto formado apresente as informações apropriadas:

caracterizar – substantivo – adjetivo – identificar

Sabe-se que o contexto determina a classificação das palavras. Por exemplo, na moral da fábula lida (“Os empregados sentem saudade dos donos anteriores, sobretudo quando experimentam os novos.”), a palavra “empregados” é um _______________, já que tem o papel de _______________ alguém. No entanto, essa mesma palavra pode ser usada em frases como “Todos os meus irmãos já estão empregados.”, em que aparece como _______________, a fim de _______________ alguém. [Provável resposta: “substantivo”, “identificar”, “adjetivo”, “caracterizar”, respectivamente] 4- No trecho “Um asno que prestava serviços a um hortelão comia pouco e estafava-se demais. Por isso, pediu a Zeus que o livrasse do hortelão (...) E Zeus o atendeu, dispondo que ele fosse vendido a um poteiro.” (linhas 1 a 3), os termos grifados referem-se: ( ) ao hortelão ( ) ao asno ( ) a Zeus ( ) ao poteiro [Provável resposta: “ao asno”] Texto 2: O rei e o escravo

O Rei, em seus acessos de raiva, batia diariamente no Escravo. Batia de manhã, batia

de tarde, batia de noite. Até que um dia o Escravo, não suportando a dor e a humilhação, pegou de uma faca e abriu a barriga do Rei.

Moral: Não adianta porque sempre haverá um Rei pior. (Fernandes, 1999, p.121)

5- De acordo com a leitura do segundo texto, dê os substantivos que identificam: a) o ser que representa os submissos: _______________ [Provável resposta: “Escravo”.] b) o ser que representa os poderosos: _______________ [Provável resposta: “Rei”.] c) o sentimento que levava o Rei a maltratar o Escravo: _______________ [Provável resposta: “raiva”.] d) os sentimentos que motivaram a vingança do Escravo: _____________ ____________ [Provável resposta: “dor e humilhação”.]

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6- Em relação à moral da história, “não adianta” o quê? ( ) Bater nos escravos, ou seja, punir os subalternos. ( ) Assassinar o Rei, ou seja, eliminar os poderosos injustos. ( ) Reclamar das surras da Realeza, ou seja, denunciar a violência doméstica. [Provável resposta: “Assassinar o Rei, ou seja, eliminar os poderosos injustos.”] 7- Ao compararmos os dois textos lidos, é possível afirmar que: ( ) Ambos são fábulas, cujas personagens representam a humanidade. ( ) Somente o primeiro é uma fábula, uma vez que as personagens são animais.. ( ) Somente o segundo é uma fábula, pois apresenta um rei como personagem. [Provável resposta: “Ambos são fábulas, cujas personagens representam a humanidade.”] 8- Apesar de os textos terem sido desenvolvidos de maneiras diferentes, eles levam a conclusões semelhantes. Você concorda com essa afirmação? Justifique: [Resposta pessoal, mas espera-se que o aluno concorde com a afirmação e faça comentários como: “As duas fábulas mostram que a insatisfação com a situação em que se vive pode levar a outra situação ainda pior.”] 6.2 “O lobo saciado e a ovelha” / “O lobo e o cordeiro” Texto 1 : O lobo saciado e a ovelha

Um lobo já estava saciado de alimento quando viu uma ovelha estirada ao chão. Ao perceber que ela tinha caído de medo dele, chegou perto e pôs-se a encorajá- la dizendo que a libertaria se ela lhe dissesse três sentenças verdadeiras. Então ela começou dizendo, em primeiro lugar, que não quis encontrá- lo; em segundo, disse que , já que esse encontro tinha sido inevitável, queria tê- lo encontrado cego; e, em terceiro lugar, acrescentou: “Tomara que todos os lobos tenham morte cruel, pois vocês, malvados, embora nada sofram de nossa parte, nos combatem com malvadeza”. E o lobo, reconhecendo que ela não mentia, libertou-a.

A fábula mostra que, muitas vezes, a verdade tem força até junto de inimigos. (Esopo, in: Dezotti, op. cit., p.60)

1- O fato de, no título, o substantivo “lobo” estar acompanhado do adjetivo “saciado” pode ser visto como um indício de que o animal não comerá a ovelha, o que se confirma no decorrer do texto. Logo na primeira linha, o autor faz questão de especificar que o lobo encontrava-se “saciado de alimento”, a fim de reforçar o indício dado pelo título. Essa especificação faz-se necessária porque: ( ) O autor previu a possibilidade de o leitor não prestar muita atenção ao título. ( ) O autor pretendia realçar a gula do animal. ( ) O termo “saciado” não é exclusivo para alimentos (fome). Afinal, sede e desejos, por exemplo, também podem ser saciados. [Provável resposta: “O termo ‘saciado’ não é exclusivo para alimentos...]

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2- Geralmente, os substantivos têm adjetivos correspondentes (e vice-versa). Desse modo, no trecho “(...) pois vocês, malvados, embora nada sofram de nossa parte, nos combatem com malvadeza.” (linhas 6 e 7), se trocássemos o adjetivo “malvados” pelos sinônimos “maus” e “ruins”, o substantivo “malvadeza” também deveria ser trocado por ___________ e ___________, respectivamente. [Prováveis respostas: “maldade” e “ruindade”, na ordem] 3- A moral afirma que “muitas vezes, a verdade tem força até junto dos inimigos”. Na fábula em questão, quem representa esses inimigos? ________________. [Provável resposta: “O lobo”.] Texto 2: O lobo e o cordeiro

Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do lobo.

Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu miserável crime.” “Que crime?” – perguntou o cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar. “O crime de sujar a água que eu bebo.” “Mas como posso sujar a água que bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?” – indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja um cordeiro é sempre sujo para um lobo” – retrucou dialeticamente o lobo. “E vice-versa” – pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso eu sujar a sua água se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo de qualquer maneira, pois como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro” finalizou o lobo preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein moment!” – gritou o cordeirinho traçando lá o seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas faço- lhe uma proposta: se me deixar livre atrairei pra cá todo o rebanho.” “Chega de conversa” – disse o lobo – “vou comê-lo logo, e está acabado.” “Espera aí” – falou firme o cordeiro – “isso não é ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas.” “Está bem” – cedeu o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle. – “Qual é o animal mais estúp ido do mundo?” “O homem casado” – respondeu prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem!” – disse o lobo, logo refreando, envergonhado, o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal branco de listras pretas ou um animal preto de listras brancas?” “Um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro” – respondeu o cordeirinho. “Perfeito!” – disse o lobo engolindo em seco. “Agora, por último, diga uma frase de Bernard Shaw.” “Vai haver eleições em 66” – respondeu logo o cordeirinho mal podendo conter o riso. “Muito bem, muito certo, você escapou!” – deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar o cordeiro quando apareceu o caçador e o esquartejou.

Moral: Quando o lobo tem fome não deve se meter em filosofias. (Fernandes, 1999, pp. 20-21; cf. pp. 113-114) 4- O uso do grau diminutivo na referência ao cordeiro (“cordeirinho”) parece ser:

( ) A melhor maneira de mostrar que o animal era muito pequeno. ( ) Uma forma de enfatizar a fragilidade do animal, diante da ameaça do lobo. ( ) Um modo de menosprezar o animal, que é medroso e covarde. [Provável resposta: “Uma forma de enfatizar a fragilidade do animal, diante da ameaça do lobo.]

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5- Em “vais pagar com a vida o teu miserável crime” (linhas 2 e 3), o adjetivo “miserável” significa:

( ) Muito pobre, indigente ( ) Digno de compaixão, mísero ( ) Infame, torpe [Provável resposta: “Infame, torpe”]

6- Que neologismo o autor usou para se referir ao “estudo científico dos lobos”? ___________________ [Provável resposta: “lobologia”.]

7- Assinale o trecho que não reforça a idéia de que o cordeiro é inofensivo e indefeso: ( ) “Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa” (linhas 1 e 2) ( ) “ ‘Que crime?’ – perguntou o cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar.” (linhas 3 e 4) ( ) “Dou-lhe toda razão, mas faço- lhe uma proposta: se me deixar livre, atrairei pra cá todo o rebanho.” (linhas 13 e 14) [Provável resposta: “Dou-lhe toda razão, mas faço- lhe uma proposta: se me deixar livre...”]

8- Se compararmos as duas fábulas, concluiremos que: ( ) O texto de Esopo exige do leitor mais conhecimento de mundo, devido a detalhes específicos da natureza dos lobos e dos cordeiros. Afinal, se o leitor não conhecer esses detalhes, a fábula não fará sentido. ( ) O texto de Millôr exige do leitor mais conhecimentos extralingüísticos, pois faz referência a Kant e a Bernard Shaw, por exemplo. No entanto, mesmo que não se tenham essas informações, a mensagem fundamental da fábula não deixa de ser transmitida. ( ) Nenhuma das fábulas envolve o conhecimento de mundo do leitor. [Provável resposta: “O texto de Millôr exige do leitor mais conhecimentos...”] 6.3 “A velha e o médico” / “O escularápio”

Texto 1: A velha e o médico

Uma velha senhora, doente dos olhos, contratou os serviços de um médico. Toda vez que ele vinha, passava remédio nos seus olhos e, enquanto ela os mantinha fechados, aproveitava para roubar um de seus móveis. Após ter levado todos embora, encerrou o tratamento e exigiu o preço combinado. Visto ela recusar-se a pagá-lo, levou-a ao tribunal. Então ela disse que tinha proposto o pagamento se ele lhe curasse os olhos, mas, na realidade, o tratamento a tinha deixado pior do que antes. “Pois, naquela época, afirmou ela, eu enxergava todos os móveis da casa, e agora não consigo ver nenhum!”

Assim, os homens perversos não percebem que, por cobiça, arrastam contra si a prova de sua perversidade.

(Esopo, in: Dezotti, op. cit., p.70)

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1- Complete o resumo do texto com os termos adequados, os quais se encontram no quadro abaixo:

olhos – velha – remédio – perverso – fechados – médico – móveis - tratamento Uma _______________ chamou um _______________ para tratar a doença que ela tinha nos _______________. No entanto, o doutor era _______________ e furtava- lhe os _______________ da casa durante a aplicação do _______________, já que ela era obrigada a manter os olhos _______________. Quando a senhora se deu conta do sumiço dos pertences, achou que o _______________ proposto havia piorado sua visão e decidiu não pagar pelo serviço do esculápio. Este, então, a processou. Só que, em vez de receber o dinheiro, teve seu golpe descoberto. [Prováveis respostas, respectivamente: “velha”, “médico”, “olhos”, “perverso”, “móveis”, “remédio”, “fechados”, “tratamento”.] 2- Agora, diga se os oito termos apresentados no quadro da questão anterior foram usados no resumo como substantivos (para identificar algo ou alguém) ou como adjetivos (para caracterizar algo ou alguém). Para isso, organize-os no esquema a seguir:

Substantivos Adjetivos [olhos] [perverso] [velha] [fechados]

[remédio] [médico] [móveis]

[tratamento]

3- Sabemos que o contexto também determina o significado das palavras. Desse modo, assinale o significado mais adequado para cada palavra em destaque nos seguintes trechos: a) “Toda vez que ele vinha, passava remédio nos seus olhos” (linhas 1 e 2) ( ) socorro, ajuda ( ) solução, saída ( ) medicamento, droga [Provável resposta: “medicamento, droga”] b) “(...) eu enxergava todos os móveis da casa” (linha 7) ( ) itens de mobília ( ) inconstantes, volúveis ( ) móbeis, movíveis [Provável resposta: “itens de mobília”]

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c) “(...) encerrou o tratamento e exigiu o preço combinado” (linhas 3 e 4) ( ) acolhimento, recepção ( ) método terapêutico, procedimento médico ( ) trato, convenção [Provável resposta: “método terapêutico, procedimento médico”] d) “Assim, os homens perversos (...) arrastam contra si a prova de sua perversidade” (linhas 8 e 9) ( ) avaliação, teste ( ) tentativa, experiência ( ) evidência, certeza manifesta [Provável resposta: “evidência, certeza manifesta”]

Texto 2: O escularápio1

Um escularápio foi chamado para tratar de uma rica senhora que sofria de catarata.2 Sendo, porém, desonesto,3 o nosso querido amigo4 sempre que ia visitar a rica velha furtava-lhe um objeto precioso. Quando acabaram os objetos preciosos, ele começou, despudoradamente, a levar- lhe também os móveis, um a um.5Afinal, certo dia, não tendo mais o que roubar, deixou de visitar a velha. Mas não contente com isso sapecou- lhe em cima uma conta terrível, capaz de abalar mesmo a fortuna do mais rico catarático. A velha protestou dizendo que não pagava, e a coisa foi parar no Tribunal. E foi no Tribunal que a velha declarou o motivo de sua recusa em pagar. Disse: “Não posso pagar a conta do senhor esculápio,6do doutor médico, porque eu estou com a vista pior do que quando ele começou a me tratar. No início do tratamento eu ainda via alguma coisa. Mas, agora, não consigo enxergar nem os móveis lá da sala.”

Moral: A extrema desonestidade acaba visível mesmo para um cego.

(Fernandes, 1999, pp.81-82) 4- Como a primeira nota de rodapé explica, o termo “escularápio” é um neologismo (uma palavra nova, criada a partir de outra(s) já existente(s). Marque a opção que apresenta outro exemplo de neologismo: ( ) desonestidade ( ) senhorita ( ) ficante ( ) fotógrafo

1 Esculápio larápio 2 Sofria porque não morava no Rio. Aqui quem tem catarata é invejado, por causa da falta de água. Ah! Ah! 3 Desonesto é apelido, doutor. 4 Conselho ao leitor que estranha chamarmos de amigo tal sacripanta: “Tenha sempre amigos bem desonestos. Assim você passará por decente, apes ar de pequenas desonestidades.” 5 O despudor apenas, porém, sejamos justos, não era o bastante. O nosso anti-herói tinha despudor, mas tinha força também. 6 Ela não usava a palavra escularápio não porque não tivesse coragem. Faltava-lhe imaginação para inventá-la. A nós, não.

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[Provável resposta: “ficante”] 5- Na segunda nota de rodapé, o autor faz uma piada a partir do termo “catarata”. A piada é formulada com base num outro significado dessa palavra (“queda d’água”), diferente do que ela assume na fábula lida, na qual faz referência a uma doença. Mesmo que o leitor não saiba que essa doença afeta os olhos, o texto fornece algumas “pistas” para que se chegue a tal conclusão. Transcreva uma dessas “pistas”: _________________________________________________________________________ [Prováveis respostas: “Estou com a vista pior do que quando ele começou a me tratar” ou “No início do tratamento eu ainda via alguma coisa. Mas, agora, não consigo enxergar nem os móveis lá da sala.” (ou o trecho todo, como uma única citação)] 6- Quando afirma, na terceira nota de rodapé, que “desonesto é apelido”, o autor pretende: ( ) Revelar aos leitores como o doutor era conhecido pelos mais íntimos. ( ) Intensificar o atributo dado ao doutor. ( ) Desmentir a acusação feita ao escularápio. [Provável resposta: “Intensificar o atributo dado ao doutor.”] 7- A respeito do conselho dado na quarta nota de rodapé (“Tenha sempre amigos bem desonestos. Assim você passará por decente, apesar de pequenas desonestidades.”), é possível deduzir que: ( ) O autor espera que essa dica seja realmente seguida por todos. ( ) Esse comentário é mais um recurso para incutir humor ao texto. ( ) O autor pretende denunciar que todo ser humano é indecente. [Provável resposta: “Esse comentário é mais um recurso para incutir humor ao texto.”] 8- Com base na existência de palavras como “asmático” e “reumático”, que neologismo o autor usou para se referir àqueles que sofrem do problema de saúde mencionado no texto? (Atenção! Observe também as notas de rodapé!) ___________________ [Provável resposta: “catarático”.] 9- A comparação das duas fábulas permite que se afirme o seguinte: ( ) O principal objetivo do texto de Millôr parece ser o mesmo que o de Esopo: passar um ensinamento ao leitor, incentivar a moralidade. ( ) Ambas as fábulas têm o humor como principal elemento. ( ) Enquanto Esopo privilegia o incentivo à moralidade, Millôr utiliza o humor para satirizar. [Provável resposta: “Enquanto Esopo privilegia o incentivo à moralidade, Millôr utiliza o humor para satirizar.”] 6.4 “O leão e o rato agradecido” / “Hierarquia”

Texto 1: O leão e o rato agradecido

Enquanto um leão dormia, um rato passeava pelo seu corpo. Mas ele despertou e o agarrou, e ia devorá- lo quando o rato pediu- lhe que o largasse, dizendo que, se o deixasse são e salvo, iria retribuir- lhe esse favor. E o leão, com um sorriso, soltou-o. Aconteceu, então, que

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não muito depois ele foi salvo pela gratidão do rato. Tendo sido apanhado por caçadores, o leão foi amarrado com uma corda a uma árvore. Nessa ocasião o rato, quando ouviu os seus gemidos, foi lá e roeu a corda. E depois de libertá- lo, disse: “Certa vez você caçoou de mim, dizendo que não esperava receber de minha parte uma retribuição. Agora, porém, tenha certeza de que também entre os ratos há gratidão!”

A fábula mostra que, com as mudanças das situações, os muito poderosos passam a precisar dos mais fracos.

(Esopo, in: Dezotti, 2003, pp. 54-55) 1- As personagens principais da fábula são o ________________ (que simboliza os mais fracos) e o ________________ (que representa os poderosos). [Prováveis respostas: “rato” e “leão”, respectivamente.] 2- Que palavra do título já dá uma pista ao leitor de que uma das personagens enfrentará problemas e receberá ajuda? ________________ [Provável resposta: “agradecido”.] 3- No trecho “Enquanto um leão dormia, um rato passeava pelo seu corpo. Mas ele despertou e o agarrou” (linhas 1 e 2), os termos sublinhados (ele – o) fazem referência, respectivamente, a: ( ) corpo – leão ( ) leão – corpo ( ) leão – rato ( ) rato – leão [Provável resposta: “leão – rato”] 4- O sorriso do leão, ao soltar o rato, demonstra: ( ) Alegria, por ter praticado um ato de bondade. ( ) Simpatia, por ser o rei dos animais e tratar bem seus súd itos. ( ) Zombaria, por crer que nunca precisaria da ajuda de um ser inferior. [Provável resposta: “Zombaria, por crer que nunca precisaria da ajuda de um ser inferior.”] 5- Na moral (“Com as mudanças das situações, os muito poderosos passam a precisar dos mais fracos.” – linhas 9 e 10), os termos “poderosos” e “fracos” referem-se: ( ) Só aos leões e aos ratos. ( ) Só aos caçadores e aos animais. ( ) Aos seres humanos. [Provável resposta: “Aos seres humanos.”]

Texto 2: Hierarquia

Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas1. Ainda com as palavras da mulher o aborrecendo, o leão subitamente se defrontou com um pequeno rato, o ratinho mais menos que ele já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente para fugir, o leão gritou: “Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!” E soltou-o. O rato correu o mais que pôde, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: “Será que Vossa Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar agora mesmo com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!”2

Moral: Afinal ninguém é tão inferior assim. Submoral: Nem tão superior, por falar nisso. (Fernandes, 1999, p. 110)

1 Quer dizer: muitas e más. 2 Na grande hora psicanalítica, que soa para todos nós, a precisão de linguagem é fundamental.

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6- Apesar de as personagens principais do texto de Millôr Fernandes serem as mesmas da fábula de Esopo, a mulher do leão e uma lesma aparecem como personagens secundárias. Sabendo-se que hierarquia significa “ordem de poder, escala de autoridade”, ordene as quatro personagens da fábula, a fim de justificar o título da mesma: Mais autoridade _________? __________? __________? _________ Menos autoridade [Provável resposta: “leoa (ou ‘mulher do leão’) ? leão ? rato ? lesma”] 7- Como se sabe, as palavras só podem ser classificadas de acordo com o contexto. Por exemplo, na frase “A fera fugiu do circo.”, a palavra “fera” é um substantivo, pois identifica quem fugiu. No entanto, essa mesma palavra aparece como adjetivo em “Meu irmão é fera em matemática!”, visto que caracteriza o irmão. Desse modo, diga se os termos sublinhados nas frases abaixo (quatro delas fazem parte do texto) são substantivos ou adjetivos: a) “Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher.” (linhas 1 e 2) ? __________________ [Provável resposta: “adjetivo”] b) O rei dos animais estava chateado porque havia brigado com a esposa. ? ____________ [Provável resposta: “substantivo”] c) “O leão subitamente se defrontou com um pequeno rato” (linha 3) ? _______________ [Provável resposta: “substantivo”] d) “Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!” (linhas 6 e 7) ? __________________ [Provável resposta: “adjetivo”] e) “Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento.” (linhas 5 e 6) ? __________________ [Provável resposta: “adjetivo”] f) O miserável implorou ao rei pela própria vida. ? __________________ [Provável resposta: “substantivo”] 8- Na primeira nota de rodapé, o autor afirma que a expressão “poucas e boas” significa, na realidade, “muitas e más”. Logo, pode-se concluir que:

( ) O autor acrescentou essa nota ao texto para corrigir um erro cometido. ( ) A nota de rodapé aponta o verdadeiro significado de uma conhecida expressão. ( ) O autor é indeciso e não sabe bem o que a leoa disse ao marido. [Provável resposta: “A nota de rodapé aponta o verdadeiro significado de uma conhecida expressão.”] 9- A segunda nota de rodapé (“Na grande hora psicanalítica, que soa para todos nós, a precisão de linguagem é fundamental.”) refere-se ao trecho “Vou me encontrar agora mesmo com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!”. Que termo desse trecho justifica o uso da expressão “precisão de linguagem”?

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( ) agora ( ) lesma ( ) eu ( ) mesmas [Provável resposta: “mesmas”] 10- Em “Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento.”, o termo sublinhado faz referência: ( ) ao leão ( ) à leoa ( ) ao rato ( ) à cauda ( ) à lesma [Provável resposta: “ao rato”] 6.5 CONTABILIZANDO OS RESULTADOS

O gráfico a seguir revela o desempenho dos 60 alunos que realizaram uma prova

composta pelas atividades propostas com base nas fábulas “O leão e o rato agradecido”, de

Esopo, e “Hierarquia”, de Millôr Fernandes (cf. p. 122-124). Seria de se esperar que este

tópico recobrisse todas as atividades preparadas.

Conforme o que já se explicou, essa prova (em conjunto com as redações feitas e com

a nota de participação nas aulas) serviu como avaliação do quarto bimestre de 2007 para as

duas turmas de primeiro ano do segundo grau com que trabalhei (num colégio estadual,

situado em Niterói).

No gráfico, As barras verticais coloridas representam a quantidade de respostas

adequadas, inadequadas, parcialmente adequadas e em branco (conforme a legenda) para cada

uma das questões propostas (especificadas no eixo horizontal do gráfico). Faz-se necessário

48

51

37

53

4951

20

42

47

37

32

50

39

49

36

55

119

19

7

21

9

6

17

12

21

27

9

20

11

23

5

0 02

0 0 0

30

0 0 0 0 0 0 0 0 01

02

0 0 0

4

1 12

1 1 10

10

0

10

20

30

40

50

60

1a 1b 2 3 4 5 6 7a 7b 7c 7d 7e 7f 8 9 10

respostas adequadas

respostas inadequadas

parcialmente adequadas

em branco

Resultado da Avaliação - Total de 60 alunos

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explicar que as questões 1 e 7 foram divididas em sub- itens, a fim de facilitar a identificação

de cada resposta.

Na questão 2, em que é solicitada a palavra do título que serve como “pista textual”, só

foram classificadas como “parcialmente adequadas” as respostas que apresentaram a

expressão “rato agradecido”.

No caso da questão 6, em que se pede que o aluno ordene as personagens conforme a

hierarquia, optou-se por analisar a resposta como um todo, visto que, em alguns casos, um

único item adequado (ou inadequado) perdia o valor de adequação (ou inadequação) quando

os outros três não tinham lógica alguma de organização (ou estavam organizados

adequadamente). Desse modo, só foram consideradas “parcialmente adequadas”

(representadas, no gráfico, pela cor amarela) as respostas que apontavam a superioridade da

leoa em relação ao leão.

A análise do gráfico leva-nos a concluir que, em grande parte das questões, o número

de respostas adequadas foi superior ao de respostas inadequadas, parcialmente adequadas ou

em branco, o que demonstra uma boa apreensão do conteúdo. O único item em que esse fato

não ocorreu foi o referente à questão 6, em que muitos alunos não conseguiram organizar a

hierarquia adequadamente. É interessante ressaltar a possível influência do fator “machismo”,

ainda tão presente na sociedade; afinal, metade dos alunos apontou o leão como um ser

superior à leoa, mesmo que o texto traga a informação de que o “rei dos animais” havia

levado uma enorme bronca da esposa. Dessa forma, é possível concluir que as atividades

mostraram-se bastante produtivas, cumprindo bem a proposta de trabalhar com nomes.

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7 CONCLUSÃO

Há pouco mais de quatro anos, tenho trabalhado como professora de Português em

duas escolas públicas localizadas em Niterói (uma é estadual; a outra, municipal). Ainda há

uma certa cobrança para que se privilegie o uso de textos em sala de aula; no entanto, creio

que a postura mais indicada para um professor de língua materna seja a realização de um

trabalho paralelo com texto e teoria gramatical, por ser o conhecimento desta uma ferramenta

essencial para a melhor compreensão e produção daquele.

Além disso, é essencial, por exemplo, que o aluno entre em contato com formatos

diversificados de textos, a fim de que possa reconhecer as peculiaridades de cada um deles e,

assim, adequá- los a cada situação comunicativa (formal ou informal) em que estiver

envolvido.

A escolha dos nomes como foco das atividades que foram sugeridas – com base na

Teoria Semiolingüística de Análise do Discurso, desenvolvida por Patrick Charaudeau (2005)

– deve-se ao fato de que os substantivos e os adjetivos (em conjunto com os verbos)

representam a estrutura básica de qualquer língua. Além disso, essas palavras assumem papéis

muito importantes no universo das fábulas (corpus com o qual se escolheu trabalhar), que são

textos narrativos em que entidades (representadas pelos nomes substantivos) e atributos

(representados pelos nomes adjetivos) aparecem com bastante freqüência. Assim, comprova-

se que os nomes realmente têm papel fundamental na construção das fábulas e também na

“desconstrução” delas (no caso de alguns textos de Millôr, criados e recriados com humor e

ironia, a fim de abordar valores e antivalores, ao satirizar a realidade social).

Vale ressaltar que a aplicação da atividade proposta apresentou resultados muito bons,

o que comprova que o trabalho com nomes baseado em fábulas – para que se avaliem os

efeitos de sentido produzidos pelo uso dessas palavras nos textos em questão – pode ser

realmente bastante proveitoso.

Também é fundamental relembrar a importância do texto fabulístico para a formação

moral dos alunos, visto que apresenta importantes ensinamentos e pode suscitar discussões

bastante positivas em sala de aula; ou seja, fábulas são textos ideais para o uso didático.

Afinal, a educação deve ir além da transmissão de conteúdos pedagógicos.

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Trata-se de ampliar a responsabilidade da educação para as habilidades sociais e psicológicas, priorizando a afetividade, o equilíbrio, a convivência plural. O ensino não pode ser verticalizado e resolver-se no que deva ser memorizado pelos alunos com o objetivo de aprová-los ou conferir-lhes diplomas. (Chalita, 2004, p. 126)

Não é a quantidade de matéria dada nem a capacidade de memorização – medida nas

inúmeras avaliações – que determinará a boa educação. O conteúdo passa a ser importante

quando existe um sentido em sua escolha, quando está relacionado à vida, à prática da

cidadania.

A educação precisa ser ampla, a fim de formar seres humanos completos, com

consciência crítica, preparados para a vida e dispostos a colaborar uns cons os outros.

O grande desafio do educador é convencer o educando a valorizar o bem comum, a boa convivência, a responsabilidade partilhada, na esperança de um mundo cada vez melhor para esta e para as gerações que virão. (Chalita, op. cit., p. 117)

E as fábulas podem ajudá- lo nesse desafio, uma vez que levam o aluno a refletir sobre

a vida de uma forma “leve”, a partir de uma historinha que só o trará de volta à realidade na

moral, da qual ele tirará alguma lição. Afinal, como já foi afirmado, as fábulas são textos

predominantemente figurativos (o que se comprova pelo fato de que apresentam muitos

substantivos concretos, adjetivos objetivos e adjetivos subjetivos avaliativos não-axiológicos).

A fim de que se visualize melhor essa predominância, será utilizada como exemplo a

análise comparativa do número de figuras e de temas que aparecem nos seis pares de fábula

analisados:

Fábulas Número de Figuras Número de Temas

“O leão, o asno e a raposa” (Esopo) 22 12

“O leão, o burro e o rato” (Millôr) 91 62

“O velho e a morte” (Esopo) 13 4

“O miserável e a morte” (Millôr) 47 27

“A raposa cotó” (Esopo) 14 12

“O camelô acamelado” (Millôr) 41 21

“A raposa e as uvas” (Esopo) 6 5

“A raposa e as uvas” (Millôr) 33 16

“O lobo e o cordeiro” (Esopo) 15 8

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Pode-se concluir, dessa forma, que há predomínio de “figuras” em todas os textos.

Entretanto, é necessário esclarecer que a fábula é figurativa apenas numa primeira análise; um

estudo mais acurado revela que o campo “figurativo” remete para o “temático”, o que se

comprova pela importância assumida pela moral nesses textos. Aliás, na moral ocorre

justamente a simbiose do “figurativo” e do “temático”, de modo que o leitor possa captar

melhor os bons valores.

Nesse sentido, educadores, pais e todos os que acreditam na importância dos valores essenciais para a formação de gerações mais conscientes e críticas devem propagar e demonstrar por meio de exemplos e ações que, independentemente das diferenças, todos temos necessidades físicas e psicológicas semelhantes. Todos precisamos de alimento para o corpo e para o espírito. (Chalita, 2003, p. 175)

Assim, que nós, professores, continuemos alimentando o espírito de nossos alunos e

formando gerações melhores, verdadeiramente livres...

Mas quem somos nós para conseguir tal proeza?

Eis a resposta:

Somos professores? Muito mais! Somos educadores? Mais ainda! Somos vendedores de sonhos! Vendemos sonhos para o abatido se animar, Para o tímido ousar, para o ansioso se tranqüilizar, Para o poeta se inspirar e para o pensador criticar e criar. Sem sonhos, somos servos! Sem sonhos, obedecemos ordens! Que vocês, alunos, sejam grandes sonhadores! E se sonharem, não tenham medo de caminhar! E se caminharem, não tenham medo de tropeçar! E se tropeçarem, não tenham medo de chorar! Levantem-se, pois não há caminhos sem acidentes. Dêem sempre uma nova chance para si mesmos. Pois a liberdade só é real se após falharmos Existir o direito de recomeçar... (Cury, 2006, pp. 142-143)

Assumamos, então, nosso papel de vendedores de sonhos e sigamos também os

conselhos dirigidos aos alunos, lembrando-nos de que é sempre possível rever nossa prática e

recomeçar a caminhada...

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RESUMO

Este trabalho, fundamentado na Teoria Semiolingüística de Análise do Discurso,

apresenta propostas de atividades baseadas em fábulas de Esopo e de Millôr Fernandes, a fim

de analisar o papel dos nomes na produção de efeitos de sentido. Uma vez que as fábulas são

freqüentemente textos curtos, porém repletos de sabedoria, elas mostram-se ideais para o uso

didático, além de contribuírem para a formação moral dos alunos.

Palavras-chave: fábulas, nomes, efeitos de sentido.

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ABSTRACT

Based on the Semiolinguistic Theory of Discourse Analysis, this paper proposes

activities focused on fables by Aesop and by Millôr Fernandes, in order to analyse the role of

nouns in the production of meaning effects. As fables are frequently short in length but full of

wisdom, they prove to be ideal for didactical purposes; besides, they contribute to the moral

formation of students.

Key-words: fables, nouns, meaning effects.