o papel de parede amarelo de charlotte perkins gilman..html

18
O papel de parede amarelo É muito raro que pessoas tão comuns como John e eu consigam um casarão antigo para PA ssar o verão. Uma mansão colonial, um imóvel de herança, eu diria até uma casa mal- assombrada, e atingir o auge da felicidade romântica - mas isso seria pedir demais ao destino! Mesmo assim, posso afirmar solenemente que tem algo estranho com a casa. Senão, por que seria alugada tão barato? E por que ficou sem inquilino por tanto tempo? John ri de mim, é claro, mas isso já é esperado num casamento. John é extremamente prático. Não tem paciência alguma com a fé, tem um horror enorme à superstição e debocha abertamente de qualquer conversa sobre coisas que não possam ser tocadas e vistas e registradas em números. John é médico e talvez - (eu não diria isso a vivalma, claro, mas isso aqui é um papel morto e um grande alívio para minha cabeça) - talvez essa seja uma das razões para eu não melhorar mais rápido. Sabe, ele não acredita que eu esteja doente! E o que é que se pode fazer? Se um médico altamente conceituado, o próprio marido da pessoa, garante a amigos e parentes que realmente não há nada demais com ela, só uma depressão nervosa-temporária - uma ligeira tendência histérica -, o que se há de fazer? Meu irmão também é médico, também altamente conceituado e diz a mesma coisa. Assim, tomo fosfatos ou fósfitos - seja lá o que for, e tônicos e ar, e faço caminhadas e exercícios, e estou absolutamente proibida de “trabalhar" até estar bem de novo. Pessoalmente, discordo das ideias deles. Pessoalmente, acho que um trabalho agradável, com a empolgação e a novidade, me faria bem. Mas o que se pode fazer?

Upload: laio-oliveira

Post on 11-Sep-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

pa

TRANSCRIPT

O papel de parede amarelo

muito raro que pessoas to comuns como John e eu consigam um casaro antigo para PAssar o vero.

Uma manso colonial, um imvel de herana, eu diria at uma casa mal-assombrada, e atingir o auge da felicidade romntica - mas isso seria pedir demais ao destino!

Mesmo assim, posso afirmar solenemente que tem algo estranho com a casa.

Seno, por que seria alugada to barato? E por que ficou sem inquilino por tanto tempo?

John ri de mim, claro, mas isso j esperado num casamento.John extremamente prtico. No tem pacincia alguma com a f, tem um horror enorme superstio e debocha abertamente de qualquer conversa sobre coisas que no possam ser tocadas e vistas e registradas em nmeros.

John mdico etalvez -(eu no diria isso a vivalma, claro, mas isso aqui um papel morto e um grande alvio para minha cabea) -talvezessa seja uma das razes para eu no melhorar mais rpido.

Sabe, ele no acredita que eu esteja doente!

E o que que se pode fazer?

Se um mdico altamente conceituado, o prprio marido da pessoa, garante a amigos e parentes que realmente no h nada demais com ela, s uma depresso nervosa-temporria - uma ligeira tendncia histrica -, o que se h de fazer?

Meu irmo tambm mdico, tambm altamente conceituado e diz a mesma coisa.

Assim, tomo fosfatos ou fsfitos - seja l o que for, e tnicos e ar, e fao caminhadas e exerccios, e estou absolutamente proibida de trabalhar" at estar bem de novo.

Pessoalmente, discordo das ideias deles.Pessoalmente, acho que um trabalho agradvel, com a empolgao e a novidade, me faria bem.

Mas o que se pode fazer?

Insisti em escrever por um tempo apesar deles; masrealmenteme cansa muito - ter que fingir tanto sobre o assunto, ou ento enfrentar oposio cerrada.

s vezes tenho a fantasia de que, na minha condio, se tivesse menos oposio e mais companhia e estmulo - mas John diz que a pior coisa que posso fazer pensar na minha condio, e confesso que isto sempre me deixa mal.

Ento vou abandonar o assunto e falar da casa. Que lugar mais lindo! bem isolada e fica bastante recuada da estrada, a umas trs milhas da vila. Me faz lembrar lugares ingleses que a gente v descritos em livros, pois tem cercas vivas, muros e portes com cadeados, e muitas casinhas separadas para os jardineiros e outras pessoas.

Tem um jardimdelicioso.Nunca vi um jardim assim grande e sombreado, cheio de caminhos entre os canteiros e caramanches de parreiras de uvas com bancos embaixo para sentar.

J teve estufas tambm mas agora esto todas quebradas. Houve algum problema legal ligado a herdeiros e co-herdeiros, eu acho, e o lugar ficou vazio durante anos.

Isso atrapalha a ideia que tive dos fantasmas, mas no importa - h algo estranho com a casa - posso sentir.

At falei com John sobre isso numa noite enluarada, mas ele disse que o que senti foi uma corrente de ar, e fechou a janela.

s vezes fico zangada com John sem razo. Tenho certeza que antes eu no era assim to sensvel. Deve ser por causa desse problema nervoso.

Mas John diz que se me sinto assim vou descuidar do meu autocontrole, ento fao o maior esforo para me controlar - na frente dele, pelo menos, e isso me deixa muito cansada.

No gosto nada do nosso quarto. Queria um no andar de baixo, que abria para a varanda e tinha rosas por toda a janela, e umas cortinas antigas dechintzto lindas! Mas John no me deu ouvidos.

Disse que l havia uma janela apenas e espao insuficiente para duas camas, e nenhum quarto ao lado onde ele pudesse ficar.

Ele muito cuidadoso e amoroso e quase no permite que eu me mexa sem me dar uma orientao especial.

Tenho uma receita que determina o que devo fazer a cada hora do dia; ele me tira qualquer preocupao, e me sinto uma ingrata por no dar mais valor a isso.

Disse que viemos prac s por minha causa, para eu descansar totalmente e respirar todo o ar puro possvel. "Seu exerccio depende de sua fora, querida", falou, "e sua alimentao depende de seu apetite; mas ar puro voc pode respirar o tempo todo". Ento ficamos no berrio no andar de cima da casa.

um quarto grande, arejado, quase todo o andar, com janelas para todos os lados, e ar e sol em abundncia. Foi primeiro um berrio e depois sala de jogos e de esportes, eu imagino; pois as janelas tm grades para crianas pequenas, e h argolas e coisas nas paredes.A pintura e o papel de parede do a impresso de ali ter sido uma escola de meninos. Est arrancado - o papel - em pedaos grandes em torno da cabeceira da minha cama, at mais ou menos a altura onde consigo alcanar, e numa rea bem grande, bem embaixo, do outro lado do quarto. Nunca vi papel pior em toda minha vida.

Um daqueles tipos de desenhos bem espraiados e espalhafatosos que pecam totalmente contra a arte.

apagado o bastante para confundir quem busca segui-lo com o olhar, marcante o bastante para causar frequente irritao e provocar o estudo, e quando voc tenta acompanhar as curvas tortas e incertas durante um pequeno trecho, de repente elas se suicidam - precipitam-se em ngulos ultrajantes, destroem-se em contradies impossveis.

A cor repelente, quase repulsiva; um amarelo sujo, apagado, estranhamente desbotado pela luz do sol que passa devagar sobre ele.

Em alguns lugares de um laranja inspido, mas lgubre, em outros, de um tom sulfrico repugnante.

No de se espantar que as crianas o detestassem! Eu mesma o odiaria se tivesse que viver neste quarto muito tempo.

L vem John e tenho que guardar isto - ele odeia me ver escrevendo uma palavra que seja.

***

J estamos aqui h duas semanas e no tive mais vontade de escrever, desde aquele primeiro dia.

Agora estou sentada janela, neste berrio abominvel, e nada pode impedir que eu escreva quanto eu quiser a no ser a falta de foras.

John est fora o dia todo e at em algumas noites quando os casos so graves.

Fico contente que meu caso no seja grave!

Mas esses problemas nervosos so terrivelmente deprimentes.

John no sabe o quanto eu sofro de verdade. Ele sabe que no hrazopara eu sofrer, e isso o satisfaz.

Lgico que apenas nervoso. Sinto-me to culpada por no cumprir nenhum dos meus deveres! .

Meu desejo era dar tanta ajuda para John, tanto descanso e conforto, e aqui estou, igual a um fardo!

Ningum acreditaria no enorme esforo que fazer o pouco de que sou capaz - me vestir, conversar e pedir coisas.

Ainda bem que Mary boa com o beb. Um nenm to querido!

E, no entanto,no possoficar com ele, me deixa to nervosa!

Acho que John nunca ficou nervoso na vida. Ri tanto de mim por causa desse papel de parede!

No incio ele tinha inteno de trocar o papel do quarto, mas depois disse que eu estava deixando que o papel me dominasse, e no havia nada pior para um doente dos nervos do que se deixar levar por tais fantasias.

Disse que depois que o papel fosse trocado seria a cabeceira pesada, e depois as janelas com grade, e a aquele porto no alto da escada, e assim por diante.

"Voc sabe que o lugar est lhe fazendo bem", falou, "e, na verdade, querida, no me interessa reformar a casa para um aluguel de apenas trs meses".

"Ento vamos ficar embaixo", eu disse. "L tem quartos to lindos!".

Ento ele me pegou nos braos e me chamou de santa bobinha, e disse que ficaria at no poro, se eu quisesse, e ainda mandaria pintar tudo de branco para completar.

Mas ele tem bastante razo sobre as camas e janelas e coisas.

um quarto to arejado e confortvel que ningum precisaria desejar mais nada, e claro que no sou tola a ponto de incomod-lo por causa de um mero capricho.Estou na verdade comeando a gostar do quarto grande, de tudo, menos daquele papel horrvel.

De uma das janelas posso ver o jardim, aquelas prgulas misteriosas cheias de sombras, uma profuso de flores antigas, arbustos e rvores retorcidas.De outra tenho uma vista linda da baa e de um pequeno cais particular que pertence propriedade. H uma bela alameda sombreada que vai do cais at a casa. Sempre imagino ver pessoas caminhando nesses muitos caminhos e passarelas, mas John me alertou para no eu-no me entregar de jeito nenhum s fantasias. Ele diz que com o meu grau de imaginao e hbito de inventar histrias, uma debilidade nervosa como a que tenho pode levar a todo tipo de fantasias alucinadas, e que preciso usar minha vontade e bom senso para controlar a tendncia. Por isso, eu tento.

s vezes penso que se eu estivesse bem pelo menos para escrever um pouco, aliviaria a presso das ideias e descansaria.Mas vejo que fico bastante cansada quando tento.

to frustrante no ter quem me acompanhe e aconselhe no trabalho! John diz que quando eu estiver realmente bem vamos convidar os primos Henry e Julia para uma visita demorada; mas diz que seria melhor colocar fogos de artifcio no meu travesseiro do que ter essas pessoas to estimulantes por aqui, agora.

Gostaria de melhorar mais rpido.

Mas no devo pensar nisso. Esse papel olha para mim como sesoubessea m influncia que tem!

Tem uma mancha recorrente onde o desenho se pendura como um pescoo quebrado e dos olhos esbugalhados encaram voc, de cabea para baixo.

Fico realmente aborrecida com a impertinncia e a eterna repetio. Para cima e para baixo e de um lado para o outro eles rastejam, e aqueles olhos vidrados, absurdos, esto em toda parte.

H um lugar onde duas tiras do desenho esto desencontradas, e os olhos vo de cima abaixo ao longo de toda a linha, um olho um pouco acima do outro.

Nunca tinha visto tamanha expressividade em algo inanimado, e todos sabemos quanta expresso as coisas costumam ter! Quando era criana, eu ficava acordada e achava mais diverso e terror nas paredes lisas e nos mveis simples do que a maioria das crianas encontra numa loja de brinquedos.

Lembro que os puxadores da nossa velha e grande escrivaninha piscavam de um jeito carinhoso, e tinha uma cadeira que era sempre como uma grande amiga.

Eu achava que se qualquer outra coisa ali parecesse ameaadora demais era s me aconchegar naquela cadeira para me sentir segura.

Os mveis deste quarto, porm, no combinam nada, porque tivemos que trazer tudo do andar de baixo. Imagino que quando isso foi usado como sala de jogos tiveram que retirar as coisas do berrio, e com razo! Nunca vi tamanha destruio como a que as crianas fizeram aqui.

O papel de parede, como eu disse antes, foi arrancado em alguns lugares, e ele est mais coIado na parede do que um irmo a outro - elas devem ter tido muita perseverana e muito dio.

E tambm o assoalho est arranhado e estragado e lascado, o gesso est cavado aqui e ali, e esta cama pesada e enorme, que tudo o que encontramos no quarto, parece ter sobrevivido a vriasguerras.

Mas no me importo nem um pouco - s com o papel.

L vem a irm de John. Uma moa to querida e to cuidadosa comigo! No posso deixar que me veja escrevendo.Ela uma perfeita e entusiasmada dona de casa, e no deseja profisso melhor que essa. Acredito realmente que ela pense que escrever foi o que me deixou doente!

Mas posso escrever quando ela est fora, e consigo enxerg-la ao longe atravs destas janelas.

Tem uma janela que d vista para a estrada, uma estrada linda e sombreada, cheia de curvas, e uma outra que se abre para o campo. tambm um campo lindo, cheio de grandes olmos e prados que parecem veludo.

Esse papel de parede tem uma espcie de desenho por baixo num tom diferente, e particularmente irritante, porque s d para ver sob uma luz especfica, e mesmo assim sem clareza.

Mas, nos lugares onde no est desbotado e o sol bate do jeito certo - posso ver um tipo de figura estranha, provocante, disforme, que parece esconder-se, amedrontada, por trs daquele desenho principal tolo e bvio.

L vem a irm subindo a escada!

* * *

Bem, o feriado de Quatro de Julho terminou! As pessoas foram todas embora e eu estou esgotada. John achou que me faria bem ter um pouco de companhia, ento s vieram para c minha me e Nellie e as crianas durante uma semana.

Claro que no fiz nada. Jennie cuida de tudo agora.

Mas me cansou assim mesmo.

John diz que se eu no me recuperar mais rpido vai me mandar para Weir Mitchell no outono.

Mas no quero ir para l de jeito nenhum. Tenho uma amiga que esteve uma vez nas mos dele e disse que ele igual a John e meu irmo, s que pior ainda!

Alm disso, um trabalho enorme ir para to longe.

Sinto que no vale a pena mexer minha mo para nada, e estou ficando tremendamente irritadia e mal-humorada.

Choro toa, e choro a maior parte do tempo.Claro que no choro quando John est aqui, ou outra pessoa, mas quando estou sozinha.

E agora fico bastante s. Frequentemente John precisa ficar na cidade por causa de pacientes graves, e Jennie boa e me deixa sozinha quando quero.

A ando um pouco pelo jardim ou por aquela linda alameda, sento na varanda perto das rosas, e fico bastante tempo deitada aqui em cima.

Estou gostando mesmo do quarto apesar do papel de parede. Talvezpor causado papel de parede.

Ele no me sai da cabea!

Deito aqui nesta grande cama imvel- acho que est pregada no cho - e sigo aquele desenho durante horas. to bom quanto fazer ginstica, posso lhe afirmar. Comeo, digamos, na parte de baixo, l no canto onde o papel no foi afetado, e decido pela milsima vez que vousimacompanhar o traado deste desenho sem sentido at chegar a algum tipo de concluso.

Tenho algumas noes bsicas de desenho, e sei que essa coisa no foi planejada segundo qualquer regra de irradiao, ou alternncia, ou repetio, ou simetria, ou outra coisa de que eu j tenha ouvido falar.

Ele se repete, claro, nas tiras do papel, mas no de outra maneira.

Olhada de certo modo, cada faixa fica sozinha, com curvas inchadas e floreios - uma espcie de imitao barata do estilo romnico comdelirium tremens -contorcendo-se para cima e para baixo em colunas isoladas cheias de futilidade.Mas, por outro lado, elas se ligam diagonalmente, e os traos espalhados fogem em grandes ondas diagonais de horror visual, como uma poro de algas marinhas nadando em ritmo de total perseguio.A coisa toda segue horizontalmente, tambm, pelo menos assim me parece, e fico exausta tentando decifrar qual a ordem que leva o desenho nessa direo.

Usaram uma faixa horizontal como frisa na parede, e isso contribui maravilhosamente com a confuso.H um canto do quarto onde o papel est quase intacto e l, quando a iluminao lateral pouca e o sol j baixo brilha diretamente sobre ele, quase consigo imaginar um ponto de irradiao,afinal, - as interminveis figuras grotescas parecem formar-se ao redor de um centro comum e precipitar-se em queda vertiginosa, com a mesma loucura.

Me cansa acompanhar o desenho. Acho que vou dormir um pouco.

***

No sei por que escrevo isto.

Eu no quero.

No me sinto capaz.

E John acharia um absurdo. Mas eutenho quedizer o que sinto e penso de algum modo - um alvio enorme!

Mas o esforo est se tornando maior que o alvio.

A metade do tempo agora fico extremamente ociosa e deitada demais.

John diz que no posso perder minhas foras, e me faz tomar leo de fgado de bacalhau, e muitos tnicos e coisas assim, para no falar da cerveja preta e do vinho e da carne malpassada.

Querido John! Ele me ama muito, e detesta me ver doente.

Tentei ter uma conversa sria com ele outro dia e dizer que eu gostaria muito que me deixasse ir visitar o primo Henry e Julia.

Mas ele falou que eu no seria capaz de ir, nem de aguentar quando chegasse l; e no consegui defender bem minha causa porque comecei a chorar antes de chegar ao final.

Para mim est se tornando um grande esforo pensar com clareza. s essa fraqueza nervosa, suponho.

E meu caro John me pegou em seus braos e simplesmente me carregou para cima e me colocou na cama, sentou ao meu lado e leu para mim at que isso cansou minha cabea.Disse que eu era sua querida, seu conforto e tudo que ele tinha, e que devo cuidar de mim por causa dele, e ficar bem.

Diz que ningum, fora eu mesma, pode me tirar disso, que devo usar minha fora de vontade e autocontrole e no permitir que fantasias tolas me descontrolem.

H um conforto pelo menos, o beb est bem e feliz, e no precisa ficar neste berrio com o papel de parede horrvel.

Se no o tivssemos ocupado, a querida criana teria! Que felicidade ter escapado! Ora, eu no gostaria, por nada no mundo, que um filho meu, uma coisinha pequena e impressionvel, vivesse num quarto assim.

Nunca pensei nisso antes, mas foi sorte John ter-me mantido aqui, afinal, posso aguentar muito melhor que um beb, entende?

Claro que no toco mais nisso com eles - sou inteligente o bastante -, mas continuo vigiando o papel do mesmo jeito.

H coisas nesse papel de parede que ningum conhece ou conhecer, exceto eu.

Por detrs desse desenho externo principal, as formas confusas se tornam cada dia mais ntidas. sempre a mesma forma, s que em grande nmero.

E parece uma mulher se abaixando e se arrastando por trs do desenho. No gosto nada disso. Fico imaginando - comeo a pensar - gostaria que John me levasse para longe daqui!

***

to difcil conversar com John sobre meu caso, porque ele to sbio e porque me ama tanto.

Mas tentei, ontem noite.

Era noite de lua. A lua entra aqui com seu brilho por todos os lados, assim como o sol.

s vezes detesto v-la, ela se esgueira to lentamente, e sempre entra por uma janela ou por outra.

John estava dormindo e eu detestaria acord-lo, ento fiquei quieta e observei a luz da lua sobre as ondulaes daquele papel de parede, at ficar com arrepios.A figura esmaecida de trs parecia sacudir o desenho da frente como se quisesse escapar.

Levantei suavemente e fui l sentir se o papelrealmentese movia, e quando voltei John tinha acordado.

"O que , menina?", ele disse. "No saia por a andando assim - voc vai sentir frio".

Achei que era um bom momento para conversarmos, ento falei que realmente eu no estava melhorando aqui e gostaria que me levasse embora.

"Mas como, querida!", disse ele, "nosso contrato vence em trs semanas e no vejo como partir antes".

"Os consertos no esto prontos l em casa, e no posso de forma alguma sair da cidade agora. Claro que se voc estivesse em perigo eu poderia e iria embora, mas na verdade voc est melhor, querida, mesmo que no perceba. Sou mdico, querida, e sei. Voc est ganhando peso e cor, seu apetite est melhor, e estou me sentindo bem mais tranquilo em relao a voc.

"No estou pesando nada mais do que antes, nem o mesmo", falei; e meu apetite pode ser melhor noite, quando voc est aqui, mas pior de manh, quando voc est fora".

"Deus abenoe este coraozinho!", ele disse, com um grande abrao, "pode ficar doente o quanto quiser! Mas agora vamos melhorar as horas de sono indo dormir, e conversamos sobre isso amanh de manh!".

"E voc no vai embora?", perguntei com tristeza.

"Mas, querida, como posso? So s trs semanas mais e ento faremos uma viagem agradvel por alguns dias, enquanto Jennie apronta a casa. Querida, voc est realmente melhor!".

"Melhor no corpo, talvez -" comecei e parei imediatamente, porque ele se sentou bem reto e me fitou com um olhar to duro e reprovador que no pude dizer mais nem uma palavra.

"Minha querida", disse ele, "suplico a voc, pelo meu bem e pelo bem de nosso beb, assim como por seu prprio bem, que nunca deixe aquela idia entrar na sua cabea nem por um instante!.

No existe nada to perigoso, to fascinante, para um temperamento como o seu. uma fantasia boba e falsa. Voc no confia em mim como mdico quando lhe afirmo isto?".

Ento, por essa razo, claro que no falei mais nada, e da a pouco dormimos. Ele pensou que eu tinha dormido primeiro, mas no dormi, e fiquei l deitada durante horas, tentando decidir se aquele desenho da frente e o desenho de trs realmente se moviam juntos ou separadamente.Num tipo de desenho como esse, na luz do dia, h uma falta de sequncia, um desprezo pela lei, que no para de irritar qualquer mente normal.

A cor em si j horrorosa, incerta e enfurecedora, mas alm disso o desenho torturante.Voc pensa que o compreendeu e dominou, mas quando j est acompanhando bem o padro, ele d uma cambalhota, e pronto!

Bate na sua cara, derruba, pisa em voc. como um pesadelo.

O padro de desenho externo um arabesco florido que me lembra um fungo. Se voc conseguir imaginar fungos articulados, uma interminvel fileira de fungos brotando e crescendo em complexidades sem fim - isso mesmo, algo assim.

Quer dizer, s vezes!

H uma peculiaridade marcante nesse papel, algo que ningum parece notar exceto eu, o fato de mudar quando a iluminao muda.

Quando o sol bate forte pela janela leste - sempre fico esperando por aquele primeiro raio, longo, direto - ele muda to rapidamente que quase no consigo acreditar.

Por isso que o vigio sempre.

luz do luar - a lua brilha no quarto a noite toda quando tem lua - eu no poderia afirmar que ele era o mesmo papel.

noite, em qualquer tipo de luz, ao entardecer, luz da lmpada e, o pior de tudo, luz da lua, ele se transforma em barras!

Quer dizer, o padro externo, e a mulher atrs dele fica absolutamente ntida.

No percebi por um bom tempo qual era a coisa que aparecia atrs, naquele desenho obscuro embaixo, mas agora tenho bastante certeza de que uma mulher.

Na luz do dia ela fica quieta, contida. Fico imaginando que o padro de desenho do papel que a-mantm to parada. algo to intrigante! Isso me deixa quieta por horas a fio.

Fico tanto tempo deitada, agora. John diz que bom para mim - e dormir o mais que puder.

De fato, ele comeou com o hbito de me mandar deitar por uma hora aps cada refeio.

um pssimo hbito, estou convencida disso, porque, voc sabe, eu no durmo.

E isso estimula a falsidade, porque no digo a eles que estou acordada - oh, no!

O fato que estou ficando com um pouco de medo do John.

Ele, s vezes, parece muito estranho, e at Jennie est com uma cara inexplicvel.

Me ocorre de vez em quando, s como hiptese, que talvez seja o papel!

Fiquei observando John quando ele no sabia que eu estava olhando, vindo de repente ao quarto com as desculpas mais inocentes, e peguei-o vrias vezesolhando para o papel!E Jennie tambm.

Peguei Jennie uma vez com a mo no papel.

Ela no sabia que eu estava no quarto, e lhe perguntei, com a voz baixa, uma voz bem baixa, da maneira mais controlada possvel, o que ela estava fazendo com o papel - ela se virou rpido, como se tivesse sido pega roubando, e me pareceu muito zangada - e perguntou porque eu a amedrontava assim!

Ento ela disse que o papel manchava tudo que encostava nele, que tinha achado manchas amarelas em todas as minhas roupas e nas de John, e gostaria que fssemos mais cuidadosos!

Isso parecia uma razo inocente, no ? Mas sei que ela estava estudando aquele desenho, e estou decidida que ningum vai decifr-lo a no ser eu!

***

A vida agora est muito mais animada do que antes. Sabe, tenho algo mais a esperar, a prever, a observar. Realmente me alimento melhor, e estou mais quieta do que era.

John est to contente em me ver melhorando! Riu um pouco outro dia, e disse que eu parecia estar florescendo apesar do meu papel de parede.Cortei o assunto com uma risada. No tinha inteno alguma de lhe dizer que erapor causa dopapel de parede - ia debochar de mim. Podia at querer me levar embora.

No quero partir agora antes que o descubra. Tem mais uma semana, e acho que vai ser suficiente.

***

Estou me sentindo to melhor!

No durmo muito noite porque to interessante observar as evolues; mas durmo muito durante o dia.

Odia me deixa cansada e perplexa.

H sempre brotos novos nos fungos e novos tons de amarelo por toda parte. No consigo saber direito quantos so, apesar de haver tentado contar com muito cuidado.

o amarelo mais estranho que existe, esse papel de parede! Faz-me pensar em todos os amarelos que j vi - no os tons bonitos dos botes-de-ouro, mas as coisas velhas, ruins e podres.

Mas tem algo mais com esse papel o cheiro! Notei no instante em que entramos no quarto, mas com tanto ar e sol no era to ruim. Agora tivemos uma semana de chuva e nevoeiro, e com as janelas abertas ou no, o cheiro est a.

Arrasta-se pela casa toda.

Encontro-o pairando sobre a sala de jantar, passando esquivopara a sala de estar, escondendo-se no corredor, minha espreita na escada.

Penetra em meus cabelos.

At quando vou andar de bicicleta, se viro minha cabea de repente para surpreend-la - l est o cheiro!

Um odor to peculiar, tambm! Tenho passado horas tentando analis-lo, descobrir que cheiro esse.

No ruim - no comeo -, e bem leve, mas o odor mais sutil, mais duradouro que j encontrei.

Neste tempo mido terrvel, acordo de noite e o vejo pendurado acima de mim.

Isso a principio me perturbava. Pensei seriamente em colocar fogo na casa - para atingir o cheiro.

Mas agora me acostumei a ele. A nica coisa que posso pensar que ele igual cordo papel! Um cheiro amarelo!

H uma marca muito engraada nesta parede, bem prxima do rodap. Uma listra que percorre todo o quarto. Passa atrs de cada mvel, exceto a cama, uma faixa longa, reta, atpegajosa,como se tivesse sido esfregada muitas vezes.Queria saber como foi feita e quem a fez, e para que a fizeram.

Roda e roda e roda - roda e roda e roda - me deixa tonta!

***Descobri mesmo uma coisa, finalmente.

Depois de tanta observao durante a noite, quando ele muda tanto, afinal descobri.Odesenho da frentese mexe mesmo - lgico! A mulher por trs dele o sacode!s vezes penso que h muitas mulheres atrs, e s vezes apenas uma, e ela rasteja em volta bem depressa, e o movimento que faz rastejando sacode tudo.

Ento, nos locais bem claros ela fica parada, e nos pontos mais escuros ela se agarra nas barras e as sacode com fora.

E o tempo todo ela est tentando saltar para fora das grades.

Mas ningum conseguiria escapar daquele padro de desenho ele estrangula tanto; acho que por isso que tem tantas cabeas.

Elas passam para o outro lado, e a o desenho as estrangula e as coloca de cabea para baixo, e faz seus olhos ficarem brancos!

Se essas cabeas fossem cobertas ou retiradas no seria to mau.

***

Acho que essa mulher sai durante o dia!

E posso lhe dizer - em particular - porque eu a vi!

Posso v-la de cada uma das minhas janelas!

a mesma mulher, eu sei, porque est sempre se arrastando, e a maioria das mulheres no rasteja luz do dia.vEu a vejo naquela alameda longa e sombreada, rastejando para cima e para baixo. Vejo-a naquelas parreiras, rastejando por todo o jardim.

Vejo-a naquela longa estrada sob as rvores, arrastando-se, e quando vem uma carruagem ela se esconde debaixo dos ps de amora preta.

No a culpo nem um pouco. Deve ser muito humilhante ser apanhada rastejando a luz do dia.

Sempre tranco a porta quando me arrasto durante o dia. Noposso fazer isso noite, porque sei que John desconfiaria de algoimediatamente.

E John agora anda to estranho que no quero irrit-lo.

Gostaria que fosse dormir em outro quarto! Alm disso, no quero que ningum deixe aquela mulher sair noite a no ser eu.

Fico sempre pensando se seria possvel v-la por todas as janelas de uma vez s.

Mas, por mais rpido que eu me vire, s consigo avist-la de uma janela de cada vez.

E embora sempre a veja, ela capazde rastejar mais rpido do que eu consigo virar-me!

Algumas vezes a enxerguei l longe no campo aberto, rastejando rpido como uma sombra de nuvem ao vento.Se pelo menos o padro do desenho de cima pudesse ser separado do de baixo! Quero tentar fazer isso, aos poucos.

Descobri outra coisa engraada, mas no vou contar desta vez. No d certo confiar demais nas pessoas.

Tenho s mais dois dias para arrancar esse papel, e acho que John est comeando a reparar. No gosto da expresso dos olhos dele!

E ouvi que ele fez a Jennie vrias perguntas profissionais sobre mim. Ela fez um relatrio muito bom.

Disse que eu dormia muito de dia John sabe que no durmo bem noite, pois estou sempre to quieta!

Ele me fez todo tipo de pergunta, tambm, e fingiu ser amoroso e gentil.

Como se eu no pudesse ver atravs dele!

Mesmo assim, no me admira que ele aja assim, dormindo debaixo desse papel h trs meses.

Ele s interessa a mim, mas tenho certeza de que John e Jennie foram secretamente afetados por ele.***

Viva! Este o ltimo dia, mas o bastante. John est pernoitando na cidade, e s vem hoje ao anoitecer.

Jennie queria dormir comigo - a falsa! Mas eu disse a ela que sem dvida eu descansaria mais passando uma noite sozinha.

Foi uma ideia inteligente porque, na verdade, eu no estava nada sozinha! Logo que a lua nasceu e aquela pobrezinha comeou a rastejar e sacudir o padro do desenho, levantei-me e corri para ajuda-la.

Eu puxava e ela sacudia, puxava e ela sacudia, e antes da manh chegar tnhamos descascado muitos metros do papel.

Uma faixa da altura de minha cabea, em volta da metade do quarto.

E ento quando o sol chegou e aquele padro terrvel comeou a rir de mim, decidi que terminaria isso hoje de qualquer maneira!

Vamos embora amanh, e esto levando meus mveis para baixo de novo para deixar as coisas como eram antes.

Jennie olhou para a parede assustada, mas eu disse a ela bem alegremente que tinha feito aquilo de pura raiva daquela coisa horrorosa.

Ela riu e disse que at faria a mesma coisa, mas que eu no devia me cansar.

Como ela se traiu dessa vez!

Mas estou aqui, e ningum vai tocar nesse papel a no ser eu - ningumcom vida!

Ela tentou me tirar do quarto - isso ficou bem patente! Mas eu disse que ele estava to quieto, vazio e limpo agora que eu achava que ia me deitar e dormir o quanto pudesse, e que no me acordassemnem para o jantar - eu chamaria quando acordasse.

Ento ela saiu, e os empregados se foram, e as coisas se foram, e nada ficou a no ser essa grande cama pregada no cho, com o colcho de lona que encontramos nela.

Dormiremos l embaixo esta noite, e iremos para casa de barco amanh.

Gosto bastante do quarto, agora que est vazio de novo. Como aquelas crianas rasgaram tudo aqui!Esta cabeceira est cheia de de dentes!

Mas tenho que ir trabalhar.

Tranquei o quarto e joguei a chave l embaixo no caminho da frente.

No quero sair, e no quero que ningum entre at John chegar.

Quero impression-lo.

Tenho uma corda escondida que nem Jennie conseguiu achar. Se aquela mulher escapar e tentar fugir, eu posso amarr-la!Mas esqueci que no consigo alcanar no alto se no tiver algo em que subir!

Esta camanose mexe!

Tentei levant-la e empurr-la at eu ficar torta, e ento fiquei com tanta raiva que dei uma mordida nela em um canto - mas machucou meus dentes.

A descasquei todo o papel que consegui alcanar estando em p no cho. terrivelmente grudado e o padro deve adorar isso!

Todas aquelas cabeas degoladas e olhos esbugalhados e fungos tremulantes do guinchos de deboche!

Estou ficando com tanta raiva que posso fazer algo desesperado.

Pular pela janela seria um exerccio excelente, mas as grades so fortes demais at para tentar.

Alm do mais, eu no faria isso. Claro que no. Sei bem que um passo desses inapropriado e pode ser mal interpretado.

No gosto nem deolharpara fora das janelas - tem tantas dlquelas mulheres rastejando, e elas se arrastam to rpido.

Ser que toda elas saram desse papel como eu sa?

.Mas-agora estou bem amarrada pela corda que escondi ta bem voc no vai conseguirmecolocar naquela estrada l fora.

Suponho que vou ter que voltar para dentro do padro do desenho quando chegar a noite, e isso difcil!

to agradvel ficar solta neste quarto enorme e rastejar em volta do quarto do jeito que eu quiser!

No quero sair daqui. No vou, mesmo que Jennie me pea.

Porque l fora voc tem que rastejar no cho, e tudo verde em vez de amarelo.

Mas aqui posso me arrastar no assoalho, e meu ombro se encaixa bem naquela mancha comprida em volta da parede, e assim no perco o rumo.

Ih, John est na porta!No adianta, jovem senhor, no conseguir abri-la!

Como ele chama e bate!

Agora est gritando e pedindo um machado.

Seria uma pena quebrar essa porta to linda!

"John, querido!", disse eu na voz mais suave, "a chave est l fora, perto dos degraus da entrada, debaixo de uma folha de bananeira!.--o>

Isso o deixou calado por uns minutos.

Depois ele falou - de um jeito bem suave, "Abra a porta, minha querida!".

"No posso", disse eu. "A chave est perto da porta da frente, debaixo de uma folha de bananeira!".

E ento repeti isso vrias vezes, bem gentilmente e devagar, e disse tantas vezes que ele teve que ir ver, e a encontrou, claro, e entrou. Parou bruscamente na porta.

"Que aconteceu?", gritou. "Pelo amor de Deus, o que est fazendo?".Continuei rastejando do mesmo jeito, mas olhei para ele por cima do ombro.

"Consegui sair, at que enfim", eu disse, "apesar de voc e de Jane, arranquei quase todo o papel, assim no podem me prender l de novo!".

Ora, por que ser que o homem desmaiou? Mas caiu desmaiado, sim, e atravessado justamente no meu caminho perto da parede, de modo que tive que rastejar por cima dele a cada volta!