o ovo da serpente em gestação no brasil

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1 O “OVO DA SERPENTE” EM GESTAÇÃO NO BRASIL Fernando Alcoforado* O filme “Ovo da Serpente” (1977), de Ingmar Bergman é a melhor reprodução cinematográfica do surgimento do nazismo na Alemanha. A obra retrata uma sociedade à beira do caos econômico e político e demonstra como, sob essas circunstâncias, é possível ver os contornos do nascente movimento nazifascista. Todos os eventos do filme se circunscrevem ao momento do famoso Putsch da Cervejaria, ocorrido no dia 9 de novembro de 1923 em Munique. Nessa data, quinto aniversário da Declaração da República de Weimar, Hitler e as SA (as milícias nazistas) tentaram derrubar o governo da região da Bavária, a fim de iniciar uma marcha militar com o objetivo final de ocupar Berlim e estabelecer uma ditadura nacional-socialista. O filme O Ovo da Serpente” retratou com muita fidelidade os primeiros passos da sociedade alemã que, já dividida, desembocaria nas mãos do nazismo a partir de 1933. Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sangrento, paranoico e instável que era a Alemanha de 1923, ano em que se passa o seu filme, no período de 3 a 11 de Novembro, semana do Putsch de Munique. A luta pela sobrevivência e o medo acompanham as ações vacilantes de uma sociedade que se decompõe. No filme O Ovo da Serpente” já se podia ver, dez anos antes da subida dos nazistas ao poder, um fantasma rondando a Alemanha e pressupor que em meio à desordem, à crise econômica e ao vácuo político, uma semente de radicalismo e violência estava para surgir. Em O Ovo da Serpente”, Bergman empreende uma obra dotada de forte senso crítico- social e de uma exposição memorável da história mostrando uma sociedade que vivia sob o medo e denuncia os "motivos pelos quais" o futuro tenebroso surgiria. Muitas vezes o ovo da serpente foi utilizado como metáfora para exprimir a constatação de um mal em processo de elaboração, em incubação. Nele, no ovo da serpente, no seu desenvolvimento, pode-se acompanhar a lenta e inexorável evolução do monstro que está se criando, o nazismo. O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem (Editora Instituto Liberal, 1997), no qual traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países mais desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo. Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anarquia, que é definido como ausência generalizada de respeito às normas sociais que costuma anteceder aos regimes totalitários. Tanto na Alemanha quanto nos países capitalistas desenvolvidos naquela época, os índices de criminalidade estavam em alta ameaçando a paz social como hoje acontece no Brasil. Dahrendorf estava preocupado com a incidência crescente da impunidade, como hoje acontece no Brasil, cuja consequência é a anarquia, quando um número elevado e crescente de violações de normas não é punido. Isso reforça a tese de Dahrendorf de que a anarquia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando há uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estruturadas dos membros da sociedade em agirem de acordo com essas normas e objetivos. No estado de anarquia, as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. As violações de normas simplesmente não são mais punidas como ocorre hoje no Brasil.

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A incapacidade do governo brasileiro e das instituições políticas em geral de oferecer respostas eficazes para superação da crise econômica em que se debate a nação brasileira e debelar a corrupção desenfreada em todos os poderes da República na atualidade contribui para aumentar a violência política no Brasil. Sem a solução desses problemas, o País poderá ficar desorganizado e convulsionado como aconteceu na década de 1960 do século XX quando setores da extrema-direita arquitetaram o golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart. O caos poderá se instalar no Brasil com o incremento das manifestações da população e a volta dos adeptos do “Black Bloc” às ruas. A violência das manifestações de junho de 2013 em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras foi uma mostra de um fato novo que são os adeptos do “Black Bloc” os quais são denominados por alguns analistas de vândalos e por outros de fascistas e anarquistas. Não há dúvidas de que a violência dos manifestantes de 2013 traduziu sua insatisfação contra as instituições políticas corruptas do Brasil e contra o governo central que demonstra ineficiência e incapacidade total para solucionar os problemas do País. Da mesma forma que as SA (milícias nazistas) e grupos paramilitares comunistas surgiram e se confrontaram com extrema violência na Alemanha durante a República de Weimar, o mesmo pode acontecer no Brasil.

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O “OVO DA SERPENTE” EM GESTAÇÃO NO BRASIL

Fernando Alcoforado*

O filme “Ovo da Serpente” (1977), de Ingmar Bergman é a melhor reprodução cinematográfica do surgimento do nazismo na Alemanha. A obra retrata uma sociedade à beira do caos econômico e político e demonstra como, sob essas circunstâncias, é possível ver os contornos do nascente movimento nazifascista. Todos os eventos do filme se circunscrevem ao momento do famoso Putsch da Cervejaria, ocorrido no dia 9 de novembro de 1923 em Munique. Nessa data, quinto aniversário da Declaração da República de Weimar, Hitler e as SA (as milícias nazistas) tentaram derrubar o governo da região da Bavária, a fim de iniciar uma marcha militar com o objetivo final de ocupar Berlim e estabelecer uma ditadura nacional-socialista. O filme “O Ovo da Serpente” retratou com muita fidelidade os primeiros passos da sociedade alemã que, já dividida, desembocaria nas mãos do nazismo a partir de 1933. Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sangrento, paranoico e instável que era a Alemanha de 1923, ano em que se passa o seu filme, no período de 3 a 11 de Novembro, semana do Putsch de Munique. A luta pela sobrevivência e o medo acompanham as ações vacilantes de uma sociedade que se decompõe. No filme “O Ovo da Serpente” já se podia ver, dez anos antes da subida dos nazistas ao poder, um fantasma rondando a Alemanha e pressupor que em meio à desordem, à crise econômica e ao vácuo político, uma semente de radicalismo e violência estava para surgir.

Em “O Ovo da Serpente”, Bergman empreende uma obra dotada de forte senso crítico-social e de uma exposição memorável da história mostrando uma sociedade que vivia sob o medo e denuncia os "motivos pelos quais" o futuro tenebroso surgiria. Muitas vezes o ovo da serpente foi utilizado como metáfora para exprimir a constatação de um mal em processo de elaboração, em incubação. Nele, no ovo da serpente, no seu desenvolvimento, pode-se acompanhar a lenta e inexorável evolução do monstro que está se criando, o nazismo. O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem (Editora Instituto Liberal, 1997), no qual traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países mais desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo. Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anarquia, que é definido como ausência generalizada de respeito às normas sociais que costuma anteceder aos regimes totalitários.

Tanto na Alemanha quanto nos países capitalistas desenvolvidos naquela época, os índices de criminalidade estavam em alta ameaçando a paz social como hoje acontece no Brasil. Dahrendorf estava preocupado com a incidência crescente da impunidade, como hoje acontece no Brasil, cuja consequência é a anarquia, quando um número elevado e crescente de violações de normas não é punido. Isso reforça a tese de Dahrendorf de que a anarquia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando há uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estruturadas dos membros da sociedade em agirem de acordo com essas normas e objetivos. No estado de anarquia, as normas reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. As violações de normas simplesmente não são mais punidas como ocorre hoje no Brasil.

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Neste contexto, todas as sanções parecem ter desaparecido. O “contrato social”, entendido aqui como normas aceitas e mantidas através de sanções impostas pelas autoridades competentes, é rasgado, restando o vácuo em seu lugar. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada mais parece ser punido. Não há como dissociar esta situação do grave momento atual do Brasil onde a impunidade é crescente e os valores básicos da civilização estão completamente enfraquecidos. Políticos cometem crimes à luz do dia, nada acontece, e os próprios eleitores ainda votam neles novamente. A crença de que as leis não funcionam mais é generalizada no Brasil. Condenados do “Mensalão”, por exemplo, vão à prisão, mas logo depois foram soltos. O Brasil caminha, infelizmente, para a anarquia descrita por Ralf Dahrendorf. Algo precisa ser feito urgentemente, porque vivemos uma crise econômica e uma crise de valores morais com a falência das instituições necessárias para a manutenção da lei e da ordem que estão a exigir uma reforma do Estado e uma reforma política radicais. A incapacidade do governo brasileiro e das instituições políticas em geral de oferecer respostas eficazes para superação da crise econômica em que se debate a nação brasileira e debelar a corrupção desenfreada em todos os poderes da República na atualidade contribui para aumentar a violência política no Brasil. Sem a solução desses problemas, o País poderá ficar desorganizado e convulsionado como aconteceu na década de 1960 do século XX quando setores da extrema-direita arquitetaram o golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart. O caos poderá se instalar no Brasil com o incremento das manifestações da população e a volta dos adeptos do “Black Bloc” às ruas. A violência das manifestações de junho de 2013 em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras foi uma mostra de um fato novo que são os adeptos do “Black Bloc” os quais são denominados por alguns analistas de vândalos e por outros de fascistas e anarquistas. Não há dúvidas de que a violência dos manifestantes de 2013 traduziu sua insatisfação contra as instituições políticas corruptas do Brasil e contra o governo central que demonstra ineficiência e incapacidade total para solucionar os problemas do País. Da mesma forma que as SA (milícias nazistas) e grupos paramilitares comunistas surgiram e se confrontaram com extrema violência na Alemanha durante a República de Weimar, o mesmo pode acontecer no Brasil. Os adeptos do “Black Bloc” são os germes de grupos paramilitares de extrema-direita e extrema-esquerda que poderão surgir no Brasil na era contemporânea. Neste contexto, setores da extrema- direita, que sempre estiveram voltados para a defesa dos interesses das classes dominantes e do capital internacional, tentarão articular o apoio de certas parcelas da sociedade para reprimir os movimentos sociais e alijar os detentores do poder incapazes de manter a lei e a ordem. Em um ambiente de convulsão social, a violência dos adeptos do “Black Bloc” pode oferecer a justificativa necessária para a extrema-direita patrocinar um novo golpe de estado no Brasil.

* Fernando Alcoforado, 74, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona, http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social

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Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011) e Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), entre outros.