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DamonKnight
OOUTROPÉ
TraduçãodeANTÔNIOAFONSO
JoséOlympio,1974.
Títulooriginal:TheOtherFoot
COLEÇÃOASTERÓIDE—9DireçãodeJOSÉSANZEDIÇÕESSABIÁpertenceàLivrariaJoséOlympioEditoraS.A.,quesereservaapropriedadedosdireitosexclusivosparaalínguaportuguesadestaedição.
Copyright©1955byDamonKnight,poracordocomE.J.CarnellLiteraryAgency.Todosospersonagensdestaobrasãofictíciosequalquersemelhançacompessoasreais,vivasoumortasémeracoincidência.
FICHACATALOGRÁFICA(PreparadapeloCentrodeCatalogação-na-fontedoSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,GB)
Knight,Damon,1922-K770Ooutropé;traduçãodeAntônioAfonso.RiodeJaneiro,
JoséOlympio,1974.
1.Ficçãocientífica.I.Título.II.Série.
73-0202CDD-813.0876
SinopseMARTINNAUMCHICK,repórterdoParis-Soir,estavaparadodoladodeforadaespaçosajaulaqueabrigavaFritz,orecémadquirido
bípededoPlanetaBrecht,quandoomundodeuumasacudidela...Nomomentoseguinte, jánãoestavamaisdo ladode forada jaula,olhandoparadentro,masdentro,olhandopara fora.Nãoeramais
MartinNaumchick.EraFritz,obípede,umalienígenaestranho,vindodeummundodistante.Ao mesmo tempo, Fritz, que vivera a maior parte da sua vida no Jardim Zoológico de Hamburgo, também sentiu a sacudidela. E
encontrou-seforadasuajaula...olhandoparaoagitadobípedenointerior,queestavaesmurrandoaparededevidrocomambosospunhos...OmundodeFritzficavaadezoitoanos-luzdedistânciadaTerra.Oanimaleraágil,tinhatrêsdedosemcadamãoeumacabeçaqueera
ummistodehumana,defelinaedeave.Fritzeratímidoeobediente,felizdepassarsuavidanumajaula,atéquesurgiuoinesperado.Oinesperadoqueolançounummundode
confusãoedeincríveisacontecimentos,ondeohomemsetornoumonstroeomonstrotransformou-seemhomem...
SobreoAutorDAMONKNIGHTnasceunoEstadodeOregon,nosEstadosUnidos,em1922.Mudou-separaNova Iorqueem1940. Imediatamente
tornou-semembro daFuturianSociety, umgrupo informal de escritores da década de quarenta, entre os quais se destacam alguns nomesimportantesdaficçãocientífica:IsaacAsimov,JamesBlish,VirgíniaKidd,C.M.Kornbluth,RobertA.W.Lowndes,JudithMerril,FrederikPohl,LarryShaw,RichardWilsoneDonaldA.Wollheim.
AtéachegadadeDamonKnightaomundodaficçãocientífica,ogêneronãotinhaaindasidocriticadocomoumaformadeliteraturatãoválidaquantoqualqueroutra.Haviaapenas recensõesnas revistasespecializadaseeventualmentenos jornaisdemaiorcirculação.DamonKnightintroduziuacríticanasrevistasespecializadase,pelaseriedadedosseusescritos,abriucaminhoparaogêneroemoutraspublicaçõesdecarátergeral(hoje,porexemplo,háumaseçãopermanentedecríticadeficçãocientíficanoTheNewYorkTimesBookReview).
MasDamonKnightnãoselimitouacriticar.Nosúltimostrintaanosvemescrevendocontoseromances,editandoantologias,ilustrandolivroserevistas,etraduzindo.Em1956recebeuoPrêmioHugodemelhorcríticodoano.FoifundadoreprimeiropresidentedaAssociaçãodeEscritoresdeFicçãoCientíficadaAmérica.
ViveatualmenteemMilford,naPensilvânia,onde—comsuamulher, a escritoraKateWilhelm—dirigeaMilford Science FictionWriter'sConference,querecebeanualmentemaisdetrintaescritoresparadiscutirosproblemasdogêneroliterárioqueescolheram.
Romancespublicados:AForAnything,BeyondtheBarrier,Hell’sPavement,TheOtherFooteTheRithianTerror.Volumesdecontospublicados:FarOut,InDeep,OffCenter,TurningOneThreeNovéis.DamonKnightestevenoBrasilem1969participandodeumsimpósiosobrealiteraturadeficçãocientíficaeocinema,realizadodurante
oSegundoFestivalInternacionaldoFilmedoRiodeJaneiro.
IQUANDOO CARRO da Flugbahn começou a se afastar da plataforma de pouso, o bípede Fritz
crispouasmãosnoassentoeolhounervosoatravésdaparededevidro.Não estava habituado a viajar. Exceto o vôo da espaçonave até a Terra, do qual se lembrava
vagamente,tinhapassadoavidainteiranoZoológicodeHamburgo.Agora,apesardeestarcertodequeaquele carro, todo de vidro, vagando no ar, não iria cair, precisou apoiar-se em algo para sentir-seseguro.
Noassentoaolado,seuvigia,umhomemestúpidochamadoAlleks,folheavaasenrugadaspáginasdepergaminhodoBerlinerZeitung.Respiravaruidosamenteatravésdasnarinaspeludas,enquantopassavaosolhosbovinos,comardistante,pelasmanchetesdojornal.NocorredorosoutrospassageirosolhavamcuriososparaFritz.Maseste,acostumadoaserobservado,malsedavacontadosolhares.
Abaixo,sobosoldamanhã,descortinava-seacidadedeBerlim,maisparecendoumavelhacolchade lã. Olhando para trás, quando o aparelho começou a acelerar, Fritz viu a alta plataforma onde ofoguete-cóptero de Hamburgo havia pousado e os longos cabos tentaculares de outros Flugbahnen,irradiandoparaosquatrobairrosdacidade.
O carro desceu, subiu, parando repentinamente na plataforma da estação.As portas se abriram efecharam novamente e então continuaram a descida. Na segunda parada, Alleks dobrou o jornal elevantou-se.
—Venha—disseele.Fritz o seguiu pela plataforma. Entraram em um elevador, que começou a cair vertiginosamente,
através de um tubo espiral transparente, enquanto as ruas ensolaradas flutuavam compactamente paracima.Alleks e o bípede saltaramnomeio de umamultidão atônita e de um acre odor de substânciasquímicas. Alleks, segurando com firmeza o braço do bípede, empurrou-o para a rua, através de umagrandeportaaberta.Apanharamoutroelevadoreentraram,finalmente,emumescritóriocheiodegente.
—Meu prezado jovem senhor—disse um homemgordo e vermelho, avançando alegremente.—Entre,entre.Permita-meapresentar-me:souHerrDoktorGrück.—Osenhoréonovobípede?Sejabem-vindo,sejabem-vindo!
PegouamãodetrêsdedosdeFritzeapertou-acalorosamente,nãodemonstrandorepugnânciapelofatodeamãosercobertaporumasuavecamadadeespinhos,semelhantesapenugem.
Outraspessoasestavamseaglomerandoaoredor,algumasassestandosuascâmeras.—Assineaqui—disseAlleks,estendendoumcadernomeiodesbeiçado.ODr.Grückapanhou-o,distraído,rabiscoualgoedevolveu-o.Alleksvoltou-se,indiferente,esefoi.—Senhoresesenhoras—disseGrücknumsonorotenor—tenhoahonradeapresentarnossamais
recenteaquisição,Fritz—nossosegundobípedeBrecht—epodemverqueéummacho.O bípede lançou olhares nervosos em torno da sala revestida de carvalho, fixando as câmeras
ruidosas,asestantes,o imensocandelabro,aspessoasde faces lisase rosadas.Sentiaocorpo leveeflexível,comoodeumgatooudeumgalo.Assemelhava-seaumcáctus,todocobertodeespinhosverde-acinzentados,excetoosexo—asbolsasrosadasquependiamentreascoxas.Oformatodacabeçaera
singular, nem homem, nem felino ou ave, mas algo como os três. Sobre os olhos, no meio da testaabaulada,haviaumasaliênciaarredondada,decorroxa,sugerindovagamenteumacristadegalo,tendomaisaformadeumafrutaseca.
—Queremosouvirorecém-chegado!—disseumdosquemanejavamascâmeras.Obedientemente,comolheforaensinado,obípederecitou:—Comoestão,senhoresesenhoras?Fritz,obípede,àsordens.Estousatisfeitodetervindoparacá
eesperoquevenhammevisitarfreqüentementenoZoológicodeBerlim.Terminou curvando-se ligeiramente. Três homens vestidos de branco avançaram. O primeiro
inclinou-se,pegandoamãodobípede.—Wenzl,guardião-chefe.Eraossudoepálido,comlábiosfinoseretilíneos.Osegundoadiantou-se,curvou-seeapresentou-se:—Rausch,dietista.EramaislouroecoradoqueGrück,comoscíliosquasebrancosnorostoredondoesério.Oterceiro:—Prinzmetal,cirurgião-veterinário.Eramorenoetinhaasfacesencovadas.ODr.Grück sorria, como rosto tão repuxado e lustroso como se cozinhado emóleo.Sua cabeça
redonda eraquase calva,masos cabelos louros, de corte ligeiramente longo, ainda se encaracolavamsobreasorelhas.Osolhosazuis,miúdos,espreitavamportrásdosóculossemaros.Seucorpo,rotundoefirmecomoumaboladeborrachasobolargopaletócastanhoeacorrentedeourodorelógio,irradiavaalegria.
—Queespécime!—falou,segurandoomaxilardobípedecomumadasmãos,paraabrir-lheaboca.—Vejamadentição!
Todaa"dentadura"dobípedeconstituía-sesomentededuassólidaspeçasde tecidocartilaginoso,comasbordasdecorteafiado.Fritzficounervosoporummomento,estalandoosenormesmaxilareseabanandoacabeça.
— Pare, Fritz!— disse Grück segurando-o e fazendo-o dar uma volta.— Vejam a musculatura:perfeita! O tegumento! A cor! Nunca, eu afirmo, nem mesmo no Planeta Brecht, vocês achariam umbípedecomoeste.Ejáésexualmenteadulto—acrescentouGrück,sondandocomamãogordaentreaspernasdeFritz.—Perfeito!Vocêgostariadeencontrarumbípedefêmea,nãoFritz?
Obípedepiscouedissepausadamente:—Minhamãeeraumbípedefêmea,dignosenhor.—Ha,ha!—riuGrück,cheiodebomhumor.—Claroqueera!Correto,Fritz!—Rauschsorriu;
Prinzmetal sorriu; até Wenzl esboçou um sorriso.— Venha, então. Primeiro vamos mostrar-lhe suasdependênciasedepois...talvezumasurpresa!
Apanhando sua lustrosa mala nova, o bípede seguiu Grück e os outros para fora do escritório,seguindoporumlongocorredordeparedesdevidro.Dalisepodiaverogramado,comjaulasportodaparte. As pessoas que passeavam por entre as aléias de cascalho olharam para cima e começaram aapontar,excitadas.Grück,àfrentedogrupo,curvou-seeacenou-lhesplacidamente.
Ogrupochegou,então,aumvestíbulovazio.Wenzltirouumachavemagnéticaparaabrirumapesadaporta,quetinhaumapequenavidraça,reforçadacomtela.Dentro,acharam-seemumasalapequena,masconvenientementearrumada,comparedeseochãodeconcretoaparente,umsofáquetantoserviaparasentarcomoparadormir,umacadeiraeumamesa,algunsutensílios,umlavatórioeprivada.
—Aquiéoquarto—disseoDr.Grück,comumgestolargo.—Eaqui—indicouocaminhoparaumaportaentreaberta—suasaladeestarparticular.
Aparedeexternaeradevidro,atravésdaqualvia-se,por trásdeumagradede ferro,umagrandemultidão.Estasalaeramaioremaisbemmobiliadaqueainterna.Ochãoestavalimpoeencerado.As
paredes estavam pintadas. Havia uma confortável espreguiçadeira, uma televisão, uma mesinha comrevistasejornais,umgrandevasodeplantaseatéumaestanterepletadelivros.
—Eagora,asurpresa!—gritouoDr.Grück.Empurrandoosoutrosparaolado,atravessounovamenteoquarto,atéumaportanaparededofundo.
Asala seguinteeramaisampla,comchãodeconcreto,noqual,porém,haviamcolocadocapachosdeborracha.Duasescrivaninhas,commáquinasdeescrever,arquivos,telefones,umapontadordelápis,umtransmissorpneumáticoepilhasdedocumentos.
Dooutroladodasala,juntodeumdosarquivosquetinhaumagavetaaberta,alguémseviroueolhou,espantado:umoutrobípede,menoremenoscoloridoqueFritz.
Entreoutrasdiferenças,amaisnotáveleraoórgãonomeiodatesta,oqual,aocontráriododeFritz,tinha se desenvolvido numa grande forma ovalada, como uma bola ou maçaneta, de cor vermelho-púrpura.
—Agoraasurpresa!—gritouoDr.Grück.—Fritz,aquiestáEmma,suajovemesposa!Comumgritinho,ooutrobípedecolocouasmãosnacabeçaefugiuparaforadasala,provocando
umatempestadedepapéis,queforamdepositar-senochão,portrásdela.Oitocentosquilômetrosaosul,numasalasubterrâneadoInstitutoPopulardePraga,emPrásztó,oDr.
EgonKlementigesticulou,comobraçomusculoso,cobertodepêlospretos.—Láestavaeu,foradaarrebentação,nomeupequenobarcoamotor—disseele.—Acabinadava
exatamenteparamim,meukanakaeaquelecãoinfernaldaminhairmã.Diaexcelente,ventosoprandodapraia...perfeito.Okanakaestavasentadoaqui,ocãoaquieeuali.Bem,meukanakadobrou-separaforadaembarcação,então...—Klementifezumgesto,protegendoosolhoscomamão.—Eledisse:"Aquihápeixe,senhor."Comodiaboconseguiaelevê-losnofundodaágua!Mas,afinaldecontas,meuanzolestavaiscado...puxeiavaradepescarparatrás...arremessei-aesplash!—Fezumapausadramática.Behrens,odinamarquês,sorriavagamente,apoiadocontraaparedeaoladodopaineldecomando.Suacabeçamaciçabalançandosobreopeito.OpequenoLewine,homemdaKrupp-Farben,mordiaaspontasdo grosso bigode preto. Heinz Ek, o observador do Euratom, havia cruzado os braços sobre o peitomagroepareciameioadormecido.
—Umpeixe?—perguntouKlementi.—Absolutamente!Nadadisso!Eraodanadodocachorro,quehaviapuladoparaforadobarcocomoumabalaassimquemeuanzolatingiuaágua.Acreditem,tivequeenrolaralinhaomaisdepressapossívelouocachorroteriaengolidooanzolcomoumarenque!
Klementideuumarisadaalta.—Lásefoiomeudiadepescaria.Tivemosquelevarocãoatéapraiaeentregá-loaminhairmã.Já
eraentãomuitotardeparasairnovamente.—Klementiriumeteuumlongocharutoescuroentreosdenteseacendeu-o.—Osenhornãopesca,HerrEk?
—Eu?Não,não—disseohomemderostofinoepálido,abanandolevementeasnuvensdefumaçaquevolteavamaoseuredor.
—Osenhordeveria...deveriamesmo.Nãohánadacomoaquilo...osol...oar...Umdossuadoshomensdebrancoqueestavamnasala,esbarrouemKlementiaopassarporele.—Perdão,HerrProfessor.Meteua tomadado instrumentoquecarregavanopaineldecomandoefeza leitura, tomandonotas
numaprancheta.—Tudopronto?—perguntouLewinepelaquintavez,olhandoseurelógiodepolegar.—Paciência,paciência...vejacomoBehrensestátranqüilo.Eisporquedevepescar,paraaprimorar
apaciência.Klementitragouocharutocomsofreguidão.Apesardoarcondicionado,asala,cheiadegente,estava
nubladadefumaça,masKlementinãoparecianotar.—Écansativoverificarcadacircuitoinúmerasvezes,admito,masempesquisadevemosacostumar-
nosaesperar.Émelhordoquearriscarmo-nosaumaexplosão.Lewineficouvisivelmenteassustado.—Explosão?—repetiu.Behrensergueu-se.— Não há perigo — disse, batendo no ombro de Lewine, gentilmente. — Klementi, pare de
amedrontarnossoamigo.Nãosepreocupe,HerrLewine,nãohaveráexplosão.—Exatamente—disseKlementi,mordendo o charuto, aborrecido.—O conversor é ummodelo
padrão,narealidadeousadoaquiparademonstrações—hásomenteummilionésimodegramadesódionele—Ei,Rákosi!—voltou-se,acenandoparaumdosestudantesdeuniformebranco.
—Sim,HerrProfessor?—Achouodefeitonomecanismodesegurança?—Horvathestáligandoumnovo...Estamosquaseprontosparatestá-lo,HerrProfessor.—Muitobem,excelente.Klementivirou-se,tirouocharutodaboca,numgestolargo,dandoaimpressãodequeiacomeçara
falar.—Mas, se é ummodelo padrão, porque o colocaram num prédio abandonado, a meia milha de
distância,sevamospermaneceraqui?—perguntouLewine.Seuslábiosestavamsemcor,egotasdesuorcobriam-lheafronte.—Bobagem—disseKlementi, franzindo a testa.—Ummilionésimodegrama,mesmocomuma
conversãototal,sóésuficienteparaumapequenaexplosão.Dequalquermaneira,istonãovaiacontecer—schnapps—vocênãotrouxeunsschnapps,Behrens?
Doisdosrapazesdebranco,correndoemdiferentesdireções,colidiramnomeiodasalaeseguiram,resmungando imprecações.Ummonitor de televisão começou a funcionar sobre o painel de comando,reproduzindo a imagem de outra sala, repleta de jovens que ainda trabalhavam. Porém o que maischamavaaatençãonaquelasalaeraumamáquinarevestidadeaçojágasto,montadasobreumblocodeconcretoecircundadaporumamontoadodeinstrumentosecabos.
— Na verdade, — disse o gigantesco dinamarquês, aprumando-se vagarosamente — tenho umagarrafaguardada.Estavareservando-aparaumacomemoração,mas...
Inclinou-sesobreacabeçadeLewine,estendendoo longobraçoparaaportadeumarmárioatrásdele.
—Não,não—disseLewine,irritado.—Estoubem,obrigado.—Como vê, Herr Lewine— disseKlementi, aproximando-se— a idéia é de uma simplicidade
realmentebela,mesmoditapormim.OconversorestácontidonumcampogeradorHirsch-Revere,ouseja,umdispositivoquegeraochamadocamposupressor...
—Assim sendo, não pode explodir— disse Lewine, acenando fracamente com a cabeça.— Euentendo,mas...
— Ah! Sim, não poderá explodir se conseguirmos ligar o campo supressor primeiro ousimultaneamente.Mas—disseKlementi—quedevemosfazer?Iniciamosoprocessodeconversão...aenergiaéliberada...
—Explosão!—murmurouLewine.—Não!Demodoalgum!Nãohaverá explosão!Porqueantesquea cabeçadaondapossa tocar a
parededacâmara,aoitentaecincocentímetrosdedistâncianossointerruptor ligaocamposupressor!Assim...estaenergianãopodeexistirsobnenhumaformadecalorouradiação,correto?
—Correto—disseLewineepiscoucomarparvoparaKlementi.— Por causa do campo supressor. Mas a energia é conservada — ela não pode simplesmente
desaparecer,correto?—devereaparecersobalgumaforma!
Ek,ohomemdoEuratom,acrescentou:—Eseuargumento,HerrProfessor,équeaúnicaformaqueelapodetomaréadeenergia-tempo.—Exatamenteisso—disseKlementi.Radiante,levouocharutonovamenteaoslábios.—Eseuscálculosconfirmamisso,HerrBehrens—disseEk,voltando-separaodinamarquês.Behrensconcordouesorriu.—Aindanãovejoqueaplicaçõespráticaspodeter—disseLewineparasimesmo—Mesmoque...Olhou outra vez para seu relógio de polegar e depois para o grande cronômetro do painel de
instrumentos.—Muito interessante— estava dizendo Ek. Klementi havia saído repentinamente e mantinha um
diálogoemvozbaixacomumdosestudantes.Ekaproximou-sedeBehrens:—Nãomearvoroementendedordasuamatemática,HerrProfessor,mastomeialiberdadedeexpô-
laaumamigonaUniversidadedeBerlim...KlausIfshin.Talvezosenhoroconheçadenome.—Ifshin?Conheço—disseBehrens,concordandocomacabeçamaciça,massemsorrir.—...Eelepensa,HerrProfessor,queosenhordesprezouasequaçõesdecampoeinsteinianas,que
mesmoquefossepossívelconverteroutrasformasdeenergiaemquantaadicionaisdetempo...— Sei o que você está querendo dizer— interrompeu Behrens, sacudindo a cabeça.—Haveria
deslocamentosatravésdocontinuum,porquearelaçãoentreoespaço-tempoeamassadouniversoseriaperturbada e assim por diante...Acredite-me,HerrEk, tudo isso está superado.Ninguémmais usa asequações de campodeEinstein. Sim, sim, seu amigo,HerrDoktor Ifshin, é umaboa pessoa,mas suafísicaestácinqüentaanosatrasada.Nãotenhomaisnadaadizer.
Behrenslevantouamãoemsinaldepaz.Mas,aquelapalmalisapareciacapazdeaniquilarcentenasdeIfshinscomumúnicogolpe.
—Confere—diziaumdoshomensdebranco.—Confere...confere...confere...Na tela de televisão, outro jovem parecia ler uma lista de uma prancheta,mas o som não estava
ligadoeelessópodiamveromovimentodoslábios.—Confere—disseaindaumavezohomemeparou.Voltou-separaKlementi.—Pronto,HerrProfessor!Natela,depoisdealgunsminutos,amultidãodeestudantescomeçouasemovereadiminuir;estava
deixandoasaladeaula.—Behrens,umapalavra—disseKlementi,acenando.Odinamarquês,comumúltimocumprimentoamistosoaLewine,foijuntar-seaele.LewineeEkse
entreolharam.—Seráquetodososhúngarossãomalucos?—murmurouLewine.Eksorriuligeiramenteelevantouassobrancelhas.—Naminhaopinião—disseLewine—tudoistoéumaperdadetempo.Cruzouosbraços.Seurostovoltouaficarpálido,eatestaporejadadesuor.Empoucosminutos,ouviu-seumestrépitodebicicletasnocorredorexternoeoshomensdasalade
máquinascomeçaramasurgirnaentrada.Tinhamosolhosbrilhantes,estavamexcitadosefalavamunscomosoutrosemvozalta.Asalaestavamaisincrivelmentecheiaquenunca.
—Senhores,porfavor—pediuKlementi,levantandoosbraços.Seusolhosbrilhavameseurostoestavacorado.AtémesmonamonumentalfacedeBehrenshaviaum
ardeexcitaçãoinfantil.Oruídodiminuiulentamente.Alguémdisseumapiada,houveumaexplosãoderisonervosoedepois
osilêncio.KlementieBehrensabriramcaminhoparaopaineldeinstrumentos,ondemalhavialugarparaeles.
—Muito bem, senhores— falouKlementi, virando-se para Ek e Lewine.—Tudo foi testado, oaparelhoestáprontoesómefaltaapertardoisbotõesparaaexperiênciacomeçar.Issoestarácumprido
num quadracentésimo milionésimo de segundo. Antes que eu aperte aqueles botões, permitam-meexpressar minha gratidão a todos aqui presentes, que trabalharam com dedicação, embora xingandoalgumasvezes.—Novaexplosãoderisos.—EtambémaossenhoresdoEuratomeKrupp-Farben,pelavaliosacolaboraçãocomequipamentosefacilidades.
Fezumapausa.Silêncioabsoluto.Klementivirou-separaopaineldeinstrumentos,noqualhaviaumbotãocomumaluzbrancacomaindicação"DispositivodeSegurança"eumgrandebotãovermelhosobele.Trêsjovenscientistasamontoaram-seatrásdele,murmurandodesculpas.Behrensabriucaminhoparaeles,afavelmente,erecuou,quaseesmagandoLewinecontraaparede.
Klementi avançou e apertou o botão branco com o polegar. O botão apagou. Olhou para ocronômetro: marcava exatamente três horas, trinta e dois minutos e quinze segundos, Tempo CentroEuropeu.Klementiapertouobotãovermelho.
OlhandoporcimadobraçodeBehrens,Lewineviuosponteirosdedoisdosinstrumentosderegistroagitarem-sesubitamente.Osoutrosgiraramatéofimepararam.Nateladotelevisornãohouvemudançavisível.Pelomenosoaparelhonãohaviaexplodido...Lewinedeixouescaparumlongosuspiro,quenãotinhaconsciênciadeestarretendo.Entãoretesou-se,numfrêmitoquepercorreuoscorposamontoadosaoseu redor. Uma impressão estranha: nada parecia realmente ter-semovido,mas pairava no ar aquelaindefinidaeenganadorasensação,acompanhadadeumaligeiranáusea.
—Energiazero!—gritouumdosrapazes.—Tomadanegativa!—Pressãointerna...pontotrêssete!Fez-sesilêncioduranteumafraçãodesegundo.Depois,oshomenscomeçaramasecumprimentar,a
se abraçar, a dar palmadinhas nas costas de Herr Professor Klementi. Este, com um enorme sorriso,gritoumaisaltoqueabalbúrdia:
—Apressãodacâmaraédemenosdemeiaatmosfera...umvácuoparcial!Istosignificasucesso!Osrapazessaíramcorrendonovamentepelaporta.Lewineouviu-lhesosgritosreboandonocorredor.
Oombrodealguémoatingiupenosamente, jogando-ocontraaparede,maselesesentiasingularmentealegre.Aseulado,Ekpareciaigualmenteafetado:seurostopálidoestavaabertonumsorrisoespantado,mostrandooslongosdentesamareloseasgengivasesbranquiçadas.
—Mas,nãoentendo...ovácuo,oquesignifica?—gaguejou.—Seaexperiênciahouvessefalhado—explicouKlementi,—haveriapressãonacâmaraouuma
produção de energia. Não houve nem uma nem outra! O ar que havia na câmara não está mais lá...desapareceu!
Behrenssurgiu,radiante,trazendoumagarrafaemumadasmãoseumapilhadecoposnaoutra.—Aquavit!Vamoscomemorar!—trovejou.—Masentãovocêquermesmodizer...—perguntouLewine, agarrandooblusãodeKlementi.—
Ondeestáoaragora?—Disperso, em algum lugar a quatrocentos ou quinhentos anos no futuro... lhe direi depoismais
precisamente.Natela,osrapazesfervilhavamemtornodacâmaradeconversão,comoformigasbrancasemvolta
deumbesouro.Klementi,aindasorrindo,aceitouocopoqueBehrenslheentregou.—Àprimeiraexperiênciabemsucedidadeviagemnotempo!—gritouBehrens,levantandoocopo.Todos beberam, exceto Lewine, que olhou para o copo, ergueu-o para cheirá-lo, baixando-o em
seguida. Ao contrário dos outros, seu copo estava cheio de um turvo fluído castanho, que cheiravafortementeaquerosene.
— Isto é uma brincadeira?— perguntou a Behrens, com os lábios trêmulos,mostrando sinais deindignação.
Fritzsentou-seemsuaconfortávelespreguiçadeira,olhandodesconsoladamenteparaforaatravésdo
vidro, vendo o Zoológico escurecer.A tarde chegava ao fim. Era hora de fechar e as aléias estavamquasevazias.
—Issolevatempo—disseoDr.Grückamavelmente,batendonoseuombro.—Descanse,entreemcontatoeamanhãserámelhor.Boatarde,Fritz!
Sozinho,curiosoevagamenteexcitado,deuumavoltaemtodaasaladetrabalho,examinandopapéiseabrindogavetas,depoisdirigiu-separaaportadasala,porondeEmmahaviadesaparecido.
Porémmalcolocoutimidamenteonariznaportaeavozdelasefezouvir:—Saia!Saia,saia,saia!Depoisdisso,fez-sesilêncionoquartoaolado.Nahoradecomer,Wenzlentroucomumcarrinhoe
deixouumabandejaparaFritzeoutraparaEmma.Mas,aindaqueeleprestasseatenção,nãoconseguiuouviroruídodeumgarfo,umafacaouumcopopousandonamesa.
Eraagradávelaidéiadeteroutrobípedecomquemconversar.Nãoestavacertoelaserecusarafalarcomele.Porqueelaqueriatorná-loinfeliz?
Levantandoosolhosparaajanela,viuumrapazdecabelosescurosparadodoladodefora.Levavaumacâmeraelhepareciavagamentefamiliar.Talvezfosseumdosrepórteres.Eraesguioecurvado,compelemuito lisaeclaraegrandesolhossuaves.Quandoseentreolharam,semumapalavra,Fritzsentiuumasúbitavertigem.eumescorregão.Asalacomeçouagirar.
Levantou-secomdificuldade.Nãoconseguiaentenderoqueacontecera,porqueficaratãoescuroderepente,porqueoquarto ficara tãogrande.Apoiou-senasmãosenos joelhosedescobriuqueestavaolhando,porcimadeumagradedeferro,paradentrodavidraçadeumapequenasalailuminada,ondeum bípede, meio estendido em uma cadeira, olhava para ele com olhos esgazeados e fazia fracosmovimentoscomo§braços.
Abrisadatardepassavafrescaesibilanteporentreasaléias.Oarcheiravaaterraúmidaeanimais.Ocascalhorangeuaoladodeleeumavozpolidadisse:
—Algoerrado,carosenhor?Obípedenasalailuminadaestavasearrastandopelochão.Agoraestavabatendocomasduasmãos
novidroesuabocaabriaefechava,abriaefechava.—Osenhordeixoucairacâmera—disseamesmavoz.—Comlicença.Sentiu o toque estranhamentemacio damão de alguém a lhe bater nas costas. Voltou-se e viu os
bigodesdeumrostogentil.Entãoalgobrilhantelhechamouaatençãoeelenotou,comumaespéciedeincrédulo assombro, quando segurou automaticamente a câmera,mãos de cinco dedos com suas unhasclaras.
IIAZONA de turbulência nos continuum espaço-tempo, causada pela desastrada experiência deHerr
ProfessorKlementi,espalhou-separafora,partindodeduaslinhas.No dia 13 de agosto de 1970, por volta de sete horas da manhã, um bloco de edifícios de
apartamentosnapartebaixadeOmaha,Nebr,desapareceuabruptamente.Aspessoasdas ruasvizinhasforam atingidas pela implosão, que destruiu janelas a dez quarteirões de distância. Esquadrões desocorro acorreram ao local,mas haviamuito pouco a fazer.A explosão não deixou crateras, somenteescavaçõesdepequenaproporção,rapidamenteinundadaspelaáguadosreservatóriosexplodidos,ondeseerguiamosedifícios.
Quandoosengenheirosdacidadedesligaramosregistrosprincipaisebombearamaágua,verificou-sequenadarestaraalémdeumburaconochão.Setecentaspessoasetrintamiltoneladasdealvenaria,açoeconcretodasfundaçõesdosedifícioshaviamdesaparecidocomobolhasdesabão.
Paramuitos, a responsávelpela tragédia foiumaarma secreta africanae avendapânicadeaçõesatingiuWall Street. As relações com a União Africana foram prejudicadas pormuitas semanas e umencarregadodenegóciosnegroemChicago foi assaltadona rua.Porémnadamais aconteceuaté abrilseguinte.
Namadrugadadetrêsdeabril,atraineiraMaryG.Beyers,ao largodeAtlanticCity,NovaJérsei,navegando em águas calmas, a cento e dez quilômetros do CaboMay, foi atingida por um repentinovagalhão,queafezvirarporestibordo.Correndoparaaamurada,atripulaçãoviuumamonstruosabolhadearemergirdasprofundezasdoAtlântico,trazendoconsigodestroçosdemobília,roupasemeiadúziadecadáveres.
OMary G.Beyers recolheu um deles a bordo: era o corpo de um homem em roupa de trabalho.DocumentosemsuacarteiraoidentificaramcomoIrwinVogt,deOmaha...
NaLua, no anode1950,pertodaorla sul da crateraHermann, surgiuuma flor embotão.Eraumgerânio comum, cultivado, Pelargonium domesticum, germinando em um canteiro circular de terraescura.Umanuvemdevaporenvolveu-aquasequeinstantaneamente.Aflortombou,murchou,perdeuacore, finalmente, tornou-secinzentacomoasprópriascinzasaoseu redor.Trintaanosmais tarde,umhomem,numtratorlunar,indodeLittleWashingtonparaGrimaldi,viuoesqueletocinzentoetomou-oporumaformaçãomineralincomum.Estabeleceuascoordenadaseanotoumentalmenteofatoparamencioná-lomaistardeaoselenólogodaBasedeGrimaldi,masesqueceu-o.
Aturbulênciaaumentou.OtranstornoqueKlementicomeçaraaindanãochegaraaofim.O Dr. Grück estava sozinho no seu escritório, com alguns cálculos orçamentários preliminares
espalhadossobreamesa,eosrestosgordurososdeumjantardeknackwurstnumamesinhaaolado.Comos óculos próprios para leitura, mais parecia um tio velho, vermelho e bem humorado, extraído doscontos deDickens. Seus olhinhos azuis piscavam suavemente por trás das lentes e quando contava, opolegarroliçocomoumalingüiçaeosdedoscomeçavam:eins,zwei,drei.*
*"Um,dois,três"—emalemão—N.doT.Cantarolando,atirouforaumpapel.AmúsicaeraILostMySockinLauterbach.****“EuPerdi.minhameiaemLauterbach"—N.doT.
Asalatodarevestidaestavaquente,confortávelesilenciosa.—"Andwithoutmysock,Iwon’tgohome"***—cantarolouoDiretor.***"Esemminhameiaeunãopossoirparacasa."—N.doT.Opequenovisifonedamesacomeçouadarsinaldevidaderepenteeorostomagrosurgidonatela
disse:—Doutor,porgentileza...Grückfranziulevementeatestaeapertouobotão.—Sim,Freda?—HerrWenzldesejafalarcomosenhoredissequeéurgente.—Bem,seétãourgente,ponha-onalinha.—Obrigado,Doutor.Atelapiscounovamente.OrostopálidoefanáticodeWenzlapareceu.—Problemascomonovobípede—começouimediatamente.Grücktirouosóculos,comosdedostrêmulos.—Quemaçada!—disse.—Queespéciedeproblema,Wenzl?—Hádezminutos—disse o zelador-chefe,—soubequeFritz estava fazendodesordens em sua
jaula.Fuiatéláeencontrei-otentandoquebrarajanelacomumapoltronademadeira.—Terrível,masporquê?—gritouoDr.Grück,comosmaxilarestrêmulos.—FiztudoparaacalmarFritz—continuouWenzl,—porémelemedissequeeunãomandavanele
porquenãoeraFritzesimumjornalistachamadoMartinNaumchik.Grück franziu os lábios várias vezes, formando inconscientemente a sílaba "Num". Sentiu alguns
papéissobsuamão,olhou-oscomsurpresaedepoisafastou-oscomgestosimpacientesedistraídos.—Tambémmedisse—acrescentouWenzl,—queFritzfoiemboranocorpodele,comsuacâmarae
roupas.Grück colocou a palma de ambas asmãos no rosto e ficou olhando para a imagemdeWenzl.Na
pequenatela,Wenzlficavaparecidocomumaminiaturafeitaporalguémnumacessodemauhumor.Noseutamanhonormal,Wenzlnãoerarealmentetãodesagradável.Tinhaumaverruga,pêlosnasnarinasevia-seseupomo-de-adãosubiredescerquandofalava.Masdotamanhodeumboneco,eraintolerável.
—Quemedidastomou?—perguntouGrück.—Internamento.—Qualsuaopinião?—Oanimalépsicótico.Grückfechouosolhoseduranteuminstanteficousegurandoonarizentreopolegareo indicador.
Abriuosolhosesentou-senaescrivaninha.—Wenzl—disse,—obípedenãoénecessariamentepsicótico.NosnossosdezanoscomEmma,
tambémvimos uns pequenos acessos de nervos, ou não?Quanto aFritz, é possível que esteja apenasassustadopor se encontrar numnovo zôo.Talvez ele queira ser tranqüilizado e tenhadramatizadoumpouco,quemsabe?Ondeseencontranosmanuaisotrechodizendoquepodeumbípedevirasetornarpsicótico?
Wenzlpermaneceumudoenãomudoudeexpressão.—Não—continuouGrück.—Assim,nãovamosnosprecipitar,Wenzl.Lembre-sedequeFritzé,no
momento, nosso espécimemais valioso.Bondade émais eficazquepalavras ásperas oupancada.Umpouco de simpatia, talvez um sorriso...— Sorriu, mostrando os dentes pequenos e disformes até osmolares.—Então,Wenzl?Sim?
—Osenhortemrazão,comosempre—disseoguardião-chefeacremente.
—ótimo,vamosverentão.Váeconversecomele,racionalmente,Wenzl.Tire-lheacamisadeforçaeseeleestivercalmo,traga-oaqui.
—Dar-lhe-eicincoprovasdequesouMartinNaumchik—disseobípedefurioso,emvozalta.Seucorponu,cobertodeespinhosverdes,pareciadelgadoe frágilnapoltronademadeiraescura.
Inclinou-sesobreamesaparaWenzleoDr.Grück.Seusolhosestavamcongestionadoseagrandeboca,semlábios,abria-seefechava-se.
—Primeira,conheçoBerlimenquantooseuanimalnuncaesteveaquiantes,nemteve,certamente,liberdadeparapercorrerasruas.Perguntem-meoquequiserem.Segunda,possocitar-lhesosnomesdoeditor,dodiretor-administrativoedetodaaequipedoParis-Soir.Possorepetir-lheminhaúltimamatériapara eles, palavra por palavra. Se me derem uma máquina de escrever, poderei redigi-la também.Terceira...
—Mas,meu prezado Fritz...— disseGrück, espalmando as gordas e rosadasmãos, num sorrisoinsinuante.
— Terceira — repetiu o bípede raivosamente — minha garota, Julia Schorr, confirmará minhasdeclarações.ElamoranonúmeroquarentaeumdeHeinrichstrasse,apartamentodezessete,eonúmerodoseuvisiéUnterdenLinden8-7403.PossoadiantarqueelasemprecarregaumagatasiamesachamadaMaggieecozinhaumespaguetemuitobom.MeuDeus,seissonãoforsuficiente,soucapazdedizeracorde suas roupas de baixo. Quarta, vocês podem me examinar. Colei grau na Sorbonne em 1999...perguntem sobre Literatura,Matemática,História, o que vocês quiserem!Quinta e última, souMartinNaumchik,semprefuiMartinNaumchik,atéhojenuncahaviavistoesseridículobípedee,sevocêsnãomeajudarem,prometofazerumescândalo...Calou-seporummomento.
—Eentão?GrückeWenzlseentreolharam.—Meu prezado e jovem senhor— disse Grück, remexendo a despenteada cabeleira loura. Seus
olhosmiúdos se apertaram.—Meuprezado e jovem senhor, p senhorme convenceu, sem sombra dedúvidas...—Óbípede ficou ansioso.— ... que acredita realmente serMartinNaumchik, umhumano,correspondentedoParis-Soiretc.,etc.
Obípedefaloucomvozsufocada:—Acredita!Maseuafirmeiavocês...—Porfavor!—Grücklevantouamão.—Tenhaabondadedeouvir.Eudissequenãohádúvida
possíveldequeosenhoracreditanoquediz.ótimo!Agora,permita-meumapergunta.Cruzouasmãossobreapança,esboçandoumsorrisonoslábiosrosados.—SuponhaqueosenhorsejaMartinNaumchik—agitouamão,numgestolargo.—Continue.Você
podesupor,nãofaçoobjeção.Muitobem,agoravocêéMartinNaumchik.Edaí?Inclinou-se para frente e encarou severamente o animal.Wenzl, a seu lado, permanecia em grave
silêncio.—Ora,vocêsmesoltarão—disseobípedesemsegurança.—Vocêsmeajudarãoaencontraraquele
animalqueestádentrodomeucorpoe,dealgumamaneira,dealgummodo...—Sim?—disseoDr.Grück,encorajando-o.—Dealgummodo...dealgumamaneira...—Devehaveralgumjeito—falouobípede,infeliz.Grückrecostou-se,balançandoacabeça.—Parafazê-lotransformar-senovamente?Meuprezadoejovemsenhor,reflitaummomentosobreo
queestádizendo.Colocaramentedeumhomemdevoltaemseucorpo,quandojáseinstalounocorpode um animal? Não sejamos infantis! Para começar, isso é impossível! Você sabe tanto quanto eu!Supondoque tudo isso tenha realmente acontecido, seria impossível retroceder.Meuprezadoe jovemsenhor!Colocardevoltaamentedeumhomememseucorpo?Comumfunil?
Obípedeabaixouacabeçasobreamãocobertadeespinhosverdes.—Sepudéssemosdescobrircomotudoaconteceu...—murmurou.
— Sim, ótimo— disse Grück com simpatia.— Boa sugestão: sem dúvida é isso mesmo o quedevemosfazer.Coragem,Fritz,ouMartin,seforocaso. Issorequer tempo,devemosestarpreparadosparaesperar.Paciênciaocoragem,hemFritz?
Obípedeconcordou,exausto.—ótimo, estamos entendidos—disseGrück, animadamente, erguendo-se.—Vamos fazer todo o
possível,estejacerto,eenquantoisto...—voltou-separaWenzl,quetambémsepuseradepé—tentecolaborar,nãocriandoproblemasparaopobreWenzl.Concorda,Fritz?
— Vocês vão manter-me preso aqui? Em exposição? — gritou o bípede, inteiriçando-se deindignação.
—Porenquanto—respondeuGrück,apaziguador.—Ouvocêtemsoluçãomelhor?Paracomeçar,vocênãotemaondeir.Comoviveria?Devagar,Fritz,
temosdeirdevagar.Ouçaoconselhodeumhomemmaisvelho:aprecipitaçãopodepôrtudoaperder.Devagar,Fritz,devagar,paciênciaecoragem...
Wenzlpegouobraçofinodobípedeecomeçoualevá-loparaforadasala.—MeunomeéMartinNaumchik—continuouamurmurarfracamente.A baça luz cinzenta damadrugada invadiu os compartimentos externos, iluminando tudo semnada
destacar.Poralgumarazão—obípedejáhavianotado—nestahora,agentevêooutroladodascoisas,maisquehabitualmente, comoo tecidomanchadopendendo sobo assentodapoltrona,osdetritos e apoeiradoscantoseaspequenasmanchasearranhõesque,deordinário,passavamdespercebidas.
Perambulou impacientemente pelo corredor, passou pela porta da outra sala — a fêmea havia,aparentemente,colocadoumamesacontraela—eentrounoescritório,iluminadopelaluzfluorescente,comsuasmáquinascobertas,evoltou.Nointeriordoseupróprioquarto,viuumrostofeionoespelho—esverdeado,ofocinholisocomoumabsurdohíbridodecãoegalo—eporummomentoangustiantenãopercebeuqueeraelemesmo.
Agarrou-seàparedeechorou.Sonsinumanoseestranguladossaíramdasuagarganta.Dezhoras.Deviamterpassadodezhorasoumais.Tinhaacontecidomaisoumenosnahoradojantar,
masjáfaziapartedopassado.Dezhoras,eleaindanãoseacostumaraeficavacadavezmaisdifícil.Tinhadefugir.Amaletadobípedeestavanochãodoquartointerior,pertodolavatório.Martinapanhou-a,abriu-ae
espalhouseuconteúdo.Escovadedentes,umjogodexadrez,papeldeescreverordinário,eumavelhabrochura intitulada: O Planeta Brecht: Enigma do Universo. Nada útil. Chorando, correu para oescritório e tirou o fone do gancho. Estava desligado. Provavelmente, àquela hora damanhã, amesatelefônicanãoestavaligadacomosaparelhosdoZoológico.Quefazer?
Viuumadasmáquinasdeescrevereparousurpreso.Então,sentou-seetirou-lheacapa.Havia papel na gaveta.Colocouuma folha no rolo, ligou amáquina e ficou sentadoummomento,
ansiosamenteapertandoasmãosdetrêsdedos.Aspalavras tomaramformaemseucérebro:MeunomeéMartinNaumchik.Estousendomantido
presoem...Suasmãoscomeçaramabaterasteclas,febrilmente,easletrasseamontoaramnoguia,comestrépito
eemconfusão.Ocarrodeuumsaltoepulouumalinha.Oesforçoda imaginaçãoera tantoqueele, instintivamente, tentoumorderos lábios.Sentiuacarne
dura deslizar contra os dentes. Morder os lábios era uma das coisas que agora não podia fazer.Datilografareraoutra.
Erademais.Nuncasehabituaria.Semprepodiaesqueceresedeixartratarcomoumanimal,napontadeumacorrente.
Depois de ummomento, comolhos nublados pelas lágrimas, ficou olhando as teclas, até que elasvoltassemaolugar.Recomeçouentão,penosamente,aescrevercomumsódedo:"MeunomeéM..."
Emmeia hora, seu relato estava terminado.Agora, <era necessário provar sua identidade. Talvezdevessecomeçarporissoouahistórianuncaserialida.Pegouumafolhalimpaeescreveu:
M.FrédéricSteinPARIS-SOIR98,ruedelaVictoireParis9º(Seine)PREZADOFRÉDÉRIC:Vocêpoderáconstatarqueomaterialanexoémeu,peloseguinte:aúltimavezemqueestiveemParis
fomos,vocêeeu,aoRockingHorse,eenchemosacara.Bebemostrêsgarrafasdeuísque,vocêmefalousobrecertosproblemascomsuaesposaediscutimossobreumpostodecorrespondenteparavocênosPaísesBaixos.
Istonãoéumabrincadeira,precisodoseuauxílioe,peloamordeDeus,façaoque...Fezumapausaetevebastantesorteparaouvirumruídodepassosnocorredor.Maltevetempode
desligaramáquina,cobri-laeguardarasfolhasdatilografadasnagaveta.Umguarda,jovemainda,comborbulhasnorostoemalhumorado,entroutrazendoumcarrinhocom
duasbandejasfumegantes.Eraahoradocafédamanhã.Seuprimeirodiadeanimalenjauladoestavacomeçando.
IIINoANO 2369, dois séculos depois da agora esquecida experiência de Klementi, o piloto de um
interceptarflutuante,avintemilpésacimadeStuttgart,viuumpontorefletidonasuatela.Nãopassava,provavelmente,deumpássaroferido,masnoestadoemqueestavaomundo,nuncasesabia...Apertouobotão"interceptar"eouviuogemidodadesaceleraçãodomotorsobsuacabine,enquantoomundo, láembaixo,escondidopelasnuvens,giravacomoumglobodeescritório.
Um ponto escuro entrou em visão direta, avolumando-se de maneira irregular. O computadorintegradoregistrou-ocomoumamassanãoferrosa,de136,72quilos,caindolivremente.Comodedonobotãodedisparo,opilotoolhou-oatentamente,limpouosolhosetornouaolhar.
Oobjetoasuafrente,amenosqueeletivesseenlouquecidosubitamente,eraumantigosofádecrinade cavalo, com um homem e uma mulher sentados, unidos por um abraço caloroso, com as roupasdesalinhadas...
Nocentrodacidade,asruasestavamiluminadascomosefossedia.Sobreascalçadasdemosaico,as
pessoas passavam. De uma porta aberta, escapavam as notas de uma música convidativa. Todos osbotõesvermelhosdeumaplantaaéreadeAntares,aderidaàsparedesdosedifícios,tinhamdesabrochadoeemanavamumfrescoperfumepicante.
Passando por uma das vitrinas brilhantes, o rapaz viu uma fileira de pequenos seres verdes, emgaiolas de vidro — lentos animais de forma globular, do tamanho de um tomate, com membrosfilamentososegrandesolhosverdeselânguidos.Boiavamnaespumaesverdeadadasuperfíciedaáguarasadasgaiolas,ousubiamcomdificuldadeempedaçosdecascasdeárvoreúmidas.Acimadeles,haviaumafaixa:
LEVEUMWOGPARAASCRIANÇAS.Continuouaandar.Aspessoasaoseuredor,namaiorpartecaminhandoemgruposoucasais,eram
diferentes das que costumava ver no Zoológico de Hamburgo. Estavam mais bem vestidas, melhoralimentadas,tinhamapelemaisclaraemaiscoradaeriammais.Asmulherestinhamoscabeloslourosebempenteados,facesrosadas,dentesbrancoseunhasbrilhantes,eusavamroupasvistosaseenfeitadascomoopapelresplandecentequeenvolveospresentescaros.Oshomenserammaisausteros,comroupasvermelhasouazuisescuras.Seuspésestavamfinamentecalçadoscombrilhantessapatosdevernizeocabelo luzindo de cosméticos. Sua fala, no estranho sotaque de Berlim, turbilhonava em volta dele:cochichos,bom-humor,explosõesderiso.
Sob seus pés, o pavimento de mosaicos estrelados trepidou quase que imperceptivelmente àpassagemdeumcarroexpressosubterrâneo.Ali,acimadosolo,todosandavamapé.Nãohaviasinaldeveículosderodasnemmesmoumaerocarro:somenteafaixaluminosadeumadasFlugbahneneravisívelàdistância.
Naesquina,emumapequenapraça,emcujocentrohaviaaestátuaheróicaemalumínioanodizadodeum homem em traje espacial, sem capacete, com uma expressão exultante no rostometálico, o rapazdivisouumaltopaineliluminado,naparededeumedifício.Palavrasluminosaspiscavamlentamentedopainel,linhaporlinha.Orapazseaproximou,abrindocaminhoentreamultidãodeespectadores,eleu:
APARELHOINTERPLANETÁRIODESPEDAÇOU-SEEMMARTETODOSosVIAJANTESDADOSCOMOMORTOSSeguelistadepassageiros
LADRÕESMOTORIZADOSPRATICAMNOVOASSALTOEMBERLIM"Serãoentreguesàjustiça"—prometeuFunkGRANDEASSEMBLÉIAVOTAPARAANEXAROPLANETA
DETHIESSEN1150votosafavor;139contra
BOLSAESPACIALDEVALORESFECHAEMALTARECORDEASociedadedeVôosEspaciais,ICSSA,encabeçaacotação
LEIANOTICIÁRIOCOMPLETONO"BERLINERZEITUNG"
As letras lambiam o painel, como línguas de fogo, logo seguidas por um anúncio da cervejaHeineken.
Orapazafastou-se.Leratodasasmanchetescomatenção,massemmuitointeresse.Desceuaruaeolhou fascinadoparaa fachadadeumcinemaonde,porum truquebrilhantementecolorido, figurasdehomensemulheresdetrêsmetrosdealturapareciamdançar.Mas,mesmoali,orapaznãoprestoumuitaatenção.Estavapreocupado,cadavezmais,comcertasexigênciasdeseuprópriocorpo.
Tinhanecessidadeurgentedelivrar-sedaincômodaeestranharoupaqueestavausando,masfazê-loalichamariaaatençãodetodose,alémdisso,seucorponusentiriafrio.Nuncaimaginaraqueumacoisatãosimplespudessetornar-setãocomplicada.Emcasa,noZoológico,eletinhaseubanheiroprivativoetudo omais de que precisava. Os outros também deviam tê-los,mas onde? Como faziam as pessoasestranhas em Berlim? Olhou em volta. Não conseguiu divisar nenhum policial, mas uma mulher quepassava,acompanhada,paroueencarou-o.Numimpulso,dirigiu-seaelaeperguntou:
—Comlicença,madame,poderiadizer-meondepossoiencontrarumbanheiro?Afisionomiadelaaprincípiodemonstrousurpresa,depoischoque.Voltou-separaseuacompanhante
edissefuriosa:—Vamosandando.Eleestábêbado.Afastaram-se rapidamente. O rosto carrancudo do homem voltou-se para trás. A palavra
"vergonhoso"flutuouatéele.Surpreso e magoado, o rapaz ficou ummomento a olhá-los, até desaparecerem. Então virou-se e
caminhounadireçãooposta.OlugarporondepassavaagoraerachamadodeKonstantin'sCafé.Avistadaspessoassentadasnas
mesas, que apareciam através das amplas janelas, lembrou-lhe de que tinha fome e sede. Passadoummomentodehesitação,entrou.
Um garçom esguio, vestido com uma elegante jaqueta vermelha, acercou-se dele prontamente novestíbulo.
—Àsordens,cavalheiro.Mesaparaum?—Sim,comoquiser—assentiuorapaz.Ogarçomhesitou,olhando-ocomestranheza.Entãovirou-separaaarcada.—Poraqui,senhor.O rapaz entregou o sobretudo e a câmera a uma moça para guardar. No interior, outros garçons
vestidosdevermelhomoviam-secomoformigasporentreasmesascobertascomtoalhasbrancas.Asalaestavarepletadesedaseveludosdetodasascores,derostoscoradoselimpos,debocassorridentes.Umcheiroestranhodecomidapairavanoar.Ogrosso tapeteabafavaospassosmashaviaumpesadozumbidodevozes,umtilintardepratariaemúsicaprovindadeumafonteinvisível.
Umpoucointimidadocomtantasuntuosidadejunta,o*rapazacompanhouogarçomatéumamesinhadeumsólugar,ondesentou.
Ogarçomabriucomumestaloumapastadepapelãodobrada.Orapazapanhou-aautomaticamentee
logopercebeuqueeraumaespéciedelistadealimentos.—Umaperitivoparacomeçar,senhor?—perguntouogarçom.—Horsd'oeuvres?Ouentãouma
salada?Orapazpiscouparaocardápioecolocou-onamesa.—Não—respondeu—mas...—Somenteojantarentão,senhor—disseogarçomalegremente.—Seocavalheiromepermite,eu
sugeririaatruiteaubeurrecanopéen,comumMoselle.Émuitobom,senhor.—Estábem—concordouorapaz,comalgumahesitação—masantes...—Ah, um aperitivo, afinal?— repetiu o garçom sorridente,mas levemente contrariado.—Hors
d’oeuvres?Ou...—Não,eunãoqueronadadisto,obrigado—conseguiudizerfinalmenteorapaz,fazendoumgesto
desajeitadoederrubandoumcopo.—Masentão,oqueocavalheirodeseja?Ogarçomendireitouocopo,limpouatoalhaerecuou.Ohomempiscoulentamente.—Gostariaqueosenhortivesseagentilezadememostrarondeéobanheiro.Esperouqueogarçomreagissecomoamulhernarua,masorostosagazdohomemapenassefechou
inexpressivamenteeeleseinclinou,murmurando:—Aentradaportrásdacortinadofundo,senhor.—Obrigado,osenhorémuitogentil.—Denada,cavalheiro.O garçom afastou-se. O rapaz levantou-se e caminhou na direção indicada. Embora procurasse
mover-secomcuidado,sentia-seaindadesajeitadonaquelecorpoealgumasvezesseesqueciaeparavaentreduaspassadas,tentandotirarumdossapatos.Quandofezissonotouqueospresentesolharamparaelecomestranheza.Resolveuentãoeliminaressehábitoomaisrápidopossível.
Quando voltou, após alguns problemas com as fechaduras a que não estava habituado, o garçomestavatirandoumatravessacobertadeumcarrinhodeprataecolocandonamesa.Levantouatampacomummeneio,enquantoorapazsentava-se.Ogarçomapanhouumaesguiagarrafanocarrinho,desarrolhou-a,serviuumlíquidoclaronocopoerecuounaexpectativa.
Orapazolhouparao.prato.Acomidafumegavaagradavelmente:cincoouseisdiferentesespéciesdealimentos,cadaumcomsua
cor característica, arrumados na travessa de formadecorativa.Nunca vira nenhumdeles antes, excetotalveznasrevistas,etodososseuscheiroslheeramdesconhecidos.Aindaassim,pegouogarfoetentoutirar o pedaçomaior, umamassa oval áspera, de cor marrom-queimado, que se desfez em pequenosflocos,escorrendoumcaldo.Levouogarfoàboca,numasegundatentativa.Acomidalhepareciaumadesagradável e úmida protuberância sobre a língua. O gosto era tão surpreendente que ele não tevedúvidas:virou-seecuspiu-afora.
Ogarçomolhouotapeteedepoisorapaz.Entãofoiembora.O rapaz estava experimentando cautelosamente umas tiras verde-claras, que achava estranhasmas
saborosas,quandoogarçomvoltou.—Ogerentegostariadefalarcomosenhor,porgentileza.Eapontounadireçãodovestíbulo.—Comigo?O rapaz levantou-se de bom grado, derrubando o copa novamente. O líquido molhou a toalha e
começouaescorrerparaotapete.—Desculpe—disseecomeçouaenxugarcomoguardanapo.—Não tem importância— respondeu o garçom sombriamente e pegou o braço do rapaz.—Por
favor,cavalheiro.
Encontraram outro garçom no vestíbulo, que pegou-lhe o outro braço. Alguém entregou-lhe osobretudoeacâmera.Juntos,osdoisgarçonsolevaramatéaportadesaída.
Orapazolhavaaoredor,procurandoalguém.—Eogerente?—perguntou.—Ogerente—respondeuoprimeirogarçom—querqueosenhorsaiacalmamente,semperturbar.—Maseuaindanãopagueiacomida—disseorapaz.—Nãosepreocupecomisso,senhor—respondeuogarçom(ejáestavamnaporta).Osdoisderam-lheumúltimoempurrão.Foipararnarua.Um poucomais tarde, no banheiromasculino de uma galeria de um pfennig (ali pelo menos era
possívelencontrarumbanheiro),orapazexaminouoconteúdodosseusbolsos.DescobriuqueeraMartinNaumchik, cidadão europeu, nascido em Asnières (Sena) em 1976, boa compleição física, olhos ecabelos castanhos, sem folha criminal, semcortede cidadania, nenhumsinalparticular, empregadonoParis-Soir,98,ruedeIaVictoire,Paris(9e),quetinhalicençademotorista,umcartãodecréditoCordonBleu,umcartãodeimprensaemcincoidiomaseumcadernodenotas,cheioderabiscosalápis,queelenãoconseguiadecifrar.Emsuacarteiradedinheiro,encontrouquarentamarcosenosbolsosdascalças,dopaletóedosobretudo,algumasmoedastotalizandodoisoutrêsmarcos.Eratudo,excetounscanhotosde cheque, uma chave presa a uma argola de ouro, lenços, fiapos do tecido dos bolsos, ummaço decigarros pela metade e um envelope amarrotado, endereçado a Herr Martin Naumchik, 67,Gastnerstrasse,Berlim.
Orapazjáhaviasatisfeitoparcialmentesuafomecomduassalsichasfritas,compradasnumabarracaperto da galeria, mas sentia-se cansado, só e confuso. Naquele momento gostaria de voltar para oZoológico,masestavaperdidoenãosabiaondeaqueleficava.Saiudagaleriaecomeçouadescerarua.
Ocinemaconvidava-oaentrar,acenando-lhecomasportasabertasdovestíbuloeseusgigantescoscartazesdecada lado: figurasdehomensemulheres, empapel lustroso, eplanetas flutuandonumcéuazul-acinzentado.Letreirosluminososanunciavam:
Experimentenovassensações!Emoçõesnuncavistas!SOBASSETELUASStellaPain—WillemDeGroot"Indescritível!"—TageblattO preço era dois marcos e dez. O rapaz pagou, recebeu o bilhete e entrou. Algumas pessoas
esperavamdepé,naante-sala,conversandoefumando.Sobreumlongobalcão,estavamàvendafrutasexóticas e confeitos, e havia fileiras demáquinas automáticas, com bebidas, doces e guardanapos depapel. O rapaz entregou o bilhete à borboleta automática na porta, recebeu de volta o canhoto doingresso,eentrounumenormepoçodecadeirasescuras,iluminadoporfracaslâmpadascolocadasnasparedesafastadas.Aquieali,emtornodoenormeanfiteatro,gruposdepessoassentadas.Trêsquartosdos lugaresestavamvazios.Ouvia-seum ligeiroburburinho,masninguémconversavaou semovia.Oespetáculonãohavia,evidentemente,começado.Orapazdirigiu-separaaplatéia,escolheuumacadeiraedesdobrou-a.Quandosentouepôsasmãosnosbraçosdacadeira,sonsemovimentosexplodiramaoseuredor.
Deuumsaltoemmeioaosilêncioeàescuridão.Oenormeequasevazioanfiteatrovoltoua ficarcomoantes:asformasfantasmagóricasqueviratinhamdesaparecido.
Depoisdeummomento,cautelosamente,voltouasegurarumdosbraçosdapoltrona.Nadaaconteceu.Ooutrobraço.Aindanada.Comcuidadoemedo,desdobrouapoltronaeafundou-senela.
Novamenteasúbitaexplosãodeluzesom.Conseguiu,destavez,verimagenseouvirvozes,atéquepuloudepéoutravez.
Aoseuredor,aspessoascontinuavamsentadas,emmisteriosoeconcentradosilêncio.Entãoaqueladevia ser a maneira de ver um filme: não projetado numa tela, como sempre pensara, mas algo queaconteciamisteriosamente,quandosesentavanacadeira.Trêmulodenervosismo,masdecididoanãosercovarde,sentou-seaindaumavezeagarroucomforçaosbraçosdapoltrona.
Luzesesensaçõesorodearam.Viu,então,apartesuperiordedoishumanosgigantescos,umhomemeumamulher,contraocéuvioleta,noqualduas luasbrilhavampalidamente.Simultaneamente,ouviu-seumopressivoeinsistenterugirdeventoeavozestentóriadohomemgritou:"Gerda,vocêéminha!"Seusolhospousaramnosdela,seusfortesbraçosmorenosagarraramosbraçosnusdela,enquantoamulherrespondia:"Eusei,Friedrich."
As palavras explodiram nos tímpanos do rapaz como uma bomba. Os dois corpos imensos nãoestavammuitodistantesdele,nofundodasala.Pelocontrário,surgiamasuafrente, tãopertocomosepudessetocá-los.Brilhavamcoloridos,nãocomumacornatural,masalgoaomesmotempodiferenteeimpressionante, tons pastéis luminosos sobrepondo sombras à escuridão luminescente, comumaquaseperturbadorasugestãodeumnegromortalnoscontornos,asemelhançadeumagravuracolorida.Tinhamprofundidade, mas não realismo, e também eram incrivelmente mais que simples imagens. O rapazconstatou,surpreso,quepodiasentirocheirodoar,frioesalgado,eque,semsaberpelomenoscomo,tinhaconsciênciadaverdadeiratexturadapeledaenormemulher,lisaemaciacomoumfrutodecera,edafelinasuavidadeperfumadadoslongoscabelosfulvos,soltosaovento,edarigidezlustrosadasfolhasverdesdocenário.
"Gerda!",trovejouohomem."Friedrich!",trombeteouamulher,tristemente.Então,semmoverummúsculo,desapareceramambos,vertiginosamente,comoseumcarroinvisível
os levasse rapidamente para longe, enquanto eles iam diminuindo, de pé, olhando um para o outro,arbustosdefolhasverdesse juntaramparaencheracena.Océuseampliouatéocupar todooespaço.Trêsluascomeçaramasemoverlentamentenofirmamentovioletaenessemomento,comumpoderosotrovão,achuvacomeçou.Seco,noseulugar,orapazpodiasentirosfiosd'águalavandoasfolhas.Erammornos. A música explodiu em ressonâncias selvagens. Um relâmpago cortou o céu e a tempestadedesabou.
Erademais.O rapaz pôs-se de pé, tremendo dos pés à cabeça. A visão, o tato e a audição desapareceram
instantaneamente.Estavasónasalaimensa,comaspessoasimóveisesilenciosassentadasnoescuro.Dirigiu-setrêmuloparaapassagemesaiu,satisfeitodevoltaràcalmaeàconsciênciadesimesmo.
Lamentavahaverdesistidotãodepressa,masconsolou-sepensandoqueaquelaeraaprimeiravez.Maistardetalvezseacostumasse.
Numabancanomeiodarua,jornaiserevistaseramvendidosatravésdedistribuidoresautomáticosde metal. Ao lado, um menino sujo e uma mulher grisalha, com um televisor portátil, assistiam àapresentaçãodeumcantorpopular.Acriançatentavaacompanhá-lo,comumavozdesopranoforçada.Algumasmoedasseespalhavamsobreamesadesmontável,ondeestavaoaparelho.Maisadiante,doishomens bêbados e desgrenhados brigavam sem empenho, segurando-se pelo paletó para manter oequilíbrio.Umamulher,comorostocarregadodemaquilagem,faziapiadas,masninguémlheprestavaatenção. Três rapazes andavam lado a lado, carrancudos, vestidos com idênticos sobretudos longos eescurosetopetescheiosdegordura.Enormesanúnciosdeluzfriapiscavamdoaltodosedifícios:
MOBIL,TELEFUNKEN,KRUPPFARBEN.Orapazsemovia,emmeioàmultidão,ouvindoasvozesindistintasetrechosdemúsicaquevinham
dasportasabertas,examinandoosrostos,parandoparaolharasfaiscantesmercadoriasnasvitrinasdaslojas.
Depois de andar durante algum tempo namesma direção, penetrou numa loja que parecia ocupar,
sozinha,todoumquarteirão,comdiversasportasdeentradaefilasdevitrinasbrilhantementeiluminadas.O nome, em letras graúdas de luz fria em cada uma das entradas, era "ELEKTRA". Na falta de coisamelhor,ohomemacompanhouamultidão.
Dentro, a loja era um gigantesco salão, de teto alto, boa acústica e brilhantemente iluminado porrefletores.Pilhasdecaixasemostruáriosluminososestavamdispostosemprateleirasparalelas,comalasentre elas. Nos espaços intermediários, havia estátuas, grandes plantas floridas e trabalhos emmetalbrancoedourado.Oburburinhodamultidãoerarefletidonotetodistante.Olhandoparacima,orapazviuflamejantesfachosdeluzcolorida:vermelhos,verdes,azuis,âmbar,quepiscavamedeslocavam-sepeloteto como a descarga dos foguetes. O ar estava pesado, impregnado de uma mistura de perfumesfemininos e outros odores indistintos. Como fundo musical, uma suave melodia e ruídos múltiplos econfusos.
Orapazseguiaaoacaso,ouvindoevendo.Umamulhereumhomemidosoachavam-seàentradadeuma das galerias, discutindo violentamente em voz baixa e crispada. O rapaz conseguiu ouvir aspalavras:"Vintemilhões,nomínimo."Umacriançadecasacovermelhoestavachorando,arrastadaporuma mulher zangada. Um homem de uniforme azul escuro caminhava apressadamente, com as calçasbatendonostornozelos.
Havia anúncios de luzes coloridas no teto. Um vermelho dizia: ROUPASMASCULINAS e uma trilhatambémvermelhaafastava-sedelepiscando.Outro,azul,dizia:JÓIASERELÓGIOS.Overde:CÂMERAS.
Orapazseguiu,fascinado,ofachodeluzesverdeada.Filasdegente,namaioriamulheres,moviam-selentamente,porentreosmostruários.Orapazviu,aquieali,alguémpôrdinheironumadascaixas,.abrirovidroeapanharumablusaouumaroupadebaixo,umpardemeias,umcachecol.
Orapaznuncahaviavistotantacoisabonitanumsólugar.Estavaagoranumlongocorredor,repletosó de câmeras, centenas delas, de todos os formatos e tamanhos, todas impecavelmente polidas ebrilhantes.Ocintilantereflexodosseusolhosredondosdevidroemetalseguiam-noquandoeleandava.Viuefetivamenteumhomemcomprarumadelas:umobjetoenorme,dotamanhodeumacabeçahumana,envolto em couro claro, um complexo de tubos e lentes, discos e medidores. O homem segurou-arespeitosamente,olhando-acomcarinho,comosefosseorostodeumserquerido.Assimqueaportadevidro se fechou, ummecanismomoveu-se lentamente e outra câmera, idêntica, foi colocada no lugarvazio.Quandoocompradorseafastou,orapazolhouopreçonabordacrornadadavitrina:setecentosmarcos. Olhou novamente para a bela câmera atrás da porta de vidro e depois para a que estavapenduradaemseupescoço.Eramenoreometalnãobrilhavatanto.Suacapapretaestavagastaemalgunslugaresenãopareciatãobonitaquantofora.
Orapazrecomeçouaandar,olhandoparasimesmo.Viuqueseusobretudoescuroestavapoídonospunhos,seussapatosprecisavamdeumpolimento,haviapoeiraefiaposemsuascalças.
Assim,nãobastava serhumano!Erapreciso tambémdinheiro.Pensouvagamenteque sepossuíssesetecentosmarcosnãoestariacomdordecabeça,nãoteriaaquelasensaçãodedesconforto,queoafligiacadavezmais,nemsesentiriatãocansadoeirritado.
Porém,nãotinhaamenoridéiadecomoalguémconseguiadinheiro.Parasentir-semelhor,parounaseçãoseguinteecomprouumrelógiodepulso,comumapulseirade
platinaexpansível.Colocouumanotadedezmarcosnaranhura*Omecanismorecolheuodinheiro,comum sibilo, puxando a nota gradualmente para dentro, até desaparecer. Então houve um estalo noreceptáculoembaixoeaportadevidroseabriugirando.Orapazapanhouorelógioeadmirou-o.Aquelamaravilhajáestavaemfuncionamento,oponteirodossegundoscirculandosilenciosamentenomostradorpreto.Colocou-onopulso, primeirodo lado errado, depois naposição correta.No receptáculohaviavinte e sete pfennigs emprata e cobre.Retirou-os.Acima, omecanismo funcionounovamente e outrorelógiodepulsoocupouolugarvazio.Orapazviuquenãopodiaresistir.Colocououtrosdezmarcosnamáquina, recebendonovo relógioemaisvintee setepfennigsde troco.Colocouosegundo relógiono
outropulso.Agorasentia-sericoeelegante.Estendeuosbraçoscomfirmeza,parasubirospunhosdasmangas,demaneiraapoderadmiraros relógios.Ambosmarcavamamesmahora:vintehorase trezeminutos.Agoraelepoderiasempresaberahoracerta,porqueseosrelógiosmarcassemhorasdiferentes,naturalmenteumdelesestariaerrado;semarcassemidênticas,deveriamestarcertos.
Satisfeitopor ter feito aquilo sozinhoepor ter compradodireito, continuouandando.Numespaçolivre,nofimdagaleria,viuasescadasgiratóriasquesubiamatéotetoe,alémdelas,filasdeelevadorescujasportasseabriamefechavamconstantemente:clic,abria-seaportaeentravaalguém;clic,aportasefechava,transportavaopassageiroeseabriaoutravez.Atravessandoorecintoemsentidotransversal,viuoutrogrupode fachos luminososno tetoepareceu-lhequeumdelesestava rotulado"ALIMENTOS".Seguiu-o avidamente e quase derrubou um homem de uniforme azul, sem quépi, que franziu assobrancelhasparaeleedisse:
—Desculpe,senhor.—Não,euéquedevodesculpar-me.—Nãohádeque,senhor.—Émuitogentildesuaparte...—Éumahonra,senhor.Cumprimentaram-secomumaligeirainclinaçãodecabeçaeseguiramseucaminho.Orapazverificou
queoanúncioluminosorealmenteindicava"ALIMENTOS".Seguiuseufachoróseoatéchegaraumaáreasubterrânea,repletadegentecomcarrinhosdemetalcheiosdepacotes.Desceuoscincoouseisdegraus,farejando o ar e um novo grupo de fachos luminosos apontavam: "Gêneros enlatados", "Perecíveis","Carnes" etc. Entrando na seção de enlatados, encontrou um homem corpulento, com um sobretudoaxadrezado,queestavatirandoumalatadeumdoscompartimentosabertos,paracolocá-lasobreoutrastrêsnumcarrinho.
Orapazparouparaolhar.Omecanismodacaixagiroulentamente:outralatagrande,comomesmoformatocurioso,apareceue
o rapaz pôde ver no rótulo: PRESUNTO DEFUMADO COPENHAGEN, e a imagem de um pedaço de carnerosada. A tampa da vitrina ainda estava aberta. Assim que o mecanismo parou, o homem troncudoestendeuamãoeapanhouopresuntoenlatadoecolocou-onocarrinho, juntocomosoutrosquatro.Omecanismovoltou a girar.O freguês corpulentoolhou entãopara o rapazpor sobreoombro, hesitou,depoisapanhouumasextalatadepresunto,quefoijuntar-seàsoutrascinco.Omecanismotornouagirar,masatéondeorapazpôdever,ohomemparrudonãocolocaranenhumdinheiro.
Cada vez que retirava o presunto, a porta girava mas não fechava. Então o fortão levantava-a epegavaumnovopresunto.
Ofreguêsolhouemvoltaoutravez,abarcandotudoeresmungou:—Váandando,vamos,nãovêqueeuestouocupado?—-Sintomuito—disseorapaz,polidamente
—masestouaguardandoaminhavezdecompraropresunto.Ohomenzarrãomastigoualgumaspalavras,tentandoolharparaorapazeparaopróximopresuntoao
mesmotempo.—Oquedisse?—perguntouorapaz.—Eudisseváparaoinferno—resmungouoespadaúdomaisclaramente.Omecanismoparou.Elemeteuamãoeapanhouasétimalata.Nessemomento,umdoshomensdeuniformeazulapareceunofimdagaleria.Ohomenzarrãoestava
segurandoopresuntojuntoaopeito.Ohomemdeazulvirou-separaele.Ofreguêsparrudorodopiouabruptamente,colocouopresuntoentreosbraçosdorapaz,edissede
mauhumor:—Entãotome!—eafastou-sedepressa.—Ummomento,porfavor!—gritouohomemuniformizadodeazul,aproximando-se.Afastando-secadavezmaisrapidamente,esemvoltaracabeça,ofortãodissealgoparecidocom:
—Corra,seutolo!Ohomemdefardaazultiroualgodobolso.Eraumacampainhaelétrica,quecomeçouasoaraltae
insistentemente. Dentro do mostruário, o mecanismo continuou girando, apresentando outro presuntoenlatado.Orapazolhou-o,depoisvoltouavistaparaalataquetinhanasmãosesentiuumvagoalarma.Ohomemforteandavacadavezmaisdepressa.Odeuniformeazulgesticulavaegritava.Orapazvirou-seecomeçouacorrer,emboranãosoubesseporquê.
Emfrenteàseçãodealimentos,outrohomemdeuniformeazulvinhapelaesquerdaemsuadireção.Orapazsubiu,tropeçando,oscincodegraus,apertandodesajeitadamentecontraopeitoalatadepresunto.Ohomenzarrãohaviadesaparecido.
— Pare!— gritou um dos homens de uniforme azul. Mas o coração do rapaz batia num pânicoirracional.
Atravessou o vestíbulo, esquivando-se de um lado para outro entre os carrinhos de compras,perseguidopelosgritosepelosoardacampainha.Outracampainhacomeçouatocar,emalgumlugaràsuadireita,edepoisumaterceira.Totalmenteapavorado,semsaberoqueestavafazendo,orapazjogouopresuntonochãoecorreunadireçãodeumamulher,queempurravaumcarrinhocheio,quegritoueatirou-o contra outro carrinho, derrubando os dois e espalhando laranjas pelo chão, como mercúrio.Continuouacorrer,deixando-aparatrás,quasecaindo,eviu-seentredoishomensdeazul,enquantoàfrentedelesóhaviaumagradedecorativadearabescosdemetaldourado,quesubiaatéumagalerianosegundoandar.Ofeganteeamedrontado,o rapazarremessou-secontraagradeecomeçoua treparporela.Apesardospésdesajeitados,quenãopodiamse,agarrarnemsentirometal, ficou logoacimadacabeçadoshomens,queergueramseuspunhosparaele,gritando:
—Biltredesprezível,desçadaí!O rapaz continuou a subir. Num instante, as pessoas abaixo dele, no chão, pareceram bonecos
coloridos,muitoscomosrostosvoltadosparaele.Umdoshomensdeuniformeazul tinhacomeçadoasubiragrade,masorapazjáestavaquasenotopo.
Chegouemcimae,agarrando-se,percebeuquepoderiaatingirocorrimãodagaleria,balançar-seepassar por cima. Ofegante com o esforço, chegou a um estreito corredor, com uma fileira de portasabertas,deondevinhamsonsdevozeseoruídodasmáquinas.Umhomemsaiuporumadasportasdocorredoreaprumou-separaouviroalarmedascampainhas.Virou-seeviuorapaz.
—Ei!—gritou,caminhandoparaafrente.O rapaz correu novamente. Rostos se viravam, espantados, nas salas por onde passava. Viu, num
relâmpago, homens emulheres de guarda-pós,mesas ematerial de escritório.Aporta seguinte estavafechada e indicava: "Escada".O rapaz abriu-a, hesitou um instante entre dois lances estreitos, depoistomouoascendentee subiu trêsdegrausdecadavez,dandoumavoltaemcadaumdospatamaresatéficartonto.Abaixoecoavamvozes.Continuousubindo,passandoporoutrospatamareseportasescurasfechadas,estreitaseimundas,atéchegaraocimo.Asescadasterminaramnumaúltimaporta,iluminadaporumaencardidaclarabóia,atravésdaqualfiltrava-seumatênueluminescênciavioleta.
O rapaz parou para escutar. Ouviam-se ainda, vindas de baixo, vozes fracas como o zumbido deinsetossobcamadasecamadasdeterra.
Abriuaportaeentrou.Achou-senumandardesalasvazias,escuraseempoeiradas.Tudoalitinhaumaspectomais velho e gasto que nas brilhantes galerias embaixo.Na luz fraca que vinha das pequenasjanelasdevidrogranitadopôdedivisarmercadoriasempilhadasnoscantosdeumasalaeumamontoadodearquivosemoutra.Nãohavianinguémali.Deviafazermuitotempoquenenhumapessoapunhaospésnaquelelugar.
Nofimdocorredor,meioescondidaporumvelhoguarda-roupa,haviaoutraportaeoutraescada,amaisestreitaeescuradetodas,comdegrausdemadeiranuaquerangiamsobseuspés.Eraapenasumsólanceenoaltoentrounumasalaminúsculadeparedesinclinadas.
Pacotesdepapéisamontoavam-senochão,amarelosequebradiçospelotempo,sobumacamadadepoeira.Haviatambémumrolodecorda/umaouduaslâmpadasvelhasepapelpicado,roídotalvezporpequenosanimais.Tudoissoeleviuàluzfracaefriadeumajanelatriangular,situadanofimdoteto.Eraumajanelalarga,encaixadaemumamolduradeornatosantigos,quetomavamquasetodaaparede.Eporela,quandolimpouumpoucoovidrocomamão,conseguiuveracidadeestender-seabaixodele.
Silenciosaevazia,jaziasobocéuvioleta,osedifíciosdispostosordenadamente,umatrásdooutro,até o horizonte enevoado. Algumas das fachadas estavam iluminadas pelas luzes das avenidas, masnenhum som chegava daquelas profundezas. Era como uma cidade abandonada, cujos habitanteshouvessempartido,levandotodasaslâmpadas.OrastroluminosodeumFlugbahnflutuouvaziocontraocéu. No crepúsculo, as letras dos anúncios luminosos sobressaíam, frias:MOBIL, URANIA, IBM, ALTWIEUNL
Orapazolhouemvolta,comcalmasatisfação.Estavaaindafamintoecomocorposofrendo,masasalvoeprotegido.Comaquelespapéispoderia
fazerumacamapertodajanela.Olhariaparafora,paraomundo,todososdias,otempoquequisesseeninguémconseguiriadescobrirondeeleestava.
Sentou-seedeixouosmúsculosrelaxarem.Acimadetudo,estarlivreeterumlugarsódeleeraoquemaisinteressava.Estiveraterrivelmenteamedrontado,masagorapodiaverquetudoterminariabem.
Percorreu, com o olhar satisfeito, as paredes sombrias e oblíquas, que já tinham a confortávelfamiliaridadedeum lar, deitou-senochãoedeixouas lentasondasdo silêncio carregarem-noparaosono.
IVNoANODE1948,emNewYorkCity,RobertM.Shoemakerteveumadesagradáveltarefapelamanhã:
iraoescritóriodochefeparaserdespedido.Shoemaker,sentadopreguiçosamenteesemlavar-seemseupequenocubículo,tinhaconsciênciade
que não era um ornamento para a Dentweler, Cleaves&Osborne. Nem nas últimas seis semanas deempregosetransformaranumexemploaceitável.Averdadeéqueestiveramaisoumenosbêbadodurantetodootempo.
Shoemakerolhouacamisasuja,comafraldasaindodascalças.Depois,ossapatossembrilho,comos cordões desamarrados. Uma de suas meias era azul, a outra de losangos multicores, ambas comenormesburacos.Sentiuumaespéciedeviscosidade,masistonãopareciaincomodá-lo.
Saltosecoaramnolinóleo.MissMcKenzie,friaeesguia,numvestidoazulestampadodebolinhas,parounaportaabertaeolhou-oinexpressivamente.
—Eleestáesperandoporvocê—disseela.Shoemaker olhou para cima e inclinou a cabeça afirmativamente.Depois de ummomento, ela foi
embora,clic,clac,clic,clac.Vozesecoaramnocorredor;ouviu-seabatidasecadeumadasmáquinasdodepartamentodecontabilidade.Oraiodolugarestavacheiodeecos.
Shoemakertirouospésdocantodamesa.Eleschegaramaochãocomumsolavancoruidoso,queeradecertamaneirasatisfatório.Ospéseramreais,ochãoerareal.Ficoupensandonaquiloemcírculos,atédar-secontadequeestavasentadoali,semsemover,porumlongoespaçodetempo.NãodeviadeixarovelhoGordyesperando.
Shoemaker suspirou, passou a mão no queixo áspero e olhou vagamente para sua escrivaninha:máquina de escrever, duas pastas contendo notas do EZ Credit e contas da Nuway. Uma cesta paraentradadepapéis,suja,cheiadedocumentosamarrotados.Adesaída,vazia.Nãoconseguiuacharnelasoqueestavaprocurando.Olhouentãoagavetadebaixo.Achouumagarrafaachatada,comumapolegadadeuísqueescuronofundo.Shoemakergirouacadeira,colocando-sedecostasparaaporta,oquenãoeracostume, e considerouquenão seriamuitodelicadode suaparte tomarumúltimogole antes de ir aoescritóriodovelhoGordy.Seriamelhor,emvezdisso,mastigarsen-sen?
Eraumproblema interessante porque, deum lado, o velhoGordy sabiamuitobemque ele estavabêbado, sentindo-lhe ou não o hálito carregado, e por outro lado...Mas ele esquecera o outro lado epareceu-lhemais fácil liquidar a garrafa que colocá-la de volta na gaveta.Assim o fez, inclinando acabeçaparatrás.Entãolimpouabocacomascostasdamãoeatirouruidosamenteosoldadomortonacestadelixo.
Quando levantou-se, a escrivaninha girou abruptamente, e ele teve que espalmar a mão nela.Empertigou-se e respirou profundamente com a boca aberta, sentindo o hálito escapar como o de umdragão.PorDeus,nãoestavatãobêbadoquenãoconseguisseandar.Dirigiu-sedeterminadamenteparaaportaesóesbarrouoombroderaspãonoportalaopassar.
No cubículo seguinte, o jovemRobGilmore estava sentado ereto, com a camisa impecavelmentebranca,agravatacomumlaçoesmerado,umcachimbocurtoentreosdentes,soprandoanéisdefumaçacinza-azulada.Olhavaatentamenteparaamáquinadeescrever,fingindonãoverShoemaker.
Shoemakercumprimentou-oironicamenteeprosseguiu,tentandomanter-seeretonomeiodocorredorde linóleo verde.A porta de vidro fosco do escritório deGordy estava aberta. "R.GordonOsborne,
Vice-Presidente". Shoemaker bateu duas vezes com os nós dos dedos, parado no limiar, sentindo umsorrisotoloformar-senorosto.
GordyOsborne levantouosolhos:o rostocarrancudocuidadosamentebarbeado,ocabelogrisalhobemaparado,depaletó-sacoecachimbonaboca.Gordytambémfumavacachimbo,todomundofumavacachimbo.
—Oi,Gordy—disseShoemakereriu.Osbornepareciaaborrecido.—EntreBobefecheaporta.—Shoemakerempurrouaporta,dandopassosmiúdosefechou-acommaisruídodoqueesperava—
raiodetroço!—eencaminhou-separaacadeiradecouroverdeaoladodamesadeOsborne.Colocouasmãosnosbolsos,,sentou-seeespichouaspernas.
Osborneestavaesfregandoonarizcomosdedos.Shoemakersentiuumligeiromal-estar.HaviaumaespessaparededevidroentreeleeOsborneenãotinhaimportânciaqueosgarotosqueaagênciaestavaempregando atualmente parecessem engomados e fumassem cachimbos, ou que o próprio Shoemakerestivessebêbadoounão,emboraestivesse.Maseraumavergonhasentir-setãomalporcausadeGordy.
—Queéquehá,amigovelho?—perguntouShoemaker,sorrindo.Osbornesuspirou.—Bem,nãohámuitoquedizer,nãoé.O tomnão era interrogativo.Sua voz diminuiu no fimda frase.Correu os olhos pelomata-borrão
verde,comcantosdecouro,pelograndepesodepapéisdevidroverdeepelocalendáriodouradoasuafrente,sobreamesalustrosa.
—Falamosaesserespeitonasemanapassada,combinamosquevocê tentariamanter-sesóbrionofimdasemana...—LevantouosolhosparaShoemaker.—Suponhoquenãoénecessárioperguntar-lheporquenãosemanteve.
— Mas que inferno! — disse Shoemaker. Afundou-se na poltrona, olhando para os sapatos.Procuravaaspalavras.—Querodizer,quediferençafaz?
Osbornenãorespondeu.Shoemaker,tentandoaindaencontrarumamaneiradeexplicarqueaquilonãotinha importância, sentiu uma sensação estranha na boca do estômago. Era como se alguma coisadesagradávelestivesseparaacontecer.Asala,girandosuavementesobseuspés,deuumasúbitaguinada.OuviuOsborneexclamar:
—Uh!Virou a cabeça. Seu primeiro pensamento foi de que Gordy havia colocado uma máscara
carnavalesca. Nariz grande, olhos miúdos e brilhantes, como os de um macaco, sob as grossassobrancelhas.Rosnava,mostrando os grandes dentes amarelos.A cabeça e o rosto cobertos de pêlosásperos, depois os braços e o corpo... O terno desaparecera. O cachimbo também. Sem pescoço, acabeçainclinadaparaafrente...rosnavaeolhavaparaShoemaker.
Shoemaker deu um salto, sentindo um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo.A coisa que não eraGordyfezumruídoanimalescoeapanhouopesodepapéiscomumadaspatassujas.Entãolevantou-se,pulandoporcimadamesa.AúltimacoisaqueShoemakerviufoiopesa-papéisindoemdireçãodasuacabeça.Deu-seconta,então,dequetinhamedodemorreredecomoalgumascoisaseramimportantes,apesardetudo.
Maistarde,ohomemdeNeanderthalsaiupelocorredor,agarroueestraçalhouomensageiroAnthony
Boletti,quepassavaporali.Arremessou-separaasaladosdatilógrafos,fazendoasgarotasgritareseesconderdebaixodasmesasousubirnosarquivos.Nãoprocurousairparaocorredor,mascorreudeumladoparaoutro,provocandoumtumultoemtodooescritório,atéque,vinteminutosmaistarde,chegouapolíciaematou-ocomumtiro.
Nos jornais, a criatura era descrita como um homem-macaco que escapara de um parque dediversões.O desaparecimento deR.GordonOsborne, que nuncamais foi visto nesta Terra, foi dadocomo"inexplicável".
A comida na bandeja tornou-se uma massa fumegante, de algo verde-escuro, cheiroso e de
consistêncialodosa,compedaçosdeumasubstânciafibrosa.O bípede estava faminto, mas ficou repugnado pela aparência pouco apetitosa do troço e não
conseguiutocarnaquilo.Nasalaaolado,ouviuorangerdeumacolhernopratodemetal:apesardisso,afêmea estava comendo a ração dela. O guarda havia afastado a mesa da sua porta e a repreendidoseveramente.Fritznãoconseguiuouvirarespostadela,seéquehouve.Tentousorveraáguadatigelaquehaviaemsuabandeja,percebeuquesuabocarígidanãoopermitiaeatirouavasilhaaochãonumsúbitoacessodefúria.Logo,porém,sentiusedeeencheunovamenteatigelanatorneiradapia.Tentoulamberaáguacomalíngua,sentindodessamaneiraumcertoalívio,masnãoconseguiubeberosuficienteparamatarasede.Acabouporderramaraáguanaboca,meioseengasgandoantesdedescobrirque,paraengolir,precisavajogaracabeçaparatrás.
Seupeitoeaspernasestavammolhados,osespinhosmaciosfaziammechascomaumidade.Sentiuumaagudasensaçãodedesconfortoatéconseguirenxugar-secomumatoalha.Poralgumarazão,aqueleincidente trivial deprimiu-o fortemente. Tentou consolar-se pensando na carta não terminada sobre amesa mas, para seu desespero, constatou que não se importava mais. Sentou na sala interna e olhouestupidamenteparaaparede.
DespertoudaqueletorporpeloruídodepassosnoescritóriovazioecomavozcircunspectadeGrückchamando:
—Fritz!Emma!Ojovemguardarobustoentrou,viuqueatravessanãohaviasidotocadaelevou-asemcomentário.Obípede levantou-se, simplesmenteporquenecessitariademuita forçadevontadepara ficaronde
estava.Seguiuoguardaatéoescritório.OguardaestavamostrandoabandejaaGrückeWenzl,depéumaoladodooutro,Grückvolumoso
nasuacasemiramarromeWenzlesguionoseuguarda-póbranco.—Nãocomeunada,senhores.OsolhosdeWenzlbrilharam,masGrückdisse,expansivo:—Nãosepreocupe,nãosepreocupe,Rudi,tireistodaqui...Estamanhãnossohóspedenãoestácom
fome, énatural! Já!—Esfregouasgordasmãos rosadasumanaoutra eperguntou:—MasondeestánossaqueridaEmma?—Virou-se.—Emma?
Afêmeaestavanasoleiradoquarto,espreitando,tendovisívelsóumladodorosto.ObedecendoaordemdeGrück,avançoualgunspassoseentãohesitou.Tinha levantadoosbraços,cruzandoasmãossobreatesta,paraocultarocalombo.
—Mas,Emma—disseGrück,emtomrepreensivo—éestaanossahospitalidade?Somosmesmo tão indelicados?Éoprimeirodiadonossoamigo
aqui!Elaemitiuumsomgutural,fixandoobípedecomolhosamedrontados.—Vocêestáassustada,Emma,elelhecausamedo?—perguntouGrück,olhandodeumparaooutro.—Ah,minhaquerida,nãohánadaparatermedo.
Vocêsvãosergrandesamigos...sim,vocêverá!Alémdisso,Emma,oquemedizsobretodootrabalhoqueháporfazer?
Inesperadamente,afêmeafalou,emvozbaixaeabsurdamentehumana:—Leve-odaqui,porfavor,eeufareiotrabalhosozinha,HerrDoktor.
Olhounadireçãodobípedeeabaixouacabeça.— Não, não, Emma, isto não é direito. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Como você está muito
assustada,tãoapavorada,queremosquefiquealegre,Emma,evamosfazeralgumacoisaparaaliviarseumedo.(Wenzl,dê-meogiz).Fritzvaificareajudá-lanotrabalho...
—Não,não.—Sim,sim!Evocêvaigostar,espereeverá.(Ogiz,Wenzl...ah!).Wenzl falou energicamente com Rudi, o jovem guarda gordo, que corou, remexeu nos bolsos e
apresentouumpedaçodegizcor-de-rosa.Wenzlarrebatou-o,passando-aaGrück.—Olheaqui,Emma—falouGrücksuavemente—vamosdesenharuma linhanochão.Eumesmo
voudesenhá-lapoisquerovê-lasatisfeita...assim...Curvando-se com um grunhido, começou na parede entre as portas dos dois quartos e traçou uma
linhasinuosaatravésdasala,separando-aemduaspartesaproximadamenteiguais.—Agora—disseeledooutrolado,levantando-seemarquejantetriunfo—veja,Emma,destelado
ficaFritz.Correto,Fritz?—Comovocêquiser—replicouobípede,comindiferença.—Viu,elemedeuapalavra—falouGrückcomênfase.—Eeuadouavocê,Emma.Enquantoele
ficardesteladodasala,vocêtrabalharádooutrolado,enãoterámedo.Mas,seeletentarcruzaralinha,você temminha permissão para ficar assustada novamente, correr para seu quarto e trancar a porta.Compreendeu?
Afêmeaficouimpressionada.—Entãoestábem,HerrDoktor—falouporfim.—Muitobem!—exclamouGrück.Esfregouasmãoscomsatisfação.—Agorafaltamaisoquê?—
Olhouemvoltadasala.—Wenzl,mudeumadasmáquinasdeescrever,paraqueFritzpossausá-la.Eumapartedotrabalhotambémaquidestelado...NãomuitoparaFritz,,estoucertodequeEmmatrabalhamaisdepressa!—Ótimo!Ótimo!—Foisaindo,acompanhandodeWenziedo jovemguarda.—Atéapróximavez,então,EmmaeFritz.
Aportasefechou.Obípedefezmençãodesentar-seàescrivaninha.Ajoseuprimeiromovimento,porém,Emmarecuou,
comabocaabertademedo,asmãossobreocalombo.Istoespantouobípede,quedisse,irritado:—Nãovoumagoá-la.—Nãofalecomigo—pediuafêmea,fracamente.Agarrouocalombo.Seucorpotremia,levemas
perceptivelmente.O bípede, tentando ignorar os involuntários gritinhos e sobressaltos dela, dirigiu-se para a
escrivaninhaesentou-se.Tirouacapadamáquina,olhouparaapilhaderolosdoditafonenacestadeentrada,entãoabriuagavetadaescrivaninhaedeuumaolhadelarápidaparacertificar-sedequeacartaestavalá.Enquantoisto,afêmeapermanecianasoleiradoseuquarto,apavorada.
Sob seu olhar horrorizado, o bípede não se atreveu a tirar a carta inacabada da gaveta. Pegou oprimeirorolododitafone,colocou-onoaparelho,pôsosfonesnosouvidosecomeçouaescutar.
Um súbito ruído alto em seus ouvidos fê-lo dar um salto e tirar os fones.Depois de ummomentobaixouovolumee,cautelosamente,recomeçou.Umavozfalavabaixinho.Reconheceu-acomosendodeGrück,masnãodistinguiaaspalavras.Enrolouocarretelatéamarca"começo".Osomabruptovoltou,edestavezpercebeuqueGrückestavapigarreando.
Aumentouovolume.AvozdeGrückestavadizendo:— Atenção, Emma! Esta é a fita número dois de Alguns Aspectos da Biologia Extraterrestre.
Começo.Bibliografia.Birney,R.C.Bê-i-erre-ene-e-ípsilon,Emma.Filo e gênero na biotamarciana.
Revistade fisiologiacomparada,1985,50,162a167.Bulev,M.I.Bê-u-ele-e-efe,Emma.Lembre-se,não com vê, como da última vez! Estudo preliminar do natator veneris schultzii. Tratados teóricos,1990,151652a1653.Cooper,J.G....
Obípederetirou,irritado,osfonesedesligouoaparelho.Osfonesnãoapertavammuitoasorelhas,masnãoestavahabituadoeficounervoso.
Afêmeaafastou-seunspassosdasoleira,masquandoelelevantouosolhos,voltouapressadamente.Obípedepraguejou.Logoporém, relutante, voltouo carretel doditafone ao início e pôsos fones
novamente.Meteuopapelnocarrodamáquina,ligouoaparelhoecomeçouatentardatilografaroqueouvia.Maslogonasprimeiraspalavrascometeutantoserrosquerasgouopapeleatirou-onocesto.
Ouviu-se um gritinho abafado da fêmea, que havia chegado até o centro da sala. Agarrando ocalombo,recuoudoispassos.
—Nãoolheparamim!—esganiçou-se.—Entãonãogrite—retrucouobípede,aborrecido.Colocououtrafolhanamáquina.—Nãogritareisevocênãoolharparamim.Eleergueuosolhos.—Quepossofazer,semesmoquandonãoolhovocêgrita?Anãoserporumoutropipilo,maisumsuspiroqueumgrito,elanadarespondeu.Obípedevoltouao
trabalho.Apertandoumatecladecadavez,compenosadiligência,conseguiupassarporcincoverbetesdabibliografia,antesdecometerumerro.
Jogouafolhaforaerecomeçou.O tempo passou. Finalmente percebeu que a fêmea atravessara a sala até chegar à sua mesa.
Concentrou-senotrabalhoenãoolhou.Poucosminutosdepois,ouviuoruídodamáquinadeEmma.Suadatilografiaerasuaveerápida.Ocarroiaatéofimdalinhaevoltava,começandoumanovalinha.
Raivosamente, obípede apertouuma tecla com tamanha forçaque ela repetiuo toque.Arrancouapágina.
—Vocêestáestragandotodooseutrabalho—disseela.Fritzergueuosolhos:asmãosdelapularamparaocalomboebaixou-asnovamente.
—Nãopossofazernadadestejeito—respondeu.—Nuncaaprendeudatilografiadireito?—Não.Querodizer,sim—Obípedeapertouseustrêsdedos,frustrado.—Euseidatilografar,mas
esteanimalnão.Nãopossofazerasmãosdeletrabalharem.Elaolhouparaele,comabocaligeiramenteaberta.Eraóbvioquenãohaviaentendidoumapalavra.Obípederesmungoufuriosoevoltouaotrabalho.Poucodepois,ouviuoruídodamáquinadeEmma
recomeçar.Durantemuitotemponenhumdosdoisfalou.Insistindosemesmorecer,obípedeconseguiu,depoisde
umahora,completarumapágina.Tirou-adamáquina,colocou-anacestadesaída,comumasensaçãodetriunfo.Olhandoparaa escrivaninhada fêmea, ficouumpoucodesconcertadoaonotarquea cestadesaídadelaestavarepletadefolhasdatilografadaserolosdefitasequeacestadeentradaestavavazia.
Suasmãosecostasdoíampornãoestaremhabituadasàqueletrabalho.Sentiu-senovamentecansadoe abatido. Como iria terminar aquela carta, uma carta tão importante, com a fêmea o tempo todo namesmasala?Talvezseele,deliberadamente,aamedrontasseoutravez...
Opensamentofoiinterrompidopeloruídodaportaexternaabrindo.Emmaolhouesperançosamente.Obarulhodasuamáquinacessara.Cobriu-acomdoisrápidosmovimentoselevantou-se.
Grückentrou,sorrindoeinclinandoacabeça.Wenzlseguia-o,sombriocomosempre,efinalmenteorechonchudoguarda,comseucarrinho.
AexpressãodeGrückmudouligeiramentequandoolhouparaobípede.
—Porfavor!—bradouele,gesticulandocomasmãosgordas.Sementendermuitobemoqueacontecera,obípedelevantou-seeempertigou-seatrásdasuamesa,
comoEmmafizeraaoseulado.—Ótimo!—exclamouGrückalegremente.—Excelente!Comovê,Fritz,umpouquinhodeeducação
etudoficamelhor.Voltou-separaEmma,examinouoconteúdodesuacestadesaídaesorriuaprovador.—Admirável,Emma,bomtrabalho.Emmareceberátrêsbombonscomojantar!Ouviu,Rudi?—Perfeitamente,HerrDoktor—respondeuoguarda,comumacurvatura.Colocou trêsgrandesporçõesdeumasubstância secaverdepálidanumpratoque jácontinhauma
espéciedeensopadomarrom,levando,tudoparaoquartodeEmma.Quandovoltou,Grückestavaexaminandoacestadesaídadobípede,comumaexpressãoofendidade
incredulidade.—Ésóisto,Fritz?_—indagouGrück.—Otrabalhodeumamanhãinteira?Vocênãopodesertão
preguiçosoassim!Obípedemurmurou:—Fizomelhorquepude.Grückabanouacabeçatristemente.— Não há bombons para Fritz hoje, Karl. Que vergonha, hem, Wenzl? Pobre Fritz, não ganhou
bombons.Sentimosmuito,Fritz.Masdar-lhebombonsporestetrabalhoseriaumainjustiçacomEmma,quetrabalhoutanto!Certo,Wenzl?
Wenzl,fixandoobípedecomumolharfrioesempena,nadadisse.Grückprosseguiu:—Masestatarde,sehouveralgumamelhora...bem,vamosver!Atélá...—Apanhouaúnicafolhana
cesta de Fritz, examinou-a e estalou a língua:— Incorreto! Incorreto!— disse, batendo com o dedogrossonapágina—Aquiháerros,Fritz!Tãopouco trabalhoe tãomal feito!Eonde...onde estão ascópiasemcarbono?
—Ninguémdissecoisaalgumasobrecópiasemcarbono—replicouobípede,furioso.—Quantoàdatilografia, já lhedissequeocorpodesteanimalnãomeéfamiliar.Euqueriavê-lodatilografarcomdedosalheiose fazê-locorretamente.—Sentiuuma ligeiravertigem,masprosseguiugritando, semsepreocupar com o que estava acontecendo. — Pelo que me importa, vocês podem pegar este seuabominávelZoológico—continuou,sacudindoopunhonorostodeGrück—eirpara...
Asalaestavaseinclinandoabsurdamenteparaaesquerda:paredes,Grück,Wenzl,guarda,Emmaetudoomais.Agarrou-seàmesa,tentandofirmar-se,masestapulouparacimatraiçoeiramente,dando-lheuma pancada forte no rosto.Ouviu os gritos deGrück, os do guarda, e a voz pipilante de Emma emsegundoplano.Perdeuoconhecimentoepenetrounaescuridão.
—Continuedeitado—disseumavozrabujenta,mastranqüilizadora.O bípede olhou para cima e reconheceu o rosto enorme de Prinzmetal, o cirurgião cujos grandes
olhoscastanhospercorriam-lheocorpo.Abocamoledomédicoestavanervosamentecrispada.—Choqueetensão—dissePrinzmetalporsobreoombro.Obípede localizouentãomaisduasou trêspessoasdepéno fundodoquarto.Percebiaagoraque
estavadeitadonobelichedoúltimocompartimentodasuajaula.Sentia-securiosamentelânguidoefraco.Estátudobem—continuouPrinzmetalcalmamente.—Vocêperdeuaconsciênciaporummomento,
foisó.Istopodeacontecercomqualquercriaturamuitonervosa.Piquedeitado,Fritz,descanseumpouco.Seurostovirouesumiu.AvozdeGrückfezumapergunta.Prinzmetalrespondeu:—Nada...Amanhãestarátãobemquantoantes.Umarrastar-sedepéssoounochãodeconcreto.Obípedeouviu,maisafastado:
—Ébomque não seja uma coisa orgânica,HerrDoktor.Que sabemos, afinal de contas, sobre aconstituiçãointernadestesanimais?Nada,absolutamente.
AvozdeWenzlfaloubreveesecamente:—Quandotivermosaoportunidadededissecarum...Foram-se todos.Obípede ficoudeitado,quieto, fixandoo tetodescorado.Ouviuaporta fechar.O
silêncio eraquase total, quebrado somentepelasnotas longínquasdeumamúsica suave,quevinhadealgumlugarláfora.NenhumsomchegavadasuasalaparticularoudosaposentosdeEmma,aolado.
Porfim,obípedepôs-sedepé.Aliviou-senopequenobanheiroebebeuágua.Percebeuqueestavafaminto.
A bandeja encontrava-se sobre a mesa de armar perto da cama. O bípede sentou-se e comeu oensopado marrom-acinzentado. Então apanhou uma das duas porções arredondadas do troço secoesverdeado que estava ao lado da tigela: os "bombons" de que Grück tanto falara. O bípede pôscuidadosamenteacoisanabocaeparou,incrédulo.Aquelamassa,queeraquasetãosecasobrealínguaquantosuaaparênciasugeria,tinhaumsabordeliciosoefino,completamentediferentedetudoquantoobípede já provara. Não era doce nem salgado, nem amargo nem ácido. Seus olhos se fecharaminvoluntariamenteenquantoachupava,umedecendo-alentamente,fazendo-aderreter-seemsuaboca.
Quandoacabou,comeuaoutraeentãosentou-seimóvel,comosolhosaindafechados,saboreandoamaravilhadaquelainesperadacoisaboaquelheacontecera.Seusolhosseencheramdelágrimas.
Comoerapossívelque,mesmonoseucativeiro,noseudesespero,pudessehavertantaalegria?OedifíciocentraldoZoológicodeBerlim,construídoem1971peloarquitetoHerbertMedius,era
uma encantadora amostra de estilo arquitetônico do passado século XX,mas tinha inúmeros defeitosirremediáveis.For exemplo, a sala de jantar no terraço ajardinado, usadaporGrück e sua equipe emocasiõesformais,foracobertaporumaarrojadaabóbadatransparente,naqualforamcolocadosarcosdevidrocolorido.Emdeterminadasépocasdoano,aslongasestriasmulticoloridasdacúpula,emvezdeincidirem diagonalmente nas paredes de ébano e limão, caíam diretamente sobre as mesas de jantar,colorindo o que estava nos pratos. As cortinas, colocadas para proteger o interior da cúpula, nuncasatisfizeram sua finalidade e estavam agora, como de costume, esperando ser consertadas.Conseqüentemente,emboraobauernwursteopurêdebatatasdoHerrDoktorGrückconservassemosricos tons demarrom e branco, comos quais tinhamvindo da cozinha, oboeuf au jus de Prinzmetalcoloria-sedeumvermelhoescuro,comosetivessesidocortadonaquelemomentodacarcaçasangrenta.OpratodeRauschficouazulescuroeodeWenzleradeumverdepeçonhento.Osvisitantes,Umrath,doEuropa-News, PurserBang, doSpaceService, e o administradorNeumann, haviam sido colocados, éclaro,emáreasnãoatingidaspelascores,excetoquandoofachodeluzvermelhaquecoloriaopratodePrinzmetalincidiaocasionalmentesobreocotovelodeNeumann,quandoestelevantavaogarfo.
Wenzl, como sempre, estava empertigado e silencioso no seu lugar. Seus olhos sardônicos nadaperdiam,nemaforçadarelutânciacomqueRauschlevavaseusbocadosdecomidaazulàboca,nemoexageradomovimento do braço de Prinzmetal que, à cada garfada, tirava o alimento da luz vermelhaescura antes de levá-lo à boca. Mas Wenzl olhava para seu jantar e via tudo verde: cortavametodicamente,comafacanamãoverde,levavaopedaçocomogarfoverdeàboca,ecomiaoverde.
Umrath, o homem doEuropa-News, tinha um rosto quadrado e vermelho, com olhinhos astutos ecíliosclaros.
Falou:—Estejantarnãoestámau.Cumprimenteochefe,HerrDoktor.Seéassimqueosenhoralimentaos
ani- ̂maisaqui,devoconfessarqueelesvivembem.|—Alimentarosanimais!—gritouGrückjovialmente.—Ha,ha,meucaroUmrath!Não,naverdade,
temos | uma cozinha própria para isso, garanto-lhe! Para alimentar mais de quinhentas espéciesdiferentes,inclusivealgumasnão-terrestres,nãoébrincadeira,acredite-me!Porexemplo,osBípedesdeBrecht.Suacomidadeveserricaiemenxofreesaisdeberilo.SetivéssemospostoissoaquiInamesa,ossenhoresseriamembrevetrêshomensdoentes!
—Wenzlcomeriasempestanejar—disseNeumann,idosoadministrador.Eracalmoemoreno,comumarcansadodehomemdenegócios.—Ha!Éverdade!—gritouGrück.—NossoWenzléfeitodeferrofundido!Masosbípedesnão,
senhores.Sãodelicados!Exigemcuidadosconstantes.—Edinheiro—acrescentouNeumannsecamente,espetandoogarfonumpedaçodecarnedoprato,
noqualmaltocara.—Éverdade—disseGrücksobriamente.—Sãoraridadesevêmdeumadistânciadedezoitoanos-
luz.Nãoseatravessadezoitoanos-luzparaumpiquenique,hem,PurserBang?Um som sussurrante, vindo de um dos cantos, distraiu a atenção dos presentes por ummomento.
Cabeçassevoltaram.Daobscuridadesurgiualgopequenoecommuitaspernas,comapeledeumazulcintilante.Fitou-oscomseusfaiscantesolhinhosvermelhosedepoisentrouporumburaconorodapé.Ospresentesficaramolhandosemqualquercomentário.
O homem do espaço inclinou a cabeça. Era alto e taciturno, de rosto magro e parecia mais umporteiro que um intrépido aventureiro. Cortava cubos exatos de carne em seu prato e mastigava-osdemoradamenteantesdeengolir.
—Entãoporquegastartantocomosbípedes,Grück?—indagouUmrath.—Sãointeressantesmasseráquevalemisto?
— Meu caro Umrath — respondeu Grück, largando o garfo, — devo dizer-lhe que os bípedesrepresentamosonhodaminhavida.Sim,confesso,éverdadequeeusonho!Afinaldecontas,vivemospararealizaralgonestemundo,paraatingirumameta!Eisporque,caroUmrath,planejeieescrevicartasdurantecincoanos,adquiridoispássarosdesacrifíciodeAltairenãosepodemencionarodinheiroqueinvesti...—OlhouparaNeumann,quesorriu,levemente—paraadquirirnossomaravilhosonovobípedeFritz.Estáaqui,comsaúdeeésexualmentemaduro.Játemosnossobípedefêmea,Emma.NenhumoutroZoológicosobreaTerratemmaisdeum.Riamdemimsequiserem,massóGrück,comseuZoológicoemBerlim,serásemprelembradocomooprimeirohomemaprocriarbípedesnocativeiro!
—Algunsdizemqueistonãoépossível—ponderouUmrath.—Sim,eusei!—gritouGrückdivertido.—Nuncaseprocrioubípedescomsucessonocativeiro,
nemmesmonoPlanetaBrecht!Eporquenão?Porqueatéagoraninguémconseguiureproduzircomêxitoascondiçõesessenciaisdomeioambientedeles.
—Eessascondiçõessão?...—perguntouNeumann,comfatigadapolidez.—Éoquevamosdescobrir!—respondeuGrück.—Creiam-me,senhores,játenhoumacoleçãode
estudos sobreoPlanetaBrecht e especialmente sobreosbípedes.Nãoháoutramaior noGalacticum,inclusivenoArquivodeBerlim!Eaquientrenós,senhores,PurserBangestáemcontatocomumgrupodo Planeta Brecht, apto a fazer estudos fisiológicos sobre os bípedes! Esse grupo nos dará valiosasinformações...atravésdenossobomamigoPurserBang!
Estendeu amão e bateu namanga de Bang afetuosamente. O homem do espaço sorriu levemente,piscouevoltouacomer.
—Bem,entãoumbrindeaosbípedes!—disseUmrath,erguendoocopodevinho.Grück, Prinzmetal, Rausch e Bang beberam. Neumann apenas levantou o copo, baixando-o
novamente.Wenzl,friamenteaprumado,continuouacortarmetodicamenteeacomersuacarneverde.—Apesar disso— acrescentouNeumann após ummomento,— parece que em grande parte vai
dependerdeFritz.
VNAMANHÃdoseuquartodianaloja,orapazdesceumuitocedo,comodecostume,quandoogrande
recinto estava quase vazio. Uma ou duas pessoas o olharam com curiosidade quando passou pelasgalerias, porém continuou a andar e ninguém falou com ele. Os vendedores estavam ocupados, noscompartimentosdeparedesdevidro,colocandonovamercadoria,abrindoefechandoasportasdemetal.Os serventes, emuniformescinzentos listrados, empurravamsuasmáquinas zumbidoraspelo assoalho.Vozesecoavamsolitariamentenotetodistante.
O rapazmatou a sede numbebedouro entre amercearia e a galeria de arte. Seguiu, então, para aseçãodepomicultura,comsuasmontanhasdefrutasnasvitrinas,parafazersuaprimeirarefeição.Nesseínterim, as portas externas haviam sido abertas, começou a se ouvir umamúsica suave e as pessoasprincipiaramapercorrerasgalerias.Orapazpagousetentapfennigsporumsacotransparentedelaranjase um pacote de bananas. Pôs-se a vagar pela loja, comendo as bananas e chupando as laranjasalternadamente.Quando terminavaumafruta,metiaacascacuidadosamentedentrodosacoque levavasobobraço.
Uma vez, na tarde do seu segundo dia, o rapaz aventurou-se a ir novamente até a avenida,mas amultidão,obarulhoeasluzesoperturbarameelevoltouquaseimediatamenteparaaloja,commedodechegar e encontrar as portas fechadas. Estar lá dentro era bemmelhor. Tambémhavia ruído,mas eradiferente,menosassustador.Aluzerasuave,friaenãolheferiaosolhos.Alémdisso,encontravalátudooqueprecisava:comida,bebida,diversão.Algumasvezes,perdia-se,tãograndeeraaloja.Masachavasempreoseucaminhoseguindoosfachosdeluzmóveisdoteto.
Quandoviaalgumdoshomensdeuniformeazul,olhavaemfrenteatéqueelepassasse.Aprenderaqueoshomensdeazulnãooperseguiriamseelenãoescalasseagradenemtirassealgodasvitrinassempagar.Eagoraelepagavasempre.
Quanto à grade, subia por ela todas as noites, pois não conseguira encontrar outro caminho. Foranotadoduasvezes,eoshomensdeazulcorreramegritaram,fazendosoaroalarma.Masninguémpôdesubir atrás dele..Assim, não tinha realmentemuitomedodoshomensde azul.Mas, apesar disso, nãogostavadeficarmuitopertodeles.
Ainda havia coisas desconfortáveis no seu corpo que constantemente o preocupavam e às vezeschegavam a alarmá-lo por sua intensidade. Por exemplo, havia algo que sua boca e sua gargantadesejavamfazer.Ficavaexperimentandodiferentesespéciesdecomidaebebidaeaestranhasensaçãopassavamas voltava sempre. Pêlos escuros e anelados começaram a crescer-lhe pelo rosto e queixo,provocando-lhe comichão. Ainda assim sentia-se bemmelhor que antes. Descobrira que, se tirasse aroupa e os sapatos à noite, ficavamais fácil suportá-los sobre o corpo no dia seguinte.Quando suasroupasíntimasficaramsujas,navéspera,compraraoutrasnumamáquinaedescobriraqueaquelenovotecido,macioelimpo,erainesperadamenteagradávelsobreapelenua.
Passando pela ala dos presuntos, viu um homem de rosto vermelho, que olhou-o asperamente ecomentoualgoaoouvidodeumhomemmagroepálidoaseulado.Orapazficouassustado.Aquelerostovermelhoparecia-lhefamiliar.Seriaomesmoque?...
Olhouparatrás.Ohomemderostovermelhoeseucompanheirohaviamdesaparecido.Aliviadomasaindainquieto,orapazdobrouumaesquinaeentrounaseçãodeVegetaisFrescos.Nofimdagaleria,aodobraràesquerda,viu-sefaceafacecomohomemderostovermelho.
—Olheaqui!—grunhiuohomem.—Meuamigoquerlheproporumnegócio.Vamosconversararespeito,estábem?
Orapazolhouemvolta.Ohomempálido,cujoslábiosequeixoestavamcobertosdepêloscomoosseus,pararáportrásdeleesorria.Orapazencostounabarraca.
—Nãotenhamedo—disseohomempálidoameiavoz.—Nãosomosdapolícia,entende?Vamosconversar,sim?Vocêestáinteressadoemganharalgumdinheiro,não?
—Dinheiro?—perguntouorapaz.— Legítimo— disse o homem vermelho, fazendo tilintar algumasmoedas namão gorda.—Um
camaradainteligentecomovocêpodeficarrico,nãohádúvida.Pegouo rapazpelobraçoesquerdo,enquantoooutro lhe seguravaodireito.Os trêspuseram-sea
caminharpelagaleriacentral,nadireçãodasaída.Chegandonaportadarua,orapaztentouvoltaratrás,masestavapresopelosbraços.
—Nadadisso—murmurouohomemderostovermelho.—Nósnãosomosdapolícia,maspodemosentregá-loaelafacilmente,entendeu?
Levaram-noatéumcafé,entraramos trêsemumaestreitacabine,como rapaznomeio.Ohomempálido,quedissechamar-seHorst,tinhaorostofinoevelhacoegrandesolhosesverdeados.
OhomemderostovermelhosechamavaPutzi.Umavezsentados,começouafalargesticulando:—Sabe,tenhodeirembora—disse.—Vocêbemquepoderiacuidardisto,Horst...—FiqueatéqueTrudlchegue—retrucouohomempálido.Apertouobotãonopaineldecontroleevirou-separaorapaz,colocandoobraçoemtornodoseu
ombro.—Poiséisso—disse.—Osenhorsabeescalarmuitobem.Jálhedisseram,Herr...?—MartinNaumchik,senhor—completouorapaz,nervoso.Eraincômodoestartãoimprensadoentreosdoishomenseterumbraçoemvoltadosombros.—Nãome chamede senhor— falouHorst, sacudindoo braço— somos todos amigos aqui, não
somos?Agora diga-me,Martin, você gostaria de ganhar quinhentosmarcos, trabalhando somente umatarde?
—Obrigado,gostariamuito—respondeuorapaz.Horstfitou-ocomosolhossemicerradoseretirouobraço.
—Entãoéassim,hem?Éumcarafrio,hem,Putzi?Masvamosdevagar!Diga-me,Martin,oquevocêfaziaantes,alémdeafanarcoisasnaElektra?
—Sótrabalhodeescritório,HerrHorst.—Trabalhodeescritório,vejasó!Emoutraspalavras,vocêéumamador,Martin,nãoé?Quinhentos
marcosémuitodinheiro...demaisparaoprimeirotrabalhodeumamador,talvez.Noentanto...—Horstfranziu os lábios.—Bem, vamos esperar para ver.Quemais preciso dizer?—Sorriu.—Está tudoacertado.Aquitemminhamão.
Eapertouamãodorapaz,comfirmeza.Aportadotransportadorseabriu.Dentrohaviamtrêscopinhoscontendoumfluidomarrom-escuro,
queHorstdistribuiucomcuidado.Putzibebeudeumsógole.Orapazprovoucomprecaução,achandoogostodesagradavelmenteáspero.Alémdisso,aemanaçãoenchia-lheosolhosd'água.
—Trudlchegou—dissesubitamenteohomemderostovermelho—vouindo,Horst...sevocênãoseincomoda,discutiremosisto...
ConversaramummomentoemvozbaixaealgopassoudasmãosdeHorstparaasmãosdePutzi.Estesaiuentãodacabineeumaesbeltajovemdecabeloscastanhosentrou.
O rapaz bebericou novamente, descobrindo desta vez que o gosto não era assim tão ruim e que olíquidoaqueciaagradavelmenteseuestômago.
—Bem,Trudl,eisonossotrepador.—disseHorstanimado.—Martin,estaéTrudl.
—Comovai,senhorita?—perguntouorapazcortesmente.Elafitou-osemexpressãoedepoisolhouHorst,porcimadele.—Temcertezadequeéele?Putzivenderiaaprópriaavópordezmarcos.—Nãosepreocupe,éele—falouHorst,irritado.—Agora,diga,Martin,ondevocêsemaloca?—Senhor?—Nãosefaçadetolo...ondevocêmora?—Oh.Orapazhesitou.Porumarazãoqualquer,nãoqueriarevelaraHorstopequenopatamarnotopoda
Elektra.—Tinhaumquarto,masesquecidepagaroaluguel,HerrHorst.Ohomemeajovemseentreolharam.—Serámelhorentãoqueelevenhaconosco—falouHorst.—Podeficaremsuacasa.A jovem deu de ombros. Levantaram-se e o rapaz engoliu o que restara da sua bebida para não
esperdiçá-la.Aoatravessaremapraça,nadireçãodatabuletaquedizia"UNTERFÜHRUNG",pareceu-lhequealuzsuavedamanhãsobreacalçadaeramuitoagradáveleseusdoisnovosamigosextremamenteamáveiseinteressantes.
Emergiramdaestaçãosubterrâneaepuseram-seacaminharjuntosnumaruaestreita,entrefileirasde
prédios brilhantemente decorados com quadrados coloridos, laranja, preto, amarelo, malva, verde,marfimeazul-celeste.Orapazbalançavanervosamenteacabeça.Aviagemnocarro-tuboaborrecera-oporqueoveículoestavaapinhadodegente:tiveramqueficardepé,penduradosnaparedeporalçasdeplástico,entaladostãoapertadamentenamultidãoquemalconseguiamrespirar.
Na rua, porém, era muito mais agradável; o ar era puro e transparente e as cores brilhantes dosedifícioslhefaziambem.Gostariadeparareficarolhandoparaelas,masHorsteamoçaoseguravampeloscotovelos,fazendo-oapressar-se.
Dobraramaesquinaeatravessaramarua.Horstparouabruptamente.—Olhesóaquilo!—dissecomvozirritada.O rapaz olhou. No meio da rua transversal, uma enorme máquina, com um guindaste, estava
estacionadadoladoopostoaumdosedifícios.Presaaoguindaste,umadasseçõesdaparededoprédiocomasjanelasetudo,estavasendoretiradaepostadelado.Ocorpodamáquina,umagigantescacaixademetalalaranjado,tinhasidoerguidaporumamaciçacolunadeaçoeoseuladoestavaencaixadonumburaconaparede.Gritosecoaram,vindosdecima.Omaquinistainclinou-separaafrenteefezalgo.Amáquinacomeçouaafastar-selentamentedoedifício,sobresuasgrandesrodasdeborracha,girandoaomesmo tempo.O rapazpôdeverqueo interiordacaixa estava repletodemobília, tapetes equadros,enquantooscômodosexpostosdoprédioestavamvazios.Trêshomensdemacacãobrancoesperavamnaaberturadacaixa.
—Venha—disseHorstepuseram-seaandarnovamente.—Elesnãodevemtrabalhartãopertodasuamaloca—murmuroueleparaTrudl.—Sabemmuitobemquevocêmoranestarua!
—Quemé?Stammeseugrupo?—perguntouela,inclinando-seligeiramenteparafalarporcimadacabeçadorapaz.
—Sim,éaquelemalucodeumafiga!—Porquevocênãofalacomele?Horstresmungoucomraiva.—Umteimosocomoele...Queadianta?Ohomemnacabineolhouquandoelesseafastavamepassouotocodocharutodeumcantodaboca
paraooutro.Masnadadisse.Acima,oguindastemovia-senovamenteparaoprédio.Aseçãodaparede,presanaextremidadedoguindastepordoisimensosdiscosdemetal,balançou,sacudiuevoltouaoseulugar.Oguindaste tinhaopaineldecomandonaparteposteriordamáquina—viuo rapaz—eoutro
homemdemacacãobrancoomanobrava.Queria parar e ver a parede ser recolocada e as portas damáquina fechadas,masHorst puxou-o
rudementepelobraço.—Venha!Dobraramsubitamentenumvãoaoladodeumatabacaria.Nofimdeumsombriocorredor,portrás
daescada,desceramalgunsdegraus.Trudlabriuaportadescascada,acendendoasluzesaoentrar.Horstafundou-senumsofáforradodeazul,aoladodeumabonecadepanocomosbraçoseaspernas
desengonçados.Asalaerapequena,masagradavelmentedecorada.Haviamuitasalmofadasredondasnosofáepelochão.Aslâmpadastinhamabajurescor-de-rosa.
—Sente-se,sente-se—disseHorstirritadamenteparaorapaz.—Trudl,peloamordeDeus,arranjeumascervejas.
A jovem colocou a bolsa sobre uma cadeira e dirigiu-se a um nicho onde fora encaixado umminúsculo fogão. Quando não o usava, cobria-o com uma chapa metálica ondulada, pintada commargaridasamarelas.
—Vocêsepreocupademais—disseelasobreoombro.—Preocupa!—repetiuHorst.—Alguémtemdesepreocupar.Senãofosseeu,todosvocêsagora
estariampresos—Coçouirritadamenteabarbacurtaeobigodedesleixado.—Preocupademais!Eévocêquemodiz!
O rapaz sentara, desajeitado, na beira de uma cadeira estofada em veludo verde e olhava para aboneca.Ocabeloeradelãamarela,osorrisopintadoeestavacomumaroupadearlequim,delosangosvermelhos e verdes. Os olhos eram pretos: botões brilhantes costurados no rosto. Tinha um grandecírculo rosado em cada face. O sorriso, os braços e as pernas compridas, davam-lhe um aspectoamigávelesuave.Orapaztevevontadedeapanhá-laesegurá-la,masnãosabiaseseriacorreto.
—Estejogoéperigoso!—disseHorst,curvando-separaafrente.—Stammdeviasaberdisso!Éummilagrequenãootenhamagarrado!
Trudlvoltou,trazendocanecasnumabandejaquecolocousobreumamesabaixaemfrenteaHorst.—Vamos,bebaenãofiquetãonervoso—disseela.—Elesjáforamembora.—Sentou-senobraço
deumacadeira,inclinando-separapegarumcigarronumacaixa.Levou-oaoslábios,sustentandooolhardorapazcomexpressãoenigmática.
—Elesnãopodemsertãoespertosquantovocê,Horst,porissoesqueça.—Bem,éverdade—retrucouHorst,parecendomaisalegre.Apanhousuacanecaebebeucomsofreguidão,sugandoruidosamenteolíquido.Orapazprovouasua,
masestavafria,amargaetinhaespuma.Colocouacanecadenovosobreamesa.—Muitobem,vamosaosnegócios—disseHorst,reclinando-se.—Dê-meaqueleenvelope,Trudl.A jovempegouabolsa com lentidão, apanhouumenvelopecheiodepapéis e entregou-oaHorst.
Esteespalhou-ossobreamesaeseparouum.Atirou-oporcimadamesa,aorapaz.—Vocêconseguiriaescalaristo?—perguntou.Orapazpegouopequenoquadradodecartolinaeexaminou-osementendermuitobemoquequeriam
dele.Era a fotografia de uma casa de pedras cinzentas, com três andares e teto de ardósia inclinado,cobertodechaminés.Sóumaentradaeravisível,sobumabaixaporte-cochère.Sobressaindonoúltimoandar,via-seumasacadadeferrotrabalhado,comportasfrancesas.
—Eentão,vocêpode?—Escalaracasa?—perguntouorapaz,incrédulo.—Subirnaquelasacada—disseHorst,inclinando-separamostrarolocal,comapontadoindicador
sujo.—Vocêpodefazeristo?O rapaz olhou novamente a foto, estudando a alvenaria, as saliências e os peitoris.Nunca tentara
escalarumacasa,porémaquelanãolhepareciaespecialmentedifícil.
—Sim,HerrHorst,acreditoquesim.—Certo.Agoradeixe-memostrar-lheoplano.Horst colocou um cigarro na boca e começou a explicar, à medida em que tirava os papéis do
envelope,desdobrava-oseosespalhavasobreamesa.Umdelesestavacobertoporlinhaspontilhadasepequenosquadrados,cuidadosamentedesenhadosa
lápis.— Aqui está a casa— falou Horst, apontando para um dos quadrados.— Pertence a um certo
cavalheiro,cujonomeprefironãomencionar já.Acontecequeumamigomeuconheceumagarotaquetrabalhalácomoarrumadeira.Alémdeserricocomoumporco,essecavalheirotambémconheceoqueébom.—Opolegar e o indicadordeHorst se esfregaram sensualmente.—Eaqui está umaautobahnsubterrânea.—-Apontouumalinharetapontilhada.—Hásaídasdeemergênciaaquieaqui,mastodaspossuemsistemasdealarme:aWaponospegaráemcincominutos.Oque temosa fazerépenetrarnolocal a luz do dia e nos esconder... aqui. — Seu indicador mostrou um ponto com árvores toscasdesenhadas,àesquerdadopequenoquadrado.Trudlmudaradelugar,sentando-seaoseuladonosofá,apoiandooqueixonumadasmãos,comocabeloescurocaindo-lhesobreorosto.Suaexpressãoeradeenfadobemeducado.
—Vocêdirigiráofurgão—falouHorst,voltando-separaela.—Naturalmente—respondeuajovem,comvozarrastada.Horstpareceunãoouvir.Mostrououtralinhapontilhada.—Vocêdeveráestacionaraqui,exatamenteentreotúneleacasadeIpolitov.Estelocalestávazio,
poisninguémusaotúnel.Aí,enquantonósentramos,vocêfaráumavoltaaqui—seudedopercorreualinha—atéoentroncamentoedepoisatéotúnelOberkeller,estacionandoaoladodabarreira.Simples.
—Éclaro—concordouTrudl.—Agora—disseHorstasperamente.Colocouopapeldeladoeapanhandooutro.—Aquiestáo
interior da casa. — A planta mostrava três caixas desenhadas, com outras divisões internas. Horstindicouumadelas,noalto.—Segundoandar.Vocêsubiráaqui...atravessaráestasduassalas...descerápelaescada.Primeiroandar.—Horstmostrou,rapidamente,asegundacaixaepassouàterceira.—Aquiéotérreo.Vocêtomaráestecaminho,atravésdasaladejogoedosalão,atéovestíbulo.Abriráaportadafrente,nósentraremoseentãoseutrabalhoestaráterminado...nósfaremosoresto.—Ergueuosolhos.—Entendeu?
—Sim,HerrHorst—disseorapazsemconvicção.Jáviraalgunsmapasantes,masnãodecasas,easpequenascaixaselinhasnadasignificavamparaele.Mastudopareciamuitosimples:escalar,descerpelosdiversosandareseabriraportadafrente.
—Tudocerto,então.Deacordo?—Horsttomouamãodorapaz,apertou-avigorosamenteelargou-a.—ótimo.
Olhourapidamenteparaorelógioebateunosdentescomaunhadopolegar.—Nãoadiantaesperar—murmurouelevantou,enfiandoasmãosnosbolsos.—Vouencontrar-me
comGeorgeOtto—disse.—Esperempormimaqui...nãoodeixesair,ouviu?—Vocêpretendeagiraindaestanoite?—perguntouTrudl.—Sim,estanoitemesmo.Quantomaisesperarmos,maiorachancedepôrtudoaperder.Arranjarei
ofurgão,preparareitudo.Aportasefechouatrásdele.
VIORAPAZdeuumespirro.—Fiquequieto!—sibilouGeorg,voltandoacabeçaredondanaescuridão.—Nãopossomecontrolar—sussurrouorapaz,surpreendidoconsigomesmo.Nunca espirrara antes e esta era uma experiência notável. O peito se comprimia, os olhos se
fechavamecomeçavamalacrimejar,acabeçarecuava,haviaumaintolerávelcoceiranasnarinaseentãouma espécie de explosão, um espasmo em todo o corpo, que produzia ummaravilhoso alívio. Estavatentando definir se era agradável ou não espirrar, quando sentiu a coceira começar novamente. Suacabeçarecuou.
—Ah...ah...Ouviu-seumfarfalhardefolhassecas,quandoGeorgrastejouparaele.—Façamelecalar,peloamordeDeus!—vociferouHorst,emvozbaixa.Orapazsentiuoespasmocrescerimplacável...Amãogordaesuadadealguémapertou-lheabocae
onariz.Elesedebateu.Oespirrochegou.Foicomoumaexplosãovindadedentrodesuacabeça.—Nãofaçaisso—disseele,indignado,dandoumempurrãoemGeorg.Georgolhou-o,limpandoamãonascalças.—Porco!—respondeu.HorsteOttoolhavamfuriosamenteparaambos.—Chiu!Chiu!Enchaomalditonarizdeledelixosefizeristooutravez—sussurrouOtto.Tinhacaradecavalo,pálida,eolábioinferiorpendia,mostrandoosdentesmanchadosdecastanho.Osquatroachavam-sedeitadossobreumcapimespinhento,noaltodeumacolinacercadadeárvores.
Abaixo,oonduladogramadodeCharlottenburgapareciafracamenteiluminadopelaluzdasestrelas,comamassaescuradoGrünewaldaofundo.
Nocentrodoprimeiroplano,aatarracadaestruturacinzentadacasaespalhavaluzatravésdemeiacentenadejanelas.Maisadiante,numdosestreitosecurvoscaminhosqueseabriamnomatagal,orapazconseguiu divisar o movimento suave de um par de lâmpadas amarelas de uma carruagem puxada acavalo.Olagoestavainvisívelagora,naespessaescuridão,emesmoquemsaíradebarco,járegressarahaviahoras.
Orapazsentiacansaçoefrio.Haviahorasqueestavamdeitadosali,semnadaparacomeralémdeovoscozidosqueOtto trouxeranamochilaenadaparabeberalémdeumácidovinhotinto.Maisumacarruagemseaproximava,logoseguidadeoutra.Foradisso,nadamaissevia.Nãoeracomoduranteodia, quando havia gente jogando tênis atrás da cerca de ciprestes,meninos dos estábulos levando oscavalos para fazerem exercício e carruagens indo e vindo. Subitamente houve uma agitação e Horstsussurrouimediatamente:
—Abaixem-se!—eestendeu-sesobrearelva,comoosoutros.Orapazolhoueviuumamáquinabrancaseaproximar,comumhomemdecapacetenoseuinterior.
Esteolhavacuidadosamentedeumladoparaooutro,enquantoamáquinaflutuavadiagonalmentesobreogramado,aquinzemetrosdosolo.Usavaumuniformedebotõesbrancosetalabarte.Olhouumaveznadireção deles, mas aparentemente não os viu sob as árvores e sua máquina continuou voando atédesaparecer.
AquilopareciatãointeressantequantoaviagemnofurgãopuxadoacavalodeBerlimatéali,apesardeHorst tê-lo impedido de olhar pelas janelas.O cavalo não estava dentro do furgão, como o rapazhaviamaisoumenosesperadoquandofalaramnoassunto,masseucheiroestava.Aquelaspessoaserammesmomuitocorajosasparaficaremtãopróximasdaqueleenormeanimal,semaproteçãodeumagrade.Porqueofaziamsepodiamusarveículosmotorizados?
Ofurgãodetraçãoanimalparou,ouviu-seomurmúriodocondutor,entãoasportasseabrirameosquatropularamparaforacomseussacosdepanogrosso,subindoomorroaoabrigodasárvores,comumcheirodepoeiraedesolnasnarinas...
OrapazdesejouqueTrudlestivesseali,pararespondersuasperguntas.Haviamconversadomuito,enquantoHorstestevefora,atéqueelaficarasubitamentezangadaeochamaradetolo.TrudllhecontouqueKieleraumacidadenojenta,queelagostavadedançarejogarbezique,quesótiveraumamigo,umladrãoamãoarmada,masforaapenasumnamorobobo.Prestoumuitaatençãoaoqueeladisseeguardoucuidadosamentetodasaspalavrasnamemória.Talvezlhefossemúteis.
Foramuitodesagradável.Elapareceu,aprincípio,muitoamável,pedira-lheparanãochamá-ladeFräuleinesentarapertodelenosofáenquantobrincavamcomaboneca,Ermingarde.Então,começouadizercoisasqueelenãoentendeu.Noinício,aquilopareceudiverti-la,maslogoperderaapaciênciaeeleaindanãosabiaporquê.Foramuitodesagradável.
Láembaixo,umafieiradeluzesnapartedetrásdacasaseapagou.Ummomentodepois,outrasnafachadaforamdesligadas.Orapazficoutensodeinteresseeesperandoquealgomaisacontecesse,masfoiemvão.
Entãochegouumoutroespirro.Noespaçosoapartamentodoandartérreo,napartetraseiradamansãoOberkeller,HerrHeimatsrat
WernerOberkellerestavasentadoaindaàmesadebezique,comoaconteciaquasetodasasnoitesemquepassava em casa com alguns velhos amigos. Sob a luz, as brilhantes costas vermelhas das cartasfaiscavamcomo jóias sobreopanoverde.HerrOberkeller estendeuavelhamãogordae recolheu-ascom surpreendente delicadeza. Seu rostomantinha-se inexpressivo, corado dosmolares para baixo epálidona parte superior.Mechas alouradas entremeavam-se na cabeleira grisalha já rareando,mas asgrossassobrancelhascastanhascontinuavamescuras.Onarizvolumosoeraestriadodepequeninasveiaseoslábioseramdeumvermelhopurpurino.
—Então,cavalheiros,outramão?—Demôniosolevem,não!—disseRenéCapezius,sacudindoocharutocomindolência.Escreveualgumacoisanumcadernodenotasdecapadourada,atirando-odeladocomdesinteresse.
Deviaterunssetentaanos,aidadedeOberkeller,maspareciaaomesmotempomaisvelhoecurvadoemais vigoroso. Sua pele amarelada, cor de cera, estava coberta de rugas, dando-lhe um aspectosardônico.Seusolhosazuisesmaecidospiscavamdivertidamente.
—Vocêjámeganhoubastante,porhoje.Evocê,Pias,oqueacha?JoachimPiaseraomaisbaixoemaisjovemdamesa:gordoedisforme,umpudim.Nameialuz,via-
seocabeloescuro,obigodepretoeosóculos.Orestopareciaapenasumborrãosemfeiçõesdefinidas.—Umdesastre,comosempre—resmungouele.—Vocêstrêsestãoquerendomelevaràbancarrota.Rupolo,oquartohomem,abriu-senumriso,mostrandoadentaduraperfeita.Eracalvocomoumovo,
comprotuberânciasemontículosdecarnerosada.—Mashojevocênãosesentiutãopobreaolerascotaçõesdabolsa,hem,Pias?Piassorriucomrelutância.—ASociedade doEspaço foi a 108—disse.—É, não estámal.Masmedeixa nervoso: subiu
demais.Oqueacham,devovendê-las?
AscadeirasrangeramquandoOberkellereCapeziusserecostaram,pegandoseuscoposdeporto.—Nadadisso—disseRupolo.—Naminhaopinião,qualquerpessoaquevenderagoraasaçõesda
Espaçoéumtolo.—Talvez,masouvidizerquevãonacionalizarasempresasparticulares.Éverdade?Issomedeixa
nervoso.OberkellereCapezius,osdoismembrosdoConselho,trocaramumsorrisoexperiente.— Isto épropagandadosDemocratasCristãos—disseCapezius.—Ullman temque fazer algum
alvoroçoparaagradarseuseleitoresenadamais...nãotemimportância.— Contudo — retorquiu Pias, teimoso — uma bolha pode crescer bastante e depois explodir.
Quantos desses projetos interestelares têm, realmente, dado lucro? Depois de quinze anos? Se ascompanhiasforemnacionalizadas...
—Istonuncaacontecerá—afirmouOberkellergravemente.OstrêsrostosseviraramparaOberkelleresperançosos,maselesecalou.Seusvelhosolhosestavam
quasefechados.Apanhouseucopodevinho,levou-oaoslábiosebebeu.Depoisdeummomento,Piasrecomeçouaselamentar:—Eumeperguntoparaondeestãoindooslucros?OqueestamosganhandocomoPlanetaThiessen,
porexemplo?Algumaspedraspreciosas,algunsbichinhosparaascrianças...Rupoloinclinou-separaafrente.— É aí que você se engana, amigo Pias. Thiessen tem um gigantesco potencial... simplesmente
gigantesco.Não,não,nãome refiroaocomérciodewog.—Apertouaboca, aborrecido.—Sevocêquersaber,ofatoéqueaS.E.perdedinheirocomoswogs.Ésomenteumavitrina...algoparamanterointeressedopúblico.Afinaldecontas, seupequeno investidornuncavêumpalmoadiantedonariz.Éprecisoterumbrinquedooudoisparasacudirdiantedele...vêquebeleza,vêquebeleza?—Seurostode ogre se distorceu num horrendo sorriso adulador.—Mas, importações nunca compensarão nossoinvestimentoemplanetascomoThiessen,pelomenosduranteumséculo.
—Oque,então?—perguntouPias.—Bensimóveis!—disseRupolo.Tirouumcharutodacaixaaoladodeleeacendeu-o.—Bilhões
dehectaresdeterracompletamentevirgem.—Quenãoserveparanada,porquecustaumafortunachegaratélá.Rupoloapontouumgrossodedovermelhonadireçãodele.—Graveminhaspalavras:dentrodevinteanosvocêpoderálevartodaasuafamíliaparaThiessen
pelomesmopreçodeumaviagemaoPanamá.—CapeziuseOberkellerconcordaramcomveemência.—Casadecampo,parquedecaça,diversõesturísticas,tudoenfim.
Colocouocharutonomeiodabocaeacendeu-ocomumvolumosoisqueirodourado.—Sim,nãohádúvida,vocêestácerto—concordouPias.—Dentrodevinteanos,certamente.Mas
noínterim...—Sacudiuacabeça.—Pergunto-me:eseaconteceralgumacoisaquenãoesperamos?Queme dizem dos boatos sobre um planeta com nativos inteligentes? Digamos que nós e os Sovsreivindiquemosdireitossobreomesmoplaneta...comodoiscãescomumsóosso,hem?Eentão?
OrostodeCapeziusperdeusuaexpressãoirônica.Curvou-separafrente.—Essesboatossujos!—exclamou.—Ojornalistaquepublicouesselixodeveriaserfuzilado!— Em primeiro lugar, é completamente absurdo— afirmou Rupolo, sacudindo vigorosamente a
cabeça.—Alémdisso,Herr Professor Schlossmacher provou definitivamente que a raça humana e acultura germânica são um acidente único. Não pode haver outra raça igual no universo... ématematicamenteimpossível.
—Quantoaisso—falouOberkeller,sacudindoacabeçorra,—tenhoalgoadizer-lhes.Olhou-os,umaum.Nosilêncio,podia-seouvirotique-taquedogranderelógiodepêndulonocanto
dasala.Capeziusvoltouasentar-se,umtantoaborrecido,ajeitandoasrendasdeumadasmangascom
seus longos dedos bem manicurados. Pias acomodou-se na poltrona, cruzando as mãos sobre abarriguinharedonda.
— A menos de seis meses— recomeçou Oberkeller— uma nave da exploração cósmica russaencontrou umplaneta, incluindo-o na classificação "Z".Ou seja, umplaneta comuma lua, na terceiraposição orbital de um sistema estelar G. Agindo de acordo com as instruções, não pousaram, masentraram em órbita do planeta, tiraram fotografias, fizeram leituras espectrográficas etc. As fotosmostraramcalotasdegelomédias, trêsmassasde terra continentais, com rios,montanhas evegetaçãoverde.—Oberkellerfezumapausa.—Asfotografiasmostraramtambémumaquantidadedeformaçõesregularesquepodemserinterpretadascomocidades.
Capeziusdeuumsalto.—Ridículo!—explodiu.—Vocêestáquerendomedizerque?...Podemexistirestruturascristalinas,
formaçõesnaturaisdealgumaespécie...ou,nomáximo,colméiasdequalquerinsetogregário!—Estácerto—disseOberkeller,fechandoosolhosemassentimento.—Mas,meucaroCapezius,
vamosumpoucomais longe!Seessas fotografias se tornassempúblicas,qual seriao resultado?Vocêsabe tanto quanto eu que devem ser formações naturais. Mas os ingleses e outros corações molescomeçariamagritar:"Vidainteligente!"Eentãoestaríamosmetidosnumaencrencadosdiabos.
Capeziusconcordoudemávontadeereclinou-seacariciandooqueixolongo.Piasacrescentou,emtomlamuriento:
— Mas os Sovs estão sempre dizendo que não se importariam de encontrar outra civilizaçãoadiantadaforadenossoslimites,porqueserianecessariamentesocialistaetc.etal.
AcadeiradeRupolorangeuquandoeleseinclinouparaafrente.—Bem,equemais?—perguntou.—Quefizerameles?— Simplesmente se calaram — respondeu Oberkeller calculadamente. — Os registros foram
alterados,a tripulaçãodanavefoisubmetidaaumrecondicionamentopsíquicoedistribuída...Nãoseionde,masseeupudesseimaginar,diriaAtlântica.
Fezumgestoparabaixocomoíndex.—Possoperguntar—falouRupolodelicadamente—comoéquevocêsabedetudoisso?Oberkellersorriulevemente.— Ora, eles não são tolos. Vieram até nós com as fotografias, mapas... tudo. O Ministério
silenciosamente interditou toda a área. Eles fizeram o mesmo. Nem as naves deles nem as nossasvisitarãoaqueleplanetaoutravez.
Osquatroficaramemsilêncioporummomento,comosolhospensativos.—Entretanto,maiscedooumaistarde...—dissePiasparasimesmo.Oberkellerencolheuosombros.—Emvinte,cinqüentaanos,haveráanecessidadedeumreexame... talvezumasoluçãodefinitiva.
Mas no presente imediato, a situação está estacionaria.Os Sovs não estão ansiosos para provocaremperguntassobreseusplanetas,enóstambémnão.
—Pelomenoselessãorealistas—assentiuRupolo,comrelutância.Olhou os dois centímetros de cinza da ponta do seu charuto e depositou-os cuidadosamente no
cinzeiro.Agarrafapassouemvolta.Piasbebericouoseucomarausenteelimpouobigodecomolençodobrado.
—Sim,estácerto...—disse.—Massuponhamosquenãosejamformaçõesnaturais...Capeziusbufou,comobomhumorrecuperado.—Bobagem,meubomPias.Asoutrasraçassãoinferiores,semexceção.Amelhorqueencontramos
tem cérebro de coelho.Nenhuma delas tem as características de um ser humano... exceto, é claro—piscou—asencantadorasfêmeasdoMundodeAldoré.
Oberkellerpermitiu-seosegundosorrisodanoite.
—Porfalarnisso—disseele,—conseguicompraralgumasfotografias...Abraessapequenagavetadamesa,sim,Rupolo?
Ocarecaacedeueosquatroinclinaramascabeçassobreopacotedelustrosasestereofotosqueelecolocousobreamesa.Ouviram-seexclamaçõesdesatisfação.Capeziusestalouoslábios.
—Admirável!Muito apetitosas. Ah, as queridinhas, têm pêlos como as gatinhas!—Atirou umaolhadairônicaaOberkeller.—Émelhornãomostrá-lasasuamulher,hem,meuamigo?
—Não,não,elaémuitomoralista...nãoentenderia!— Como vai a querida Lorraine? — perguntou Capezius polidamente. — Nós a vimos muito
rapidamenteaojantar.—Oh, vaimuito bem. Fica em casa amaior parte do tempo. Ela tem seus próprios interesses...
jardinagemetc.—Ei,vejaestaaqui—disseRupolo,apanhandooutrafoto.Osoutrosafitaramemsilêncio,comolhoscintilantes.Asluzesdofundodacasahaviamseapagadohorasatráseorapazviraastrêscarruagenspuxadasa
cavalos saíremumaaumadascocheiras.Umhomemhaviaentradoemcadaumae logoseafastaram.Depoisdealgumtempo,aluzdaporte-cochèretambémseapagoueumadasjanelasdoprimeiroandarseiluminou.Então,muitodepois,apagou-secomoorestodacasa.
Apesardisso,HerrHorstnãoagiuatéparecerhaverdecorridooutrahora.Geladoatéosossos,orapazrodeouocorpocomosbraços,tremendo.AvozdeHorstchegouatéelenumsussurro.Virou-se,abrindoosolhos.HorstestavafalandonumpequenoaparelhoquetinhanasmãoseavozdeTrudl,finacomoadeumgrilo,respondia.
—Muitobem,fiqueaí.Nósvamosdesceragora—disseHorsteafastouoaparelho.Fezumsinalcomamão.Osoutrosdoiscomeçaramimediatamentearastejarpelarampadacolina.A
gramacediaaopesodoscorpos,cinzentaepoucovisívelàluzdasestrelas.Nadapareciaoqueera.Asárvoresassemelhavam-seaameaçadorasmanchasdeescuridão.Aluzdasestrelasiluminavafracamenteas torrinhasdo telhadoeaschaminésdamansão.O restoeraumaescuramassa informe.O ruídoquefizeramnasfolhasmortasenamatorasteiro,quandodesceramdacolina,pareceuincrivelmentealtoaorapaz.
Nabasedacolina,ospassosficarammaisleves:haviagramaaparada,quesibilavabrandamentesobospésdorapaz.Nãoconseguiuouvirosmovimentosdoscompanheiros...eramfantasmascinzentosaoladodele,corcundasporcausadossacosquecarregavam.Acasamergulhounumgrupodeárvores,àmedida que eles avançavam, e desapareceu, menos o cimo dos dois telhados que apareciam cinza-prateados.
Começaramarodearasárvores,nosilênciopenetrante.Orapaznãogostoudaquilo:aescuridãoeraumateiadearanha,ondepodiahavercoisasescondidas...
Algoenormeecinzentosurgiunafrentedele.Orapaz,viuHorstpararelevantarobraço:houveumsomsibilante.Acoisacinzentapermaneceuondeestava:eraumvultoatarracado,comumaalertacabeçaerguida.Acabeçatombou.
AgoraHorsteosoutrosestavamavançando,passandopelacoisacinzenta.Estasevoltouparaolhá-los, mas não se moveu. O rapaz acompanhou-os, fazendo um pequeno desvio para alcançá-los, sempassarmuitopertodacoisacinzenta.Quandopassou,percebeuqueeraumcachorro:umanimalenorme,compontudasorelhastriangularesefocinhoachatado.Sentiuumarrepionaespinhaaoverosolhosdelebrilharemnaescuridão.Masocãonadafez,alémdeabanargentilmenteacaudaevê-losdesaparecer.
Encontraram ainda mais dois daqueles animais gigantescos: um ao passarem pela carruagem e ooutro,nasombradasárvoresnoladomaisafastadodacasa.Horsttornavaaerguerobraçodecadavez,parecendo esguichar alguma coisa com um som sibilante e de cada vez o animal parava e olhava-os
afastarem-se.Agoraestavam todosagachados juntos, atravessandoumsuavedeclivedegramadefrontedacasa.
Horstziguezagueouparajuntodorapaz,colocando-lheamãonoombro.—Láestáasacada,vê?—sussurrou,apontando.Aprincípioorapaznãopôdedistinguir.Numaescuridãocomoaquela,nãohavianadaparecidocom
afotografia.Finalmente,viuasjanelasdosegundopavimento,comumamanchaindistinta,quepoderiaser a sacada de ferro trabalhado. Quanto ao peitoril e aos relevos de granito, confundiam-se com aescuridãogeral.
—Muitobem,mande-separacima.Lembre:desçaasescadasatéohalldeentradaeabraaportadarua.
Horstdeuumleveempurrãonorapaz.—Estáescurodemais,HerrHorst—protestouojovem.Ooutrohomembalançouacabeçacomoseestivesseespantado.—Queéquevocêpensa?QuevamosiluminartudoparavocêcomoseistofosseoFreudenpalast?
Váandando.—Queéquehá?—sibilouOttoarrastando-separaperto.—Cale-se!Olhe aqui, seu...—Horstmostrou-lheopunho fechado.—Você concordou em fazer.
Agoratratedesubireparedebobagens,ouvaisearrepender,compreendeu?Demávontade,orapazlevantou-seecomeçouaatravessarogramado.Quandoolhouparatrás,os
trêshomensnãopassavamdevultosindistintosnasombra.Voltou-separaolharoescuropenhascodealvenariaacimadele.Nãoeranadadoquetinhaesperado.
Sepelomenosnãotivesseconcordadocomoumtolo!Tentoulembrar-sedafotografia.Sim,alihaviaumajanelacomumpeitorildegranito.Acimadela,àdireita,deviahaverumaespéciedeescudoornamentalcomarabescosesculpidos...Orapazprocurouumapoioparaasmãos,içouocorpoecomeçouaescalar.
—Querido,vocêestáacordado?Naobscuridade,elamalconseguiadistinguiracabeçaescuradelesobreotravesseiro.—Um,uh.—Suacabeçavoltou-se,seusolhosseabaram.—Oquehouve,querida?—Amor,achoqueouvialgumacoisa.Acamaondulouquandoeleseapoiounocotovelo.—Oberkeller?—Não,bobinho,elenuncavemaqui.Tiveaimpressão...umbarulho.Elesentou-se,aguçandooouvido.Osquartosestavamsilenciosos.—Nada.Achoquevocêimaginou,querida...Vocêémuitonervosa,nãoseesqueça.—Bateu-lheno
ombrolevemente.—Deiteagora,comoumaboamenina,edescanse.Elamergulhounacamacomumsuspirodesatisfação.—Estábem,querido.—Suavozficoulogosonolenta.—Descansetambém.Ohomemdeitou-se,bocejouumavezevirou-sedelado.—Lorraine,sóamoavocê—disseele.Masamulherjáhaviaadormecidoenãorespondeu.Ofegante,orapazpulouporcimadagradedasacada.Quequantidadedeárvorespodia-severdali!O
gramadoembaixoeravagoecinzentoàluzdasestrelas.Aliestavamasportas.Nãoconseguiavernadaatravésdovidro.Dentroestavapretocomoazeviche.
ApanhounobolsooinstrumentoqueHorstlhedera,abriuumadaslâminas—aparecidacomumachavede fenda—e inseriu-a experimentalmente entre as duas portas.Quando empurrou, as portas abriram.Nãoestavamnemmesmoaferrolhadas.
Orapazparouummomento,comamãonaombreiradaporta,espreitandoeescutandocomatenção.Nadapodiaouvir,alémdasbatidasdoseuprópriocoração.ProcurounobolsoumapequenalanternaeóculosdeproteçãoqueHorstlhedera.Colocouosóculos,masascoisasficarammaisescurasqueanteseporissopuxou-osparaatesta.Recordou-sequeHorstlhedisseraqueosóculossófuncionavamcomalanternaacesa...masquesódeveriaacendê-laquandoestivessenointeriordacasa.
Mantendoalanternapreparada,penetrounointeriorescuro.Onegrorerasufocante.Apertouobotãodalanterna,masnadaaconteceu.Lembrou-seentãodebaixarosóculossobreosolhos.
Imediatamenteasalaficoubrilhantementetomadaporumaluzvioleta.Mesas,armáriosesculpidos,umaparedecobertadequadros,compesadasmolduras,grandesepequenos...centenasdeles.Acuriosaluzfaziatudoparecerirreal,comoumafotografiacoloridamalrevelada.Viucomalívioumaaberturaeenveredouporela.
Foi dar numa outra sala, ainda mais larga e mais profusamente mobiliada. Nela também haviaquadros pendurados nas paredes e estátuas enormes sustentando lâmpadas na cabeça,mesas, um sofácompridodelistrasvioletasepúrpura-escuro,cadeiras,armários...
Àesquerdaeàdireitahaviaduasportas:aprimeiraestavafechada.Apontandoalanternaparadentrodaoutra,orapazficousurpreendidoaoverumacamacomduaspessoasdeitadas.Acamatinhaaformade um barco, com uma cabeça de pássaro na frente e coisas arredondadas dos lados como escudos.Encimandooconjunto,haviaumdossel,semelhanteaumavela.
Amaispróximadasduaspessoasnacamaeraumamulher,ajulgar-sepelascurvassobolençol.Aoutrapareciaserumhomem.Enquantoolhava,parahorrordorapaz,ohomemrolounacama,sentou-sedeumsaltoeficouencarando-opelaportaaberta.
A reação instintivado rapaz foi apagar a lanterna.Mas issoodeixounamais completa escuridãooutravezequandosevoltouparasairdali,tropeçouemalgoqueoscilouedepoiscaiucomumestrondoincrível.Ouvindoumaexclamaçãonoquartoaolado,orapazperdeucompletamenteacabeça:começoua correr. Alguma coisa bateu-lhe com força no quadril, fazendo-o perder o equilíbrio. Cambaleando,atravessouasalanumanovadireçãoetropeçouemoutracoisa.Novoestrondo.
Naescuridão,umamulhercomeçouaberrar.—Quemestáaí?—gritouavozdohomem.Aporta,ondeestavaaporta?Nopânico,orapaznempercebeuquedeixaracairalanterna.Tateando
àfrentecomambasasmãos,deuoutropasso,pisouemalgoquerolousobseuspésecaiupesadamente.Aterrissounumasuperfíciefrágilquecedeuaopesodeseucorpo,comumdespedaçardemadeira.
—Socorro!Assassinos!Socorro!—gritavaamulher.Aturdido,comaspernasparacima, incapazde levantar-se,orapaz,dominadopelo terror, também
começouagritar:—Socorro!Socorro!Doiscírculosamarelo-pálidossurgiramnaescuridão.Passossoaramnotapete,nadireçãodorapaz.
Roloudesesperadamente, procurando levantar-se dali, e pôs-se depéno exatomomentode receber oimpactodoataquedeumcorpoqueoderrubououtravez.Osestrondosserepetiram.
O rapaz percebeu que podia enxergar novamente. Alguém acendera as luzes comuns e os óculoshaviamcaídodasuacabeça.
Levantando-se por detrás dele, surgindo das ruínas de uma mesa destruída, havia um homem decabeloescuro,emcamisoladedormir.Seurostobrilhavadefuror.
—Você...você...—gaguejoueavançoucontraorapaz.Nooutroquarto,amulhercontinuavaagritar.Paroupararespirarerecomeçou,maislancinanteque
antes.O rapaz a vira de relance, através da porta aberta, quando rolou embolado com o homem doscabelosescuros.Estavasentadanacamacomolençolpuxadoatéopescoço ...olhosfechadosebocaaberta,gritandocomquantasforçastinha.
Asalapareceugirar.Orapazachou-sedeitadodecostasnochão.Ajoelhadoemcimadele,ooutrogrunhia:
—Agorasim!Pegouacabeçadorapazcomasduasmãosecomeçouabatê-lanochão.Ouviramumapancadasúbitanooutroladodasalaeumavozabafadaperguntou:—Oquehouve?Abramaporta!Ohomemdacamisoladedormirdeixoucairacabeçadorapaz.—Oh,meuDeus!—gemeu.Pôs-se em pé. A mulher, no quarto, deu mais um berro e calou-se. As pancadas na porta
recomeçaram,misturadas a gritos de diversas vozes.O homem de camisola virou-se e deu um passoantesqueaportafossearrombada.
Porcimadamesadesmantelada,orapazviu,então,umhomemderostovermelhoirrompercomumaarma na mão. Os cabelos em desordem, os olhos brilhando selvagemente. Vestia um robe de xadrezvermelho,abertoatéametade,mostrandoopeitocobertodepêlosgrisalhos.
—Nadelbach!Você!—gritou.Atrásdeleentraramosoutros,atulhandoasalaeesticandoospescoços.Ohomemdacamisolaparouedepoisvoltou-separacontinuaracorrer.Aarmadisparou,comum
ruídoensurdecedoreumachuvadefagulhas.Aterrorizado,orapazviuohomemdacamisolamergulharportrásdeumamontoadodemóveis:umsofá,algumasmesinhaseumarmárioalto.Ohomemderoupavermelhacorreuatrásdele.Aarmadisparounovamente.Fragmentosdorebocojorraramdaparedeeumdosquadrosvooupelosarescomoumafolha.
Surdoetonto,orapazcaiudejoelhos.Olhouparaacama-barcodoquartoaolado:amulherjaziaimóvel,comosetivessedesmaiado.
Ouviuumruídodepassosnotapeteatrásdele:abaixou-senovamente,abrigando-seentreasruínasdamesa, enquanto o homem de camisola correu na direção da porta aberta, seguido pelo homem com aarma. Dois ou três criados uniformizados espalharam-se dando gritos de alarma. Houve um terceirodisparo:outroquadrocaiudaparede.Entãoohomemdecamisoladesapareceunocorredorexterno,eohomemderobevermelho,arfandopenosamente,sumiuatrásdele.
Osouvidosdorapazzumbiam.Desesperadamente,pôs-sedepé,pensandonaescuridãodaoutrasala,nas portas francesas e na sacada.Mas ao avançar naquela direção, os criados impediram o caminho,atravancandoaentrada,ondeaparentementeumtropeçaranapressaeoutrocaíraemcimadele.
Aproveitandosuaúnicachance,orapazenveredoupelocorredor.Àsuadireita,distante,ecoououtrotiro.Tomouocaminhooposto.Nofimdagaleria,encontrouumaescadaestreitaedesceu-adetrêsemtrêsdegraus.Seucoraçãomartelavaagarganta.Chegandoembaixo,nãoviuninguém,masouviaaindaoalaridodosgritoseberros.
Desceuosegundo lanço, indodarnumestreitovestíbulodos fundos.Umaporta seabriueo rostogordodeumamulherespiou.Elaoviu,deuumberroebateunovamenteaporta.
O rapazcorreu.Chegousubitamenteemumamplovestíbulo,voltou-seeviuumbalcãonoalto.Ohomem dos cabelos escuros apareceu nele, cambaleando, arrastando as pernas com dificuldade, decabeçabaixaecomacamisolabatendo.Atrásdele,ohomemderoupavermelhasurgiugritando:
—Pare!Aarmadisparouaindaumavez.Ohomemdecamisoladesapareceunovamente,seguidopelooutro.Oamplovestíbulo lajeadoestavaparcamente iluminadoevazio,anãoserpelapresençadevasos
complantaseumaarmadura.O rapaz rodopiou,viuaportaenormeentreduas jardineirasecaminhouparaela.Tateouotrincoeaportagirou,abrindo-se.Entãosaiuparaabenditaescuridão.
Cincohorasmaistarde,exaustoecobertodegravetos,orapazsaiudafloresta,indodarnumpequeno
centrocomercialpavimentadodepedrasredondas.Limpou-secomopôdeedirigiu-separaumquiosqueencimadoporumanúncioluminoso:UNTERFÜHRUNG.
Aviagemdevoltaàcidade,nosilenciosocarrocilíndrico,levousóvinteminutos.Quandoorapazreconheceu os arredores, dirigiu-se diretamente para o Elektra. Eram nove da manhã. As portascomeçavamaser*abertas.Nãopoderiahavernadademelhor.
VIINOSEUDÉCIMO-PRIMEIRODIAnalojaaconteceuumacoisaalarmante.Haviadescido,comode
costume, antes que algum empregado chegasse, e havia se escondido num canto que conhecia dodepartamento deMobiliáriosDomésticos, até que as portas se abrissem e a loja ficasse cheia. Entãotomouaprimeirarefeição,compostadelaranjasebolinhos,queeramosseuspreferidos.
Semprestaratençãoaondeseuspésolevavam,entroupasseandonaseçãoderoupasfemininas.Nomeio do espaço central não ocupado, havia umamultidão amontoada em torno de uma plataforma.Orapazaproximou-se.Naplataforma,umhomemmoreno,transpirando,estavaativamenteenrolandoumalongapeçadetecidovioletaemtornodeumamulherloura,queestavaparadaimóvel,comosolhosfixosnotetoeosbraçoserguidos.
Tanto o homem como amulher tinham as brilhantes cores irreais e o curioso contorno escuro docinemaqueeleviranoprimeirodia.Orapazpercebeuqueaquilo-eraumanovailusão.Ohomemeamulhernãoestavamrealmenteali.
Otecidotomouforma,transformando-senumvestido.Ohomemmorenopregouumobjetodemetalnoladodamulher,fazendoumapregaeesticandoovestidonocorpodela.Entãofezomesmodooutrolado,tocoulevementeovestidoaquieali,fezumaaberturanascostasecomeçouacompletarotrabalhosobreacabeçadamulher.Porbaixo,seucorpofoienvolvidoecobertoporduaspeçasminúsculasderendaazulmarinho.Olhá-lafezorapazficarsemjeitoeumadassuasafliçõesficoumuitomaisforte.
Orapaznãogostou.Aovoltar-separaabrircaminhoentreamultidão,viu-se facea facecomumamoçadepeleclaraecabelosescuros,queoolhousurpreendidaedepoissorriufeliz.
—Martin!—exclamou,pegando-lheobraço.Orapazseafastou,nervoso.—Nãoaconheço,madame—respondeu.—Oquê?Aexpressãodamulhersemodificou.Orapazcontinuouaandar.Eladeuumpassoemsuadireção.—MartinNaumchik...Completamenteassustado,orapazvoltou-seeenfiou-senomeiodamultidão.Caminhouemvoltada
plataforma, virando a cabeça freqüentemente para ver se estava sendo seguido. Em cima, o homemmorenoestavavirandoovestidopeloavesso.Quandoacabou,equilibrou-osobreosombrosdamoçaecomeçouafazeroutronocorpodela.Pormaisqueandasseemvolta,nãoconseguiaverascostasdeles.
O rapaz saiudamultidãocautelosamentepelo ladooposto eolhouemvolta.Amulherde cabelosescurosnãoestavaàvista.Contudo,escolheuumcaminhocomplicadoparalongedaquelapartedaloja,olhandoparatrástodootempo.
Ao atravessar o vestíbulo do elevador, percebeu que as pessoas o olhavam e viu que vinhabalançandoinconscientementeacabeçaenquantoandava.Oencontrocomamulherdecabelosescurostomara-ototalmentedesurpresa.Nuncalheocorreraantesque,comoumserhumano,tinhaagora,nãosóum nome e roupas, posses etc., mas também amigos e conhecidos. Essa idéia o amedrontava. O quepoderiadizeràquelaspessoas?Oqueesperavamdele?
Oconfortoeasegurançadoseurefúgionalojacomeçaramaparecer-lheilusórios.Porummomento,pensoucomsaudade,noseupequenoeexpostocubículonoZoológicodeHamburgo.Masarecordaçãojáseesvaíaenãotomoumuitaatenção.Arealidadeeraumagigantescaeiluminadasala,comseuinfinitomurmúriodevozes,odoresexcitantes,elevadoreserabosdefoguete,vermelhos,verdes,âmbar,azuis,
quepassavampiscandopeloteto.Acoisaseriairembora,mudardenometalvezeencontrarumlocalparamoraremoutracidadeonde
nãofosseconhecido.Masnão tinhaconfiançasuficientepara levaressaviagemabomtermo.Haveriatambémoutras lojascomoesta,emoutrascidadesalémdeBerlim?Envergonhava-seporverificarquenãosabia.ViveraemHamburgodurantedozeanos,masnãotinhaidéiadoquehaviaalémdoslimitesdoZoológico.Asoutrascidadeseramsomentenomesparaele.
Umahoramaistarde,nalanchonetedoterceiroandar,aindaestavapensandonisso,olhandoparaosbiscoitoseocafé.Eraaprimeiravezquetomavacafé.Osaborerainesperadoeumtantodesagradável,masapreciouadoçuraeocalor.
Era curiosa a maneira como se sentia em relação aos alimentos, agora que era um ser humano.Tornara-semaiscautelosodesdeaquelaexperiêncianegativadaprimeiranoitenorestaurante.Passaraacomerapenas frutasepãoe,devezemquando,algumassalsichas.Mas,como tempo,esperava fazertodasascoisasqueossereshumanosfaziam,mesmocomerosalimentoscastanhospastososquevianasmesasaolado.
Pegou axícara, experimentou flexionarosmúsculosdos lábios e bebeu.Orgulhou-sede conseguirrealizaroquelheexigiratantoesforço.
As últimas gotas fizeram barulho ao serem sorvidas e uma ou duas pessoas o olharam, desobrancelhas erguidas. Evidentemente, não se devia fazer aquele som. Pousou a xícara embaraçado econsultouorelógiodepulso:eramonzehorasemponto.
Refreouoimpulsodeconfirmarahoranooutrorelógiodepulso,queestavanobolso.Observaraqueossereshumanosnãocostumavamusardoisrelógiosaomesmotempo.Talvezporqueosrelógioseramtãoprecisosquedispensavamconfirmação.
Umfachode luzbrilhante iluminouporummomentooseu ladodobalcão.Olhouautomaticamenteparacima—comofaziasempre—esóviuoexplodirdefagulhasvermelhasquesaltavamdamáquinaacima da cabeça dele. Apagaram e desapareceram. Um momento depois, novas fagulhas saltaram,fazendo-o piscar e atirar a cabeça para trás.O cromo brilhante e o anel de vidro da vitrina rotativa,diminuíramavelocidade epararam.Bemdefrontedele apareceuumburaco escuro equadrado, comouma transparência iluminada em cima. O rapaz leu: PRATOS VAZIOS, POR FAVOR. Empurrouobedientementeaxícara,opireseopratocomosrestosdosbiscoitosparaoburaco,quesefechoucomumestalidometálico.Atransparênciapiscou,tremeueiluminou-seoutravez:OBRIGADO.
Comumacalorosasimpatiapelamáquinaeducada,orapazselevantouesaiudalanchonete.Assimqueatravessouaporta,ondehaviaumamultidãoesperandoparaentrar,encontrou-senovamentecaraacaracomamulherdoscabelosescuros.
Elaoolhou,aparentementetãochocadaquantoele.Poruminstante,nenhumdosdoissemexeu.Entãoamoça,semumapalavra,levantouamãoeesbofeteou-onorosto.
Otapafoi tãoinesperadoedoloroso,queorapazficouincapazdesemoverdurantealgumtempo,enquantoamoçaseviravaedesaparecia.Aspessoasao redor ficaramolhandoparaele,cochichandoentresi.
Ninguém antes o esbofeteara. Com amão na curiosa dormência em que se transformara a dor norosto,orapaz;virouseefoiembora.
Passouorestododiavagandopelaloja,comosolhosembaçadosetremendoligeiramente.Oprazerque sentia com as cores vivas e as formas variadas em torno dele, estava embotado e quase extinto.Esperavasomenteahoradesubirparaoseurefúgionatorreenãoconseguiapensaremmaisnada,
Finalmente,eramoitoemeia.Amultidãoestavacomeçandoasedirigiràssaídas.Orapazatravessou
ovestíbulodoelevadorcomavagasensaçãodequeamultidãoestavamais sombriaeum tantomaisagitadaquedecostumenaquelanoite.Passouporumhomemcomumacâmeraedepoisporoutro.Dois
numafila.Elecostumavaàsvezessedivertircontandooshomenscomcâmerasouasmulheresgordas,ouascriançaschoronas,masagoranãoestavainteressado.Viutambémmuitoshomensuniformizados:nãosóosdeazul,davigilânciadaloja,masuniformesvermelhos,brancos,douradosebrancos...
Passoupordoisde azul, que estavamparados juntos, examinandoatentamente emvolta.Umdelesavançou,,olhandoparaorapazedepoisparaoquetinhanamão.
—Ummomento,senhor.Orapazafastou-se,commedodenovoataque.—Pare!—gritouoagentedaloja,estendendoobraço.Orapazsevoltouecorreuparaagrade.Os
alarmassoaramdetodososladoseouviupassosapressadosatrásdele.Deuumsalto,agarrou-seàgradeecomeçouatrepar.
Nomeio do caminho, olhou para trás.Ninguém subia atrás dele,mas podia perceber uma grandeagitação na base da grade.Homens de uniforme azul aglomeravam-se em torno de um fardo cinzento,desenrolando-o.Haviaoutros,embrilhantesuniformesbrancos,compenasnochapéu.Masestesnadafaziam,apenasficavamdepernasabertas,olhando-osubir.
Continuousubindo.Aoseaproximardotopodagrade,duascabeçassurgiramnoparapeitoedepoisumaterceira.
O rapaz parou. Os três homens usavam bonés azuis: eram da vigilância da loja e não merosempregadosquecostumavamtrabalharnaquelepavimento.Enquantopensavasobreoquefazer,as trêscabeças desapareceram e depois reapareceram. Os ombros e os braços dos policiais surgiram. Algonebulosoecinzentoflutuouparabaixo,nadireçãodele.
Orapazseencolheu,masjáeratarde.Acoisaenvolveu-ocomumgolpesurdoeeledescobriuserumarededecordaparda.Envolveu-oapertadamente,quandotentouselivrar.
Havia cabos presos à rede, seguros pelos homens emcima.Empânico, o rapaz tentoudescer.Ascordasseretesaramedepoisafrouxaramumpouco.Quando,porém,parouparaprocurarremoveraredecomumadasmãos,oshomensaesticaramoutravez.
Embaixo,doishomensdeuniformecinzentolistadoempurravamumaespéciedealtaescadaderodas.Osaguãoestavarepletodepessoasimóveis,queoshomensdebrancomantinhamafastadas.Aescadafoicolocadaquasediretamentesoborapazeagoraumdoshomensdeuniformebrancoestavacomeçandoasubirporela.
Orapazviuquesuaschanceschegavamaofim.Respirandofundo,afastou-seviolentamentedagrade,arrebentandocomambasasmãosaredequeoprendia.
O grande salão rodopiou totalmente em torno dele. Suas costas bateram brutalmente na grade,cortando-lhearespiração.Deunovoimpulsoaocorpo,continuandoarasparselvagementeasmalhasdarede. O homem da escada estava muito perto. A rede cedeu ligeiramente. Encontrara uma abertura.Passouprimeiroacabeçaedepoisosombros.
Bateu na grade outra vez. O homem da escada inclinou-se, tentando alcançá-lo. Então o rapazcomeçouacair.
VIIIESTENDIDOnosofádoseuquarto,obípedelia:OsbípedesdoGrandePlanaltodoNorte,emborasendoamaisinteressanteformadevidadoPlaneta
Brecht,sãoespécimesemextinção.Seusbandosoutroranumerososnãosãomaisvistosnasadjacênciasdas colônias terrestres. Somente pequenos grupos disseminados de três a cinco são ocasionalmenteencontradosnasmontanhasecontrafortesaonorte.Estesanimais,antesdodesenvolvimentodoPlanetaBrechtpelohomem,possuíamumaorganizaçãoembandoscomplexaecomunicavam-seatravésdesinaisvocais.Suascerimôniasdeacasalamento,realizadasnoiníciodecadaano,parecemenvolvercrueldadesbárbarascomasfêmeas.
Fechouolivro,pensativo.IssopodiaserlevadoemcontaparaexplicaremparteaatitudedeEmma
—pensou—casoelativessetestemunhadoalgoparecido,antesdesercapturadaetrazidacriançaparaaTerra.Contudo...
Abriuolivroemoutrapágina:Ocalombooucrista,[leu]aparecendosomentecomoumvestígionomacho,éumvisívelovóidede
cor vermelho-púrpura na fêmea. A função da crista é desconhecida, mas acredita-se ser umacaracterística sexual secundária.Erhardt sugeriuqueela funcionacomoórgãodeexibiçãopeculiardoestado da natureza do animal, mas Zimmer prefere classificá-la meramente como um olho pinealhipertrofiado.Oórgãoévulnerável,comoficouprovadoporumgrandenúmerodefêmeasmaisidosas,queoperderamemacidenteouemconflitoscomoutrosbípedes.
Obípede fechouo livronovamenteeatirou-oaochão irritado.Estava lendoOPlanetaBrecht:o
EnigmadoUniversopelasegundavez,cheiode tédio,poiseraoúnico livroquehavianoquartodosfundos: mas os capítulos, cheios de anotações de pé de página, lembravam-lhemuito o trabalho quecopiavatodososdiasparaGrückeosoutrosmembrosdaequipe.
Dentro de duas horas o Zoológico fecharia e ele poderia ir para a sala de estar, sem expor-se àcuriosidade de todas aquelas caras vermelhas.Dessa vez, iria lembrar de apanharmaterial de leiturasuficienteparaospróximosdias.
Naverdade, nada o impedia de sair naquelemo*mento... havia algumas revistas na prateleira—lembrava—comcapasbrilhantes.Poderiaapanhá-lasevoltardireto.Mashesitou.
Eraextraordinárioquãodetestávelpodiaserumafileiraderostosdaspessoasolhandoparaagenteatravésdagradedeferro,comseusgordosqueixossemovendoaomastigar.Levantou-se,inquieto.Queinferno! Nada havia para fazer ali, a não ser ler o Planeta Brecht outra vez. E nem no escritório. Oserviçoterminaraenãoadiantavatentarcontrabandearumanovacartasemsaberoqueaconteceracomaprimeira.
Ficounovamenteangustiadoecomeçouaandardeumladoparaoutro.Certamentenadateriasaídoerrado?
Quandooprimeirolotedecorrespondênciaassinadadesceude"cima"paraserenvelopadaeselada,o bípede simplesmente acrescentara a sua à pilha. Rudi, o jovem guarda gorducho, as levaria na suapróxima saída. Não havia razão para suspeitar de que Grück ou algum outro inspecionassem acorrespondência fechada e selada. O guarda possivelmente as levaria diretamente para a caixa do
correio.Masestavaesperandohaviaumasemana.SeSteintivesserecebidoacarta,porquenãoacontecera
nadaatéagora?Ouviuumleverangido,umapausaeoutrorangido,vindosdoquartodeEmma.Elaprovavelmente
levantaradacadeiraparafazeralgoesentaranovamente...tudoàvistadamultidão,naturalmente.Issofê-lodecidir-se.Olhouparaaportaaberta,levantou-seeatravessou-a,olhandoemfrente.Oprimeiromomentofoipiordoquehaviaesperado.Asalaeraenormeevazia.Ajanelaestavacheia
derostos.Tentouafastá-losdasuapercepção,olhandosomenteparaasrevistasqueagoralhepareciammuitomenosatraentesqueantes.Depoisdeummomento,ficoumaisfácilcontinuarquevoltar,massuabocaaindaestavasecaeocoraçãobatiapenosamente.Láfora,houveummovimentoaolongodogradil,comoseaspessoasqueestavamolhandoEmmacaminhassemparavê-lo.
Andando firmemente,obípedechegouàespreguiçadeirae inclinou-separapegaras revistas.Sejanatural,disseparasimesmo.Pegueasrevistas,volte-se...
Doladodeforadaparededevidro,aspessoasfaziamgestosparaatrairsuaatenção.Houvegritosde:"Ah,olheparacá"e"Alô,Fritz!".Umacriançaloura,sobreosombrosdopaiparavermelhor,virou-se subitamente, vermelha como uma beterraba, e começou a chorar. Algumas pessoas assestavamcâmeras.Emmeioà algazarra, quando sevoltavapara ir embora,obípedepensou terouvidoalguémchamá-lo.
Voltou-seincredulamente.Na primeira fila da multidão, ladeado por duas gordas matronas, estava um homem de estatura
mediana,vestidocomumsobretudocinzento,trazendonamãoumbloco.Seusolhosamistososeinquiridoresmergulharamnosdobípede.Suabocasemoveuenovamenteo
bípedeouviuseunome,masobarulhoeratãogrande,queelenãopôdetercerteza.O homem de cinzento sorriu levemente, ergueu seu bloco e então escreveu algo commovimentos
firmesecuidadosos.Mostrou,então,afolha.Láestava,emletrasgrandes:"VOCÊÉMARTINNAUMCHIK?"O bípede sentiu um ímpeto de alegria e gratidão tão grandes, que quase ficou sufocado. Jogou-se
contraovidro,concordandoveementementeeapontandoparasimesmo.—SouMartinNaumchik!—gritou.Ohomemdecinzentoacenoudemaneiratranqüilizadora,dobrouopapeleguardou-o.Comumaceno
demão,virou-seecomeçouaabrircaminhoentreamultidão."Fritz!Fritz!",gritavamtodososrostosvermelhos.O bípede, andando de um lado para outro, esperou durante vinte minutos contados pelo grande
relógiodoescritórioenadaaconteceu.Sabiaqueprecisavacontrolarsuaimpaciência,queohomemdecinzento deveria subir as escadas a qualquermomento, discutindopara libertá-lo.Masnão adiantava.Tinhadefazeralgumacoisaouexplodir.
Olhou para o telefone. Estava proibido de usá-lo exceto para chamadas de rotina, ligadas ao seutrabalho.Masquesedanassem!
Obípededeuumpassoparaoaparelhoeergueuaunidadeauditiva.Aluzdechamadacomeçouapiscar.Apósummomento,avozdatelefonistasaiubaixinhodoinstrumento:
—Alô?—AquiéMartinNaumchik—disseobípede,sentindoimediatamentequesuavozsoavasutilmente
falsa.—DesejofalarcomoDr.Grück.Ligue-mecomele,porfavor.—Quemosenhordizqueé?—Martin...—começouobípede,masinterrompeu-se.—Estábem,esqueça,aquiéFritz,obípede.
Desejofalar...—Porquenãodisselogo?Algumproblemacomotrabalho?—Não,otrabalhoestáterminado.Êassuntodeurgência,assim,sepudessemefazeragentileza...
—Algumacoisaerradacomajaula?—Não,masprecisofalarcomGrück.Olhe,quemquerqueseja,porfavor,nãomeperguntenadae
deixe-mefalarcom...—MeunomeéFräuleinMüller—interrompeuela,comvozgelada—erecebiinstruçõesparanão
deixarosanimaisfazeremligaçõespessoais.Assim,senãoécasodeemergênciaeestátudocertocomoseutrabalho...
—Jádissequeéurgente!—esbravejouobípede.Comfúriacrescente,começouagritarnobocal:—Suaidiota,semeimpedirdefalarcomGrückteremosumajustedecontas,eulheprometo!Façaa
ligaçãoimediatamente,ou...Alô?Estámeouvindo?Alô,FräuleinMüller,alô?Ovagozumbidodalinhafoiaresposta.Comdedostrêmulos,obípededesligouoaparelhoeligou-onovamentecomumasacudida.Aluzde
chamadapiscouecontinuoupiscando.Acabeçaesverdeadaedegrandesmaxilaresdafêmeaapareceunaportaquandoobípedesevoltou.—Porqueestámeolhando?—gritouele.Acabeçasumiu.Obípedesentouabruptamentenacadeiradaescrivaninha,esfregandonervosamente
asmãosdetrêsdedosumanaoutra.Eraintolerávelsercaladoassim,logoagoraquandosualiberdadeparecia talvezestar tãopróxima.Sealgoestavaparaacontecer,omínimoqueelespoderiamfazererainformá-loarespeitoenãodeixá-lonaignorânciadaquelamaneira.Afinaldecontas,quevidaestavaemjogo?Mas aquela era sempre amaneira de agir dos burocratas, tão cheios de si que não conseguiamenxergarumpalmoadiantedosnarizesgorduchos.Deixarosseusdependentesesubalternosesperaremepreocuparem-seatoa.Oquelhesimportava?
Oh,maserasóseverlivredalieentão!Quelibeloescreveria!Quesérie!DesumanidadeChocantedosDiretoresdoZoológico!Seunervosismo,quediminuíraumpouco,cresceunovamenteeelepuloudepé.Ah,seodeixassemsairumdia,nãoprecisavamais...sósair!Orestonãoimportavamuito,mesmoquefossecondenado...
Parouparaescutar.Sim,osomserepetira.Aportaestavasendoaberta.Obípedecorreuatéapassagem,masnãoeraGrück,nemohomemdecinzento.SomenteRudi,com
seucarrinho.—Oh,évocê—disseobípede,voltou-seaborrecido.—Sim,eu—respondeuRudi,comespírito—Quemmaispoderiaser?Eugostariadesaber.Quem
maisfazoserviçopesadoporaqui,semnenhumagradecimento?Empurrouocarrinhoparadentrodoescritório,resmungandotodootempo,semolharparaobípede.—AcasoéoHerrDoktorGrückquemalimentaorinoceronteouospássarosdotrovão?Queméque
empurracomumcabodevassouraacarnepelaestreitagargantadajibóia:Wenzl?ÉRauschquemvarreas jaulas dos macacos, ou sou eu? Vocês, bípedes, até que não são tão ruins, pelo menos lavam-sesozinhos.Masalgunsdessesanimais...Vocênãoacreditariacomosãoimundos!Fazemnecessidadespelochão,ficamondequerem...Enfim,estaéavida.Algunsvivemnaabundânciaenquantooutrosseocupamcom a sujeira dos macacos. — Com uma careta, tirou qualquer coisa do carrinho e jogou sobre aescrivaninhamaispróxima.—Aquiestáosabãoparavocê.Mandaramdizer-lhequetomeumbanhoesubaparaumaentrevista.Eaordeméandardepressa.Assim,nãoseatrase,por favor,pois levareiaculpaenãovocê.
Ocoraçãodobípedecomeçouabatercomforça.—Vocêdisseentrevista?—gaguejou.—Com...comquem?—Entrevista,ésóoquesei.Algunsjornalistasdesejamescreverumareportagemsobrevocê.Tudo
mentira,tenhocerteza,maséopontodevistadeles.Rudivoltouaempurrarocarrinho,sempresemolharparaobípede.Ouviuumruídoatrásdeleevirou-seatempodeverEmmacorrerassustadaparaforadoquarto.
—Rudi—guinchouela.—Oh!Rudi...porfavor,espere!Mas o guarda havia desaparecido no corredor. Não a ouvira ou talvez não quisesse voltar. Logo
depoischegouoruídodaportaexternasendofechada.Emmarecuouparaseuquartoquandoobípedese*voltou,levandoasmãosàtestanogestofamiliar.
Parou,entretanto,aovê-loalcançaropacotesobreaescrivaninha..—Issoésabão?—perguntouela,timidamente.—OuviRudidizerqueera.Obípedeapanhouopequenoembrulhooblongo.Sentiuumaromasuaveesingularmenteperturbador.—Sim,ésabão—respondeudistraído.—Devolavar-meparaserentrevistado.—Umaveztambémganhei,—disseafêmea,aproximando-se.—Foihámuitotempo.Masdisseram
quemefezmal.—Imagino—murmurouobípede,rasgandoopapelcomosdedosgrossos.Oinvólucroseabriueo
sabãoescorregoudassuasmãos,indocairnochão,pertodospésdeEmma.Elainclinou-sedevagareapanhou-o.Operfumetornara-sequaseintoleravelmenteforte.
—Dê-me,sim?—disseobípedeimpaciente,aproximando-se.Estava quase ultrapassando a risca de giz que separava seu lado da sala do dela,masEmmanão
percebeu.Abocadabípedeestavaligeiramenteabertaeosolhosvoltadosparacima.Obípededeuumpassoporcimadalinha.Elacontinuousemperceber.Alarmado,obípedeparoueolhouparaela.—Emma!—disse.Elavoltouacabeçaparaele.—Sim?—perguntou,comvozsonhadora.—Oquehouvecomvocê,Emma?—Nada—replicoucomumvagosorriso.—Então,porfavordevolva-meosabão.—Umbomsabão—disseela,balançandoacabeça,masnãofezumgestoparadevolvê-loeparecia
quaseinconscientedeestaraindasegurando-ojuntoaorosto.A ponto de cruzar a linha para tomá-lo dasmãos dela, o bípede hesitou. Pareceu-lhe subitamente
estranhoqueRudilhelevassesabãoparaselavar.Nãoviraumpedaçoemsemanasdeencarceramentoenãosentirafaltarealmente.Osabãoseriabomparaaquelecorpo,comsuapenugemdeespinhos?Senãofosse,entãoporque...?
Balançandoacabeçacom irritação, recuoupara longedoaromacapitosoquevinhadaquelacoisaqueEmmaestavasegurando.Comaqueleodorinsistenteemsuasnarinas,eradifícilraciocinardireito.
Concentrou-se,finalmente.—Porqueelesdisseramquesabãoeramauparavocê,Emma?—perguntou.—Mauparamim—concordouela,balançando-secomoseouvisseumamúsicainaudível.—Sabão
mauparaEmma.Nãomaissabão,muitomau.Lindosabão.Enquanto o bípede olhava para ela em silêncio, ouviu a porta se abrir novamente. Seu cérebro
entorpecidovoltouafuncionarrapidamentemaisumavez.—Emma,ouça—sussurrouele.—Pegueosabãoeleve-oparaoseuquarto.Entendeu?Váparao
quarto.Nãosaiaatéqueeuchame!—Emmanãosairá.Comlentidãoexasperante,dirigiu-separaaporta,enquantoRudientrava,destavezsemocarrinho.—Estápronto?—disse,comumaolhadelaparaafiguradeEmmaquesaía.Obípedeficoudefrenteparaele,tentandoimitaroolharsonhadoredistantedeEmma.—Pronto—repetiudevagar.—Vocêsabequemé,não?—MeunomeéNaum...
—Não,não—interrompeuRudi—nãosejaestúpido,seunomeéFritz.Agorarepitacomigo:"MeunomeéFritz".
—...nomeéFritz—disseobípedeconformado.Mantinhaosolhosviradosparacimaebalançavanospés.Suacabeçaestavafervendoderaiva,masconservavaavozempostadaelenta.
—Assimestábem—falouRudi,satisfeito.—Quantossãodoisedois,Fritz?Obípedefingiupensarlongamentesobreapergunta.—Quatro?—perguntouhesitante.—Aí,rapaz.Equantossãoquatromaisquatro,maisquatroemaisquatro?Obípedepiscoudevagar.—Quatromaisquatro...—disse.Rudisorriu.—Muitobem,vamosentão.Vocêvaisubirparaencontraralgunscavalheirossimpáticos,Fritz,ese
vocêsecomportar—perdoe-mepordizer"se"—lhedareiumacoisagostosasóparavocê.Pegouobípedepelobraço.Subirampeloelevador.Passarampelocorredordeparedesdevidrodeondesepodiamvertodasas
dependênciasdoZoológico.Eraumcairdetardeensolaradoeasaléiasdecascalhoestavamcheiasdegentepasseando.Algunsrostosseviraramparaolhá-lo,massemmuitaexcitação.Entraramnoedifícioprincipal.Rudiabriuumaportaeobípede foi introduzidonomesmoescritório revestidodecarvalhoondeforarecebidonoprimeirodia.Aoladodamesa,Grück,Wenzleohomemdesobretudocinzentooaguardavam.
—Ha!—exclamouGrück,jovial.—EisfinalmenteonossoFritz.Agoraveremos,meucaroTassen,oquehádeverdadeironessafantásticahistória.Poderíamostercomeçadomaiscedo,masFritzdevezemquandosesuja,nãoéWenzl?Éumapena,masquesepoderiaesperar?ótimo!—esfregouasmãos.—Fritz,vocêestábem?
—Muitobem,HerrDoktor—respondeuobípede.—Excelente!Eteveumbomjantar?—Sim,HerrDoktor.Grück franziu ligeiramente a testa olhando paraRudi,mas logo se recompôs e falou outra vez ao
bípede:—Muitobem,Fritz.EstecavalheiroéHerrTassen,daFreiePresse.Elelhefaráalgumasperguntase
vocêdeverárespondercorretamente.Compreendeu?Comece,pois,HerrTassen!Ohomemdesobretudocinzentoolhouparaobípede,comumaligeiraexpressãodedúvida.—Bem,Fritz...—começouele.Obípededeuumpassoàfrente,afastando-sedeRudi,eperguntourapidamente:—HáquantotempotrabalhanaFretePresse?Tassenergueuassobrancelhas.—Hápoucomaisdeumano,porquê?—ConheceZellini,ocopydesk?—Oqueéisto?—gritouGrück,aproximando-se,comorostovermelhodeespantoederaiva.—
Fritz,tenhamodos!Lembre-se...— Sim, conheço Zellini— respondeu o jornalista. Estava garatujando depressa no seu bloco de
notas.—Umhomenzinhomoreno,quasecareca.Sentei-meaoladodelenoúltimo"JantardosJornalistas
Europeus".Ele...—Wenzl!—vociferouGrück.ObípedesentiuRudiagarrá-loportrás,enquantoWenzl,comorostoparecendoumamáscarabranca,
caminhouparaele,rodeandoamesa.—Elesmemantêmpresocontraaminhavontade!—gritouobípede,tentandodesvencilhar-se.—
MeunomeéMartinNaumchik!Tentarammedrogarantesdemetrazeremaqui!
GrückeTassendiscutiamemvozalta.Wenzlagarraraobraçodobípedecomumadasmãosecomaoutra apertava-lhe o focinho, mantendo-o fechado. Juntamente com Rudi, ergueu o bípede do chão ecomeçouacarregá-loparaforadali.
—Éumultraje!—trombeteouGrück.—Umafraude!Ojornalista,quasetãovermelhoquantoele,gritava:
—Tragam-nodevoltaimediatamente!Aportasefechou,interrompendoaalgazarra.Semsedaraotrabalhodepô-lonochão,WenzleRudi
carregaramoagorainermebípedepelocorredorafora,nadireçãodoelevador.Emma,aoqueparece,nãosóficaracheirandoosabãootempotodoemqueobípedeestiverafora,
mashaviacomidoumaboaparte.Foilevadaparaaenfermaria,inconsciente,ealipermaneceudoisdias.A distribuição de trabalho parou. Rudi, o guarda, desaparecera e seu lugar foi ocupado por um
homemlentoepesado,chamadoOtto.Ninguémmaisvisitouajaula.Exaustoe triunfante,obípedepassavaamaiorpartedo temponasalade frenteda jaula,àsvezes
lendo, outras assistindo televisão, ocasionalmente apenas olhando as multidões, com as quais ia seacostumandoaospoucos.EsperouverTassenoutravez,masestenãoreapareceu.Nodiaseguinteaodaentrevista,contudo,umhomem,doladodefora,tirouumjornaldobradodedentrodosobretudoeabriu-odemodoaqueobípedeovisse.
Conseguiuapenasleramanchete:BÍPEDEDOZÔOPRETENDESERVERDADEIRAMENTEHUMANO.Entãoumdosguardasarrancouojornaldasmãosdohomem,levando-oparaforaerepreendendo-o
severamente.Obípedeteriadadoumdiaderefeiçõesemtrocadojornal.MaspelomenosagorasabiaqueTassen
haviaescritoareportagemequeosecretáriodenotíciaslocaisaimprimira.Agorapodiaesperar.Umavezespalhadaaverdade,nuncamaisconseguiriamfazê-localar-se,fosse
comofosse.Obípedeseacostumaraaterpaciência.Porummomentobrincoucomaidéiadeescreveralgunsrecadosemgrandespedaçosdepapelãoeerguê-losparamostraràmultidão.Mastinhamedodeque,sefizesseisso,otirassemdoquartodafrente,impedindo-odeverquandoTassenchegasse.
No terceirodia,Emmafoi trazidadevoltadepoisdocafé.Ligeiramenteabatida,comar furiosoeespinhos caídos. Lançou um olhar para o bípede ao passar, que ele não conseguiu definir: saudade,censura,umaespéciedeapelo?
Viu que ficara preocupado com isso e teve vontade de falar com ela,mas Emma não deixou seualojamento.
Umpoucomaistarde,aportaexternaseabriuoutravezeOttoentrou.Parounasoleiraerosnou:—Precisamvocêemcima.Umaentrevista.Venha.Obípedepuloudepéesentiuocoraçãobater.
Perguntoudesconfiado:—Semsabãodestavez?Masoguardaolhouparaelenumaincompreensãodebruto.Destavez,emlugardeiremdiretamente
aoescritóriodeGrück,passaramporeleeentraramemumapequenasaladoladoopostodocorredor.Ocompartimentoestavaquasevazio.Haviaapenasumamesaeduascadeiras.
Otto segurou a porta sem qualquer comentário, esperou que o bípede entrasse e saiu novamente,fechando-a.
Obípedeolhouemvoltanervoso,masnadahaviaparaver alémdas trêspeçasdomobiliário,osgastosladrilhosescurosdochãoeasparedesmanchadasdecastanho,queprecisavamdepintura.
Depois de uma longa espera, a porta se abriu outra vez e um homemgrande, de tezmorena, numsobretudovermelho,entrou.Atrásdele,obípedeviuamassavolumosadeGrückeouviusuavozricaeaflautada.
—Naturalmente,caroHerrOpatescu,naturalmente!Nóssemprequisemos...
—Nãopensequeeuvoucairnessa—disseovisitante,furioso,parandonaentradadasala.—SeeunãotivesseameaçadoiraoConselho...
—Osenhorestáenganado,HerrOpatescu,garanto-lhe!Nóssóquisemos...—Euseioqueossenhoresquiseram—disseOpatescu,sarcasticamente.—Saia,queeujáestou
fartodisto.Grückretirou-secomardequemfoicastigadoeovisitantefechouaporta.Carregavaumavalisede
courodeporco,quedepositoucuidadosamentenamesa.Então,comumsorrisoamplo,aproximou-sedobípedeeapertou-lheamãocordialmente.
—Nós,jornalistas,precisamosestarunidosquandotemosdelidarcomporcoscomoesse—disseele. — Permita apresentar-me: meu nome é Opatescu. Você não pode imaginar os truques que elesinventaram para manter-me afastado. Mas aqui estou! Agora, Herr Naumchik. .. um momento —vasculhou a pasta, fazendo surgir um gravador portátil chato, transparente e crístico solidstate e ummicrofone.Aquiestão.Sente-se,porfavor...assim.
Empurrouomicrofonenadireçãodobípede,ajustouoscomandosdoaparelhoeligou-o.Oponteirocomeçouamover-senasuperfíciedaunidadedegravação.
Opatescusentou-sedefrenteparaobípede,apoiando-sesobreosbraços,semsepreocuparemtiraropesadosobretudo.
—EstagravaçãoestásendorealizadanoZoológicodeBerlim,em17dejunhode2002.Presentes:MartinNaumchik,tambémconhecidocomoobípedeFritz,eorepórterOpatescu.
Ajeitou-semaisconfortavelmentenapoltronaecontinuou:—Agora,HerrNaumchik—porqueeuacreditoqueosenhorémesmoMartinNaumchik—peçoque
me conte, se o senhor quiser, com suas próprias palavras, como se deu esta sua incrível experiência.Comece,porgentileza.
Obípedecomeçouimediatamente,apesardeOpatescuserumtipoquenãolheagradasse:melífluo,dogmático, a espéciede repórterque se costumavaencontrar trabalhandonos jornais escandalososdaEuropaCentral.Mas,jáqueohomemestavadoseuladoeagravaçãosendofeita...
Opatescuouviuum tanto inquieto,massem interrompê-lo,atéqueobípedecontou todaahistória.Então, com uma perfeição que fez o bípede pensar se sua primeira impressão não fora um engano,Opatesculevou-oarepetirtudooquedissera,fazendoperguntas,extraindomaisdetalhes,pedindoquerepetissecertospontosdiversasvezes,compalavrasdiferentes.Quandosedeuporsatisfeito,começouafazerperguntassobreavidapassadadobípedeeparticularmentesobreasfontesquepossuíaparaprovarque era realmente Naumchik. Depois, repassou o assunto com igual perfeição. Quando, finalmente,Opatescudesligouogravadorecomeçouaguardá-lo,obípedeoolhavacomrelutanterespeito.
—Devodizerquelhesoumuitogratoportudoisto—falou.—SuponhoqueosenhorsejaamigodeTassen,ohomemqueiniciouestainvestigação?
—Tassen,sim,conheçoTassen—respondeuOpatescu,fechandoavalise.—Eleescreveuumasériedeartigos,umaboamatéria,vocêvaiverquandosairdaí!
Obípedeumedeceuoslábiosduros.—Seráquetemalgumaidéia...—Dequandoserá?Nãovaidemorarmuito.Osenhordeverá terumencontrocoma imprensa,um
grandedestavez:jornais,rádio,televisão.Depoisdisto,elesnãopoderãomantê-lopreso.Opúbliconãoopermitiria.Bem,Naumchik,foiumprazer.
Eestendeuamãocarnuda.—Oprazerfoimeu,HerrOpatescu.Apropósito,emquejornalosenhordissequetrabalha?—Pravda.Opatescuolhouorelógio,pegouavalisenamesaevirou-separasair.
—SeráqueconheceKyrillReshevsky,o...—Sim, sim,mas vamos deixar as recordações para outra ocasião, sim?—Sorriu,mostrando os
grandes dentes brilhantes. — Deram-me um prazo, o senhor entende. Até logo, Herr Naumchik...paciência!
Sorrindoainda,retirou-seefechouaporta.Otto apareceu quase imediatamente para levar o bípede de volta. Embora habitualmente lacônico,
falounocaminhodevoltaàjaula:—Agoraelesterãodesoltá-lo,hem?—Assimparece—respondeuobípedealegremente.—Muitobem—disseOtto,sacudindoacabeça.—Oqueaconteceráemseguida?Nosdoisdiasque se seguiram,obípedenãoconseguiu ficar lendoousentadopormaisdealguns
minutosdecadavez.Deixavaatelevisãoligadatodootempoeolhavaonoticiáriodehoraemhora.Umavez,logonoprimeirodia,umcomentaristafezumarápidareferênciaaofato,eumabreveapariçãosuanumfilme—evidentementefeitonodiadasuachegadaaoZoo—foipassadanovídeo.
No intervalo das notícias, gastava a maior parte do tempo andando de um lado para outro noescritório, aprisionando a pobre Emma, que tão cedo não poria a cabeça para fora do quarto,amedrontadapelosgritosegestosdobípede.Nãodeudescansoàtelefonista,chamando-aodiainteiro,pedindo ora para falar comGrück, ora com Prinzmetal ou outra pessoa. Na tarde do segundo dia, otelefoneestavadesligado.Alinhaforacortada.
LogodepoisentrouOtto.Traziaumapilhadejornaiserevistasnocarrinho.—Mandaramistoparavocê—disse,atirandoomontesobreumaescrivaninhavazia.—Leiaenão
aborreçaFráuleinMüller.Virou-se e saiu.Obípede esqueceu-o logo.Avançou para a pilha e tirou oprimeiro jornal.Era oFrankfurterMorgenblatt e folheou-o commãos trêmulas até deparar comumacolunaintitulada:
ESTRANHASDECLARAÇÕESDOBÍPEDEDOZÔO.Leuareportagemcomavidez,emborafosseevidentementenadamaisquesuaentrevistacomTassen
reescrita. Então, refreando a impaciência, começou a separar os jornais, em ordem cronológica,empilhando-osnochão.Quandochegouaofimdomonte,encontrou,parasuaalegria,umálbumeumatesoura.
Agachando-se no chão — suas velhas pernas nunca haviam estado tão flexíveis — começoucuidadosamentearecortarasnotíciassobreeleeaapertá-lascontraaspáginasadesivasdoálbum.Pôsorefugodeladoparalermaistarde.
Enquanto trabalhava, descobriu que as reportagens sobre o bípede se dividiam em três classes.Primeiro, reportagensdiretasum tanto sem imaginação,comoadoFrankfurterMorgenblatt Segundo,matérias cheias de simpatia, aparecendo principalmente nos cadernos ilustrados de domingo, algunsassinadospormulheres(ointituladoPRESONOCORPODEUMANIMAL!deCarlaErnsting,eraumexemplotípico).Eporfimumacoleçãodenarrativaseeditoriaisambíguos,queenchiamasúltimasediçõeseasrevistas.Obípedeleuaquelesúltimoscomsurpresaemedocrescente:
Pseudo-humanitáriosneuróticos,diziaaHeute,numeditorialdecolunaaberta,"buscamdegradarahumanidade ao nível de animais, atingindo assim as profundas raízes da nossa civilização. Não seenganem: essas mentes doentias querem que aceitemos como humanos cada pólipo viscoso, saposfedorentos que conseguempapaguear algumas frases em alemão ou atravessar um labirinto comum.OsupostoMartinNaumchikéumexemplo,talvezomaisevidente,dessaespéciedegradadaeviciosa...
O bípede amarrotou a página, numa explosão de raiva. Levantando-se, rodeou a pilha de jornais,olhando-acomódio.Então,abaixou-senovamente,pegouafolhaamarrotada,alisou-aeleuoeditorialatéofim.
Mas estava agitado demais para continuar seu trabalho. Fechou o álbume caminhou até a sala da
frente,olhandoparafora,paraocinzentodiaoutonal.Océutornara-sefrioechuvosoepoucaspessoasandavampelasaléias.
Nãopodiaignorarpormaistempoofatodequeninguémqueriaacreditarqueocorpodeumbípedepudesse ser habitadopor alma ementehumanas.Demaneirageral, ele tambémsimpatizava comessepontodevista.Mascertamenteelesprecisavamverqueaquelaeraumasituaçãoespecial,diferente!
Pensativo,apertouofocinhocontraovidrofrio,nolugarondeospingosdechuva,maisespaçados,escorriamdevagar.
Masqueaconteceriasenãopudessemacreditar?Tentouimaginar-selivre,reconhecidocomoMartinNaumchik,seusdireitosdecidadãorestaurados...
Edepois?Tevederepenteagrotescavisãodesimesmo,umbípedenunasaladaredaçãodoParis-Soir,conversando comEhrichs... e depois numa festa, entre homens emulheres completamentevestidos, decoposnasmãos.
Eraabsurdo,impossível.Ondepoderiair?Quemoaceitaria?Ondeconseguiriatrabalhooumesmomoradia?
Obípedeprojetouoqueixoparaafrenteteimosamente,agarrandoumadasmãosdetrêsdedoscomaoutra.
—SouMartinNaumchik!—murmurou.Masatéemseusprópriosouvidosafrasesooufalsa.
IXOBÍPEDE acordou, sacudindo-se e resmungando, depois de um sonho peculiarmente desagradável.
Algohaviaacontecidocomseucorpo.Seurostosetornaratotalmentemacioemole,suaspernasduras...Ohorríveldaquiloeraquetodos,aoseuredor,pareciamaceitarofatocomointeiramentenormaleelenãopodiaexplicar-lhesoquehaviadeerrado.
Acordou então completamente e sentou-se na cama, estalando asmandíbulas e passando amãonapenugem espinhosa. Compreendeu subitamente que estivera sonhando... sonhando com sua aparênciaantesdamudança.
Sentouporummomento,pensandoestupidamentenaquilo.Foiassaltadoporumaindefinidasensaçãode traição, comose tivesse,decertamaneira,perjurado sua lealdadeparacomaquelecorpohumano,outroratãofamiliar,masqueagoraseassemelhavaauminesperadopesadelo.Ficouumtantoperturbadopelo fato dos seus sentimentos seremcapazes demudar tão radicalmente empoucas semanas.Se issopodiaacontecer,oqueseriadelenofimdetudo?
Saiudacama,sentindovoltarasboasdisposições,comassaudáveisexigênciasdoseucorpo.Afinaldecontas,nãoadiantavasepreocupartantocomopassado.
Eleeraelemesmo,tãodeterminadocomosempree—inteiriçou-seaoperceber—comopodiateresquecido?—aquelaeraamanhãdoajustedecontascomGrück.
Bocejandonervosamente, dirigiu-se para a sala de estar e ligou a televisão de parede.Ainda nãoestavanahoradosnoticiários.Olhoupelajanela,alémdacercaprovisória,adezmetrosdedistância,queostrabalhadoreshaviamlevantadonodiaanterior.Osgramadoseasaléiasestavamvazios,nosolmatutino. Ouviu um leve bater de asas, vindo de um dos aviários distantes, e depois o silêncionovamente.
Agora que a hora se aproximava, estava começando a ficar ansioso. Tinha esperado que Grücktentassedopá-loumavezmais,edormiratodasasnoitesprotegidoporumabarricadadiantedaporta.Mas, comexceçãoda cerca, que impedia as pessoas de se aproximaremda jaula, nada foi feito paraatingi-lo.Arrastouamesaeaestanteparaforadocaminhoepassouaoescritório.
Aoatravessarasala,orostodeEmmaapareceunaportadoquartodela.—Bomdia—disseelatimidamente.—Bomdia,Emma—respondeuobípede,umtantosurpreso.Nãoprestouatençãoaela.Seupensamentoestavavoltadoparaaconferênciadeimprensamarcada
paramaistarde.Afêmeaaventurouumoudoispassosalémdasoleira.—Hojeéquarta-feira—observouela.—Istomesmo,quarta-feira.—ÉodiaemquevocêiráprovarqueéHerrNaumchik.—Sim—confirmouobípede,surpreendidoesatisfeito.—Eentãovocêiráembora.—Sim,suponhoquevou.Queseriaqueaquelacriaturaestavaquerendo?—Euficareicompletamentesozinha—disseEmma.—Bem—respondeuobípededesajeitadamente—esperoquevocêseacostume.
—Sentireisuafalta.Adeus,Fritz—disseEmma.—Adeus.Elavirou-seevoltouparaoquarto.Obípedeviu-adesaparecer,comovidoevagamenteperturbado.Dasaladeestarvieramumabadaladaeumavozentusiástica:"Oito da manhã, horário das notícias! Bom dia, fala o repórter Walter Szaborni, para servi-los.
Setecentos foramdadoscomomortosnum tremorde terra emCalcutá!DoismembrosdoConselhodaBavieraforamacusadosdecondutairregular.Estaseoutrasnotícias..."
Entrandonasaladepressa,obípedepegouacaixadecontrole,aoladodacadeira,eapertouobotãoseletordecanais.Nateladaparede,orostocoradodolocutordesapareceuenoseulugarsurgiuafiguracintilantedeumasenhoraidosa,vestidacomexcentricidade,sentadadiantedotecladodeumpiano.
"Comominhaprimeiraseleçãodestamanhã",anunciouela,comfortesotaqueeslavo,"tocareiDawn,deMorgenstern..."Clique!
Ela cedeuo lugar a um rapazmusculoso, vestidonuma,malhade cor creme, que rodavano chão,apoiadosobreumanádega.
"Fa-cil-men-teatrás",disseele,"eagoranafrente..."Clique!"...trazemosavocêsaúltimanovidade,deumcasoquetodaBerlimvemcomentando",disseumavoz
invisível.Obípedeprendeuarespiração:natelasurgiuaimagemdasdependênciasdoZoológico.Acâmarase
moveuapassonadireçãodoedifícioprincipal.Comumchoquecurioso,virando-seeolhandoparaforadajanela,porcimadosrostosindiferentesdaspoucaspessoasquepermaneciamjuntoàárea,obípedepercebeuoqueestavaparaver.Láfora,sobosoldamanhã,passeandolentamentenogramado,haviaumhomemcomumalevecâmeradetelevisão.
"...queafirmaserMartinNaumchik,umrepórterdoParis-Soir",diziaavoz.Nessemomento,aportaexternarangeu.Obípedevacilouuminstanteedepoisabandonouatela,correndoparaoescritório.Eraoguarda,comocarrinho.
—Otto!Vocêtemalgumrecadoparamim?—Nenhumrecado.Coma—respondeuOtto,retirandoastravessasdocarrinho.—Mas,aconferênciadeimprensaserámesmorealizada?Jáchegoualguém?—Cheiodegente—grunhiuOtto.—Tudoaseutempo.Coma.Afastou-se.Mascomerestavaforadecogitação;obípedeespalhouacomidacomogarfo,comeuum
pouco,depoisafastou-seecomeçouaandardeumladoparaooutronasalainternaatéqueaportaseabriueOttovoltou.Parecia-lheterempassadohoras.
Quando sedirigiu ao escritório, obípedeviuEmma,na soleiradaporta, olhandonovamenteparafora.Ignorando-a,perguntou:
—Elesestãoprontosparareceber-me?—Sim.Venha—disseOtto.Obípedealisouosespinhoseseguiu-o.Haviamultidõesforadagaleriaenoscorredores.Obípede
viuPrinzmetalpassarcomumaexpressãodecaçador.Foradasalade jantardo terraço,haviahomenscom fonesnoouvido, curvados sobre caixasdemetal cobertas de interruptores e botões.Umpolicialberlinensedeuniformebrancomontavaguardaàentrada.Semlheprestaratenção,Ottoabriuaportaeinclinou-separadentrouminstante,bloqueandoapassagemcomocorpo.Faloucomalguémefechouaportaoutravez.
—Espere—disseparaobípede.Momentosdepois,aportaseabriunovamenteeumrostopálidoesuadosurgiu.Eraumrapazqueo
bípedenuncavira.—Estábem,traga-o.Rápido,rápido!—Sempreapressado,hem?—resmungouOtto.—Muitobem,vamoslá.
Deuumempurrãonobípede.LádentroorapazpálidopegouobraçodeFritz.—Vamoslogo,nãodevemosdeixá-losesperando!Portrásdele,alémdascostasdevárioshomens
queestavamjuntosempé,obípededivisouarotundafiguradeGrückdooutroladodeumamesa.—Eagora—falouoDiretor,comvoznervosa—apresento-lhesFritz,obípede.Obípedecaminhoufirmementeemmeioaosilêncio.Aamplasalaestavarepletadegente,unsempé
comcâmeras,orestosentadoàsmesasespalhadasaoredor,atéàparededofundo.Quandoobípedeseaproximou,Grücklançou-lheumolharinescrutável.
—Conteaelessuahistória,Fritz...oudevodizerHerrNaumchik?Curvou-seedeuumpassoparatrás,deixandoobípedesozinho.Estepigarreou,comuminesperado
grasnarqueprovocouumaondaderisosnasala.Assustadoefurioso,inclinou-separaafrenteeagarrouabordadamesa.
—MeunomeéMartinNaumchik—começouemvozalta.A sala se acalmou quase imediatamente quando principiou a falar e ele pôde sentir a respeitosa
atenção dos ouvintes. Adquirindo confiança, relatou os fatos clara e objetivamente, começando domomentoemqueseachoudentrodajauladobípede.Enquantofalava,olhavaaoredordasalaesperandoencontrarrostosfamiliares,masasluzesestavamcolocadasdetalmodoqueelemalconseguiadivisarassilhuetasdosqueoolhavam.
Quandoterminou,fez-seummomentodesilêncio,depoishouveumrebuliçoeumaflorestademãosseelevou.
—Osenhoraí—indicouobípedeaoacaso,semajuda.Umamulherpôs-sedepé.—Quemlhedisseparacontartudoisso?—perguntou.Tinhaorostoindignadoeosolhosbrilhavam.
Ummurmúriodeprotestocercou-a.—Ninguém—falouobípede,comfirmeza—Oseguinte!Osenhoraí...sim,osenhormesmo.— Você disse ter-se formado na Sorbonne em 1999. Quem era o chefe do departamento alemão
naquelaépoca?—HerrWinkler—respondeuobípedesemhesitareapontouparaoutroinjuriador.—QuemeraseuchefenoParis-Soir,quandovocêtrabalhavanaredação?—ClaudeEhrichs.Amaiorpartedasperguntaseraigualàsquehaviarespondidoantes,muitasdelasinúmerasvezesem
entrevistasanteriores.Continuaradarasmesmasrespostasfê-losentirumapontadedesânimo.Quandoterminariatudoaquilo?Masaatitudedosouvintesreanimou-o:estavamrespeitosamenteatentosemesmoamáveis.
Umhomemalto,debarbavermelha,levantou-se.—Permita-meumapergunta,HerrNaumchik.Qualsuaexplicaçãoparaessacoisaestranha?Quala
causadela?—Nãotenhonenhumacausa—falouobípedegravemente.—Masestoudizendoaverdade.Houveummurmúriodesimpatia,quandoohomemdebarbavermelhasentou-se.Obípedeabriua
bocapararecomeçarafalar,masantesquepudesseouviu-seavozmelífluadoDr.Grück.—Aquiterminanossopequenoperíododeperguntas,muitoobrigado,senhoresesenhoras.Grückavançou,seguidopordoisguardasque,rapidamente,pegaramosbraçosdobípedeeolevaram
paraforadasala.Obípede,aprincípioapanhadodesurpresa,começouaresistir.—Aindanãoterminei!—gritou—Apeloparavocês,façamcomquemesoltem.—Apesardese
debater, os guardas o arrastaram para longe da mesa. — Façam com que me soltem! Sou MartinNaumchik!
Chegaram à porta. Atrás deles levantou-se um protesto indignado da assistência. Houve gritos de"Vergonha!Tragam-nodevolta!"Sobrepondo-seaocrescentetumulto,avozdeGrückrepetiaemvão:
—Ummomento,senhoresesenhoras!Peço-lhesporfavor!Ummomento!Ummomento!Osguardasempurraramobípedeparafora.Aportasefechou.Obípedeparoudedebater-se.—Quersecomportar?—perguntouumdosguardas,ajeitandoocolarinho.Ottoapareceu,saídodaturbacomaexpressãoestúpidadesempre.—Podemir,seprecisardevocêschamarei—rosnouele.—Venha,Fritz.Obípedeseguiu-odocumentemasseucoraçãobatiaaceleradodeexcitaçãoeraiva.—Vocêouviu?—perguntou.—Vocêouviucomoaquelehomemme impediude falar,exatamente
quando...—Eu não— interrompeuOtto.—Nãome importo com essas coisas.Estive sentado lá embaixo
fumando.Evitando a multidão, empurrou o bípede para uma escada dos fundos. Desceram dois lanços e
atravessaramumaexposiçãodelivrosabrindocaminhoporentreasmesas,roçandoporfaixasvermelhasqueconvidavam:"Leiaumlivrosobreanimais!".Aquelapartedoprédioestavaquasedeserta,bemcomoagaleria.
Assim queOtto trancou a porta externa, o bípede ouviu a voz deGrück retumbar de dentro. Suaexcitaçãocresceuoutravez:correuà saladeestar.Na telada televisão,o rostovermelhoe suadodeHerrGrückolhavaferozmente.
"Senhoresesenhoras,peço-lhessuabondosaatenção!Senhoresesenhoras!"Avozdeumcomentaristainvisívelcortou-ocalmamente:"Osalãoestáaindabastantetumultuado.HerrDoktornãoconseguesefazerouvir."Obípededançoude alegria dianteda tela, batendopalmas.Lá fora, alémda cerca, amultidão se
aglomerava,maselenempercebia.Osomdatelevisãotinhaumaqualidadecuriosamenteressoanteeelepercebeu,depoisdeummomento,queEmmadeviaterligadotambémseuaparelhonoquartoaolado.
Oruídodiminuiu.Grückgritou:"Senhores e senhoras... ouviram as declarações do bípede! Agora permitam que o Diretor do
Zoológicotambémsepronuncie!"Ouviram-seaplausosesparsos.Osilênciofoiquebradonoinícioportossesearrastardepés.Quando
setornoucompleto,Grückvoltouafalar."Peço-lhesquepensemnumacoisa",disse."OndeestáMartinNaumchik?"Olhoudeumladoparaoutro.Osilênciotornou-semaisprofundo."OndeestáNaumchik,esseoperosojornalistaqueconseguiutaltriunfo?"Ummurmúrio se ergueu.A câmera girouparamostrar a constante agitaçãoda sala e umaouduas
pessoasselevantando.Vozesindistintassefaziamouvir."Estará andando pelas ruas de Berlim, com amente de um animal dentro do seu corpo?". Grück
insistia."Porqueentãonãoévisto?Nãoéumaperguntainteressante,senhoresesenhoras?Issonãoosfazpensar,não lhesdespertao interesse?Voltoaperguntar:onde está esse famosoMartinNaumchik?Estáseescondendo?"
Encarouacâmera,comosolhosbrilhandoportrásdosóculossemaros.Obípedecerrouospunhosinvoluntariamente."E se eu agora lhes disser que todos estamos sendo vítimas de um logro inteligente?'', perguntou
Grück. Houve vaias e resmungos no auditório. "Não acreditam? Estão mesmo tão definitivamenteconvencidos?"
Uma voz profunda elevou-se no auditório: era o homem alto, de barba vermelha, que já sepronunciara.Suavozaumentoueficoumaisclara:
"...estafarsa.Porquetiveramtantapressaemafastarobípede...porqueelenãoestáaquiagoraparacontinuarafalar?"
Gritosdeaprovação.Ohomemdabarbavermelhaficousatisfeitoecruzouosbraçossobreopeito.
ODr.Grückapareceudenovo."Meu caro HerrWilenski— é este o seu nome, não?— o senhor verá que eu estou dizendo a
verdade."Bateudelicadamentenopeitogordo."Estebípedeéumanimalmuitovalioso,masétambémaltamenteexcitávelenervoso.Precisaserprotegido.Voucolocarsuasaúdeemperigo?Pensaquesoulouco?"
Umapequenagargalhadaencobriuosgritosdeaprovação.Ohomemdebarbavermelhaocupouatelaoutravez,apontandoodedoseveramente."Eaacusaçãodobípede,dequeossenhoresodrogaram?Quemedizaisso?"OrostogravedeGrückapareceuemprimeiroplano:"O animal deve ter apanhado em algum lugar o pedaço de sabão, Herr Wilenski. O guarda
responsáveljáfoi..."("Sabão?",repetiuavozdeWilenski.)"Sim,sabão.Ossaisdesódioepotássiodosabãotêmefeitotóxiconessesbípedes.Osenhorprecisa
lembrar de que eles não são seres humanos, Herr Wilenski." Ergueu a mão gorducha. "Deixe-mecontinuar" (murmúriosnoauditório). "Mas,antes,querodizer-lheumacoisa,HerrWilenski, ea todosaquipresentes: senãoconseguir convencê-losdequeestamosdiantedeumamistificação,deumsujoplanopublicitário,sedepoisdemeouviremaindaacreditaremquenaquelepobrecorpodebípedeexisteaalmadeumserhumano,prometosolenementelibertarMartinNaumchik!"
Sensaçãono salão.Obípede fechouos olhos, sentiu-se fraquejar e tateou atrás dele a procura dacadeira.Seualíviofoitãogrande,quenemouviuasrestantespalavrasseguintesnatela:
"...nósaquinoZoológicoestávamostãonoescuroquantoossenhores,podemcrer!Comopôdetalfato ocorrer? Nem por um instante acreditamos na história do bípede... mas que outra explicaçãopodíamosencontrar?Nãosabíamosmaisoquefazer,senhoresesenhoras...atéquetivemosafelizidéiade examinar a jaula dobípede! Imaginementão, qual não foi o nosso choque, o nossohorror, quandoachamos...isto!"
A câmera recuou.Grück,meio de lado, estendia amão, num gesto dramático, na direção de umamáquinaqueestavasobreumamesinhaatrásdele.Umassistenteempurrou-aparapertodacâmera.Peloqueobípedepôdeperceber,nadamaiseraqueumgravadorsolidstatesemelhanteàquelequeOpatescuhaviausado...
Sentiuumfrionocoração.Inclinou-separaafrente,preocupado."Sob as cobertas da cama do bípede", continuou a voz de Grück, "encontramos escondida esta
máquinadegravar!""Ecomofoipararali?",reboouavozdeWilenski.Grückvoltouorosto.Suaexpressãoerasolene."Ainda estamos investigando", respondeu. "E podem estar certos de que, quando forem presos os
indivíduos culpados, serão punidos com toda a severidade da lei! Por enquanto, só posso dizer queestamos muito interessados em interrogar o guarda que foi despedido." Aproximou-se da mesinha,colocandoamãosobreogravador."Agora,desejoquetodosouçamoquenósencontramosnoaparelhoescondido!Escutemcomatenção!"
Eligouogravador.Depoisdeummomento,umaprofundavozdehomemsefezouvir:"Ouçaerepitadepois.MeunomeéMartinNaumchik...NasciemAsnières,em1976...Soujornalista.
TrabalhoparaoParis-Soir.MeuchefeéMonsieurClaudeEhrichs..."Ummurmúriodistanteatravessouaparededevidro.Obípedevirouacabeçainvoluntariamenteeviu
umpequeno grupo de pessoas aglomerado em torno da antena de um aparelho portátil deTV. Punhoscomeçaramasersacudidos.Vozeschegaramatéeleabafadas:"Charlatão!Mistificador!"
Com um sentimento de perdição, o bípede voltou-se para a tela. A câmera agora fazia uma
panorâmica sobre os rostos dos espectadores. Ele viu choque e surpresa darem lugar ao cinismo, aodesgostoeàraiva.Começaramalevantar-se,aquieali,portodoosalão,algunsseretirando.Obípedeviuohomemdebarbavermelhadirigir-separaocomeçodocorredor,balançandoacabeça.
—Espere!Espere!—gritouobípede,masohomemnatelanãopodiaouvi-lo.Asalaseesvaziou.Avozmonótonadorepórterparoudefalar.Grückpermaneceuainda,olhandosem
pressaamultidãosair,comumimperceptívelsorrisodesatisfaçãonoslábios.Wenzl inclinou-se para falar com ele. Grück balançou a cabeça, com ar ausente. Seus lábios se
contraíram:estavaassoviando."Eassim",disseolocutorsemfôlego,"comestadramáticarevelação,omistériodobípedehumano
ficouesclarecido!HerrDoktorGrücktemtodasashonrasporsuadignacondutanestadifícilsituação!Vamosvoltar,agora,aosnossosestúdios".
A tela tremeu e ficou clara. O bípede bateu no botão de controle às cegas. A imagem esmaeceu,encolheuesumiu.
"Ssss!Fritz,omistificador!Ssss!",chegavamatéeleasvozesvindasdefora.A agitação no Viveiro redobrou no momento em que Wenzl entrou. Os tucanos abriram seus
gigantescos bicos, agitaram as asas e começaram a gritar. O ar ficou cheio de pequenos pássarosesvoaçantes,comlampejosdepenasvermelhas,amarelaseazuis.Asararaspuseram-seaagarrarebicarospoleirosdemadeira,atirando-secontraainvisívelcercadeargritando:"Violação!Violação!"
Wenzlpassoupor eles, comseu rostomortocomoodeum tubarãobranconadandopelocorredorverdedoViveiro.
Nofimdoedifício,doispoliciaisauxiliaresmontavamguarda.Tudoemordemali.Wenzlatravessoua porta de saída meio aberta, abrindo caminho entre a multidão vagarosa e dirigiu-se à Casa dosPrimatas.
Guinchos,rugidoseotrovãodasgradessacudidasosaudaramquandoatravessouolimiar.Caiararasseatiraramunsnascostasdosoutros,amontoando-senasgrades,mostrandoosafiadosdentesafiadosegritandoaplenospulmões.Osmacacosnarigudosdesceramdosseuspoleirosdetrêspernaspiscandoetagarelando.Hugo,obabuíno,pulouruidosamentecontraasgrades,afastou-seedeuumacambalhotanoar,exibindootraseiroazul.Osdoischimpanzésbatiamnasgradeseguinchavamjuntos.
Wenzlmoveu-seentreasjaulas,atentoecalmo.Passou,então,poroutraentradaaberta,paraaCasadoRépteis.
Aliestavatudosilencioso.OolhardeWenzlsuavizou-sepelaprimeiravez.AsenormestartarugasdasGalápagos,grandescomocarrinhosdemão,mastigavamcalmamenteumpédealfacecomsuascruéismandíbulas. A jibóia enrolava-se preguiçosamente, com um respeitável pedaço metido na garganta.Quatrocascavéissibilavamematraqueavamdeleve,deslizandoentreaspedrasdassuastocas.
Emsuajaulailuminada,acobraverdependiaemfestõesgraciosos.SuaminúsculacabeçaondulouparaWenzl.Alínguarosadatremulouparafora.Wenzlparouuminstanteparaolhá-lacomprazer.
NaCasadosMamíferosTerrestreshaviaumamultidãoemtornodochiqueirodosrinocerontes,ondePrinzmetal estava dando uma injeção num deles. Ao terminar, pulou a grade e juntou-se a Wenzl,esfregandoassobrancelhascomumpano.
—Foibemsucedido?—perguntouWenzl.—Oh,achoquesim—concordouPrinzmetal,comsuavozsuaveemodesta.—Elevaificarbom.—Énecessárioqueelefiquebom.—Oh,ficará.Caminharam juntos em direção à saída, dobraram à direita e abriram uma porta onde se lia: "É
proibidaaentrada".Umguardamagro,decabeloslouros,vinhadepressanadireçãodeles,carregandoumbaldedepeixe.—Schildt,porquenãotemalimentadoosleõesmarinhos?—inquiriuseveramenteWenzl.
—Jáestouindo,senhor!—retorquiuopobreguardaemposiçãodesentido.—Entãooqueestáesperando?Vá!—Sim,senhor!Wenzl,continuandoaandarao ladodePrinzmetal, tirouumpequenocadernodenotasdobolsodo
peitoecomumminúsculolápisdeprata,aguçadocomoumestilete,rabiscouumaminúsculaobservação.Prinzmetalfitou-ocomumsuaveolhocastanho,masnãofezcomentários.
—Vocêviuosjornais?—perguntouPrinzmetal,quandotomaramoelevador.—Sim—retrucouWenzl.Saíram.WenzlhesitouedepoisseguiuPrinzmetalatéolavatóriodossubalternos.—Quejornais,exatamente?—perguntou.Prinzmetal,surpreendido,ergueu-sedapiaondecomeçara
alavarasmãos.—Ora...esteaquinamesa.OZeitung.Naterceirapágina.ContaahistóriadeumbebêemBuenos
Airesqueentendetudooquevocêlhedisseremfrancês,espanholealemão.Comapenastrêsmesesdeidade.
—Li.—Eomaiscurioso...oquemechamouaatenção...—Équeaama-secafrancesadogarotosofreuumataquedeloucuraaomesmotempo—completou
Wenzl,comvozcortante.—Foi—dissePrinzmetal,interrompendoalavagemdasmãos.—Elaestáinconsciente—falouWenzl.—Está.— Não entende nada, tem de ser alimentada e só dá uns gritinhos infantis. Mas o bebê entende
francês,alemãoeespanhol.—Entãovocêleuojornal—falouPrinzmetal.—Evocê,viuistonoTageblatt?—perguntouWenzl,quasecomrelutância.Tirouumjornaldobrado
dobolsodopeitoeleu:"Umhomemesuamulher,naTasmânia,afirmam,cadaum,serooutro".—Ouvitambém,natelevisão,quequandoestavalançandoumapedrafundamentalemAberdeen,o
prefeitotransformou-senumagarotanua,quefugiuchorando—contouPrinzmetal.—Mas,quemsabeoqueessescarasinventameoqueéverdade?
—Supondoquetudoissopodeserverdade?—perguntouWenzl,dobrandoojornalcuidadosamenteepondo-odelado.
—Seriainteressante—observouPrinzmetal,voltandoaatençãoparasuasmaciasepeludasmãos,quecomeçouaesfregarcuidadosamente.
—É?—Énossodever relatar aoDiretor tudoque for de importância para o trabalhodoZôo— falou
Prinzmetal,comoserecitasseumalição.—Poroutrolado—dissedeliberadamenteWenzl—éinútilemesmodesastrosotomarotempodo
HerrDoktorcomescândalosjornalísticossembase.Osdoishomensseentreolharamporummomento,comardecompletoentendimento.—Afinaldecontas—comentouPrinzmetal,enxugandoasmãos—qualaimportânciadetudoisso?— Exatamente .— concordou Wenzl e dobrando seu jornal no sentido do comprimento, jogou-o
dentrodalatadelixo.Quandoorapazacordou,estavanumacamaestreitadeumasaladeazulejosbrancos.Fios,vindosde
foradacama,estavampresosnasuacabeça,braçosepernas,comapertadasataduraselásticas.Puxou-os,comirritação,masnãosesoltaram.
Olhouaoredor.Viuumaportaaberta,masnenhumajanela.Aumcanto,portrásdeumbiomboquequaseaescondia,haviaumalatrina.Dooutrolado,umafrágilpoltronadeplásticoeumaluzparaleitura,masnadaparaler.
Orapaztentoulevantar-se,puxandoosfios,edescobriuquetinhamjuntasprateadasquepodiamseseparar.Saiudacama,arrastandoosfios.
Depoisdeummomento,umamulhercorpulenta,comuniformedeenfermeira,entrouebotoualínguaparaele.
—Depá,hem?Quemlhedissequepodia?—Queroiràlatrina—respondeuele,gemendo.—Estábem,váedepoisvolteparaacama.HerrDoktorHölderleinaindanãooexaminou.Parasuasurpresa,amulherparoudebraçoscruzadosemfrenteaeleeficouaolhá-lo,enquantoo
rapazusavaa latrina.Depois levou-oatéacamae fê-lodeitar-se,enquanto ligavaas juntasprateadasnovamenteaosfioseaoredordacama.
—Fiquequieto—ordenouela.—Nadadebobagens.Aquiestáacampainha...toque-aseprecisardealgumacoisa.
Mostrouaeleumaperaplásticanapontadeumfiaflexívelesaiu.—Euestoudoente?—gritoueleàssuascostas,masamulhernãovoltou.Orapaztentoumaisumaveztirarasataduraselásticas,masdesistiu.Suasúltimaslembrançaseram
confusas. Recordava-se vagamente da queda na rede, de ter sido agarrado e ter resistido. Então asensaçãodesercarregadoearápidavisãodemuitaspernascaminhando...depoisnada,atéseacharnominúsculoquartoladrilhadodebranco,combarrasnolugardaporta.Suasroupashaviamdesaparecido,eestavausandoumpijamacinza.Ninguématendeuaoseuchamado,atéquecomeçouabaternasbarras,com um jarro demetal que achou no quarto. Veio então um homem e esguichou água nele, com umamangueira.Entãodeixoudebater,massentou-seecomeçouatremer.
Lembrou-seaindadetercaídonosono,edeseterlevantadopelomenosduasvezesnaquelequarto.Numa das vezes deram-lhe comida. Depois dois homens vieram buscá-lo, lhe devolveram a roupanovamenteelhederamcafé,coisaqueelegostou.Levaram-noentãoatravésdeumlongocorredorparauma sala cheia de gente e lhe disseramque esperasse.No fundo da sala, por trás de um alto balcão,estava um homem com um manto vermelho e um chapéu desengonçado, também vermelho. O rapazdescobrira,assistindotelevisão,queaquelehomemeraumjuiz,equeeleiaserjulgado...
Agoraeleestavaemoutrolugar.Otempopassou.Orapazcomeçouaficarcomfome,masnãotinhacoragem de tocar a campainha. Por fim, um atendente apareceu com um carrinho e lhe foi permitidosentar e comer. Era quase como no Zôo. Então o atendente voltou para apanhar o prato e ligou-onovamenteaosfios.Durantemuitotemponadamaisaconteceu.
O rapaz estava perplexo. Por que se encontrava ali? O que o juiz e aquele outro homem tinhamcochichadolánofundodasalaeporqueojuizpareciatãoaborrecidoquandoolhouparaele?
Aquelelugareramelhorqueaprisão,nãotinhadequesequeixar.Mas,senãoestavadoente,porqueopuseramali?
Campainhassoavamdoladodefora.Ocasionalmente,passavampessoasrapidamentepelasuaporta,comsolasmaciasquesibilavamerangiamnosladrilhosdoassoalho.
Entãoaenfermeiratornouavoltar.—Vocêestácomsorte—informouela.—HerrDoktorHölderleindissequevocêpodeverHerr
DoktorBoehmerhoje.—Eladesligouosfioscombrusquidão,ajudando-oalevantar-se.—Venha,nãodeixeomédicoesperando.
Pegou-opelocotoveloe levou-oparaovestíbulo,ondemensagensem letrascoloridasondulavamsilenciosamentepelasparedes,edaíparaumescritório,ondeumhomemdebigodeestavasentadoatrásdeumaescrivaninha.Sobreelaumatabuletaquedizia:HrDr.Boehmer.
Omédicomediuorapazlongamentecomumolharedesatarraxoulentamenteumtacrógrafoforademoda.
—Sente-se,porfavor.—Começouaescrevernumbloco.—Agora,podemedizerseunome?Orapazhesitousóummomento.Seeledissesse"Fritz",sabiamuitobemqueomandariamdevolta
aoZôo.—MartinNaumchik,HerrDoktor—respondeu.—Ocupação?—Jornalista.Omédicobalançouacabeçalentamente,escrevendo.—Eseuendereço?—Gastnerstrasse.—Quenúmero?Orapaztentoulembrar-se,masnãoconseguiu.ODr.Boehmerfranziuoslábiosgrossos.—Vocêpareceumpoucoconfuso.DesdequandovocêmoranesseapartamentoGastnerstrasse?Orapazmudoudeposiçãoconstrangido.—Achoquehádez...oumelhor,onzedias.—Vocênaverdadenãoselembra.DoktorBoehmerescreveualgumacoisadevagar, comsuagrossa letrapreta.O rapazolhou-ocom
apreensão.—Bem,vocêpoderiamedizerpelomenosadata?—Dezdejunho,HerrDoktor...outalvezonze.AsespessassobrancelhasdeBoehmerergueram-seimperceptivelmente.—ótimo.EpodemedizerqueméopresidentedoSupremoConselho?—HerrProfessorOnderdonck...estácerto?—Não,nãoestácerto.Foipresidentenoanopassado.Boehmerescreveualgumacoisalentamenteno
bloco.—Muitobem—cruzouosbraçosgrossossobreobloco,segurandooenormetacrógrafopretocomo
sefosseumcharuto.—Diga-me,lembra-sedeterestadonaloja?—Sim,HerrDoktor.—Edeter-seescondidoláemcima,descendoduranteodia?—Sim,HerrDoktor.—Eporquefaziaisso?Orapazhesitou,abrindoefechandoabocadiversasvezes.—Podedizer-me,HerrNaumchick.Prossiga.Porquefaziaisso?Orapazrespondeu,desanimado.—Porquenãotinhaparaondeir,HerrDoktor.Boehmerlentamentedescruzouosbraçosefezoutraanotaçãonobloco.Estendeuamãosemolhare
alcançouumasinetanocantodaescrivaninha.—Entendo.Muitobem,HerrNaumchik,amanhãàmesmahora,deacordo?—Sim,HerrDoktor.Aenfermeiraentrou,segurandoaportaaberta.Orapazlevantou-sedocumenteesaiu.—Odoutordissequevocêpodedormirsemosfiosestanoite—falouaenfermeiraasperamente,
quandovoltaram ao quarto.Respirando fortemente pelo nariz, ficou junto dele e começou a retirar asataduraselásticas.—Nãosetorça—disse.
—Estádoendo.—Bobagem, é só um instante. Pronto.—Enrolou as ataduras, amarrou os fios em torno delas e
virou-separasair.—Agoradeite-seedescanse.
—Mas,enfermeira,porquetenhodeficaraqui?Estoudoente?—perguntouorapaz.Elavoltou-seeolhou-orapidamente.—Éclaroqueestádoente.Masestámelhorandomuito.Agoradescanse.Egingouparafora.Muitotempodepoischegouojantaretambémpílulasparatomar.Quandoacordou,haviaamanhecido
novamente.—Boas notícias!— gritou a enfermeira, entrando para ajeitar os travesseiros.—Você tem uma
visitahoje.—Tenho?—perguntouorapaz.Ocoraçãodelecomeçouabatermaisdepressa.Nãoconseguiaimaginarquempoderiaser.Alguém
doZoológico?—Umasenhorita—disseaenfermeiramaliciosamente.—Comosechama?Nãoconheçonenhumasenhorita.—Hátempoparatudo.Tomeseucaféagora,depoisobarbeiroviráaprontá-loeentãopoderáver
suaamiga.Saiu.Orapazesfregouamãonapenugemquecresciaemseuqueixoefaces.Sabiaoqueerabarbear-
se,masnãocomoerafeito.Deviaserbombarbear-se.Obarbeirochegoudepoisdocafé.Eraumhomembaixoemorenovestidodebranco,queligouum
aparelhozumbidornaparedeecomeçouapassá-lonascosteletasdorapazcomexpressãodeenfado.Aprincípio repuxavaedoía,mas logo sentiu-semelhor e finalmenteospêlosdesapareceram todos.Suapeleparoudecocareficoudeliciosamentesuaveaotoque.
Esperou com impaciência.Um ajudante entrou e deu-lhe um pente. Penteou várias vezes o cabelodiantedoespelho,atéacharqueestavabem.
Então teve de esperarmais. Por fim a enfermeira entrou novamente, examinou-o com ar crítico edisse:
—Muitobem!Siga-me!Levou-oparaumapequenasalacomjanelas,quasevaziaeclara,comcadeirasestofadaserevistas
numamesinha.Havia nela umamulher vestida de azul.Um homem de roupa branca estava de pé umpouco atrás dela. Olhando de um para outro, o rapaz reconheceu o Herr Doktor Boeh-er quaseimediatamente,massópercebeuquemeraamulherquandoestadeuumpassoàfrente.Eraamulherdaloja,aqueoesbofeteara.
—Oh,meupobreMartin,queaconteceucomvocê?—lamentou-seela,estendendoosbraços.Orapazrecuou,nervoso.—Disseramqueestoudoente—murmurou,olhando-adeperto.—Reconheceentãoseujovemamigo,FrauSchorr?—interrogouomédicoamavelmente.—Elenãoselembrademim—respondeuamulhercomvozfirme.—MaséMartin,claroqueé
Martin.—Easenhoraé...Amulhermordeuoslábios.—Irmãdele.Seráquepodereilevá-locomigo,HerrDoktor?Queacha?—Issodependedemuitas coisas,FrauSchorr— respondeuomédico, severamente.—Venhaao
meuescritórioquandoterminarediscutiremosdetalhadamente.—Sim,voujá—respondeu.Voltou-separaorapaz.—Martin,vocêgostariadeircomigo?Elehesitou.Eraverdadequeelanãoparecia tãoentusiasmadacomoantes,masquemsabequando
estariadispostaoutravez?—Iremboradaqui?—insistiuela.Orapazresolveu-se.
—Sim,porfavor,gostaria.Elasorriuparaeleevirou-separaomédico.—Muitobem,HerrDoktor,jáestouàsuadisposição.Atébreve,Martin...Saíramambos.Aenfermeiraentroulogoparalevá-lodevoltaaoseuquarto.Então,emboraorapazesperassecomansiedade,nadaaconteceuanãoseroalmoço.Depoisquea
refeiçãoterminou,esperouainda,começandoairritar-se,masotempopassoueninguémveio.Oatendentetrouxeojantar.Começouaficarassustado.Esealgumacoisaestivesseerradaeamulher
nãovoltassemais?Aenfermeiranãorespondiasuasperguntas,masficavarepetindocoisasidiotascomo:—Espereeverá.Nãosejatãoimpaciente.Porqueestácomtantapressa?Deu-lhepílulasparatomar,insistindoemligaroutravezosfios.Quandoacordoueradianovamente.—Boasnovas!—gritouaenfermeiraalegremente,entrandonoquarto.—Vãodispensá-lohoje!—Vãomesmo?—perguntouorapaz,ansioso.Tentoupulardacama,masfoi impedido.—Queo
diabooscarregue!—gritou,furiosocomosfios.—Enfermeira,querominhasroupas!—Quegênio!Quegênio!—disseela,erguendoosbraçosefingindodesânimo.—Nãopodeesperar
atédepoisdocafé?Queimpaciência!Desligouosfioseretirou-osdacama.—Apressaéinimigadaperfeição—continuouela.—Vamos,lave-se.Tudoaseutempo.Saiuapressada.Orapazselavouepenteouocabelonovamente.Eraduroficarsentadoesperando.Ocaféveioeele
comeuumpouco,pensando:"Agoraeladeveestarchegando".Massepassarammaisalgumashorasdamesmamaneirainfindáveldeantes.Queteriasaídoerrado?
Plantou-senasoleiradaporta,esperandoaenfermeira.Elafinalmenteapareceu.Segurouamãodela.—Enfermeira,quandovãomelevardaqui?—Logo,logo—respondeu,passandoporele.—Vápentearseucabelo.Nãosepreocupe.Nãovai
demorarmuito.—Mas,vocêdissequeseriahojedemanhã!—gritouorapaz.Nãoadiantou.Elasefora.Depoisdeterficadosentadodurantemuitotempoolhandoperdidamenteparaochão,umatendente
entrou.—Seucabeloestáumpavor—disse.Oatendentetinhaocabelocuidadosamenteondulado,brilhandodeóleo.—Useomeupente,tome—disse.—Quandovãomedeixarsairdaqui?—Nãosei.Breve—disseoatendentecomindiferençaeafastou-se.Chegou a hora do almoço.Agora o rapaz compreendeu que tudo não passava de uma brincadeira
cruel.Ficoudeitadonacama,semtocarnosalimentos.Ouviubateremnaporta.Oajudanteentrou, empurrandoumcarrinhodemetal comalgumas roupas
penduradas.Olhando incredulamente, o jovem reconheceu as calças e o sobretudoqueusava antes deentrarali.Ocasacoestavarasgadodoladoeamangamanchadacomumamassagrossafedorenta.
—Vistaisto—disseoatendente.—Ordens.Retirou-se.O rapazvestiu-sedesajeitadamente.Ocoraçãobatia acelerado e tinhadificuldade emdescobrir o
ladocertodascoisas.Conseguiufinalmentesevestirepenteouocabelocomcuidadomaisumavez.Então esperou. Passos iam e vinham apressadamente no corredor. Pessoas de blusas brancas
passavam e tornavam a passar. Uma campainha soou e um menino de camisolão púrpura passoucarregandoumavela num recipiente de vidro, seguido por umhomemde roupa escura, cabeça baixa,
murmurandoalgumacoisaparasimesmo.Acampainhaecoounadistância.Ouviuumagargalhadaemalgumlugarnãomuitolongedali.—Bem,vocêsabeoqueeutivededizeraele!—exclamouumavigorosavozdehomem.Então, duas vozes começaram a falar ao mesmo tempo, em tom baixo, e o jovem não conseguiu
entendermaisnada.Passosseaproximaramnovamentedaporta.Umamulherentrou.
XAPRINCÍPIONÃOPERCEBEUqueeraFrauSchorr.Estavamaisformalmentevestidaquenodia
anterior,comumaexageradasaiarodada,quelheocultavaasformasdocorpo.Estavapálida,nervosa,enãooencarou.
—Martin,elesprometeramdar-lhealtaàsnoveetrintadestamanhã—foidizendo—eagorasãoquase...
—MadameSchorr—interrompeuoatendente,pondoacabeçanaporta,—estãopedindoquedesçaatéoescritórioimediatamente.
—Oh!meuDeus—disseamulhere,virando-se,foiemboraoutravez.Orapazesperou.PorfimFrauSchorrentrou,andandoapressadamente.Destavezpareciaexuberante
eenérgica.—Venhadepressa—falou,pegando-lheobraço—antesqueelesmudemdeidéia.—Possoir?—perguntouele.—Sim,estátudoacertado.Depressa!Ela levou-o para o corredor branco, passando pelas letras piscantes da parede.Havia vasos com
plantasemcadainterseçãodecorredores:sempreamesmaplanta,combrilhantesfolhaspontiagudas.Entraram num elevador veloz, idêntico ao que o rapaz vira na loja. Abriu-se para eles, estalou
fechandoecomumaquedaatordoanteestavamsendoarremessadosparabaixo.Outraquedanadireçãocontrária, um estalo e se viramparados emumgrande vestíbulo de ladrilhos cinzentos, com enormesjanelasdevidroclaro,atravésdasquaisorapazpôdeveratorrecentraldaFlugbahn,brilhandoàluzdosolcontraocéudeumazulpuro.
—Depressa!—disseamulher,levando-oparaoutroelevador.Esteeraemespiral.Caíramporumtubodevidro,passaramaprincípioporparedesescurasedepois
impetuosamenteparaaluzdodia.Oqueaconteceracomoedifício?Ojovemestendeuopescoçoeviuo titânicoblocodealvenaria
desapareceracimadesuacabeça.Tinhamemergidodofundodohospital,queerasustentadonoespaçopor pernas de cimento.Ao redor, um viçoso gramado verde e jardins floridos.Apenas outro edifíciopodiaservistoàdistância:umúnicoblocodespretensiosamenteentalhadoempedrarosada,semjanelasouentradasvisíveis.Além,ostetosdealgunsprédiosseerguiamacimadotopodasárvores.
Oelevadormergulhounosolosemparareumminutodepoisestavamnumtúnelsubterrâneobranco,fracamente iluminado.Aodeixaremoelevador,umcarroovalaproximou-sesobreduasgrossasrodas.Paroueotetotransparentegirou,abrindo-se.Nãotinhamotorista.
Orapazencolheu-se,masFrauSchorrinsistiuparaqueentrasse.Sentaram-senasalmofadasfofas.Otetohesitou,desceulentamenteefechou-secomumestalo.FrauSchorrinclinou-separaafrente.
—Leve-nosasaídadaFiedlerPlatz,porfavor.Depoisdeumapausa,umavozmecânicafaloupelagradeàfrentedeles:
—Sãodoismarcosedez,porfavor.Amulherprocurounabolsa,achouumanotaecolocou-anafendajuntoàgrade.—Obrigado—disseavoz.Algumas moedas tilintaram num recipiente de metal. A mulher recolheu-as cuidadosamente e
guardou-as,enquantoocarrosepunhaemmovimento.Não pareciam estar andando em grande velocidade, mas o rapaz sentiu-se espremido contra as
almofadaseasluzesbrancasdotúnelpiscavamcomatordoanterapidez.Outroscarroseramvisíveisatrásenafrente.Otúnelbifurcou-se.Oramalàesquerdadesciaeoa
direita subia. O carro deles dobrou à esquerda, sem perder velocidade. Numa segunda bifurcação,viraramàdireita,tornandoasubir.
Ocarrodeslizouparaumaparadaao ladodeumelevador idênticoaoquehaviam tomadoquandosaíramdohospital.Otetoseabriuoutravez.
Meioatordoadopelavelocidadeexcessiva,orapazseguiuamulheratéoelevador.Quandoocarrosubiu pelo tubo, outro carro, com dois homens e uma criança, passou girando para baixo na contra-espiral.Orapazsentiuoestômagoembrulhadoaovê-losefechouosolhos.
Maisumavezseencontravamnasuperfície.Aruaestavafriaecheiadesombrasazuladas,masacima
desuascabeçasosolaindaaqueciaasfachadas.Pegando-lheobraçonovamente,amulherlevouorapazpelacalçadavaziaatéumadasentradas,naqualeleviuonúmero"109"emletrasprateadas.
Elaparounovestíbulo,levandoamãoenluvadaàboca.—Vocêtemachave?—indagou.—Chave?—Orapazexplorouosbolsos,tirandoumachavepresaaumarodourado.—Éesta?Amulherapanhou-acomalívio.—Sim,tenhocerteza.Venha.Entraramemoutroelevador,destavezumverticalcomum,eamulherfaloujuntoàgrade:—Três.Saltaramnumestreitocorredoratapetadodebegeeverde.FrauSchorrdirigiu-sediretamenteparaa
portanúmero3C,abrindo-acomachave.Dentro,foramenvolvidosporumameia-luzesverdeada.Oquartoerapequeno,comumacamaestreita,umamesacommaterialparafazercaféeumamáquina
deescreversobreumaescrivaninha.Nãohaviapó,masoarestavacheirandoamofo.Amulher foiatéa janela,correuascortinasedeixouentraro sol.Apertouumbotãonopainelde
comandosobreacamaeimediatamenteumarfrescocomeçouasussurrarpelasala.—Bem,aquiestávocê,afinal!—exclamoualegrementeamulher.—Noseuquartinho...—fezuma
pausa.—Mas,vocênãoselembradissotambém?Orapazestavaolhandoemvolta.Nuncaviraaquelequartoantesenãoseimportavamuito.—Nãoháumaparelhodetelevisãoaqui?—perguntou.Amulherobservou-oummomento,depois foi atéo painelde comandoe apertououtrobotão.Um
quadro na parede abriu-se e dobrou-se para trás, deixando ver a tela de um aparelho de TV queimediatamentecomeçouafuncionar.Orostosorridentedeumhomempulouparaeles,gigantesco,voraz,enquantoagargalhadasaíareboantedaparede.Então,osommorreueorostodebocaabertaencolheuedesapareceu,quandoamulhermexeunovamentenoscomandos.
Asduasmetadesdoquadropularam,bateramevoltaramasejuntar.—Quefoi?—indagouamulher.—Eunãosabiaoqueiaacontecer—respondeuorapaz,estremecendo.Elaencarou-opensativamente.—Entendo—colocouaspontasdosdedosenluvadossobreoslábios.—Martin,vocêsabequeeste
éoseuquarto.Nãofazvocêserecordardenada?Acheiquetalvezquandovocêovisse...masnão.Achomelhorvocênãoficaraqui,Martin.Venha,ajude-me.
Foivivamenteatéaparedeoposta,fezdeslizarum.paineleapanhouduasmalas.Abriu-assobreacama,voltouaatravessaroquarto,puxouumagavetanaparedeeseparouumapilhaderoupas.
—Tomeistoaqui—Atirouasroupasnosbraçosdele.—Ponhatudosobreacama,queeuarrumoasmalasdepois.
—Masondevamos?—perguntouele,carregando,,obedientemente,seufardoatravésdoquarto.—Paraomeuapartamento—disseela.Apanhouasroupas,dobrou-ascuidadosamenteecomeçouametê-lasaocompridonasduasmalas.—Váeapanhemais.O rapaz voltou e abriu outra gaveta abaixo da primeira. Só havia meias nela. Levou-as
obedientementeparaacama.—EseFrauBiefeldernãogostardisto,que sufoque!—disseamulher, colocandoascamisasna
mala,commovimentosbruscosezangados.Sementender,orapazfaziaoqueelamandava.Todasasroupas,inclusivedoisconjuntosdecapase
sobretudo, foram parar na grande mala. A menor, chata e estreita, foi enchida com os papéis daescrivaninha. Frau Schorr apanhou, então, as duasmalas e o rapaz carregou amáquina dentro de suaprópria maleta. Desceram outra vez pelo elevador, saíram para a rua, entraram em outro elevador etomaramumtáxiigualaoqueostrouxeraatéali.
Destavez,chegaramaumaruamaismovimentada.Carregandoasmalas,atravessaram-na,passandoporumgrupodegarotasquepasseavam,porumrapazaltocomumamonocicletaeporumvendedordeflores.
Havialojasdecadaladocominteressantesobjetosexpostosnasvitrines,porémFrauSchorrnãoodeixouparar.Dobraramaprimeira esquina à esquerda e entraramnumprédio com fachadadepedrasazuis.Umavelhasenhoradecabelosbrancos,comorostocheioderugas,estavasentadanaentrada.
—Boatarde,FrauBiefelder—disseFrauSchorrcerimoniosamente.Amulhernãorespondeu,masolhou-oscomosolhosminúsculoseorladosdevermelho.—Éatébomparaelalevarumsustodevezemquando—murmurouFrauSchorr,quandosemeteram
noelevador.Pareciaangustiada.Orapazgostariadepoderajudá-la,porémnãosabiaqualeraoproblema.Assim,
nadadisse.Emcima,ovestíbuloerapequeno,comapenasduasportaslaqueadasdevermelho.—Chegamos,enfim!—disseamulheranimadamente,abrindoaprimeira.Entraramnumasalaclaraeconfortável,comtapeteseestofosdecoresbrilhantes.Aoentrarem,uma
gatinha amarela pulou do banco sob a janela e foi na direção deles, com os olhinhos azul-clarosbrilhandonofocinhoinescrutável.
Orapazolhou-asurpreso.Nuncaantesviraumagatadoméstica,excetoemfotografias.SóaquelesanimaisenormesdoZoológicoeassimmesmodeumacertadistância.
—Ébravo?—perguntou.—Maggie?—indagouamulher,confusa.—Vocêquerdizeroquê?Parouparapegar agata,queolhavao rapazcomo lomboarqueadoemiandobaixinho.Quandoa
mulheraergueu,agataficoupenduradanamãodelacomoumapele.Depoisretorceu-seepulouparaochão.
Omiadocresceu.Agataestavatodaarrepiada.—Oh!querida!—exclamouamulher.—Maggie,vocênãolembradeMartin?—Voltou-separaele,
desconcertada.—Elaestáaborrecida.Sente-se,querido,tudovaidarcerto.Tireosobretudoedescanseumpouco.Vocêterácaféesanduíchesnuminstante.
Agataavançoucomfirmeza,masamulherempurrou-acomopé.Comumguinchoderaiva,oanimalfoienroscar-senovamentenobancodajanela.Seusolhosazuissefecharam,masacadavezqueorapazfaziaummovimento,arregalavam-seesuabocaabria-senumsorrisodedentesafiados.
—Nãoconsigoimaginaroquehácomela—disseFrauSchorr,dooutroquarto.—Éumacriaturamuitoafetuosaesempregostoudevocê,Martin.
Querendoolharumquadronaparedeoposta,orapazdeuumoudoispassosnadireçãodele,vigiando
agatacomocantodoolho.Oanimaldevolveu-lheoolhar,fazendobaixinhoumruídosibilante,masnãosemoveu.Encorajado,
orapazatravessouasalaeolhouparaoquadrodeperto,masnãoconseguiuentenderoquerepresentava.Voltou-se,perplexo,exatamenteno instanteemquealgo roliçoebranco-sujoapareceunaporta.A
coisafitou-ocomosolhinhosvermelhosechiou.Asalivaescorriadoslábiosdasuaimensabocaabertae duas presas descoloridas surgiram na mandíbula inferior. Encarou o rapaz por um momento comespanto. Depois, o pêlo branco-acinzentado das suas costas se eriçou e o animal rosnouameaçadoramente. O rapaz levantou a mão. O animal pôs-se a latir, pulando na soleira, com olhosesbugalhadosecongestionadosdelouco.
Orapazrecuouomaisquepôde.—Churchill!—gritouamulhernacozinha.Ocãovoltouacabeçanadireçãodavozmascontinuoua
latir.—Churchill!—gritououtravezerapidamenteentrounasala,enxugandoasmãosnoavental.—Que
vergonha!—disse,olhandoparaorapaz.—Churchill,quehouvecomvocê?Olatidocontinuou.—Entãotoma!—disseamulher,batendocomapalmadamãonofocinhodoanimalenfurecido.Oanimalsoluçou,balançouacabeçaefixou-acomumaexpressãodesurpresa.Latiumaisumavez.
Amulhertornouabater-lhe,masdestavezmaisgentilmente.—Não,Churchill...quevergonha!EsteéMartin,nãolembra?Elehaviaesquecidovocê—disseela,
sedesculpandoporcimadoombro.—Vamos,Churchill,volteparaseutapete.Vá,seucachorromau!Empurrou o cão pela porta. O bicho recuou com firmeza e depois se voltou relutantemente e
desapareceu,rosnandoefarejando.Ouviu-seumúltimolatidonocompartimentoaolado.—Oh,querido—disseamulher.—Sintomuito,Martin.Comlicençauminstante...ocafé.Elavoltouparaacozinhaeorapaz,ligeiramenteenervado,começouaandardeumladoparaooutro
entreasestantesbaixas,lendoostítulosdoslivros.Nocantomais afastadoda sala,viuuma frágilgaiolapresaaumsuportedecobrebrilhante.Uma
toalha bege a cobria. Curioso, suspendeu a ponta da toalha e olhou para dentro.Na obscuridade, umpassarinho de plumas verdes e violetas estava empoleirado numa miniatura de trapézio. Seu olho,douradocomoumacabeçadealfinete,piscouparaorapaz.Acriaturadisse:
—Weep!Orapazbaixounovamenteacoberta."ExatamentecomonoZoológico",pensou.Amulhervoltoualvoroçada,comumabandejanasmãos.Nelahaviasanduíchesecafé.Colocoua
bandejanamesadefrontedosofá.—Agoravenhacomer,Martin,vocêdeveestarfaminto.Elafê-losentar-senosofáeenquantoeleobedientementecomiaossanduíchesebebiaocafé,sentou-
se à sua frente, napoltrona estofada, comasmãos crispadasnosbraços, sorrindo levemente aovê-locomer.Seurostoestavacoradopeloesforço.
Algumasmechasdocabeloescuroescapavamdopenteado,caindo-lhesobreatesta.—Isso,coma,fazbem—disse.—Gostariadeouvirmúsica,Martin?Orapazconcordoucomabocacheia.Amulherlevantou-se,dirigiu-separaumaparelhoaumcantoe
apertoualgunsbotões.Logodepoisoaparelhocomeçouaproduzirmúsica,lentaesuave,tocadaporumaorquestracommuitosviolinos.Orapazouviacomprazer,mastigandoseusanduíche.
Amulhersuspirouedepoissorriu.—Não,vocênãoselembra,nãoé?—perguntou.—Lembraroquê?—Amúsica.Nóscostumávamosfreqüentementetocá-la...nãoimporta.
Foiatéoaparelhoemexeunele.Amúsicaparou.—Masémesmoverdade,então,quevocênãoselembradenada?—Achoquemelembro—disseorapaz,mentindocautelosamente.—Vocêéminhairmã...—Não!—retrucouamulher,comveemência.—Issonãoéverdade.Vocênãoselembra.Suabocasecomprimiueseusolhossefecharam.—Masentãoporquedisseaomédicoqueeraminhairmã?—perguntouorapaz,perplexo.—Porqueeuprecisavasermembrodasuafamíliaounãometeriamdeixadotirá-lodelá.Orapazengoliu,pensandonaquilo.Pôsosanduíchedelado.—Mas,sevocênãoéminhairmã...—Sim?—Entãoquemévocê?Orostodamulherseruborizoueeladesviouoolhar.—Nãointeressa,Martin...apenasamigos.Somosapenasamigos.Levantou-seeficoudepéummomento.—Comeu bastante,Martin?Quer bolo?Não?Outra xícara de café? ... Bem, então deixe-me ver:
gostariadejogarumapartidadexadrez?Gostaria?Virou-se para o armário atrás dela, tirou uma mesinha de armar com um tabuleiro de xadrez
incrustadoeumacaixadepeças.—Nãoseiseaindasoubom—disseorapaz,olhandoansiosoessespreparativos.—Nuncajoguei
deverdadecomninguém.SóresolviaosproblemasnosjornaisdeHamburgo...Amulherestavaolhandoparaeledemaneiraestranha,comamãopousadasobreacaixadepeças.—NosjornaisdeHamburgo?—repetiu.—Eu...querodizer...—falouorapaz,percebendoquetinhafeitoumabesteira.—Masissoonde?Naloja?—indagouela.—Naloja,sim—disseorapazaliviado.—Sabe,encontreialguns jornais láemcima...ondeeu
dormia...eparapassarotempo...—Oh,claro.Entendo.—Elaacaboudecolocaraspeçasno tabuleiro.—Maséestranhoqueos
jornaisfossemdeHamburgo.—Sim,muitoestranho,não?—Bem.Elapegouduaspeças,umadecadacor,comasduasmãos.Levouasmãosàscostas,eapresentou-lhe
ospunhosfechados:—Escolha.Orapaztocou-lheamãoesquerda.Elaabriu-a,mostrandoumpiãobranco.— Que sorte— disse alegremente, empurrando as peças brancas na direção dele. — Passe-me
aquelescigarros,sim,Martin?Ele seguiu o olhar da mulher. Não havia nada sobre a mesinha baixa ao lado dele, além de um
cinzeiroeumacaixaesmaltada.Correuatampa:correto,haviacigarrosdentro.Elaapanhouum,acendeu-ocomominúsculoisqueirodequartzorosadoejogouacabeçaparatrás,
paraexpelirumalongabaforada.Comamãoesquerda,colocavadistraídaaspeçaspretasnoslugares.—Nãoquerum?—perguntou.Orapazolhouduvidosoparaoscilindrosbrancos.Nuncahaviatentadofumarumcigarro,masera,
semdúvida,umadascoisasqueprecisavaaprender.Levouumdesajeitadamenteaoslábios,retirou-onovamente,olhou-o,colocou-ooutraveznabocae
tocouaoutraextremidadecomoisqueiro.Deuumatragadacautelosamente.Ocigarroseinflamou.Umafumaça fria e amarga encheu sua boca. Antes de perceber o que estava acontecendo, enviou certaquantidadedelaaospulmões,oqueachouespantosamentebom.Deuoutratragada.Constatoucomgrande
satisfação, que o fumo era, de certa maneira, um apaziguador dos constantes sofrimentos que vinhasentindootempotodo,desdequesaíradoZôo.
—Comoégostoso!—exclamou,olhandoocilindroincandescente.Osolhosdamulherencheram-sedelágrimas.Inclinou-separaafrenteeencostouseurostonodele.
Envolveu-onumabraço,convulsivamente.—Oh,querido,vocêhaviaesquecidoistotambém?—disse,chorando.
XIOBÍPEDEACORDOU.Oquartoestavainundadopelatransparenteeincolorluzdamanhã.Saiudacama,
devagar,estalandoasmandíbulas.Quediaera?Nãoconseguiaselembrar.Mas,afinal,queimportânciatinha?
PodiaouvirEmma,noescritórioaolado,jábatendonaortomáquina.Obípedebebeuumcopod'águaeolhouparaasaladafrente—nãohavianinguémnagrade,oZôonãoabriatãocedo—entãofoiparaaoutrasalaesentou-senasuaescrivaninha.
A cesta estava cheia de trabalhoquenão terminara na véspera,mas eram só impressos contábeis.Haviamuitonãolhedavamoutracoisaparadatilografar.Pegouafolhadecimaetornouapô-lanolugar,semmesmotentarlê-la:eratrabalhodemais.
Afêmeadissequalquercoisaemvozbaixa.Surpresoaovê-lafalar,nãoouviuaspalavras.—Oque?Elarepetiu,semseinterromperoulevantarosolhosdotrabalho:—Vocêachaqueéaúnicapessoainfeliz?Eunãoacho.Obípedeolhouembasbacadoparaela.—Quequerdizercomisso?—Outrostambémtêmumavidadifícil.Retirouafolhahabilmentedamáquinaejuntou-aaomonteaoladodela.Colocououtrafolha,ajustou-
aecomeçouadatilografarnovamente.Obípedesentiu-sevagamenteinsultado.Rosnou.—Quesabevocêarespeito?Antesqueelapudesseresponder,aportaexternabateu.Emmaparoudetrabalhar.Viraram-seambos
eviramOttoentrarcomseucarrinho.—Café—disseohomem,grosseiro—Peguem,comamenãomefaçamperdertempo.AtirouumacestadetrabalhonaescrivaninhadobípedeeoutranadeEmma.Piscandoderaiva,obípedeapanhouseupratocobertoelevou-oparaoquarto.Quequeriaaquelacriaturadizer?Quemeraelaparalhefalardaquelamaneira?Suaraivacresceu.Malpôdecomer.Deixoudeladoopratopelametadeevoltouaoescritório.Emma
nãoestavalá.Andou sem objetivo por algum tempo, chutando os ladrilhos cinzentos. Ali estava amarca quase
invisívelqueGrücktraçaracomgizatravésdasala.Queironiaparaele!Fizera-oparaprotegerEmmacontraele,comosefosseumaespéciedeanimal,quandonarealidadeerajustamenteocontrário.
Escutouumbarulhoevoltou-separaverafêmeasaindodoquarto.Elaparou.Suasmãoscobriramocalombodatesta.
—Olheaqui,Emma—começouobípede,umtantoindeciso.—Vocêestánomeuladodasala—pipilouela.—Ora,esqueçaisso!Queimportânciatemagora?—Obípedeavançouumpassonadireçãodela,
ficandomais excitado.—Veja bem, Emma, só porque você passou toda a sua vida num Zoológico,suponhoquevocêacha...
Elamurmuroualgoerecuouparatrásdasuaescrivaninha.—Quefoi?—perguntouobípede,irritado.—Falealto.—EudissequenãopasseitodaaminhavidanumZôo.Afêmeacolocouosauriculares,pôsopapel
namáquinaecomeçouabater.—Bem,talveznãonesteZoológico,masvocênasceuemalgumZoológico,não?Emmaergueuosolhos.— Nasci no Planeta Brecht. Eles chegaram, me pegaram e me trouxeram para cá quando eu era
criança.Recomeçouadatilografar.Obípedesentiuquefizeraalgumacoisaerrada.—Bem,éclaroquetudoissoémuitoruim,etc,masnãopercebeadiferença?—Começouafalar
commais veemência, entusiasmando-se pelo assunto.—Oh,meuDeus, eu pensava que era bastanteevidente.Deumladoestávocê,umanimalquepassouamaiorpartedavidanumZôoounoutro.Jáestáacostumada,vivebemassim.Dooutroeu,umhomemencerradonocorpodeumanimal,mantidopresonumajaulafedorentaumdiaapósoutro!
Enquantofalava,afêmeaparoudetrabalhareestavaagoraquieta,olhandoparaostrêsdedosdamãosobreoteclado.
Passadoummomento,levantou-sedesuacadeiraepassouporele.Seusolhosestavamfechados.Obípedeviuquesuagargantaseagitavaconvulsivamente.
—Oh,não,espereuminstante—disseele,chocado.Elacontinuouaandar.Achandoumamesaemseucaminho,rodeou-a,tateando,comosolhosaindafechados.
—Oh,Emma—disseobípede—nãoquisferirseussentimentos.Defato,euexagerei.Nãoquisdizerqueajaulaestárealmentefedendo.Foiapenasummododemeexprimir.
Afêmeadesapareceunoquartodela.Irritadonovamente,obípedeseguiu-aatéaporta.—Saia,Emma!—gritou.—Jánão lhepedi desculpas?Emmanão respondeu.Emboraobípede
permanecessemal-humoradodurantehorasnoescritório,elanãosaiudurantetodaamanhã.—Mas diga-me— perguntou Neumann, na hora do almoço, sob as luzes coloridas emóveis da
rotunda—comtodaasinceridade,meucaroGrück,qualéaverdadenestahistóriatoda?Vocêsesaiutãohabilmente,queaindaestouconfuso.Obípedeé,realmente,esseHerrMartinNaumchikounão?
HerrDoktorGrückdeixouafacaeogarfo.Seusolhosficaramsériosportrásdosóculossemaros.—MeucaroNeumann—disselentamente—queimportânciatemisso?Emqualquerdoscasos,o
resultadoéexatamenteomesmo:continuamos,comoantes,comdoisbípedes.Ummachoeumafêmea.—Maseseomachoeraumserhumanoantes?—Mas é um bípede agora.— O bom doutor levou à boca um pedaço de salsicha de fígado e
mastigouvigorosamente.—Seeutivealgumméritonestaquestão,senhores,oqueéverdade,permitam-medizerqueeudevoempartemeusucessoàexcelentecooperaçãodaminhaequipe...
—Muitomodesto—murmurouNeumann.—Demodoalgum!—exclamouoDr.Grückalegremente.—Masse,eeudouênfaseaestese,me
doualgumcrédito,éprecisamenteporqueeusozinhopercebiumpequenofatodesdeoinício.QuemouoqueonossoFritzfoi,antes,nãotemamenorconseqüência.Sefôssemosacreditarnoshindus,onossoWenzlpodetersidoumbesouroemoutraencarnação.
Grückfezumapausaparadeixarorisoacalmar.—Masistonãofazdiferença.Besouroounão,nestemomentoeleéWenzl.NossoWenzlcompreende
isso, tenho a certeza.Mas quanto ao nosso Fritz, não entendeu isso até agora.Mas quando entender,acreditem-me,vocêsirãoverumanimalmaissaudávelefeliz.
Um guarda jovem e desajeitado apareceu ao lado dele, estendendo um pacote. Grück voltou-se,aborrecido.
—Sim?Oqueéisto?—Desculpe, HerrDoktor— disse o rapaz, enrubescendo e gaguejando,mas Freda, ou seja, sua
ilustresecretária,pediu-meparaentregar-lheistodiretamente.Disse-mequeosenhorquereriaveristologo.
Grückrecebeuoembrulhocomumcômicosacudirdeombroseolhouemvoltaparaoscompanheiroscomo a dizer: "Vejam como é a minha vida!". Virou o volume uma ou duas vezes, examinando asinscrições.
Imediatamentedenotouumvivointeresse.— Pela nave de Xi Bootes Alpha! De Purser Bang! Com licença, senhores, isto é mesmomuito
importante.Começouarasgaroinvólucrocomimpaciência.Dentro,haviaummaçodepapéis.Grückexaminoua
primeirafolhacomatenção.—Sim,éorelatóriodogrupodepesquisadoPlanetaBrecht.Agorairemosdescobriralgumacoisa.
Virouumapáginaedepoisoutra.—Elesdissecaramtrêsbípedes,ummachoeduasfêmeas...Ficoulendoemsilêncio.Ummomentodepoisseuqueixocaiudesurpresa.Ergueuosolhosparaas
fisionomiascuriosasaoredordamesa.—Mas...aquidizqueosmachoseramfêmeaseasfêmeaserammachos!—Grückfranziuocenho.
—Mas,éimpossível!—murmurou.—Oquefoiquedisse?—indagouNeumann.—Asfêmeaserammachoseosmachosfêmeas?Isso
nãofazsentido,HerrDoktor.Seriameleshermafroditas?Entãoporquenãodizem?—Não...não...—respondeuGrück,distraído,continuandoaler.—MeusDeus,cometemosumerro
grave!Vejamsóoquedizaqui!—levantouumafolhaeapontouumdosparágrafos,comogrossodedotrêmulo.
Neumannapanhouopapel,colocou-osobaluz,eleudevagar:—"Asglândulasinguinais,consideradas,aprincípio,gônadasmasculinas,nãoapresentaramconexão
com o sistema reprodutivo e sua função permanece ignorada. Levantaram a hipótese de que seriamapenas órgãos de exibição, análogos aos esporões e cristas dos gaios terrestres.No entanto, deve-seacentuar novamente que o portador desses órgãos é a fêmea e não omacho da espécie. É ela quemcarregaofeto,emumsacoplacentário,eodáàluz.Afecundação,porém,éfeitaporummétodobastanteincomum. Os gametas masculinos são carregados no órgão vermelho-púrpura que trazem na fronte eaparecememformadesenvolvidasónomachoadulto.Duranteocio,afêmea..."Grück,ouçaisto...
Fritz eEmmaestavam sentados lado a ladono catre doquarto internodela:Emma, tensa, comasmãos apertadas sobre o calombo, o bípede inclinado para ela, com o braço ao redor de seu corpo,falandoseriamenteaoseuouvido.
—Vocêsabe,Emma,queeunãoqueriafazer-lhemal.Vocêmeacredita,não?—Nãoéisso—respondeuela,comvozabafada.—Éamaneiracomotodosmetratam:comoseeu
fosseapenasumanimal.Elesdizemqueeunãosouhumanaepor issoachamqueédireitomanter-menuma jauladurante toda avida.—Ergueuosolhos.—Masoque é ser-sehumano?Eupenso, tenhosentimentos,falo.Atébatoascartasparaeleseaindanãoébastante.—Seucorpodelgadotremia.—Éhorrívelouvi-losfalarameurespeitocomoseeufosseumacriaturaquehãofalaououve.Mas,quandovocê...
—Emma,por favor,não—pediuobípede, tomadode ternurae remorso.—Claroquevocê temrazão:vocêéhumanacomoqualquerumdeles.Queimportasevocêtemumaaparênciadiferente?Éamentequeestáaídentro,aalmaqueconta,nãoé?Porqueelesnãoentendem?
Emmavoltouosolhosparaele,outravez.—Vocêachamesmo...—Éclaro—assentiuobípede,apertando-acomforça.Novaseardentesemoçõestomavamconta
dele.—Algumdiaterãodeverisso,Emma.Nósosfaremosouvir,vocêverá.Vamos,Emma.Tudovaiacabarbem.Somosamigosagora,hem?
Emmafitou-onovamentecomtimidez.Seucorpoparoudetremer.—Sim,Fritz—disseela.Obípedeestreitou-acommaisforça.Juntamentecomasensaçãodeproteçãoquesentia,haviauma
alegriaferoz,umsensodejustiça.Poralgunsmomentos,nãosefalaram.—Emma...—Hem?—Somosrealmenteamigos,agora?Vocênãotemmaismedodemim?—Não,Fritz,nãotenhomais.—Então,porquecontinuaapôrasmãossobreocalombo?Nãoéincômodo?Nãoconfiaemmim?Elaabanouacabeça.—Nãoseiporque...éque...Éclaroqueconfioemvocê,Fritz.—Então...Apósummomentodehesitação,elaobedientementepôsasmãosnocolo.Seucalomboeragrande,
vermelho-púrpuraetinhaumlevearomadeespeciaria.—Nãoémelhor,agora?Aconteceualgumacoisahorrívelporquevocêodescobriu?—Não,Fritz—concordouela.—Encostouo focinhonoombrodele.—Sinto-memuitomelhor
agora.—Eutambém,Emma.Oh,eutambém.Explodindodeemoção,obípedeinclinoumaisacabeça.E,comumainstintivadestreza,queapanhou
ambosdesurpresa,elemordeuocalombodela.
XIIORAPAZestavaflutuando,era todosensações.Farfalhargigantescodetafetácomcheirodecanela,
infinitamente desenrolado. O ciciar e o ondular de cetins quando os dois corpos se estreitavamvigorosamente,oslábiosseprocurando...pressão,umsentimentodedoçura(Gemidosemtornodelenasala).
Lábiosseseparandoparatomarfôlego,rostobrancocomoanevedesmaiandonoombroacetinado,umsinaldebelezabrilhandonorosto.Suaperucaabundante,maisbrancaqueapele,sombreavaorostodela,doceetristemente:
"Parasempre?""Parasempre!",numbarítonotriunfante."Oh,Stephen..."Osdoiscorposrecuarampesadamentecomoserolassemparalonge.Orostodelase
virouparaele.Ele:"Oquefoi?"Ela:"Veja!"Seus corpos dançaram no espaço como orbes celestes, todo rendas e luzes, para revelar a longa
perspectivaazuldasalaciclópica.Embaixo, tãoenormee tambémtãodistante,ohomemmoreno,numvermelhosuado,debarbanegra,pontudaeluzidiaefogososolhosnegrosdisse,comvozuntuosa:
"Então,meusjovensamantes,encontramo-nosnovamente?"Flutuandonovácuo,orapazsuspirava,variava(tinhaentradoali).Palavras ásperas ecoarampor toda a enorme sala: amulher encolheu-se, ofegante.Veja amãodo
homemagarraropunhodaespada,vejaacriminosalâminarelampejar.(Suspiros)Agoraa lutade titãs:choquede lâminacontra lâmina,faíscas,golpesdeespadasnoar.Umamesa
vooucomumbarulhodefimdomundo.Umavela,cortadaemduas,caiuaochãoemchamas.Umjarroexplodiuemcentenasdepedaçosrodopiantes.
"Ha!"Amãodohomempálidocaiusobreoombrodooutro:osangue jorrouentreseusdedos.Agoraas
lâminasestavamretinindonovamente.Vejaosorrisodorostopálidodesaparecerporcimadoombrodohomemmoreno.Umrodopianteentrelaçamentodeespadas:entãoaespadadohomempálidoarremeteu,surgindogigantesca(eofachodeluzdaesquerda,queavisavaaorapazparadeixarosbraçosempaz,masdestavez,corajoso,persistiu).Oh!Umabrilhantepunhaladadedornocoração.Deusdocéu...
Fraco, meio desmaiado na cadeira, coração acelerado, era ele quem agonizava... viu a salaescurecer-se lentamente, viu o teto girar sobre sua cabeça... viu, vagamente, as duas enormes figurascaíremumanosbraçosdaoutra.Depois,escuridão.
Asluzesseacenderam,banhandoosdoisfelizesamantes.Umamúsicaalegreencheuoaràmedidaem que os rostos tornaram-se absurdamente grandes e saíram do foco, até restar apenas o definhanteaspectodeumsorriso.
FIM.Omundosumiu,deixandoumaluminescênciaesverdeada.Orapaztomouconsciênciadoseupróprio
corpo,grampeadonapoltronaestofada.Aoseuredor,nagrandecúpula,outraspessoascomeçaramasemover.Suasnádegasestavamdormentese suacabeçadoía.Lutoupara ficardepé.Eradifícil tornara se
acostumaraosilêncioeaoreduzidotamanhodascoisas.Cambaleante, atordoado, saiu para a morna claridade da tarde. Passou pela confeitaria, com seu
enormeecheirosoestéreo-pão,permanentementebalançandosobreaporta.Trêshomensmorenos,comchapeuzinhos brancos engraçados e calças brancas folgadas, caminharam para ele, todos falando aomesmotempoumalínguaestranha.
Umgatoatravessouapraça,perseguidoporalgopequenoeverde,commuitaspernascurtas.Osolaqueciaaspedrasdacalçada.Ondasdecalorflutuavamnoar.
Na esquina seguinte, uma multidão se aglomerava em torno de um homenzinho de verde e umacriaturagigantesca,comumpeitocomoumbarril,cobertadeplumasrosadas,queohomenzinhotraziapresaporumacorreia.Moedas tilintaramnumpote.Estimuladapelodono,aenormecriaturaexecutouumapseudodançadesajeitada.Seurostoerametadehumano,metadeágua-viva,retardadoeinexpressivo.
— Obrigado, cavalheiro, obrigado, senhora — dizia o homenzinho, tirando o chapéu. Tlim. —Obrigado,senhor.
Orapazcontinuouseucaminho.Afinaldecontas,nocinemavêem-semonstrosmaioresqueaquele.Parounabancadejornais,nofimdapraça,ecomprouoBerlinerZeitungeoHamburgerTageblatt,
metendoosjornaisdobradosdebaixodobraço.Abancaseguinteeradefrutas.Orapazpassavaporaliquasetodososdiaseàsvezescompravabananasoularanjas.Mashojeeradiferente.Nomeiodabancaviu um amontoado de ovóides verde-amarelados, maiores que peras, com uma tabuleta: "Especiais!RecentementechegadasdoPlanetaBrecht.Raras!Experimente!".Opreçoeraummarcoedez.
Abocadorapazficousecadeexcitação.DoPlanetaBrecht!Remexeunobolso.Tinhaexatamenteosuficiente.
Oempregadocansadorecebeuodinheiroedeu-lheumadasfrutasesverdeadas.Orapazaseguroucomcuidadoenquantocaminhava.Erapesada,quenteesuaveaotoque.
Umafraseperdidadolivrovoltou-lheàmemória:"Certosfrutosesverdeados,queosbípedescomemcomavidez..."Nunca,antes,sesentira tãopróximodoseuplanetadeorigem.Parecera-lhesempreumtanto irreal, algo que se lia nos livros. Agora, pela primeira vez, sentiu que aquele lugar existiarealmente, que era feito com pedras de verdade e sujeira e tinha árvores verdadeiras que produziamfrutosverdadeiros.
Percebendo Frau Biefelder no vestíbulo do prédio, com seus olhinhos avermelhados, atentos esuspeitoscomosempre,orapazinstintivamentemeteuopesadofrutonobolso,continuandoasegurá-lo.
—Boatarde,FrauBiefelder—dissedelicadamente,caminhandoparaoelevador.Avelhanãorespondeu.O rapaz parouo elevador em todos os andares, comode costume, examinando cuidadosamente as
portasvermelhasfechadas.AdeJúliapermaneciaentreaberta,masemvezdeparar,continuouasubir.Quartoandar,quinto,sexto.Saiu,subiuapequenaescadaatéoterraço.
Berlimseespalhavaàfrentedelenapálidaluzdooutono.OscaboscurvosdoFlugbahnbrilhavamcontra o azul. Lá embaixo, erguendo-se entre os tetos baixos dos edifícios, destacava-se a abóbadadouradadoKonzertgebaude.
Umabrisafriacomeçouasoprarfortepeloterraço,fazendoasfolhasdosjornaisseagitaremsobseubraço!O rapaz segurou-os comdificuldade comapenas umadasmãos, pois nãoqueria largar o frutoquente.Algunsmetrosadiante,umventiladorgiravarapidamentesobsuacoberturaescura.Orapaztevesuaatençãovoltadaparaumavião,quezumbianohorizonteazul-cinzento.Farejouoarcominteresse,óleodiesel,ozona,cimentofresco.
Umagrandeborboletaoumariposaestavapousadanoparapeito,agitandofracamenteasasasazuise
vermelhas.Orapazexaminou-acuriosamente.Nãopareciacapazdevoar.Quandoatocoucomodedo,elaapenasfezummovimentoespasmódicocomasasas.
Algo pousou com um ruído surdo atrás dele.Voltou-se e viu outra borboleta, idêntica à primeira.Ficouagitandoasasasummomento,comosmesmosmovimentosfebris.Derepente,orapazpercebeuqueoarestavacheiodelas:minúsculasformasescuras,descendo,pousandonostelhadosaoredor.Haviameiadúziaaosseuspésedepoisduasvezesmais.Umabateu-lhesuavementenopescoçoantesdecairnoterraço.
Aborrecido,orapazvirou-separasair.Masemboraescolhessecuidadosamenteocaminho,nãopôdedeixardeesmagarsobospésinúmerosdaquelescorposfrágeis.
Desceu novamente ao terceiro andar e abriu a porta com cautela. Júlia a deixava agora sempredestrancada,porqueelehaviatidomuitosproblemascomaschaves.Nointerior,tudoestavaquieto.
Maggie,agata,saudou-oaoentrar,comummiadoqueixoso.Orapazcaiudequatroparaesfregarseunariznodela.Onarizdagataestavafrioeseco.Esfregouofocinhocontraodele,arqueandoolomboesacudindoorabo.
Poucodepois,houveumbarulhonoquartoeChurchillsaiucomarperigoso.Quandoviuqueerasóorapaz,oclarãodefúriaabandonouseusolhos.Gingou,farejouelambeuorostodorapazcomalínguafedorenta.
Orapazselevantouelimpouorostocomumpano.—Martin?—chamouumavozsonolentadedentrodoquarto.Orapazchegouatéocorredoreespioupelaporta.Júliaolhava-osonolentamentedacama.—Que
horassão?Orapazolhouorelógiodepulso.—Quasetrêshoras.Estásesentindomelhor,Júlia?—Sim,achoquesim.Vocêpoderiametrazerumcopod'água?—Poisnão,queridaJúlia.Orapazfoiàcozinhaeencheuumcopo.Sentou-seàbeiradacama,vendo-abeber,comumasensaçãoumtantoesquisita.Eraaprimeiravez
queelaoconvidavaaentrarnoquarto.Umavezaconteceu-lheolharparadentroquandoelaestavasedespindo e vira seus seios nus, que o interessaram muito, mas sentiu-se tão esquisito que fugiu doapartamento.Agorapodiaperceber-lheas formasarredondadassoba finacamisolabrancaecheiodecuriosidadetocounum.Erasuaveebalançante,mastinhaumaprotuberânciaduradeoutracornomeio.
—Oh!—disseela,espantada.Suamãoafastouadele.—Machuquei-a?—Não...não,estábem,Martin.Podetocar,sevocêgosta.Elalargouocopoetomou-lheambasasmãos,levando-asaosseios.—QueridoMartin—disseela.Eleviuqueosolhosdelabrilhavamdelágrimas.—QueridaJúlia.Inclinou-seebeijou-a.Paraumaprimeiratentativa, 'atéquenãofoimal.Osnarizesficaramumao
ladodooutroeelesemprepensavaqueseriamuitodifícil.Amulhercomeçouaofegar.Depoisdeummomento,envolveu-ocomosbraçoseapertou-o.Obeijo
continuoue,passadoalgumtempo,outrascoisasinteressantescomeçaramaacontecer.Quandotudoterminou,orapazestendeu-sedecostasnacama,exaustoeespantado.Júliasentou-se,
escovandoocabeloefalandobaixinhoparasimesma.Subitamentealuzdaportabrilhou.Entreolharam-se.—Oh,querido,quemserá?—Vouver.—Querido!—disseamulher,segurandoamãodeleparaimpedi-lo,meiochorando,meiorindo.—
Vistaasroupasprimeiro.—Oh!Orapazbeijou-aaindaumavezporqueelaestavatãocoradaecontenteedepoisvestiu-se.Aluzda
portabrilhourepetidamente.—Estábem,jávou,jávou—murmurou.Nocorredor,umhomemdemeiaestatura,vestidocomumsobretudodeverãocinza-escuro,fumava
umcharuto.—Então,Naumchik?—dissesorrindo.—Sim?—perguntouorapaz,indeciso.—Nãomeconhece?Tassen,daFreiePresse...lembra?—Não.HerrTassen?Oquedeseja?—Estavapassando—falouTassen,olhandocomolhosperspicazeseamáveis.—Entãoéaquique
vocêseesconde?Incomoda-seseeuentrarummomento?—Bem...achoquenão.Orapazrecuou,indeciso,eohomemseguiu-o,examinandooapartamentocominteresse.Houveumberronoquartoedepoisobarulhodegarrasarranhandoaportafechada,seguidosdavoz
abafadadeJúlia:—Pare,Churchill!Cãodanado!Tassenergueuumasobrancelhanadireçãodossons,masnãofezcomentário.—Bem,éumlugarconfortável,Naumchik.Nãovoutomar-lhemuitotempo.Possosentar?—Façaofavor.—ViuZelliniultimamente?—Como?Tassenfranziuasobrancelha,batendoocharutonacinzeiro.—VocêvoltoufinalmenteaParisdepoisque?...Tornouaerguerasobrancelha.—AParis?—perguntouorapazconfuso.—Não.—Suponhoquesaibaqueelesamarraramumfogueteemvocê,não?—Perdão!—Despediramvocê...Mandaram-noembora.—Oh.Não,nãosabia.Tassentragouocharuto,encarandoorapaz.Apósummomento,indagou:—Afinal,oqueaconteceucomvocê,Naumchik?Nummomento,atéondepudesaber,vocêeraum
perfeitojornalistajovem,atéqueaconteceutodaaquelahistóriadobípedeevocêcomeçouasebalançarnostetosdaElektra.Esperoqueagoravocêestejabem.
—Oh,sim,perfeitamente.—Bem?—Bem?Tassenpareceuperplexoeligeiramenteaborrecido.—Claro,sevocênãoquermecontar...—Maseunãomelembro.—Oh?—Tassenpiscou.—Doquenãoselembra?—Denada...antesdaElektra.—Entendo.Entãoéisso.Vocênãotemcomomecontarsualigaçãocomaquelebípede,não?—Não.—Estábem.Bem,dequalquermodo,Naumchik,ébomsaberqueestátudocertocomvocê.Acho
quenãotemfeitonenhumtrabalhojornalísticonosúltimostempos?—Não.
—Querfazer?—Nãopenseinisso—disseorapaz.—ProvavelmentenãoserátãofácilparavocêconseguirtrabalhonosjornaisdeBerlimdepoisdesse
escândalo—disseTassen.—Masvocêarranjaráalgumserviçotemporário,comcerteza.UmmaterialsobresuaexperiêncianaElektra,porquenão?—Levantou-seetirouumcartãodobolsodosobretudo.—Aquiestáomeuendereço.Seprecisardeajuda...
Esedespediucomumalegreadeus.No dia seguinte, o rapaz lembrou-se da fruta do Planeta Brecht e resolveu abri-la antes que se
estragasse.Acascaverde-amareladaerabastantefinaedentrohaviaumapolpaamarela,dearumtantodoentio. Júlia comeu umpedaço e disse que era interessante.O rapaz, entretanto, deu umamordida ecuspiulogo:apolpaestavamoleedesagradável,comumclarosaborderanço.Odesapontamentofoitãograndequeeleselamentoudurantedias.
Aondademudança,expandindo-sedosseusdoislocais,afastou-selentamentedaTerra.Ocorreramalgumastransformaçõesfinais.
Vates romanos dos tempos de Júlio César, estudando as entranhas de algumas aves para fazervaticínios, encontraram massas de piche fedorento e profetizaram um desastre. Uma chuva de palhasangrentacausouumarápidasensaçãonaagradávelcidadedeKikumeru,círculopolarantártico,noanode 3019. Uma inscrição apareceu na parede de um palácio na Babilônia, com palavras que nenhumhomemconseguiuler.UmasúbitaquedadetemperaturacongeloumamutesnumplanaltodaSibéria...
Amudança havia derivado na direção de Vega, onde cefalópodes inteligentes do terceiro planetadaquela estrela ficaram intrigados com elamilhões de anos antes e depois.Na Terra, os poucos quetinhamreparadonaquelascoisasestranhasdecidiramhaviamuitoaconservarasbocasfechadas.
Obomtempopermaneceuatéoutubro.Depoistornou-sefrioetempestuoso,comneveeocasionais
quedas de granizo. Numa tarde, em fins de novembro, o rapaz entrou no bar do Clube dosCorrespondentes.Parouporummomento,sacudindoanevederretidadochapéu.Olongobardemognoestavameiodeserto.Asluzescobertasdobarserefletiamnosespelhos,easpequenaslâmpadasverdesdotelefonebrilhavamnobar.
Emile,ogarçom,umsaxãoderostovermelho,ergueuasobrancelha,saudandoorapazquandoesteseaproximou.
—Boanoite,HerrNaumchik.Nãoovemosháalgumtempo.—Não.EstivenaVestfália,Emile.Dê-meumLongJohnduplo.—Sim,senhor.Emileestendeuobraçoparatráseapanhouagarrafa.Encheuumcopoquaseatéaborda.Inclinou-se
parainformar:—Houveumchamadoparaosenhormaiscedo,HerrNaumchik.Umasenhora.—Oh!Deixouonome?—Nãosenhor.Setelefonaroutravez,devodizerqueestáaqui?Orapazficoupensando.—Podeservantajoso.Quemseria?Nina?Olga?Quetipodemulherera,Emile?—perguntou,maso
troncudogarçomjáseafastaraeatendiaaoutrofreguês.—Alô,Naumchik,quandochegou?Umhomemalto,usandoumpaletódexadrezeumchapéuàmodadoTirol,encostou-seaoladodele
nobar.Falavacomumforteacentoinglês.Traziapresoporumacorreiacurtaumgalgodepêlosedosoeolhosmelancólicos.Ocachorroesfregouonarizfrionapalmadamãodorapaz.
—Oh,alôPotter—O rapazacaricioudistraídoo focinhodocão.—Cheguei estamanhã.Deite,Bruno.Deveriaterchegadoontemàsduasdamadrugada,mastivemosdesobrevoarTemplehofdurante
cincohoras.—Tempohorrível—dissePotter.—Temalgoavercomessahistóriaderegeneração?—Não,éumanevasca.Masconseguimandarduascolunasantes.Vocêmeparecebem.Ouvidizer
quequebrouumbraçoemRiga.—Não,foiMerle—explicouohomem,apontandocomoqueixoparaumamesanocanto,ondeuma
mulherlouraestavasentadacomobraçonatipóia.Elaergueuocopoesorriu.—Oh,quepena—disseorapaz,acenandoemresposta.—Não tem importância.Faz comque ela fiquemais tratável.Algumasvezesdesejoque todas as
mulheresquebremosbraços,aspernasoualgosemelhante.Umrapazjovem,vestidodepreto,transpirando,chegoueagarrouoinglêspelobraço.—Olhe,Potter,vocêsabeondepossoencontrarJohnnyYbarra?—Não,nãotenhoidéia...Játentouprocurarnosbordéis?—Todoseles?—perguntouohomemsuado,desesperadamente,porcimadoombro,afastando-se.
—Alô,Naumchik—acrescentouantesdedesaparecer.Emile,quetinhaestadofalandonotelefonecoberto,nofundodobar,levantouacabeçaeergueuas
sobrancelhas.Orapazfezummovimentoassentindo.Emileapertouateclaeoaparelhodefrontedorapaziluminou-se.
—Com licença, Donald. Alô... oh, é você, Júlia?O rostomiúdo na tela olhou para ele com umsorriso.
—Quesorteencontrá-lo,Martin!Penseiquenãoestivesseaí...podevirjantar?— Deixe-me pensar. Sim... não, me atrapalhei, tenho um jantar com Schenk. Sinto muito, Júlia,
esqueci.—Éumapena.Adorariavê-lo,Martin.Olhou-oesperançosa.—Eutambém.Talvezpossamosencontrar-nosamanhã,paratomaralgo...O rapaz refletiu que, embora Júlia estivesse um pouco velha para ele, e não tivesse intenção de
recomeçartudooutravez,aindaselembravadosmomentosagradáveis,naquelepequenoapartamentodaHeinrichstrasse, onde havia escrito sua primeira reportagem na máquina portátil de Júlia: Eu fui oenigma escalante da Elektra, por Martin Naumchik. Como tinham ficado ambos orgulhosos quandoviramimpressonojornal!Tudoagoraeradiferente...
—ComoestáChurchill?—Tivequedá-lo,Martin.Estavasetornandomuitorabujento.Mordeuumamigomeu.—Quepena!MasvocêaindatemMaggie?—Sim,Maggieestábem.Nobar,trêshomenscomcapasdeplásticojogavammoedasnumataçadiantedaestereofotodeuma
jovem bávara gorducha, vestida de camponesa. Sempre que umamoeda entrava no orifício, amulherrodopiava devagar e levantava a saia,mostrando o traseiro nu. Cada vez que isso acontecia, os trêshomensdesatavamarircomvozrouca.
Pottertocou-lhenoombroemurmurou:—Atéavista.Orapazvoltou-se,acenando.—Bem,Martin,telefone-mequandopuder.—Sim,telefonarei.Amanhã,talvezàtarde.VocêaindaestánoMinistério?—Aindaestou.—ótimo.Telefonarei.Atéavista.Apatéticafiguradesapareceudateladotelefone.Comumapontaderemorsoeumsuspirodealívio,
orapazrecolocouofone.
Um jovemgordo, vestido comumpaletómarrom, tomouo lugar dePotter no bar.Tinha o bigodecurtoedesleixadoeolhosazuisprotuberantes,parecendoaomesmotempoinocenteedissoluto.
—Alô,Naumchik,comoelesestãopendurados?—Alô,Wallenstein.Umaltooutrobaixo,comosempre.—Eoterceiro?Orapazgordoacenouparaogarçom.— Emile, um Black Wednesday. Escute, Naumchik, você pode ser exatamente o homem que eu
preciso.VocêconheceKohler,osujeitoresponsávelpelacadeiadesemanáriosparaointerior?—Sim,edaí?—Bem,éridículo:devo-lheumfavoreprometicobrirtodaaestóriadoZôoparaele,amanhã.Esse
trabalhotemdeserfeito,masaUPImepropôsumacoisainteressanteemOslo.Doismeses,comtudopagoeestadianosmelhoreshotéis.Masdevoconfessar:tenhodepartirdemanhãoupercoacoisa.Vocênãovaiseimportar,nãoémesmo,Naumchik?Estetrabalhosóirátomar-lhemeiahora.Podereiatédar-lheumpoucomaisdomeuprópriobolso.
—Umminuto,nãoestouentendendoumapalavradoquedisse.QuehistóriadoZôo?—Oh,umdosbípedesacabadedaràluzeKohlerdesejaumareportagemcompletaparaosleitores
dointerior.Quemediz?—Bem,suponhoquenãohárazão...—começouorapaz,parandosubitamente.Quesensaçãocuriosa!Dofundodesuamemória,veio-lhea imagemdeumanimaldeduaspernas
arranhandoaparededevidrodeumajaula,enquantoele,doladodefora,noarfrio,olhavamaravilhadopara suas rosadasmãosde cincodedos.Que estranho!Era a primeira vez emmeses que ele pensavanaquilo.
—Então,concorda?—Não.Pensandomelhor,nãoacreditoquesejaaconselhável—disseorapaz.—Aconselhável?Oquequerdizer?Ora,vamos,velhinho,vouacrescentardezaosvintedeKohler...
eentão?Naumchikesvaziouocoporapidamente,colocando-onobalcão.—Não,sintomuito—disse.—Lembrei-meagoraquedevoestaramanhãnumlugar.—Bateunas
costasdojovemgorducho.—Mas,vocêencontraráoutrapessoa,tenhocerteza.Atébreve,Wallenstein.Ohomemolhou-ocomcarafeia.—Estábem,jáquevocêquerserumsalafrário.—Quero—concordouNaumchik,jovialmente—Nãosomostodos?Mantenha-selimpo,meuvelho.Esaiuassoviando.Nolimiardaporta,parouerespiroufundo.Anevecessara.Asestrelastinhamum
brilhodecristalsobreostelhados.