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DamonKnight

OOUTROPÉ

TraduçãodeANTÔNIOAFONSO

JoséOlympio,1974.

Títulooriginal:TheOtherFoot

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COLEÇÃOASTERÓIDE—9DireçãodeJOSÉSANZEDIÇÕESSABIÁpertenceàLivrariaJoséOlympioEditoraS.A.,quesereservaapropriedadedosdireitosexclusivosparaalínguaportuguesadestaedição.

Copyright©1955byDamonKnight,poracordocomE.J.CarnellLiteraryAgency.Todosospersonagensdestaobrasãofictíciosequalquersemelhançacompessoasreais,vivasoumortasémeracoincidência.

FICHACATALOGRÁFICA(PreparadapeloCentrodeCatalogação-na-fontedoSindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,GB)

Knight,Damon,1922-K770Ooutropé;traduçãodeAntônioAfonso.RiodeJaneiro,

JoséOlympio,1974.

1.Ficçãocientífica.I.Título.II.Série.

73-0202CDD-813.0876

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SinopseMARTINNAUMCHICK,repórterdoParis-Soir,estavaparadodoladodeforadaespaçosajaulaqueabrigavaFritz,orecémadquirido

bípededoPlanetaBrecht,quandoomundodeuumasacudidela...Nomomentoseguinte, jánãoestavamaisdo ladode forada jaula,olhandoparadentro,masdentro,olhandopara fora.Nãoeramais

MartinNaumchick.EraFritz,obípede,umalienígenaestranho,vindodeummundodistante.Ao mesmo tempo, Fritz, que vivera a maior parte da sua vida no Jardim Zoológico de Hamburgo, também sentiu a sacudidela. E

encontrou-seforadasuajaula...olhandoparaoagitadobípedenointerior,queestavaesmurrandoaparededevidrocomambosospunhos...OmundodeFritzficavaadezoitoanos-luzdedistânciadaTerra.Oanimaleraágil,tinhatrêsdedosemcadamãoeumacabeçaqueera

ummistodehumana,defelinaedeave.Fritzeratímidoeobediente,felizdepassarsuavidanumajaula,atéquesurgiuoinesperado.Oinesperadoqueolançounummundode

confusãoedeincríveisacontecimentos,ondeohomemsetornoumonstroeomonstrotransformou-seemhomem...

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SobreoAutorDAMONKNIGHTnasceunoEstadodeOregon,nosEstadosUnidos,em1922.Mudou-separaNova Iorqueem1940. Imediatamente

tornou-semembro daFuturianSociety, umgrupo informal de escritores da década de quarenta, entre os quais se destacam alguns nomesimportantesdaficçãocientífica:IsaacAsimov,JamesBlish,VirgíniaKidd,C.M.Kornbluth,RobertA.W.Lowndes,JudithMerril,FrederikPohl,LarryShaw,RichardWilsoneDonaldA.Wollheim.

AtéachegadadeDamonKnightaomundodaficçãocientífica,ogêneronãotinhaaindasidocriticadocomoumaformadeliteraturatãoválidaquantoqualqueroutra.Haviaapenas recensõesnas revistasespecializadaseeventualmentenos jornaisdemaiorcirculação.DamonKnightintroduziuacríticanasrevistasespecializadase,pelaseriedadedosseusescritos,abriucaminhoparaogêneroemoutraspublicaçõesdecarátergeral(hoje,porexemplo,háumaseçãopermanentedecríticadeficçãocientíficanoTheNewYorkTimesBookReview).

MasDamonKnightnãoselimitouacriticar.Nosúltimostrintaanosvemescrevendocontoseromances,editandoantologias,ilustrandolivroserevistas,etraduzindo.Em1956recebeuoPrêmioHugodemelhorcríticodoano.FoifundadoreprimeiropresidentedaAssociaçãodeEscritoresdeFicçãoCientíficadaAmérica.

ViveatualmenteemMilford,naPensilvânia,onde—comsuamulher, a escritoraKateWilhelm—dirigeaMilford Science FictionWriter'sConference,querecebeanualmentemaisdetrintaescritoresparadiscutirosproblemasdogêneroliterárioqueescolheram.

Romancespublicados:AForAnything,BeyondtheBarrier,Hell’sPavement,TheOtherFooteTheRithianTerror.Volumesdecontospublicados:FarOut,InDeep,OffCenter,TurningOneThreeNovéis.DamonKnightestevenoBrasilem1969participandodeumsimpósiosobrealiteraturadeficçãocientíficaeocinema,realizadodurante

oSegundoFestivalInternacionaldoFilmedoRiodeJaneiro.

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IQUANDOO CARRO da Flugbahn começou a se afastar da plataforma de pouso, o bípede Fritz

crispouasmãosnoassentoeolhounervosoatravésdaparededevidro.Não estava habituado a viajar. Exceto o vôo da espaçonave até a Terra, do qual se lembrava

vagamente,tinhapassadoavidainteiranoZoológicodeHamburgo.Agora,apesardeestarcertodequeaquele carro, todo de vidro, vagando no ar, não iria cair, precisou apoiar-se em algo para sentir-seseguro.

Noassentoaolado,seuvigia,umhomemestúpidochamadoAlleks,folheavaasenrugadaspáginasdepergaminhodoBerlinerZeitung.Respiravaruidosamenteatravésdasnarinaspeludas,enquantopassavaosolhosbovinos,comardistante,pelasmanchetesdojornal.NocorredorosoutrospassageirosolhavamcuriososparaFritz.Maseste,acostumadoaserobservado,malsedavacontadosolhares.

Abaixo,sobosoldamanhã,descortinava-seacidadedeBerlim,maisparecendoumavelhacolchade lã. Olhando para trás, quando o aparelho começou a acelerar, Fritz viu a alta plataforma onde ofoguete-cóptero de Hamburgo havia pousado e os longos cabos tentaculares de outros Flugbahnen,irradiandoparaosquatrobairrosdacidade.

O carro desceu, subiu, parando repentinamente na plataforma da estação.As portas se abriram efecharam novamente e então continuaram a descida. Na segunda parada, Alleks dobrou o jornal elevantou-se.

—Venha—disseele.Fritz o seguiu pela plataforma. Entraram em um elevador, que começou a cair vertiginosamente,

através de um tubo espiral transparente, enquanto as ruas ensolaradas flutuavam compactamente paracima.Alleks e o bípede saltaramnomeio de umamultidão atônita e de um acre odor de substânciasquímicas. Alleks, segurando com firmeza o braço do bípede, empurrou-o para a rua, através de umagrandeportaaberta.Apanharamoutroelevadoreentraram,finalmente,emumescritóriocheiodegente.

—Meu prezado jovem senhor—disse um homemgordo e vermelho, avançando alegremente.—Entre,entre.Permita-meapresentar-me:souHerrDoktorGrück.—Osenhoréonovobípede?Sejabem-vindo,sejabem-vindo!

PegouamãodetrêsdedosdeFritzeapertou-acalorosamente,nãodemonstrandorepugnânciapelofatodeamãosercobertaporumasuavecamadadeespinhos,semelhantesapenugem.

Outraspessoasestavamseaglomerandoaoredor,algumasassestandosuascâmeras.—Assineaqui—disseAlleks,estendendoumcadernomeiodesbeiçado.ODr.Grückapanhou-o,distraído,rabiscoualgoedevolveu-o.Alleksvoltou-se,indiferente,esefoi.—Senhoresesenhoras—disseGrücknumsonorotenor—tenhoahonradeapresentarnossamais

recenteaquisição,Fritz—nossosegundobípedeBrecht—epodemverqueéummacho.O bípede lançou olhares nervosos em torno da sala revestida de carvalho, fixando as câmeras

ruidosas,asestantes,o imensocandelabro,aspessoasde faces lisase rosadas.Sentiaocorpo leveeflexível,comoodeumgatooudeumgalo.Assemelhava-seaumcáctus,todocobertodeespinhosverde-acinzentados,excetoosexo—asbolsasrosadasquependiamentreascoxas.Oformatodacabeçaera

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singular, nem homem, nem felino ou ave, mas algo como os três. Sobre os olhos, no meio da testaabaulada,haviaumasaliênciaarredondada,decorroxa,sugerindovagamenteumacristadegalo,tendomaisaformadeumafrutaseca.

—Queremosouvirorecém-chegado!—disseumdosquemanejavamascâmeras.Obedientemente,comolheforaensinado,obípederecitou:—Comoestão,senhoresesenhoras?Fritz,obípede,àsordens.Estousatisfeitodetervindoparacá

eesperoquevenhammevisitarfreqüentementenoZoológicodeBerlim.Terminou curvando-se ligeiramente. Três homens vestidos de branco avançaram. O primeiro

inclinou-se,pegandoamãodobípede.—Wenzl,guardião-chefe.Eraossudoepálido,comlábiosfinoseretilíneos.Osegundoadiantou-se,curvou-seeapresentou-se:—Rausch,dietista.EramaislouroecoradoqueGrück,comoscíliosquasebrancosnorostoredondoesério.Oterceiro:—Prinzmetal,cirurgião-veterinário.Eramorenoetinhaasfacesencovadas.ODr.Grück sorria, como rosto tão repuxado e lustroso como se cozinhado emóleo.Sua cabeça

redonda eraquase calva,masos cabelos louros, de corte ligeiramente longo, ainda se encaracolavamsobreasorelhas.Osolhosazuis,miúdos,espreitavamportrásdosóculossemaros.Seucorpo,rotundoefirmecomoumaboladeborrachasobolargopaletócastanhoeacorrentedeourodorelógio,irradiavaalegria.

—Queespécime!—falou,segurandoomaxilardobípedecomumadasmãos,paraabrir-lheaboca.—Vejamadentição!

Todaa"dentadura"dobípedeconstituía-sesomentededuassólidaspeçasde tecidocartilaginoso,comasbordasdecorteafiado.Fritzficounervosoporummomento,estalandoosenormesmaxilareseabanandoacabeça.

— Pare, Fritz!— disse Grück segurando-o e fazendo-o dar uma volta.— Vejam a musculatura:perfeita! O tegumento! A cor! Nunca, eu afirmo, nem mesmo no Planeta Brecht, vocês achariam umbípedecomoeste.Ejáésexualmenteadulto—acrescentouGrück,sondandocomamãogordaentreaspernasdeFritz.—Perfeito!Vocêgostariadeencontrarumbípedefêmea,nãoFritz?

Obípedepiscouedissepausadamente:—Minhamãeeraumbípedefêmea,dignosenhor.—Ha,ha!—riuGrück,cheiodebomhumor.—Claroqueera!Correto,Fritz!—Rauschsorriu;

Prinzmetal sorriu; até Wenzl esboçou um sorriso.— Venha, então. Primeiro vamos mostrar-lhe suasdependênciasedepois...talvezumasurpresa!

Apanhando sua lustrosa mala nova, o bípede seguiu Grück e os outros para fora do escritório,seguindoporumlongocorredordeparedesdevidro.Dalisepodiaverogramado,comjaulasportodaparte. As pessoas que passeavam por entre as aléias de cascalho olharam para cima e começaram aapontar,excitadas.Grück,àfrentedogrupo,curvou-seeacenou-lhesplacidamente.

Ogrupochegou,então,aumvestíbulovazio.Wenzltirouumachavemagnéticaparaabrirumapesadaporta,quetinhaumapequenavidraça,reforçadacomtela.Dentro,acharam-seemumasalapequena,masconvenientementearrumada,comparedeseochãodeconcretoaparente,umsofáquetantoserviaparasentarcomoparadormir,umacadeiraeumamesa,algunsutensílios,umlavatórioeprivada.

—Aquiéoquarto—disseoDr.Grück,comumgestolargo.—Eaqui—indicouocaminhoparaumaportaentreaberta—suasaladeestarparticular.

Aparedeexternaeradevidro,atravésdaqualvia-se,por trásdeumagradede ferro,umagrandemultidão.Estasalaeramaioremaisbemmobiliadaqueainterna.Ochãoestavalimpoeencerado.As

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paredes estavam pintadas. Havia uma confortável espreguiçadeira, uma televisão, uma mesinha comrevistasejornais,umgrandevasodeplantaseatéumaestanterepletadelivros.

—Eagora,asurpresa!—gritouoDr.Grück.Empurrandoosoutrosparaolado,atravessounovamenteoquarto,atéumaportanaparededofundo.

Asala seguinteeramaisampla,comchãodeconcreto,noqual,porém,haviamcolocadocapachosdeborracha.Duasescrivaninhas,commáquinasdeescrever,arquivos,telefones,umapontadordelápis,umtransmissorpneumáticoepilhasdedocumentos.

Dooutroladodasala,juntodeumdosarquivosquetinhaumagavetaaberta,alguémseviroueolhou,espantado:umoutrobípede,menoremenoscoloridoqueFritz.

Entreoutrasdiferenças,amaisnotáveleraoórgãonomeiodatesta,oqual,aocontráriododeFritz,tinha se desenvolvido numa grande forma ovalada, como uma bola ou maçaneta, de cor vermelho-púrpura.

—Agoraasurpresa!—gritouoDr.Grück.—Fritz,aquiestáEmma,suajovemesposa!Comumgritinho,ooutrobípedecolocouasmãosnacabeçaefugiuparaforadasala,provocando

umatempestadedepapéis,queforamdepositar-senochão,portrásdela.Oitocentosquilômetrosaosul,numasalasubterrâneadoInstitutoPopulardePraga,emPrásztó,oDr.

EgonKlementigesticulou,comobraçomusculoso,cobertodepêlospretos.—Láestavaeu,foradaarrebentação,nomeupequenobarcoamotor—disseele.—Acabinadava

exatamenteparamim,meukanakaeaquelecãoinfernaldaminhairmã.Diaexcelente,ventosoprandodapraia...perfeito.Okanakaestavasentadoaqui,ocãoaquieeuali.Bem,meukanakadobrou-separaforadaembarcação,então...—Klementifezumgesto,protegendoosolhoscomamão.—Eledisse:"Aquihápeixe,senhor."Comodiaboconseguiaelevê-losnofundodaágua!Mas,afinaldecontas,meuanzolestavaiscado...puxeiavaradepescarparatrás...arremessei-aesplash!—Fezumapausadramática.Behrens,odinamarquês,sorriavagamente,apoiadocontraaparedeaoladodopaineldecomando.Suacabeçamaciçabalançandosobreopeito.OpequenoLewine,homemdaKrupp-Farben,mordiaaspontasdo grosso bigode preto. Heinz Ek, o observador do Euratom, havia cruzado os braços sobre o peitomagroepareciameioadormecido.

—Umpeixe?—perguntouKlementi.—Absolutamente!Nadadisso!Eraodanadodocachorro,quehaviapuladoparaforadobarcocomoumabalaassimquemeuanzolatingiuaágua.Acreditem,tivequeenrolaralinhaomaisdepressapossívelouocachorroteriaengolidooanzolcomoumarenque!

Klementideuumarisadaalta.—Lásefoiomeudiadepescaria.Tivemosquelevarocãoatéapraiaeentregá-loaminhairmã.Já

eraentãomuitotardeparasairnovamente.—Klementiriumeteuumlongocharutoescuroentreosdenteseacendeu-o.—Osenhornãopesca,HerrEk?

—Eu?Não,não—disseohomemderostofinoepálido,abanandolevementeasnuvensdefumaçaquevolteavamaoseuredor.

—Osenhordeveria...deveriamesmo.Nãohánadacomoaquilo...osol...oar...Umdossuadoshomensdebrancoqueestavamnasala,esbarrouemKlementiaopassarporele.—Perdão,HerrProfessor.Meteua tomadado instrumentoquecarregavanopaineldecomandoefeza leitura, tomandonotas

numaprancheta.—Tudopronto?—perguntouLewinepelaquintavez,olhandoseurelógiodepolegar.—Paciência,paciência...vejacomoBehrensestátranqüilo.Eisporquedevepescar,paraaprimorar

apaciência.Klementitragouocharutocomsofreguidão.Apesardoarcondicionado,asala,cheiadegente,estava

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nubladadefumaça,masKlementinãoparecianotar.—Écansativoverificarcadacircuitoinúmerasvezes,admito,masempesquisadevemosacostumar-

nosaesperar.Émelhordoquearriscarmo-nosaumaexplosão.Lewineficouvisivelmenteassustado.—Explosão?—repetiu.Behrensergueu-se.— Não há perigo — disse, batendo no ombro de Lewine, gentilmente. — Klementi, pare de

amedrontarnossoamigo.Nãosepreocupe,HerrLewine,nãohaveráexplosão.—Exatamente—disseKlementi,mordendo o charuto, aborrecido.—O conversor é ummodelo

padrão,narealidadeousadoaquiparademonstrações—hásomenteummilionésimodegramadesódionele—Ei,Rákosi!—voltou-se,acenandoparaumdosestudantesdeuniformebranco.

—Sim,HerrProfessor?—Achouodefeitonomecanismodesegurança?—Horvathestáligandoumnovo...Estamosquaseprontosparatestá-lo,HerrProfessor.—Muitobem,excelente.Klementivirou-se,tirouocharutodaboca,numgestolargo,dandoaimpressãodequeiacomeçara

falar.—Mas, se é ummodelo padrão, porque o colocaram num prédio abandonado, a meia milha de

distância,sevamospermaneceraqui?—perguntouLewine.Seuslábiosestavamsemcor,egotasdesuorcobriam-lheafronte.—Bobagem—disseKlementi, franzindo a testa.—Ummilionésimodegrama,mesmocomuma

conversãototal,sóésuficienteparaumapequenaexplosão.Dequalquermaneira,istonãovaiacontecer—schnapps—vocênãotrouxeunsschnapps,Behrens?

Doisdosrapazesdebranco,correndoemdiferentesdireções,colidiramnomeiodasalaeseguiram,resmungando imprecações.Ummonitor de televisão começou a funcionar sobre o painel de comando,reproduzindo a imagem de outra sala, repleta de jovens que ainda trabalhavam. Porém o que maischamavaaatençãonaquelasalaeraumamáquinarevestidadeaçojágasto,montadasobreumblocodeconcretoecircundadaporumamontoadodeinstrumentosecabos.

— Na verdade, — disse o gigantesco dinamarquês, aprumando-se vagarosamente — tenho umagarrafaguardada.Estavareservando-aparaumacomemoração,mas...

Inclinou-sesobreacabeçadeLewine,estendendoo longobraçoparaaportadeumarmárioatrásdele.

—Não,não—disseLewine,irritado.—Estoubem,obrigado.—Como vê, Herr Lewine— disseKlementi, aproximando-se— a idéia é de uma simplicidade

realmentebela,mesmoditapormim.OconversorestácontidonumcampogeradorHirsch-Revere,ouseja,umdispositivoquegeraochamadocamposupressor...

—Assim sendo, não pode explodir— disse Lewine, acenando fracamente com a cabeça.— Euentendo,mas...

— Ah! Sim, não poderá explodir se conseguirmos ligar o campo supressor primeiro ousimultaneamente.Mas—disseKlementi—quedevemosfazer?Iniciamosoprocessodeconversão...aenergiaéliberada...

—Explosão!—murmurouLewine.—Não!Demodoalgum!Nãohaverá explosão!Porqueantesquea cabeçadaondapossa tocar a

parededacâmara,aoitentaecincocentímetrosdedistâncianossointerruptor ligaocamposupressor!Assim...estaenergianãopodeexistirsobnenhumaformadecalorouradiação,correto?

—Correto—disseLewineepiscoucomarparvoparaKlementi.— Por causa do campo supressor. Mas a energia é conservada — ela não pode simplesmente

desaparecer,correto?—devereaparecersobalgumaforma!

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Ek,ohomemdoEuratom,acrescentou:—Eseuargumento,HerrProfessor,équeaúnicaformaqueelapodetomaréadeenergia-tempo.—Exatamenteisso—disseKlementi.Radiante,levouocharutonovamenteaoslábios.—Eseuscálculosconfirmamisso,HerrBehrens—disseEk,voltando-separaodinamarquês.Behrensconcordouesorriu.—Aindanãovejoqueaplicaçõespráticaspodeter—disseLewineparasimesmo—Mesmoque...Olhou outra vez para seu relógio de polegar e depois para o grande cronômetro do painel de

instrumentos.—Muito interessante— estava dizendo Ek. Klementi havia saído repentinamente e mantinha um

diálogoemvozbaixacomumdosestudantes.Ekaproximou-sedeBehrens:—Nãomearvoroementendedordasuamatemática,HerrProfessor,mastomeialiberdadedeexpô-

laaumamigonaUniversidadedeBerlim...KlausIfshin.Talvezosenhoroconheçadenome.—Ifshin?Conheço—disseBehrens,concordandocomacabeçamaciça,massemsorrir.—...Eelepensa,HerrProfessor,queosenhordesprezouasequaçõesdecampoeinsteinianas,que

mesmoquefossepossívelconverteroutrasformasdeenergiaemquantaadicionaisdetempo...— Sei o que você está querendo dizer— interrompeu Behrens, sacudindo a cabeça.—Haveria

deslocamentosatravésdocontinuum,porquearelaçãoentreoespaço-tempoeamassadouniversoseriaperturbada e assim por diante...Acredite-me,HerrEk, tudo isso está superado.Ninguémmais usa asequações de campodeEinstein. Sim, sim, seu amigo,HerrDoktor Ifshin, é umaboa pessoa,mas suafísicaestácinqüentaanosatrasada.Nãotenhomaisnadaadizer.

Behrenslevantouamãoemsinaldepaz.Mas,aquelapalmalisapareciacapazdeaniquilarcentenasdeIfshinscomumúnicogolpe.

—Confere—diziaumdoshomensdebranco.—Confere...confere...confere...Na tela de televisão, outro jovem parecia ler uma lista de uma prancheta,mas o som não estava

ligadoeelessópodiamveromovimentodoslábios.—Confere—disseaindaumavezohomemeparou.Voltou-separaKlementi.—Pronto,HerrProfessor!Natela,depoisdealgunsminutos,amultidãodeestudantescomeçouasemovereadiminuir;estava

deixandoasaladeaula.—Behrens,umapalavra—disseKlementi,acenando.Odinamarquês,comumúltimocumprimentoamistosoaLewine,foijuntar-seaele.LewineeEkse

entreolharam.—Seráquetodososhúngarossãomalucos?—murmurouLewine.Eksorriuligeiramenteelevantouassobrancelhas.—Naminhaopinião—disseLewine—tudoistoéumaperdadetempo.Cruzouosbraços.Seurostovoltouaficarpálido,eatestaporejadadesuor.Empoucosminutos,ouviu-seumestrépitodebicicletasnocorredorexternoeoshomensdasalade

máquinascomeçaramasurgirnaentrada.Tinhamosolhosbrilhantes,estavamexcitadosefalavamunscomosoutrosemvozalta.Asalaestavamaisincrivelmentecheiaquenunca.

—Senhores,porfavor—pediuKlementi,levantandoosbraços.Seusolhosbrilhavameseurostoestavacorado.AtémesmonamonumentalfacedeBehrenshaviaum

ardeexcitaçãoinfantil.Oruídodiminuiulentamente.Alguémdisseumapiada,houveumaexplosãoderisonervosoedepois

osilêncio.KlementieBehrensabriramcaminhoparaopaineldeinstrumentos,ondemalhavialugarparaeles.

—Muito bem, senhores— falouKlementi, virando-se para Ek e Lewine.—Tudo foi testado, oaparelhoestáprontoesómefaltaapertardoisbotõesparaaexperiênciacomeçar.Issoestarácumprido

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num quadracentésimo milionésimo de segundo. Antes que eu aperte aqueles botões, permitam-meexpressar minha gratidão a todos aqui presentes, que trabalharam com dedicação, embora xingandoalgumasvezes.—Novaexplosãoderisos.—EtambémaossenhoresdoEuratomeKrupp-Farben,pelavaliosacolaboraçãocomequipamentosefacilidades.

Fezumapausa.Silêncioabsoluto.Klementivirou-separaopaineldeinstrumentos,noqualhaviaumbotãocomumaluzbrancacomaindicação"DispositivodeSegurança"eumgrandebotãovermelhosobele.Trêsjovenscientistasamontoaram-seatrásdele,murmurandodesculpas.Behrensabriucaminhoparaeles,afavelmente,erecuou,quaseesmagandoLewinecontraaparede.

Klementi avançou e apertou o botão branco com o polegar. O botão apagou. Olhou para ocronômetro: marcava exatamente três horas, trinta e dois minutos e quinze segundos, Tempo CentroEuropeu.Klementiapertouobotãovermelho.

OlhandoporcimadobraçodeBehrens,Lewineviuosponteirosdedoisdosinstrumentosderegistroagitarem-sesubitamente.Osoutrosgiraramatéofimepararam.Nateladotelevisornãohouvemudançavisível.Pelomenosoaparelhonãohaviaexplodido...Lewinedeixouescaparumlongosuspiro,quenãotinhaconsciênciadeestarretendo.Entãoretesou-se,numfrêmitoquepercorreuoscorposamontoadosaoseu redor. Uma impressão estranha: nada parecia realmente ter-semovido,mas pairava no ar aquelaindefinidaeenganadorasensação,acompanhadadeumaligeiranáusea.

—Energiazero!—gritouumdosrapazes.—Tomadanegativa!—Pressãointerna...pontotrêssete!Fez-sesilêncioduranteumafraçãodesegundo.Depois,oshomenscomeçaramasecumprimentar,a

se abraçar, a dar palmadinhas nas costas de Herr Professor Klementi. Este, com um enorme sorriso,gritoumaisaltoqueabalbúrdia:

—Apressãodacâmaraédemenosdemeiaatmosfera...umvácuoparcial!Istosignificasucesso!Osrapazessaíramcorrendonovamentepelaporta.Lewineouviu-lhesosgritosreboandonocorredor.

Oombrodealguémoatingiupenosamente, jogando-ocontraaparede,maselesesentiasingularmentealegre.Aseulado,Ekpareciaigualmenteafetado:seurostopálidoestavaabertonumsorrisoespantado,mostrandooslongosdentesamareloseasgengivasesbranquiçadas.

—Mas,nãoentendo...ovácuo,oquesignifica?—gaguejou.—Seaexperiênciahouvessefalhado—explicouKlementi,—haveriapressãonacâmaraouuma

produção de energia. Não houve nem uma nem outra! O ar que havia na câmara não está mais lá...desapareceu!

Behrenssurgiu,radiante,trazendoumagarrafaemumadasmãoseumapilhadecoposnaoutra.—Aquavit!Vamoscomemorar!—trovejou.—Masentãovocêquermesmodizer...—perguntouLewine, agarrandooblusãodeKlementi.—

Ondeestáoaragora?—Disperso, em algum lugar a quatrocentos ou quinhentos anos no futuro... lhe direi depoismais

precisamente.Natela,osrapazesfervilhavamemtornodacâmaradeconversão,comoformigasbrancasemvolta

deumbesouro.Klementi,aindasorrindo,aceitouocopoqueBehrenslheentregou.—Àprimeiraexperiênciabemsucedidadeviagemnotempo!—gritouBehrens,levantandoocopo.Todos beberam, exceto Lewine, que olhou para o copo, ergueu-o para cheirá-lo, baixando-o em

seguida. Ao contrário dos outros, seu copo estava cheio de um turvo fluído castanho, que cheiravafortementeaquerosene.

— Isto é uma brincadeira?— perguntou a Behrens, com os lábios trêmulos,mostrando sinais deindignação.

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Fritzsentou-seemsuaconfortávelespreguiçadeira,olhandodesconsoladamenteparaforaatravésdo

vidro, vendo o Zoológico escurecer.A tarde chegava ao fim. Era hora de fechar e as aléias estavamquasevazias.

—Issolevatempo—disseoDr.Grückamavelmente,batendonoseuombro.—Descanse,entreemcontatoeamanhãserámelhor.Boatarde,Fritz!

Sozinho,curiosoevagamenteexcitado,deuumavoltaemtodaasaladetrabalho,examinandopapéiseabrindogavetas,depoisdirigiu-separaaportadasala,porondeEmmahaviadesaparecido.

Porémmalcolocoutimidamenteonariznaportaeavozdelasefezouvir:—Saia!Saia,saia,saia!Depoisdisso,fez-sesilêncionoquartoaolado.Nahoradecomer,Wenzlentroucomumcarrinhoe

deixouumabandejaparaFritzeoutraparaEmma.Mas,aindaqueeleprestasseatenção,nãoconseguiuouviroruídodeumgarfo,umafacaouumcopopousandonamesa.

Eraagradávelaidéiadeteroutrobípedecomquemconversar.Nãoestavacertoelaserecusarafalarcomele.Porqueelaqueriatorná-loinfeliz?

Levantandoosolhosparaajanela,viuumrapazdecabelosescurosparadodoladodefora.Levavaumacâmeraelhepareciavagamentefamiliar.Talvezfosseumdosrepórteres.Eraesguioecurvado,compelemuito lisaeclaraegrandesolhossuaves.Quandoseentreolharam,semumapalavra,Fritzsentiuumasúbitavertigem.eumescorregão.Asalacomeçouagirar.

Levantou-secomdificuldade.Nãoconseguiaentenderoqueacontecera,porqueficaratãoescuroderepente,porqueoquarto ficara tãogrande.Apoiou-senasmãosenos joelhosedescobriuqueestavaolhando,porcimadeumagradedeferro,paradentrodavidraçadeumapequenasalailuminada,ondeum bípede, meio estendido em uma cadeira, olhava para ele com olhos esgazeados e fazia fracosmovimentoscomo§braços.

Abrisadatardepassavafrescaesibilanteporentreasaléias.Oarcheiravaaterraúmidaeanimais.Ocascalhorangeuaoladodeleeumavozpolidadisse:

—Algoerrado,carosenhor?Obípedenasalailuminadaestavasearrastandopelochão.Agoraestavabatendocomasduasmãos

novidroesuabocaabriaefechava,abriaefechava.—Osenhordeixoucairacâmera—disseamesmavoz.—Comlicença.Sentiu o toque estranhamentemacio damão de alguém a lhe bater nas costas. Voltou-se e viu os

bigodesdeumrostogentil.Entãoalgobrilhantelhechamouaatençãoeelenotou,comumaespéciedeincrédulo assombro, quando segurou automaticamente a câmera,mãos de cinco dedos com suas unhasclaras.

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IIAZONA de turbulência nos continuum espaço-tempo, causada pela desastrada experiência deHerr

ProfessorKlementi,espalhou-separafora,partindodeduaslinhas.No dia 13 de agosto de 1970, por volta de sete horas da manhã, um bloco de edifícios de

apartamentosnapartebaixadeOmaha,Nebr,desapareceuabruptamente.Aspessoasdas ruasvizinhasforam atingidas pela implosão, que destruiu janelas a dez quarteirões de distância. Esquadrões desocorro acorreram ao local,mas haviamuito pouco a fazer.A explosão não deixou crateras, somenteescavaçõesdepequenaproporção,rapidamenteinundadaspelaáguadosreservatóriosexplodidos,ondeseerguiamosedifícios.

Quandoosengenheirosdacidadedesligaramosregistrosprincipaisebombearamaágua,verificou-sequenadarestaraalémdeumburaconochão.Setecentaspessoasetrintamiltoneladasdealvenaria,açoeconcretodasfundaçõesdosedifícioshaviamdesaparecidocomobolhasdesabão.

Paramuitos, a responsávelpela tragédia foiumaarma secreta africanae avendapânicadeaçõesatingiuWall Street. As relações com a União Africana foram prejudicadas pormuitas semanas e umencarregadodenegóciosnegroemChicago foi assaltadona rua.Porémnadamais aconteceuaté abrilseguinte.

Namadrugadadetrêsdeabril,atraineiraMaryG.Beyers,ao largodeAtlanticCity,NovaJérsei,navegando em águas calmas, a cento e dez quilômetros do CaboMay, foi atingida por um repentinovagalhão,queafezvirarporestibordo.Correndoparaaamurada,atripulaçãoviuumamonstruosabolhadearemergirdasprofundezasdoAtlântico,trazendoconsigodestroçosdemobília,roupasemeiadúziadecadáveres.

OMary G.Beyers recolheu um deles a bordo: era o corpo de um homem em roupa de trabalho.DocumentosemsuacarteiraoidentificaramcomoIrwinVogt,deOmaha...

NaLua, no anode1950,pertodaorla sul da crateraHermann, surgiuuma flor embotão.Eraumgerânio comum, cultivado, Pelargonium domesticum, germinando em um canteiro circular de terraescura.Umanuvemdevaporenvolveu-aquasequeinstantaneamente.Aflortombou,murchou,perdeuacore, finalmente, tornou-secinzentacomoasprópriascinzasaoseu redor.Trintaanosmais tarde,umhomem,numtratorlunar,indodeLittleWashingtonparaGrimaldi,viuoesqueletocinzentoetomou-oporumaformaçãomineralincomum.Estabeleceuascoordenadaseanotoumentalmenteofatoparamencioná-lomaistardeaoselenólogodaBasedeGrimaldi,masesqueceu-o.

Aturbulênciaaumentou.OtranstornoqueKlementicomeçaraaindanãochegaraaofim.O Dr. Grück estava sozinho no seu escritório, com alguns cálculos orçamentários preliminares

espalhadossobreamesa,eosrestosgordurososdeumjantardeknackwurstnumamesinhaaolado.Comos óculos próprios para leitura, mais parecia um tio velho, vermelho e bem humorado, extraído doscontos deDickens. Seus olhinhos azuis piscavam suavemente por trás das lentes e quando contava, opolegarroliçocomoumalingüiçaeosdedoscomeçavam:eins,zwei,drei.*

*"Um,dois,três"—emalemão—N.doT.Cantarolando,atirouforaumpapel.AmúsicaeraILostMySockinLauterbach.****“EuPerdi.minhameiaemLauterbach"—N.doT.

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Asalatodarevestidaestavaquente,confortávelesilenciosa.—"Andwithoutmysock,Iwon’tgohome"***—cantarolouoDiretor.***"Esemminhameiaeunãopossoirparacasa."—N.doT.Opequenovisifonedamesacomeçouadarsinaldevidaderepenteeorostomagrosurgidonatela

disse:—Doutor,porgentileza...Grückfranziulevementeatestaeapertouobotão.—Sim,Freda?—HerrWenzldesejafalarcomosenhoredissequeéurgente.—Bem,seétãourgente,ponha-onalinha.—Obrigado,Doutor.Atelapiscounovamente.OrostopálidoefanáticodeWenzlapareceu.—Problemascomonovobípede—começouimediatamente.Grücktirouosóculos,comosdedostrêmulos.—Quemaçada!—disse.—Queespéciedeproblema,Wenzl?—Hádezminutos—disse o zelador-chefe,—soubequeFritz estava fazendodesordens em sua

jaula.Fuiatéláeencontrei-otentandoquebrarajanelacomumapoltronademadeira.—Terrível,masporquê?—gritouoDr.Grück,comosmaxilarestrêmulos.—FiztudoparaacalmarFritz—continuouWenzl,—porémelemedissequeeunãomandavanele

porquenãoeraFritzesimumjornalistachamadoMartinNaumchik.Grück franziu os lábios várias vezes, formando inconscientemente a sílaba "Num". Sentiu alguns

papéissobsuamão,olhou-oscomsurpresaedepoisafastou-oscomgestosimpacientesedistraídos.—Tambémmedisse—acrescentouWenzl,—queFritzfoiemboranocorpodele,comsuacâmarae

roupas.Grück colocou a palma de ambas asmãos no rosto e ficou olhando para a imagemdeWenzl.Na

pequenatela,Wenzlficavaparecidocomumaminiaturafeitaporalguémnumacessodemauhumor.Noseutamanhonormal,Wenzlnãoerarealmentetãodesagradável.Tinhaumaverruga,pêlosnasnarinasevia-seseupomo-de-adãosubiredescerquandofalava.Masdotamanhodeumboneco,eraintolerável.

—Quemedidastomou?—perguntouGrück.—Internamento.—Qualsuaopinião?—Oanimalépsicótico.Grückfechouosolhoseduranteuminstanteficousegurandoonarizentreopolegareo indicador.

Abriuosolhosesentou-senaescrivaninha.—Wenzl—disse,—obípedenãoénecessariamentepsicótico.NosnossosdezanoscomEmma,

tambémvimos uns pequenos acessos de nervos, ou não?Quanto aFritz, é possível que esteja apenasassustadopor se encontrar numnovo zôo.Talvez ele queira ser tranqüilizado e tenhadramatizadoumpouco,quemsabe?Ondeseencontranosmanuaisotrechodizendoquepodeumbípedevirasetornarpsicótico?

Wenzlpermaneceumudoenãomudoudeexpressão.—Não—continuouGrück.—Assim,nãovamosnosprecipitar,Wenzl.Lembre-sedequeFritzé,no

momento, nosso espécimemais valioso.Bondade émais eficazquepalavras ásperas oupancada.Umpouco de simpatia, talvez um sorriso...— Sorriu, mostrando os dentes pequenos e disformes até osmolares.—Então,Wenzl?Sim?

—Osenhortemrazão,comosempre—disseoguardião-chefeacremente.

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—ótimo,vamosverentão.Váeconversecomele,racionalmente,Wenzl.Tire-lheacamisadeforçaeseeleestivercalmo,traga-oaqui.

—Dar-lhe-eicincoprovasdequesouMartinNaumchik—disseobípedefurioso,emvozalta.Seucorponu,cobertodeespinhosverdes,pareciadelgadoe frágilnapoltronademadeiraescura.

Inclinou-sesobreamesaparaWenzleoDr.Grück.Seusolhosestavamcongestionadoseagrandeboca,semlábios,abria-seefechava-se.

—Primeira,conheçoBerlimenquantooseuanimalnuncaesteveaquiantes,nemteve,certamente,liberdadeparapercorrerasruas.Perguntem-meoquequiserem.Segunda,possocitar-lhesosnomesdoeditor,dodiretor-administrativoedetodaaequipedoParis-Soir.Possorepetir-lheminhaúltimamatériapara eles, palavra por palavra. Se me derem uma máquina de escrever, poderei redigi-la também.Terceira...

—Mas,meu prezado Fritz...— disseGrück, espalmando as gordas e rosadasmãos, num sorrisoinsinuante.

— Terceira — repetiu o bípede raivosamente — minha garota, Julia Schorr, confirmará minhasdeclarações.ElamoranonúmeroquarentaeumdeHeinrichstrasse,apartamentodezessete,eonúmerodoseuvisiéUnterdenLinden8-7403.PossoadiantarqueelasemprecarregaumagatasiamesachamadaMaggieecozinhaumespaguetemuitobom.MeuDeus,seissonãoforsuficiente,soucapazdedizeracorde suas roupas de baixo. Quarta, vocês podem me examinar. Colei grau na Sorbonne em 1999...perguntem sobre Literatura,Matemática,História, o que vocês quiserem!Quinta e última, souMartinNaumchik,semprefuiMartinNaumchik,atéhojenuncahaviavistoesseridículobípedee,sevocêsnãomeajudarem,prometofazerumescândalo...Calou-seporummomento.

—Eentão?GrückeWenzlseentreolharam.—Meu prezado e jovem senhor— disse Grück, remexendo a despenteada cabeleira loura. Seus

olhosmiúdos se apertaram.—Meuprezado e jovem senhor, p senhorme convenceu, sem sombra dedúvidas...—Óbípede ficou ansioso.— ... que acredita realmente serMartinNaumchik, umhumano,correspondentedoParis-Soiretc.,etc.

Obípedefaloucomvozsufocada:—Acredita!Maseuafirmeiavocês...—Porfavor!—Grücklevantouamão.—Tenhaabondadedeouvir.Eudissequenãohádúvida

possíveldequeosenhoracreditanoquediz.ótimo!Agora,permita-meumapergunta.Cruzouasmãossobreapança,esboçandoumsorrisonoslábiosrosados.—SuponhaqueosenhorsejaMartinNaumchik—agitouamão,numgestolargo.—Continue.Você

podesupor,nãofaçoobjeção.Muitobem,agoravocêéMartinNaumchik.Edaí?Inclinou-se para frente e encarou severamente o animal.Wenzl, a seu lado, permanecia em grave

silêncio.—Ora,vocêsmesoltarão—disseobípedesemsegurança.—Vocêsmeajudarãoaencontraraquele

animalqueestádentrodomeucorpoe,dealgumamaneira,dealgummodo...—Sim?—disseoDr.Grück,encorajando-o.—Dealgummodo...dealgumamaneira...—Devehaveralgumjeito—falouobípede,infeliz.Grückrecostou-se,balançandoacabeça.—Parafazê-lotransformar-senovamente?Meuprezadoejovemsenhor,reflitaummomentosobreo

queestádizendo.Colocaramentedeumhomemdevoltaemseucorpo,quandojáseinstalounocorpode um animal? Não sejamos infantis! Para começar, isso é impossível! Você sabe tanto quanto eu!Supondoque tudo isso tenha realmente acontecido, seria impossível retroceder.Meuprezadoe jovemsenhor!Colocardevoltaamentedeumhomememseucorpo?Comumfunil?

Obípedeabaixouacabeçasobreamãocobertadeespinhosverdes.—Sepudéssemosdescobrircomotudoaconteceu...—murmurou.

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— Sim, ótimo— disse Grück com simpatia.— Boa sugestão: sem dúvida é isso mesmo o quedevemosfazer.Coragem,Fritz,ouMartin,seforocaso. Issorequer tempo,devemosestarpreparadosparaesperar.Paciênciaocoragem,hemFritz?

Obípedeconcordou,exausto.—ótimo, estamos entendidos—disseGrück, animadamente, erguendo-se.—Vamos fazer todo o

possível,estejacerto,eenquantoisto...—voltou-separaWenzl,quetambémsepuseradepé—tentecolaborar,nãocriandoproblemasparaopobreWenzl.Concorda,Fritz?

— Vocês vão manter-me preso aqui? Em exposição? — gritou o bípede, inteiriçando-se deindignação.

—Porenquanto—respondeuGrück,apaziguador.—Ouvocêtemsoluçãomelhor?Paracomeçar,vocênãotemaondeir.Comoviveria?Devagar,Fritz,

temosdeirdevagar.Ouçaoconselhodeumhomemmaisvelho:aprecipitaçãopodepôrtudoaperder.Devagar,Fritz,devagar,paciênciaecoragem...

Wenzlpegouobraçofinodobípedeecomeçoualevá-loparaforadasala.—MeunomeéMartinNaumchik—continuouamurmurarfracamente.A baça luz cinzenta damadrugada invadiu os compartimentos externos, iluminando tudo semnada

destacar.Poralgumarazão—obípedejáhavianotado—nestahora,agentevêooutroladodascoisas,maisquehabitualmente, comoo tecidomanchadopendendo sobo assentodapoltrona,osdetritos e apoeiradoscantoseaspequenasmanchasearranhõesque,deordinário,passavamdespercebidas.

Perambulou impacientemente pelo corredor, passou pela porta da outra sala — a fêmea havia,aparentemente,colocadoumamesacontraela—eentrounoescritório,iluminadopelaluzfluorescente,comsuasmáquinascobertas,evoltou.Nointeriordoseupróprioquarto,viuumrostofeionoespelho—esverdeado,ofocinholisocomoumabsurdohíbridodecãoegalo—eporummomentoangustiantenãopercebeuqueeraelemesmo.

Agarrou-seàparedeechorou.Sonsinumanoseestranguladossaíramdasuagarganta.Dezhoras.Deviamterpassadodezhorasoumais.Tinhaacontecidomaisoumenosnahoradojantar,

masjáfaziapartedopassado.Dezhoras,eleaindanãoseacostumaraeficavacadavezmaisdifícil.Tinhadefugir.Amaletadobípedeestavanochãodoquartointerior,pertodolavatório.Martinapanhou-a,abriu-ae

espalhouseuconteúdo.Escovadedentes,umjogodexadrez,papeldeescreverordinário,eumavelhabrochura intitulada: O Planeta Brecht: Enigma do Universo. Nada útil. Chorando, correu para oescritório e tirou o fone do gancho. Estava desligado. Provavelmente, àquela hora damanhã, amesatelefônicanãoestavaligadacomosaparelhosdoZoológico.Quefazer?

Viuumadasmáquinasdeescrevereparousurpreso.Então,sentou-seetirou-lheacapa.Havia papel na gaveta.Colocouuma folha no rolo, ligou amáquina e ficou sentadoummomento,

ansiosamenteapertandoasmãosdetrêsdedos.Aspalavras tomaramformaemseucérebro:MeunomeéMartinNaumchik.Estousendomantido

presoem...Suasmãoscomeçaramabaterasteclas,febrilmente,easletrasseamontoaramnoguia,comestrépito

eemconfusão.Ocarrodeuumsaltoepulouumalinha.Oesforçoda imaginaçãoera tantoqueele, instintivamente, tentoumorderos lábios.Sentiuacarne

dura deslizar contra os dentes. Morder os lábios era uma das coisas que agora não podia fazer.Datilografareraoutra.

Erademais.Nuncasehabituaria.Semprepodiaesqueceresedeixartratarcomoumanimal,napontadeumacorrente.

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Depois de ummomento, comolhos nublados pelas lágrimas, ficou olhando as teclas, até que elasvoltassemaolugar.Recomeçouentão,penosamente,aescrevercomumsódedo:"MeunomeéM..."

Emmeia hora, seu relato estava terminado.Agora, <era necessário provar sua identidade. Talvezdevessecomeçarporissoouahistórianuncaserialida.Pegouumafolhalimpaeescreveu:

M.FrédéricSteinPARIS-SOIR98,ruedelaVictoireParis9º(Seine)PREZADOFRÉDÉRIC:Vocêpoderáconstatarqueomaterialanexoémeu,peloseguinte:aúltimavezemqueestiveemParis

fomos,vocêeeu,aoRockingHorse,eenchemosacara.Bebemostrêsgarrafasdeuísque,vocêmefalousobrecertosproblemascomsuaesposaediscutimossobreumpostodecorrespondenteparavocênosPaísesBaixos.

Istonãoéumabrincadeira,precisodoseuauxílioe,peloamordeDeus,façaoque...Fezumapausaetevebastantesorteparaouvirumruídodepassosnocorredor.Maltevetempode

desligaramáquina,cobri-laeguardarasfolhasdatilografadasnagaveta.Umguarda,jovemainda,comborbulhasnorostoemalhumorado,entroutrazendoumcarrinhocom

duasbandejasfumegantes.Eraahoradocafédamanhã.Seuprimeirodiadeanimalenjauladoestavacomeçando.

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IIINoANO 2369, dois séculos depois da agora esquecida experiência de Klementi, o piloto de um

interceptarflutuante,avintemilpésacimadeStuttgart,viuumpontorefletidonasuatela.Nãopassava,provavelmente,deumpássaroferido,masnoestadoemqueestavaomundo,nuncasesabia...Apertouobotão"interceptar"eouviuogemidodadesaceleraçãodomotorsobsuacabine,enquantoomundo, láembaixo,escondidopelasnuvens,giravacomoumglobodeescritório.

Um ponto escuro entrou em visão direta, avolumando-se de maneira irregular. O computadorintegradoregistrou-ocomoumamassanãoferrosa,de136,72quilos,caindolivremente.Comodedonobotãodedisparo,opilotoolhou-oatentamente,limpouosolhosetornouaolhar.

Oobjetoasuafrente,amenosqueeletivesseenlouquecidosubitamente,eraumantigosofádecrinade cavalo, com um homem e uma mulher sentados, unidos por um abraço caloroso, com as roupasdesalinhadas...

Nocentrodacidade,asruasestavamiluminadascomosefossedia.Sobreascalçadasdemosaico,as

pessoas passavam. De uma porta aberta, escapavam as notas de uma música convidativa. Todos osbotõesvermelhosdeumaplantaaéreadeAntares,aderidaàsparedesdosedifícios,tinhamdesabrochadoeemanavamumfrescoperfumepicante.

Passando por uma das vitrinas brilhantes, o rapaz viu uma fileira de pequenos seres verdes, emgaiolas de vidro — lentos animais de forma globular, do tamanho de um tomate, com membrosfilamentososegrandesolhosverdeselânguidos.Boiavamnaespumaesverdeadadasuperfíciedaáguarasadasgaiolas,ousubiamcomdificuldadeempedaçosdecascasdeárvoreúmidas.Acimadeles,haviaumafaixa:

LEVEUMWOGPARAASCRIANÇAS.Continuouaandar.Aspessoasaoseuredor,namaiorpartecaminhandoemgruposoucasais,eram

diferentes das que costumava ver no Zoológico de Hamburgo. Estavam mais bem vestidas, melhoralimentadas,tinhamapelemaisclaraemaiscoradaeriammais.Asmulherestinhamoscabeloslourosebempenteados,facesrosadas,dentesbrancoseunhasbrilhantes,eusavamroupasvistosaseenfeitadascomoopapelresplandecentequeenvolveospresentescaros.Oshomenserammaisausteros,comroupasvermelhasouazuisescuras.Seuspésestavamfinamentecalçadoscombrilhantessapatosdevernizeocabelo luzindo de cosméticos. Sua fala, no estranho sotaque de Berlim, turbilhonava em volta dele:cochichos,bom-humor,explosõesderiso.

Sob seus pés, o pavimento de mosaicos estrelados trepidou quase que imperceptivelmente àpassagemdeumcarroexpressosubterrâneo.Ali,acimadosolo,todosandavamapé.Nãohaviasinaldeveículosderodasnemmesmoumaerocarro:somenteafaixaluminosadeumadasFlugbahneneravisívelàdistância.

Naesquina,emumapequenapraça,emcujocentrohaviaaestátuaheróicaemalumínioanodizadodeum homem em traje espacial, sem capacete, com uma expressão exultante no rostometálico, o rapazdivisouumaltopaineliluminado,naparededeumedifício.Palavrasluminosaspiscavamlentamentedopainel,linhaporlinha.Orapazseaproximou,abrindocaminhoentreamultidãodeespectadores,eleu:

APARELHOINTERPLANETÁRIODESPEDAÇOU-SEEMMARTETODOSosVIAJANTESDADOSCOMOMORTOSSeguelistadepassageiros

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LADRÕESMOTORIZADOSPRATICAMNOVOASSALTOEMBERLIM"Serãoentreguesàjustiça"—prometeuFunkGRANDEASSEMBLÉIAVOTAPARAANEXAROPLANETA

DETHIESSEN1150votosafavor;139contra

BOLSAESPACIALDEVALORESFECHAEMALTARECORDEASociedadedeVôosEspaciais,ICSSA,encabeçaacotação

LEIANOTICIÁRIOCOMPLETONO"BERLINERZEITUNG"

As letras lambiam o painel, como línguas de fogo, logo seguidas por um anúncio da cervejaHeineken.

Orapazafastou-se.Leratodasasmanchetescomatenção,massemmuitointeresse.Desceuaruaeolhou fascinadoparaa fachadadeumcinemaonde,porum truquebrilhantementecolorido, figurasdehomensemulheresdetrêsmetrosdealturapareciamdançar.Mas,mesmoali,orapaznãoprestoumuitaatenção.Estavapreocupado,cadavezmais,comcertasexigênciasdeseuprópriocorpo.

Tinhanecessidadeurgentedelivrar-sedaincômodaeestranharoupaqueestavausando,masfazê-loalichamariaaatençãodetodose,alémdisso,seucorponusentiriafrio.Nuncaimaginaraqueumacoisatãosimplespudessetornar-setãocomplicada.Emcasa,noZoológico,eletinhaseubanheiroprivativoetudo omais de que precisava. Os outros também deviam tê-los,mas onde? Como faziam as pessoasestranhas em Berlim? Olhou em volta. Não conseguiu divisar nenhum policial, mas uma mulher quepassava,acompanhada,paroueencarou-o.Numimpulso,dirigiu-seaelaeperguntou:

—Comlicença,madame,poderiadizer-meondepossoiencontrarumbanheiro?Afisionomiadelaaprincípiodemonstrousurpresa,depoischoque.Voltou-separaseuacompanhante

edissefuriosa:—Vamosandando.Eleestábêbado.Afastaram-se rapidamente. O rosto carrancudo do homem voltou-se para trás. A palavra

"vergonhoso"flutuouatéele.Surpreso e magoado, o rapaz ficou ummomento a olhá-los, até desaparecerem. Então virou-se e

caminhounadireçãooposta.OlugarporondepassavaagoraerachamadodeKonstantin'sCafé.Avistadaspessoassentadasnas

mesas, que apareciam através das amplas janelas, lembrou-lhe de que tinha fome e sede. Passadoummomentodehesitação,entrou.

Um garçom esguio, vestido com uma elegante jaqueta vermelha, acercou-se dele prontamente novestíbulo.

—Àsordens,cavalheiro.Mesaparaum?—Sim,comoquiser—assentiuorapaz.Ogarçomhesitou,olhando-ocomestranheza.Entãovirou-separaaarcada.—Poraqui,senhor.O rapaz entregou o sobretudo e a câmera a uma moça para guardar. No interior, outros garçons

vestidosdevermelhomoviam-secomoformigasporentreasmesascobertascomtoalhasbrancas.Asalaestavarepletadesedaseveludosdetodasascores,derostoscoradoselimpos,debocassorridentes.Umcheiroestranhodecomidapairavanoar.Ogrosso tapeteabafavaospassosmashaviaumpesadozumbidodevozes,umtilintardepratariaemúsicaprovindadeumafonteinvisível.

Umpoucointimidadocomtantasuntuosidadejunta,o*rapazacompanhouogarçomatéumamesinhadeumsólugar,ondesentou.

Ogarçomabriucomumestaloumapastadepapelãodobrada.Orapazapanhou-aautomaticamentee

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logopercebeuqueeraumaespéciedelistadealimentos.—Umaperitivoparacomeçar,senhor?—perguntouogarçom.—Horsd'oeuvres?Ouentãouma

salada?Orapazpiscouparaocardápioecolocou-onamesa.—Não—respondeu—mas...—Somenteojantarentão,senhor—disseogarçomalegremente.—Seocavalheiromepermite,eu

sugeririaatruiteaubeurrecanopéen,comumMoselle.Émuitobom,senhor.—Estábem—concordouorapaz,comalgumahesitação—masantes...—Ah, um aperitivo, afinal?— repetiu o garçom sorridente,mas levemente contrariado.—Hors

d’oeuvres?Ou...—Não,eunãoqueronadadisto,obrigado—conseguiudizerfinalmenteorapaz,fazendoumgesto

desajeitadoederrubandoumcopo.—Masentão,oqueocavalheirodeseja?Ogarçomendireitouocopo,limpouatoalhaerecuou.Ohomempiscoulentamente.—Gostariaqueosenhortivesseagentilezadememostrarondeéobanheiro.Esperouqueogarçomreagissecomoamulhernarua,masorostosagazdohomemapenassefechou

inexpressivamenteeeleseinclinou,murmurando:—Aentradaportrásdacortinadofundo,senhor.—Obrigado,osenhorémuitogentil.—Denada,cavalheiro.O garçom afastou-se. O rapaz levantou-se e caminhou na direção indicada. Embora procurasse

mover-secomcuidado,sentia-seaindadesajeitadonaquelecorpoealgumasvezesseesqueciaeparavaentreduaspassadas,tentandotirarumdossapatos.Quandofezissonotouqueospresentesolharamparaelecomestranheza.Resolveuentãoeliminaressehábitoomaisrápidopossível.

Quando voltou, após alguns problemas com as fechaduras a que não estava habituado, o garçomestavatirandoumatravessacobertadeumcarrinhodeprataecolocandonamesa.Levantouatampacomummeneio,enquantoorapazsentava-se.Ogarçomapanhouumaesguiagarrafanocarrinho,desarrolhou-a,serviuumlíquidoclaronocopoerecuounaexpectativa.

Orapazolhouparao.prato.Acomidafumegavaagradavelmente:cincoouseisdiferentesespéciesdealimentos,cadaumcomsua

cor característica, arrumados na travessa de formadecorativa.Nunca vira nenhumdeles antes, excetotalveznasrevistas,etodososseuscheiroslheeramdesconhecidos.Aindaassim,pegouogarfoetentoutirar o pedaçomaior, umamassa oval áspera, de cor marrom-queimado, que se desfez em pequenosflocos,escorrendoumcaldo.Levouogarfoàboca,numasegundatentativa.Acomidalhepareciaumadesagradável e úmida protuberância sobre a língua. O gosto era tão surpreendente que ele não tevedúvidas:virou-seecuspiu-afora.

Ogarçomolhouotapeteedepoisorapaz.Entãofoiembora.O rapaz estava experimentando cautelosamente umas tiras verde-claras, que achava estranhasmas

saborosas,quandoogarçomvoltou.—Ogerentegostariadefalarcomosenhor,porgentileza.Eapontounadireçãodovestíbulo.—Comigo?O rapaz levantou-se de bom grado, derrubando o copa novamente. O líquido molhou a toalha e

começouaescorrerparaotapete.—Desculpe—disseecomeçouaenxugarcomoguardanapo.—Não tem importância— respondeu o garçom sombriamente e pegou o braço do rapaz.—Por

favor,cavalheiro.

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Encontraram outro garçom no vestíbulo, que pegou-lhe o outro braço. Alguém entregou-lhe osobretudoeacâmera.Juntos,osdoisgarçonsolevaramatéaportadesaída.

Orapazolhavaaoredor,procurandoalguém.—Eogerente?—perguntou.—Ogerente—respondeuoprimeirogarçom—querqueosenhorsaiacalmamente,semperturbar.—Maseuaindanãopagueiacomida—disseorapaz.—Nãosepreocupecomisso,senhor—respondeuogarçom(ejáestavamnaporta).Osdoisderam-lheumúltimoempurrão.Foipararnarua.Um poucomais tarde, no banheiromasculino de uma galeria de um pfennig (ali pelo menos era

possívelencontrarumbanheiro),orapazexaminouoconteúdodosseusbolsos.DescobriuqueeraMartinNaumchik, cidadão europeu, nascido em Asnières (Sena) em 1976, boa compleição física, olhos ecabelos castanhos, sem folha criminal, semcortede cidadania, nenhumsinalparticular, empregadonoParis-Soir,98,ruedeIaVictoire,Paris(9e),quetinhalicençademotorista,umcartãodecréditoCordonBleu,umcartãodeimprensaemcincoidiomaseumcadernodenotas,cheioderabiscosalápis,queelenãoconseguiadecifrar.Emsuacarteiradedinheiro,encontrouquarentamarcosenosbolsosdascalças,dopaletóedosobretudo,algumasmoedastotalizandodoisoutrêsmarcos.Eratudo,excetounscanhotosde cheque, uma chave presa a uma argola de ouro, lenços, fiapos do tecido dos bolsos, ummaço decigarros pela metade e um envelope amarrotado, endereçado a Herr Martin Naumchik, 67,Gastnerstrasse,Berlim.

Orapazjáhaviasatisfeitoparcialmentesuafomecomduassalsichasfritas,compradasnumabarracaperto da galeria, mas sentia-se cansado, só e confuso. Naquele momento gostaria de voltar para oZoológico,masestavaperdidoenãosabiaondeaqueleficava.Saiudagaleriaecomeçouadescerarua.

Ocinemaconvidava-oaentrar,acenando-lhecomasportasabertasdovestíbuloeseusgigantescoscartazesdecada lado: figurasdehomensemulheres, empapel lustroso, eplanetas flutuandonumcéuazul-acinzentado.Letreirosluminososanunciavam:

Experimentenovassensações!Emoçõesnuncavistas!SOBASSETELUASStellaPain—WillemDeGroot"Indescritível!"—TageblattO preço era dois marcos e dez. O rapaz pagou, recebeu o bilhete e entrou. Algumas pessoas

esperavamdepé,naante-sala,conversandoefumando.Sobreumlongobalcão,estavamàvendafrutasexóticas e confeitos, e havia fileiras demáquinas automáticas, com bebidas, doces e guardanapos depapel. O rapaz entregou o bilhete à borboleta automática na porta, recebeu de volta o canhoto doingresso,eentrounumenormepoçodecadeirasescuras,iluminadoporfracaslâmpadascolocadasnasparedesafastadas.Aquieali,emtornodoenormeanfiteatro,gruposdepessoassentadas.Trêsquartosdos lugaresestavamvazios.Ouvia-seum ligeiroburburinho,masninguémconversavaou semovia.Oespetáculonãohavia,evidentemente,começado.Orapazdirigiu-separaaplatéia,escolheuumacadeiraedesdobrou-a.Quandosentouepôsasmãosnosbraçosdacadeira,sonsemovimentosexplodiramaoseuredor.

Deuumsaltoemmeioaosilêncioeàescuridão.Oenormeequasevazioanfiteatrovoltoua ficarcomoantes:asformasfantasmagóricasqueviratinhamdesaparecido.

Depoisdeummomento,cautelosamente,voltouasegurarumdosbraçosdapoltrona.Nadaaconteceu.Ooutrobraço.Aindanada.Comcuidadoemedo,desdobrouapoltronaeafundou-senela.

Novamenteasúbitaexplosãodeluzesom.Conseguiu,destavez,verimagenseouvirvozes,atéquepuloudepéoutravez.

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Aoseuredor,aspessoascontinuavamsentadas,emmisteriosoeconcentradosilêncio.Entãoaqueladevia ser a maneira de ver um filme: não projetado numa tela, como sempre pensara, mas algo queaconteciamisteriosamente,quandosesentavanacadeira.Trêmulodenervosismo,masdecididoanãosercovarde,sentou-seaindaumavezeagarroucomforçaosbraçosdapoltrona.

Luzesesensaçõesorodearam.Viu,então,apartesuperiordedoishumanosgigantescos,umhomemeumamulher,contraocéuvioleta,noqualduas luasbrilhavampalidamente.Simultaneamente,ouviu-seumopressivoeinsistenterugirdeventoeavozestentóriadohomemgritou:"Gerda,vocêéminha!"Seusolhospousaramnosdela,seusfortesbraçosmorenosagarraramosbraçosnusdela,enquantoamulherrespondia:"Eusei,Friedrich."

As palavras explodiram nos tímpanos do rapaz como uma bomba. Os dois corpos imensos nãoestavammuitodistantesdele,nofundodasala.Pelocontrário,surgiamasuafrente, tãopertocomosepudessetocá-los.Brilhavamcoloridos,nãocomumacornatural,masalgoaomesmotempodiferenteeimpressionante, tons pastéis luminosos sobrepondo sombras à escuridão luminescente, comumaquaseperturbadorasugestãodeumnegromortalnoscontornos,asemelhançadeumagravuracolorida.Tinhamprofundidade, mas não realismo, e também eram incrivelmente mais que simples imagens. O rapazconstatou,surpreso,quepodiasentirocheirodoar,frioesalgado,eque,semsaberpelomenoscomo,tinhaconsciênciadaverdadeiratexturadapeledaenormemulher,lisaemaciacomoumfrutodecera,edafelinasuavidadeperfumadadoslongoscabelosfulvos,soltosaovento,edarigidezlustrosadasfolhasverdesdocenário.

"Gerda!",trovejouohomem."Friedrich!",trombeteouamulher,tristemente.Então,semmoverummúsculo,desapareceramambos,vertiginosamente,comoseumcarroinvisível

os levasse rapidamente para longe, enquanto eles iam diminuindo, de pé, olhando um para o outro,arbustosdefolhasverdesse juntaramparaencheracena.Océuseampliouatéocupar todooespaço.Trêsluascomeçaramasemoverlentamentenofirmamentovioletaenessemomento,comumpoderosotrovão,achuvacomeçou.Seco,noseulugar,orapazpodiasentirosfiosd'águalavandoasfolhas.Erammornos. A música explodiu em ressonâncias selvagens. Um relâmpago cortou o céu e a tempestadedesabou.

Erademais.O rapaz pôs-se de pé, tremendo dos pés à cabeça. A visão, o tato e a audição desapareceram

instantaneamente.Estavasónasalaimensa,comaspessoasimóveisesilenciosassentadasnoescuro.Dirigiu-setrêmuloparaapassagemesaiu,satisfeitodevoltaràcalmaeàconsciênciadesimesmo.

Lamentavahaverdesistidotãodepressa,masconsolou-sepensandoqueaquelaeraaprimeiravez.Maistardetalvezseacostumasse.

Numabancanomeiodarua,jornaiserevistaseramvendidosatravésdedistribuidoresautomáticosde metal. Ao lado, um menino sujo e uma mulher grisalha, com um televisor portátil, assistiam àapresentaçãodeumcantorpopular.Acriançatentavaacompanhá-lo,comumavozdesopranoforçada.Algumasmoedasseespalhavamsobreamesadesmontável,ondeestavaoaparelho.Maisadiante,doishomens bêbados e desgrenhados brigavam sem empenho, segurando-se pelo paletó para manter oequilíbrio.Umamulher,comorostocarregadodemaquilagem,faziapiadas,masninguémlheprestavaatenção. Três rapazes andavam lado a lado, carrancudos, vestidos com idênticos sobretudos longos eescurosetopetescheiosdegordura.Enormesanúnciosdeluzfriapiscavamdoaltodosedifícios:

MOBIL,TELEFUNKEN,KRUPPFARBEN.Orapazsemovia,emmeioàmultidão,ouvindoasvozesindistintasetrechosdemúsicaquevinham

dasportasabertas,examinandoosrostos,parandoparaolharasfaiscantesmercadoriasnasvitrinasdaslojas.

Depois de andar durante algum tempo namesma direção, penetrou numa loja que parecia ocupar,

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sozinha,todoumquarteirão,comdiversasportasdeentradaefilasdevitrinasbrilhantementeiluminadas.O nome, em letras graúdas de luz fria em cada uma das entradas, era "ELEKTRA". Na falta de coisamelhor,ohomemacompanhouamultidão.

Dentro, a loja era um gigantesco salão, de teto alto, boa acústica e brilhantemente iluminado porrefletores.Pilhasdecaixasemostruáriosluminososestavamdispostosemprateleirasparalelas,comalasentre elas. Nos espaços intermediários, havia estátuas, grandes plantas floridas e trabalhos emmetalbrancoedourado.Oburburinhodamultidãoerarefletidonotetodistante.Olhandoparacima,orapazviuflamejantesfachosdeluzcolorida:vermelhos,verdes,azuis,âmbar,quepiscavamedeslocavam-sepeloteto como a descarga dos foguetes. O ar estava pesado, impregnado de uma mistura de perfumesfemininos e outros odores indistintos. Como fundo musical, uma suave melodia e ruídos múltiplos econfusos.

Orapazseguiaaoacaso,ouvindoevendo.Umamulhereumhomemidosoachavam-seàentradadeuma das galerias, discutindo violentamente em voz baixa e crispada. O rapaz conseguiu ouvir aspalavras:"Vintemilhões,nomínimo."Umacriançadecasacovermelhoestavachorando,arrastadaporuma mulher zangada. Um homem de uniforme azul escuro caminhava apressadamente, com as calçasbatendonostornozelos.

Havia anúncios de luzes coloridas no teto. Um vermelho dizia: ROUPASMASCULINAS e uma trilhatambémvermelhaafastava-sedelepiscando.Outro,azul,dizia:JÓIASERELÓGIOS.Overde:CÂMERAS.

Orapazseguiu,fascinado,ofachodeluzesverdeada.Filasdegente,namaioriamulheres,moviam-selentamente,porentreosmostruários.Orapazviu,aquieali,alguémpôrdinheironumadascaixas,.abrirovidroeapanharumablusaouumaroupadebaixo,umpardemeias,umcachecol.

Orapaznuncahaviavistotantacoisabonitanumsólugar.Estavaagoranumlongocorredor,repletosó de câmeras, centenas delas, de todos os formatos e tamanhos, todas impecavelmente polidas ebrilhantes.Ocintilantereflexodosseusolhosredondosdevidroemetalseguiam-noquandoeleandava.Viuefetivamenteumhomemcomprarumadelas:umobjetoenorme,dotamanhodeumacabeçahumana,envolto em couro claro, um complexo de tubos e lentes, discos e medidores. O homem segurou-arespeitosamente,olhando-acomcarinho,comosefosseorostodeumserquerido.Assimqueaportadevidro se fechou, ummecanismomoveu-se lentamente e outra câmera, idêntica, foi colocada no lugarvazio.Quandoocompradorseafastou,orapazolhouopreçonabordacrornadadavitrina:setecentosmarcos. Olhou novamente para a bela câmera atrás da porta de vidro e depois para a que estavapenduradaemseupescoço.Eramenoreometalnãobrilhavatanto.Suacapapretaestavagastaemalgunslugaresenãopareciatãobonitaquantofora.

Orapazrecomeçouaandar,olhandoparasimesmo.Viuqueseusobretudoescuroestavapoídonospunhos,seussapatosprecisavamdeumpolimento,haviapoeiraefiaposemsuascalças.

Assim,nãobastava serhumano!Erapreciso tambémdinheiro.Pensouvagamenteque sepossuíssesetecentosmarcosnãoestariacomdordecabeça,nãoteriaaquelasensaçãodedesconforto,queoafligiacadavezmais,nemsesentiriatãocansadoeirritado.

Porém,nãotinhaamenoridéiadecomoalguémconseguiadinheiro.Parasentir-semelhor,parounaseçãoseguinteecomprouumrelógiodepulso,comumapulseirade

platinaexpansível.Colocouumanotadedezmarcosnaranhura*Omecanismorecolheuodinheiro,comum sibilo, puxando a nota gradualmente para dentro, até desaparecer. Então houve um estalo noreceptáculoembaixoeaportadevidroseabriugirando.Orapazapanhouorelógioeadmirou-o.Aquelamaravilhajáestavaemfuncionamento,oponteirodossegundoscirculandosilenciosamentenomostradorpreto.Colocou-onopulso, primeirodo lado errado, depois naposição correta.No receptáculohaviavinte e sete pfennigs emprata e cobre.Retirou-os.Acima, omecanismo funcionounovamente e outrorelógiodepulsoocupouolugarvazio.Orapazviuquenãopodiaresistir.Colocououtrosdezmarcosnamáquina, recebendonovo relógioemaisvintee setepfennigsde troco.Colocouosegundo relógiono

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outropulso.Agorasentia-sericoeelegante.Estendeuosbraçoscomfirmeza,parasubirospunhosdasmangas,demaneiraapoderadmiraros relógios.Ambosmarcavamamesmahora:vintehorase trezeminutos.Agoraelepoderiasempresaberahoracerta,porqueseosrelógiosmarcassemhorasdiferentes,naturalmenteumdelesestariaerrado;semarcassemidênticas,deveriamestarcertos.

Satisfeitopor ter feito aquilo sozinhoepor ter compradodireito, continuouandando.Numespaçolivre,nofimdagaleria,viuasescadasgiratóriasquesubiamatéotetoe,alémdelas,filasdeelevadorescujasportasseabriamefechavamconstantemente:clic,abria-seaportaeentravaalguém;clic,aportasefechava,transportavaopassageiroeseabriaoutravez.Atravessandoorecintoemsentidotransversal,viuoutrogrupode fachos luminososno tetoepareceu-lhequeumdelesestava rotulado"ALIMENTOS".Seguiu-o avidamente e quase derrubou um homem de uniforme azul, sem quépi, que franziu assobrancelhasparaeleedisse:

—Desculpe,senhor.—Não,euéquedevodesculpar-me.—Nãohádeque,senhor.—Émuitogentildesuaparte...—Éumahonra,senhor.Cumprimentaram-secomumaligeirainclinaçãodecabeçaeseguiramseucaminho.Orapazverificou

queoanúncioluminosorealmenteindicava"ALIMENTOS".Seguiuseufachoróseoatéchegaraumaáreasubterrânea,repletadegentecomcarrinhosdemetalcheiosdepacotes.Desceuoscincoouseisdegraus,farejando o ar e um novo grupo de fachos luminosos apontavam: "Gêneros enlatados", "Perecíveis","Carnes" etc. Entrando na seção de enlatados, encontrou um homem corpulento, com um sobretudoaxadrezado,queestavatirandoumalatadeumdoscompartimentosabertos,paracolocá-lasobreoutrastrêsnumcarrinho.

Orapazparouparaolhar.Omecanismodacaixagiroulentamente:outralatagrande,comomesmoformatocurioso,apareceue

o rapaz pôde ver no rótulo: PRESUNTO DEFUMADO COPENHAGEN, e a imagem de um pedaço de carnerosada. A tampa da vitrina ainda estava aberta. Assim que o mecanismo parou, o homem troncudoestendeuamãoeapanhouopresuntoenlatadoecolocou-onocarrinho, juntocomosoutrosquatro.Omecanismovoltou a girar.O freguês corpulentoolhou entãopara o rapazpor sobreoombro, hesitou,depoisapanhouumasextalatadepresunto,quefoijuntar-seàsoutrascinco.Omecanismotornouagirar,masatéondeorapazpôdever,ohomemparrudonãocolocaranenhumdinheiro.

Cada vez que retirava o presunto, a porta girava mas não fechava. Então o fortão levantava-a epegavaumnovopresunto.

Ofreguêsolhouemvoltaoutravez,abarcandotudoeresmungou:—Váandando,vamos,nãovêqueeuestouocupado?—-Sintomuito—disseorapaz,polidamente

—masestouaguardandoaminhavezdecompraropresunto.Ohomenzarrãomastigoualgumaspalavras,tentandoolharparaorapazeparaopróximopresuntoao

mesmotempo.—Oquedisse?—perguntouorapaz.—Eudisseváparaoinferno—resmungouoespadaúdomaisclaramente.Omecanismoparou.Elemeteuamãoeapanhouasétimalata.Nessemomento,umdoshomensdeuniformeazulapareceunofimdagaleria.Ohomenzarrãoestava

segurandoopresuntojuntoaopeito.Ohomemdeazulvirou-separaele.Ofreguêsparrudorodopiouabruptamente,colocouopresuntoentreosbraçosdorapaz,edissede

mauhumor:—Entãotome!—eafastou-sedepressa.—Ummomento,porfavor!—gritouohomemuniformizadodeazul,aproximando-se.Afastando-secadavezmaisrapidamente,esemvoltaracabeça,ofortãodissealgoparecidocom:

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—Corra,seutolo!Ohomemdefardaazultiroualgodobolso.Eraumacampainhaelétrica,quecomeçouasoaraltae

insistentemente. Dentro do mostruário, o mecanismo continuou girando, apresentando outro presuntoenlatado.Orapazolhou-o,depoisvoltouavistaparaalataquetinhanasmãosesentiuumvagoalarma.Ohomemforteandavacadavezmaisdepressa.Odeuniformeazulgesticulavaegritava.Orapazvirou-seecomeçouacorrer,emboranãosoubesseporquê.

Emfrenteàseçãodealimentos,outrohomemdeuniformeazulvinhapelaesquerdaemsuadireção.Orapazsubiu,tropeçando,oscincodegraus,apertandodesajeitadamentecontraopeitoalatadepresunto.Ohomenzarrãohaviadesaparecido.

— Pare!— gritou um dos homens de uniforme azul. Mas o coração do rapaz batia num pânicoirracional.

Atravessou o vestíbulo, esquivando-se de um lado para outro entre os carrinhos de compras,perseguidopelosgritosepelosoardacampainha.Outracampainhacomeçouatocar,emalgumlugaràsuadireita,edepoisumaterceira.Totalmenteapavorado,semsaberoqueestavafazendo,orapazjogouopresuntonochãoecorreunadireçãodeumamulher,queempurravaumcarrinhocheio,quegritoueatirou-o contra outro carrinho, derrubando os dois e espalhando laranjas pelo chão, como mercúrio.Continuouacorrer,deixando-aparatrás,quasecaindo,eviu-seentredoishomensdeazul,enquantoàfrentedelesóhaviaumagradedecorativadearabescosdemetaldourado,quesubiaatéumagalerianosegundoandar.Ofeganteeamedrontado,o rapazarremessou-secontraagradeecomeçoua treparporela.Apesardospésdesajeitados,quenãopodiamse,agarrarnemsentirometal, ficou logoacimadacabeçadoshomens,queergueramseuspunhosparaele,gritando:

—Biltredesprezível,desçadaí!O rapaz continuou a subir. Num instante, as pessoas abaixo dele, no chão, pareceram bonecos

coloridos,muitoscomosrostosvoltadosparaele.Umdoshomensdeuniformeazul tinhacomeçadoasubiragrade,masorapazjáestavaquasenotopo.

Chegouemcimae,agarrando-se,percebeuquepoderiaatingirocorrimãodagaleria,balançar-seepassar por cima. Ofegante com o esforço, chegou a um estreito corredor, com uma fileira de portasabertas,deondevinhamsonsdevozeseoruídodasmáquinas.Umhomemsaiuporumadasportasdocorredoreaprumou-separaouviroalarmedascampainhas.Virou-seeviuorapaz.

—Ei!—gritou,caminhandoparaafrente.O rapaz correu novamente. Rostos se viravam, espantados, nas salas por onde passava. Viu, num

relâmpago, homens emulheres de guarda-pós,mesas ematerial de escritório.Aporta seguinte estavafechada e indicava: "Escada".O rapaz abriu-a, hesitou um instante entre dois lances estreitos, depoistomouoascendentee subiu trêsdegrausdecadavez,dandoumavoltaemcadaumdospatamaresatéficartonto.Abaixoecoavamvozes.Continuousubindo,passandoporoutrospatamareseportasescurasfechadas,estreitaseimundas,atéchegaraocimo.Asescadasterminaramnumaúltimaporta,iluminadaporumaencardidaclarabóia,atravésdaqualfiltrava-seumatênueluminescênciavioleta.

O rapaz parou para escutar. Ouviam-se ainda, vindas de baixo, vozes fracas como o zumbido deinsetossobcamadasecamadasdeterra.

Abriuaportaeentrou.Achou-senumandardesalasvazias,escuraseempoeiradas.Tudoalitinhaumaspectomais velho e gasto que nas brilhantes galerias embaixo.Na luz fraca que vinha das pequenasjanelasdevidrogranitadopôdedivisarmercadoriasempilhadasnoscantosdeumasalaeumamontoadodearquivosemoutra.Nãohavianinguémali.Deviafazermuitotempoquenenhumapessoapunhaospésnaquelelugar.

Nofimdocorredor,meioescondidaporumvelhoguarda-roupa,haviaoutraportaeoutraescada,amaisestreitaeescuradetodas,comdegrausdemadeiranuaquerangiamsobseuspés.Eraapenasumsólanceenoaltoentrounumasalaminúsculadeparedesinclinadas.

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Pacotesdepapéisamontoavam-senochão,amarelosequebradiçospelotempo,sobumacamadadepoeira.Haviatambémumrolodecorda/umaouduaslâmpadasvelhasepapelpicado,roídotalvezporpequenosanimais.Tudoissoeleviuàluzfracaefriadeumajanelatriangular,situadanofimdoteto.Eraumajanelalarga,encaixadaemumamolduradeornatosantigos,quetomavamquasetodaaparede.Eporela,quandolimpouumpoucoovidrocomamão,conseguiuveracidadeestender-seabaixodele.

Silenciosaevazia,jaziasobocéuvioleta,osedifíciosdispostosordenadamente,umatrásdooutro,até o horizonte enevoado. Algumas das fachadas estavam iluminadas pelas luzes das avenidas, masnenhum som chegava daquelas profundezas. Era como uma cidade abandonada, cujos habitanteshouvessempartido,levandotodasaslâmpadas.OrastroluminosodeumFlugbahnflutuouvaziocontraocéu. No crepúsculo, as letras dos anúncios luminosos sobressaíam, frias:MOBIL, URANIA, IBM, ALTWIEUNL

Orapazolhouemvolta,comcalmasatisfação.Estavaaindafamintoecomocorposofrendo,masasalvoeprotegido.Comaquelespapéispoderia

fazerumacamapertodajanela.Olhariaparafora,paraomundo,todososdias,otempoquequisesseeninguémconseguiriadescobrirondeeleestava.

Sentou-seedeixouosmúsculosrelaxarem.Acimadetudo,estarlivreeterumlugarsódeleeraoquemaisinteressava.Estiveraterrivelmenteamedrontado,masagorapodiaverquetudoterminariabem.

Percorreu, com o olhar satisfeito, as paredes sombrias e oblíquas, que já tinham a confortávelfamiliaridadedeum lar, deitou-senochãoedeixouas lentasondasdo silêncio carregarem-noparaosono.

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IVNoANODE1948,emNewYorkCity,RobertM.Shoemakerteveumadesagradáveltarefapelamanhã:

iraoescritóriodochefeparaserdespedido.Shoemaker,sentadopreguiçosamenteesemlavar-seemseupequenocubículo,tinhaconsciênciade

que não era um ornamento para a Dentweler, Cleaves&Osborne. Nem nas últimas seis semanas deempregosetransformaranumexemploaceitável.Averdadeéqueestiveramaisoumenosbêbadodurantetodootempo.

Shoemakerolhouacamisasuja,comafraldasaindodascalças.Depois,ossapatossembrilho,comos cordões desamarrados. Uma de suas meias era azul, a outra de losangos multicores, ambas comenormesburacos.Sentiuumaespéciedeviscosidade,masistonãopareciaincomodá-lo.

Saltosecoaramnolinóleo.MissMcKenzie,friaeesguia,numvestidoazulestampadodebolinhas,parounaportaabertaeolhou-oinexpressivamente.

—Eleestáesperandoporvocê—disseela.Shoemaker olhou para cima e inclinou a cabeça afirmativamente.Depois de ummomento, ela foi

embora,clic,clac,clic,clac.Vozesecoaramnocorredor;ouviu-seabatidasecadeumadasmáquinasdodepartamentodecontabilidade.Oraiodolugarestavacheiodeecos.

Shoemakertirouospésdocantodamesa.Eleschegaramaochãocomumsolavancoruidoso,queeradecertamaneirasatisfatório.Ospéseramreais,ochãoerareal.Ficoupensandonaquiloemcírculos,atédar-secontadequeestavasentadoali,semsemover,porumlongoespaçodetempo.NãodeviadeixarovelhoGordyesperando.

Shoemaker suspirou, passou a mão no queixo áspero e olhou vagamente para sua escrivaninha:máquina de escrever, duas pastas contendo notas do EZ Credit e contas da Nuway. Uma cesta paraentradadepapéis,suja,cheiadedocumentosamarrotados.Adesaída,vazia.Nãoconseguiuacharnelasoqueestavaprocurando.Olhouentãoagavetadebaixo.Achouumagarrafaachatada,comumapolegadadeuísqueescuronofundo.Shoemakergirouacadeira,colocando-sedecostasparaaporta,oquenãoeracostume, e considerouquenão seriamuitodelicadode suaparte tomarumúltimogole antes de ir aoescritóriodovelhoGordy.Seriamelhor,emvezdisso,mastigarsen-sen?

Eraumproblema interessante porque, deum lado, o velhoGordy sabiamuitobemque ele estavabêbado, sentindo-lhe ou não o hálito carregado, e por outro lado...Mas ele esquecera o outro lado epareceu-lhemais fácil liquidar a garrafa que colocá-la de volta na gaveta.Assim o fez, inclinando acabeçaparatrás.Entãolimpouabocacomascostasdamãoeatirouruidosamenteosoldadomortonacestadelixo.

Quando levantou-se, a escrivaninha girou abruptamente, e ele teve que espalmar a mão nela.Empertigou-se e respirou profundamente com a boca aberta, sentindo o hálito escapar como o de umdragão.PorDeus,nãoestavatãobêbadoquenãoconseguisseandar.Dirigiu-sedeterminadamenteparaaportaesóesbarrouoombroderaspãonoportalaopassar.

No cubículo seguinte, o jovemRobGilmore estava sentado ereto, com a camisa impecavelmentebranca,agravatacomumlaçoesmerado,umcachimbocurtoentreosdentes,soprandoanéisdefumaçacinza-azulada.Olhavaatentamenteparaamáquinadeescrever,fingindonãoverShoemaker.

Shoemakercumprimentou-oironicamenteeprosseguiu,tentandomanter-seeretonomeiodocorredorde linóleo verde.A porta de vidro fosco do escritório deGordy estava aberta. "R.GordonOsborne,

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Vice-Presidente". Shoemaker bateu duas vezes com os nós dos dedos, parado no limiar, sentindo umsorrisotoloformar-senorosto.

GordyOsborne levantouosolhos:o rostocarrancudocuidadosamentebarbeado,ocabelogrisalhobemaparado,depaletó-sacoecachimbonaboca.Gordytambémfumavacachimbo,todomundofumavacachimbo.

—Oi,Gordy—disseShoemakereriu.Osbornepareciaaborrecido.—EntreBobefecheaporta.—Shoemakerempurrouaporta,dandopassosmiúdosefechou-acommaisruídodoqueesperava—

raiodetroço!—eencaminhou-separaacadeiradecouroverdeaoladodamesadeOsborne.Colocouasmãosnosbolsos,,sentou-seeespichouaspernas.

Osborneestavaesfregandoonarizcomosdedos.Shoemakersentiuumligeiromal-estar.HaviaumaespessaparededevidroentreeleeOsborneenãotinhaimportânciaqueosgarotosqueaagênciaestavaempregando atualmente parecessem engomados e fumassem cachimbos, ou que o próprio Shoemakerestivessebêbadoounão,emboraestivesse.Maseraumavergonhasentir-setãomalporcausadeGordy.

—Queéquehá,amigovelho?—perguntouShoemaker,sorrindo.Osbornesuspirou.—Bem,nãohámuitoquedizer,nãoé.O tomnão era interrogativo.Sua voz diminuiu no fimda frase.Correu os olhos pelomata-borrão

verde,comcantosdecouro,pelograndepesodepapéisdevidroverdeepelocalendáriodouradoasuafrente,sobreamesalustrosa.

—Falamosaesserespeitonasemanapassada,combinamosquevocê tentariamanter-sesóbrionofimdasemana...—LevantouosolhosparaShoemaker.—Suponhoquenãoénecessárioperguntar-lheporquenãosemanteve.

— Mas que inferno! — disse Shoemaker. Afundou-se na poltrona, olhando para os sapatos.Procuravaaspalavras.—Querodizer,quediferençafaz?

Osbornenãorespondeu.Shoemaker,tentandoaindaencontrarumamaneiradeexplicarqueaquilonãotinha importância, sentiu uma sensação estranha na boca do estômago. Era como se alguma coisadesagradávelestivesseparaacontecer.Asala,girandosuavementesobseuspés,deuumasúbitaguinada.OuviuOsborneexclamar:

—Uh!Virou a cabeça. Seu primeiro pensamento foi de que Gordy havia colocado uma máscara

carnavalesca. Nariz grande, olhos miúdos e brilhantes, como os de um macaco, sob as grossassobrancelhas.Rosnava,mostrando os grandes dentes amarelos.A cabeça e o rosto cobertos de pêlosásperos, depois os braços e o corpo... O terno desaparecera. O cachimbo também. Sem pescoço, acabeçainclinadaparaafrente...rosnavaeolhavaparaShoemaker.

Shoemaker deu um salto, sentindo um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo.A coisa que não eraGordyfezumruídoanimalescoeapanhouopesodepapéiscomumadaspatassujas.Entãolevantou-se,pulandoporcimadamesa.AúltimacoisaqueShoemakerviufoiopesa-papéisindoemdireçãodasuacabeça.Deu-seconta,então,dequetinhamedodemorreredecomoalgumascoisaseramimportantes,apesardetudo.

Maistarde,ohomemdeNeanderthalsaiupelocorredor,agarroueestraçalhouomensageiroAnthony

Boletti,quepassavaporali.Arremessou-separaasaladosdatilógrafos,fazendoasgarotasgritareseesconderdebaixodasmesasousubirnosarquivos.Nãoprocurousairparaocorredor,mascorreudeumladoparaoutro,provocandoumtumultoemtodooescritório,atéque,vinteminutosmaistarde,chegouapolíciaematou-ocomumtiro.

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Nos jornais, a criatura era descrita como um homem-macaco que escapara de um parque dediversões.O desaparecimento deR.GordonOsborne, que nuncamais foi visto nesta Terra, foi dadocomo"inexplicável".

A comida na bandeja tornou-se uma massa fumegante, de algo verde-escuro, cheiroso e de

consistêncialodosa,compedaçosdeumasubstânciafibrosa.O bípede estava faminto, mas ficou repugnado pela aparência pouco apetitosa do troço e não

conseguiutocarnaquilo.Nasalaaolado,ouviuorangerdeumacolhernopratodemetal:apesardisso,afêmea estava comendo a ração dela. O guarda havia afastado a mesa da sua porta e a repreendidoseveramente.Fritznãoconseguiuouvirarespostadela,seéquehouve.Tentousorveraáguadatigelaquehaviaemsuabandeja,percebeuquesuabocarígidanãoopermitiaeatirouavasilhaaochãonumsúbitoacessodefúria.Logo,porém,sentiusedeeencheunovamenteatigelanatorneiradapia.Tentoulamberaáguacomalíngua,sentindodessamaneiraumcertoalívio,masnãoconseguiubeberosuficienteparamatarasede.Acabouporderramaraáguanaboca,meioseengasgandoantesdedescobrirque,paraengolir,precisavajogaracabeçaparatrás.

Seupeitoeaspernasestavammolhados,osespinhosmaciosfaziammechascomaumidade.Sentiuumaagudasensaçãodedesconfortoatéconseguirenxugar-secomumatoalha.Poralgumarazão,aqueleincidente trivial deprimiu-o fortemente. Tentou consolar-se pensando na carta não terminada sobre amesa mas, para seu desespero, constatou que não se importava mais. Sentou na sala interna e olhouestupidamenteparaaparede.

DespertoudaqueletorporpeloruídodepassosnoescritóriovazioecomavozcircunspectadeGrückchamando:

—Fritz!Emma!Ojovemguardarobustoentrou,viuqueatravessanãohaviasidotocadaelevou-asemcomentário.Obípede levantou-se, simplesmenteporquenecessitariademuita forçadevontadepara ficaronde

estava.Seguiuoguardaatéoescritório.OguardaestavamostrandoabandejaaGrückeWenzl,depéumaoladodooutro,Grückvolumoso

nasuacasemiramarromeWenzlesguionoseuguarda-póbranco.—Nãocomeunada,senhores.OsolhosdeWenzlbrilharam,masGrückdisse,expansivo:—Nãosepreocupe,nãosepreocupe,Rudi,tireistodaqui...Estamanhãnossohóspedenãoestácom

fome, énatural! Já!—Esfregouasgordasmãos rosadasumanaoutra eperguntou:—MasondeestánossaqueridaEmma?—Virou-se.—Emma?

Afêmeaestavanasoleiradoquarto,espreitando,tendovisívelsóumladodorosto.ObedecendoaordemdeGrück,avançoualgunspassoseentãohesitou.Tinha levantadoosbraços,cruzandoasmãossobreatesta,paraocultarocalombo.

—Mas,Emma—disseGrück,emtomrepreensivo—éestaanossahospitalidade?Somosmesmo tão indelicados?Éoprimeirodiadonossoamigo

aqui!Elaemitiuumsomgutural,fixandoobípedecomolhosamedrontados.—Vocêestáassustada,Emma,elelhecausamedo?—perguntouGrück,olhandodeumparaooutro.—Ah,minhaquerida,nãohánadaparatermedo.

Vocêsvãosergrandesamigos...sim,vocêverá!Alémdisso,Emma,oquemedizsobretodootrabalhoqueháporfazer?

Inesperadamente,afêmeafalou,emvozbaixaeabsurdamentehumana:—Leve-odaqui,porfavor,eeufareiotrabalhosozinha,HerrDoktor.

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Olhounadireçãodobípedeeabaixouacabeça.— Não, não, Emma, isto não é direito. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Como você está muito

assustada,tãoapavorada,queremosquefiquealegre,Emma,evamosfazeralgumacoisaparaaliviarseumedo.(Wenzl,dê-meogiz).Fritzvaificareajudá-lanotrabalho...

—Não,não.—Sim,sim!Evocêvaigostar,espereeverá.(Ogiz,Wenzl...ah!).Wenzl falou energicamente com Rudi, o jovem guarda gordo, que corou, remexeu nos bolsos e

apresentouumpedaçodegizcor-de-rosa.Wenzlarrebatou-o,passando-aaGrück.—Olheaqui,Emma—falouGrücksuavemente—vamosdesenharuma linhanochão.Eumesmo

voudesenhá-lapoisquerovê-lasatisfeita...assim...Curvando-se com um grunhido, começou na parede entre as portas dos dois quartos e traçou uma

linhasinuosaatravésdasala,separando-aemduaspartesaproximadamenteiguais.—Agora—disseeledooutrolado,levantando-seemarquejantetriunfo—veja,Emma,destelado

ficaFritz.Correto,Fritz?—Comovocêquiser—replicouobípede,comindiferença.—Viu,elemedeuapalavra—falouGrückcomênfase.—Eeuadouavocê,Emma.Enquantoele

ficardesteladodasala,vocêtrabalharádooutrolado,enãoterámedo.Mas,seeletentarcruzaralinha,você temminha permissão para ficar assustada novamente, correr para seu quarto e trancar a porta.Compreendeu?

Afêmeaficouimpressionada.—Entãoestábem,HerrDoktor—falouporfim.—Muitobem!—exclamouGrück.Esfregouasmãoscomsatisfação.—Agorafaltamaisoquê?—

Olhouemvoltadasala.—Wenzl,mudeumadasmáquinasdeescrever,paraqueFritzpossausá-la.Eumapartedotrabalhotambémaquidestelado...NãomuitoparaFritz,,estoucertodequeEmmatrabalhamaisdepressa!—Ótimo!Ótimo!—Foisaindo,acompanhandodeWenziedo jovemguarda.—Atéapróximavez,então,EmmaeFritz.

Aportasefechou.Obípedefezmençãodesentar-seàescrivaninha.Ajoseuprimeiromovimento,porém,Emmarecuou,

comabocaabertademedo,asmãossobreocalombo.Istoespantouobípede,quedisse,irritado:—Nãovoumagoá-la.—Nãofalecomigo—pediuafêmea,fracamente.Agarrouocalombo.Seucorpotremia,levemas

perceptivelmente.O bípede, tentando ignorar os involuntários gritinhos e sobressaltos dela, dirigiu-se para a

escrivaninhaesentou-se.Tirouacapadamáquina,olhouparaapilhaderolosdoditafonenacestadeentrada,entãoabriuagavetadaescrivaninhaedeuumaolhadelarápidaparacertificar-sedequeacartaestavalá.Enquantoisto,afêmeapermanecianasoleiradoseuquarto,apavorada.

Sob seu olhar horrorizado, o bípede não se atreveu a tirar a carta inacabada da gaveta. Pegou oprimeirorolododitafone,colocou-onoaparelho,pôsosfonesnosouvidosecomeçouaescutar.

Um súbito ruído alto em seus ouvidos fê-lo dar um salto e tirar os fones.Depois de ummomentobaixouovolumee,cautelosamente,recomeçou.Umavozfalavabaixinho.Reconheceu-acomosendodeGrück,masnãodistinguiaaspalavras.Enrolouocarretelatéamarca"começo".Osomabruptovoltou,edestavezpercebeuqueGrückestavapigarreando.

Aumentouovolume.AvozdeGrückestavadizendo:— Atenção, Emma! Esta é a fita número dois de Alguns Aspectos da Biologia Extraterrestre.

Começo.Bibliografia.Birney,R.C.Bê-i-erre-ene-e-ípsilon,Emma.Filo e gênero na biotamarciana.

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Revistade fisiologiacomparada,1985,50,162a167.Bulev,M.I.Bê-u-ele-e-efe,Emma.Lembre-se,não com vê, como da última vez! Estudo preliminar do natator veneris schultzii. Tratados teóricos,1990,151652a1653.Cooper,J.G....

Obípederetirou,irritado,osfonesedesligouoaparelho.Osfonesnãoapertavammuitoasorelhas,masnãoestavahabituadoeficounervoso.

Afêmeaafastou-seunspassosdasoleira,masquandoelelevantouosolhos,voltouapressadamente.Obípedepraguejou.Logoporém, relutante, voltouo carretel doditafone ao início e pôsos fones

novamente.Meteuopapelnocarrodamáquina,ligouoaparelhoecomeçouatentardatilografaroqueouvia.Maslogonasprimeiraspalavrascometeutantoserrosquerasgouopapeleatirou-onocesto.

Ouviu-se um gritinho abafado da fêmea, que havia chegado até o centro da sala. Agarrando ocalombo,recuoudoispassos.

—Nãoolheparamim!—esganiçou-se.—Entãonãogrite—retrucouobípede,aborrecido.Colocououtrafolhanamáquina.—Nãogritareisevocênãoolharparamim.Eleergueuosolhos.—Quepossofazer,semesmoquandonãoolhovocêgrita?Anãoserporumoutropipilo,maisumsuspiroqueumgrito,elanadarespondeu.Obípedevoltouao

trabalho.Apertandoumatecladecadavez,compenosadiligência,conseguiupassarporcincoverbetesdabibliografia,antesdecometerumerro.

Jogouafolhaforaerecomeçou.O tempo passou. Finalmente percebeu que a fêmea atravessara a sala até chegar à sua mesa.

Concentrou-senotrabalhoenãoolhou.Poucosminutosdepois,ouviuoruídodamáquinadeEmma.Suadatilografiaerasuaveerápida.Ocarroiaatéofimdalinhaevoltava,começandoumanovalinha.

Raivosamente, obípede apertouuma tecla com tamanha forçaque ela repetiuo toque.Arrancouapágina.

—Vocêestáestragandotodooseutrabalho—disseela.Fritzergueuosolhos:asmãosdelapularamparaocalomboebaixou-asnovamente.

—Nãopossofazernadadestejeito—respondeu.—Nuncaaprendeudatilografiadireito?—Não.Querodizer,sim—Obípedeapertouseustrêsdedos,frustrado.—Euseidatilografar,mas

esteanimalnão.Nãopossofazerasmãosdeletrabalharem.Elaolhouparaele,comabocaligeiramenteaberta.Eraóbvioquenãohaviaentendidoumapalavra.Obípederesmungoufuriosoevoltouaotrabalho.Poucodepois,ouviuoruídodamáquinadeEmma

recomeçar.Durantemuitotemponenhumdosdoisfalou.Insistindosemesmorecer,obípedeconseguiu,depoisde

umahora,completarumapágina.Tirou-adamáquina,colocou-anacestadesaída,comumasensaçãodetriunfo.Olhandoparaa escrivaninhada fêmea, ficouumpoucodesconcertadoaonotarquea cestadesaídadelaestavarepletadefolhasdatilografadaserolosdefitasequeacestadeentradaestavavazia.

Suasmãosecostasdoíampornãoestaremhabituadasàqueletrabalho.Sentiu-senovamentecansadoe abatido. Como iria terminar aquela carta, uma carta tão importante, com a fêmea o tempo todo namesmasala?Talvezseele,deliberadamente,aamedrontasseoutravez...

Opensamentofoiinterrompidopeloruídodaportaexternaabrindo.Emmaolhouesperançosamente.Obarulhodasuamáquinacessara.Cobriu-acomdoisrápidosmovimentoselevantou-se.

Grückentrou,sorrindoeinclinandoacabeça.Wenzlseguia-o,sombriocomosempre,efinalmenteorechonchudoguarda,comseucarrinho.

AexpressãodeGrückmudouligeiramentequandoolhouparaobípede.

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—Porfavor!—bradouele,gesticulandocomasmãosgordas.Sementendermuitobemoqueacontecera,obípedelevantou-seeempertigou-seatrásdasuamesa,

comoEmmafizeraaoseulado.—Ótimo!—exclamouGrückalegremente.—Excelente!Comovê,Fritz,umpouquinhodeeducação

etudoficamelhor.Voltou-separaEmma,examinouoconteúdodesuacestadesaídaesorriuaprovador.—Admirável,Emma,bomtrabalho.Emmareceberátrêsbombonscomojantar!Ouviu,Rudi?—Perfeitamente,HerrDoktor—respondeuoguarda,comumacurvatura.Colocou trêsgrandesporçõesdeumasubstância secaverdepálidanumpratoque jácontinhauma

espéciedeensopadomarrom,levando,tudoparaoquartodeEmma.Quandovoltou,Grückestavaexaminandoacestadesaídadobípede,comumaexpressãoofendidade

incredulidade.—Ésóisto,Fritz?_—indagouGrück.—Otrabalhodeumamanhãinteira?Vocênãopodesertão

preguiçosoassim!Obípedemurmurou:—Fizomelhorquepude.Grückabanouacabeçatristemente.— Não há bombons para Fritz hoje, Karl. Que vergonha, hem, Wenzl? Pobre Fritz, não ganhou

bombons.Sentimosmuito,Fritz.Masdar-lhebombonsporestetrabalhoseriaumainjustiçacomEmma,quetrabalhoutanto!Certo,Wenzl?

Wenzl,fixandoobípedecomumolharfrioesempena,nadadisse.Grückprosseguiu:—Masestatarde,sehouveralgumamelhora...bem,vamosver!Atélá...—Apanhouaúnicafolhana

cesta de Fritz, examinou-a e estalou a língua:— Incorreto! Incorreto!— disse, batendo com o dedogrossonapágina—Aquiháerros,Fritz!Tãopouco trabalhoe tãomal feito!Eonde...onde estão ascópiasemcarbono?

—Ninguémdissecoisaalgumasobrecópiasemcarbono—replicouobípede,furioso.—Quantoàdatilografia, já lhedissequeocorpodesteanimalnãomeéfamiliar.Euqueriavê-lodatilografarcomdedosalheiose fazê-locorretamente.—Sentiuuma ligeiravertigem,masprosseguiugritando, semsepreocupar com o que estava acontecendo. — Pelo que me importa, vocês podem pegar este seuabominávelZoológico—continuou,sacudindoopunhonorostodeGrück—eirpara...

Asalaestavaseinclinandoabsurdamenteparaaesquerda:paredes,Grück,Wenzl,guarda,Emmaetudoomais.Agarrou-seàmesa,tentandofirmar-se,masestapulouparacimatraiçoeiramente,dando-lheuma pancada forte no rosto.Ouviu os gritos deGrück, os do guarda, e a voz pipilante de Emma emsegundoplano.Perdeuoconhecimentoepenetrounaescuridão.

—Continuedeitado—disseumavozrabujenta,mastranqüilizadora.O bípede olhou para cima e reconheceu o rosto enorme de Prinzmetal, o cirurgião cujos grandes

olhoscastanhospercorriam-lheocorpo.Abocamoledomédicoestavanervosamentecrispada.—Choqueetensão—dissePrinzmetalporsobreoombro.Obípede localizouentãomaisduasou trêspessoasdepéno fundodoquarto.Percebiaagoraque

estavadeitadonobelichedoúltimocompartimentodasuajaula.Sentia-securiosamentelânguidoefraco.Estátudobem—continuouPrinzmetalcalmamente.—Vocêperdeuaconsciênciaporummomento,

foisó.Istopodeacontecercomqualquercriaturamuitonervosa.Piquedeitado,Fritz,descanseumpouco.Seurostovirouesumiu.AvozdeGrückfezumapergunta.Prinzmetalrespondeu:—Nada...Amanhãestarátãobemquantoantes.Umarrastar-sedepéssoounochãodeconcreto.Obípedeouviu,maisafastado:

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—Ébomque não seja uma coisa orgânica,HerrDoktor.Que sabemos, afinal de contas, sobre aconstituiçãointernadestesanimais?Nada,absolutamente.

AvozdeWenzlfaloubreveesecamente:—Quandotivermosaoportunidadededissecarum...Foram-se todos.Obípede ficoudeitado,quieto, fixandoo tetodescorado.Ouviuaporta fechar.O

silêncio eraquase total, quebrado somentepelasnotas longínquasdeumamúsica suave,quevinhadealgumlugarláfora.NenhumsomchegavadasuasalaparticularoudosaposentosdeEmma,aolado.

Porfim,obípedepôs-sedepé.Aliviou-senopequenobanheiroebebeuágua.Percebeuqueestavafaminto.

A bandeja encontrava-se sobre a mesa de armar perto da cama. O bípede sentou-se e comeu oensopado marrom-acinzentado. Então apanhou uma das duas porções arredondadas do troço secoesverdeado que estava ao lado da tigela: os "bombons" de que Grück tanto falara. O bípede pôscuidadosamenteacoisanabocaeparou,incrédulo.Aquelamassa,queeraquasetãosecasobrealínguaquantosuaaparênciasugeria,tinhaumsabordeliciosoefino,completamentediferentedetudoquantoobípede já provara. Não era doce nem salgado, nem amargo nem ácido. Seus olhos se fecharaminvoluntariamenteenquantoachupava,umedecendo-alentamente,fazendo-aderreter-seemsuaboca.

Quandoacabou,comeuaoutraeentãosentou-seimóvel,comosolhosaindafechados,saboreandoamaravilhadaquelainesperadacoisaboaquelheacontecera.Seusolhosseencheramdelágrimas.

Comoerapossívelque,mesmonoseucativeiro,noseudesespero,pudessehavertantaalegria?OedifíciocentraldoZoológicodeBerlim,construídoem1971peloarquitetoHerbertMedius,era

uma encantadora amostra de estilo arquitetônico do passado século XX,mas tinha inúmeros defeitosirremediáveis.For exemplo, a sala de jantar no terraço ajardinado, usadaporGrück e sua equipe emocasiõesformais,foracobertaporumaarrojadaabóbadatransparente,naqualforamcolocadosarcosdevidrocolorido.Emdeterminadasépocasdoano,aslongasestriasmulticoloridasdacúpula,emvezdeincidirem diagonalmente nas paredes de ébano e limão, caíam diretamente sobre as mesas de jantar,colorindo o que estava nos pratos. As cortinas, colocadas para proteger o interior da cúpula, nuncasatisfizeram sua finalidade e estavam agora, como de costume, esperando ser consertadas.Conseqüentemente,emboraobauernwursteopurêdebatatasdoHerrDoktorGrückconservassemosricos tons demarrom e branco, comos quais tinhamvindo da cozinha, oboeuf au jus de Prinzmetalcoloria-sedeumvermelhoescuro,comosetivessesidocortadonaquelemomentodacarcaçasangrenta.OpratodeRauschficouazulescuroeodeWenzleradeumverdepeçonhento.Osvisitantes,Umrath,doEuropa-News, PurserBang, doSpaceService, e o administradorNeumann, haviam sido colocados, éclaro,emáreasnãoatingidaspelascores,excetoquandoofachodeluzvermelhaquecoloriaopratodePrinzmetalincidiaocasionalmentesobreocotovelodeNeumann,quandoestelevantavaogarfo.

Wenzl, como sempre, estava empertigado e silencioso no seu lugar. Seus olhos sardônicos nadaperdiam,nemaforçadarelutânciacomqueRauschlevavaseusbocadosdecomidaazulàboca,nemoexageradomovimento do braço de Prinzmetal que, à cada garfada, tirava o alimento da luz vermelhaescura antes de levá-lo à boca. Mas Wenzl olhava para seu jantar e via tudo verde: cortavametodicamente,comafacanamãoverde,levavaopedaçocomogarfoverdeàboca,ecomiaoverde.

Umrath, o homem doEuropa-News, tinha um rosto quadrado e vermelho, com olhinhos astutos ecíliosclaros.

Falou:—Estejantarnãoestámau.Cumprimenteochefe,HerrDoktor.Seéassimqueosenhoralimentaos

ani- ̂maisaqui,devoconfessarqueelesvivembem.|—Alimentarosanimais!—gritouGrückjovialmente.—Ha,ha,meucaroUmrath!Não,naverdade,

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temos | uma cozinha própria para isso, garanto-lhe! Para alimentar mais de quinhentas espéciesdiferentes,inclusivealgumasnão-terrestres,nãoébrincadeira,acredite-me!Porexemplo,osBípedesdeBrecht.Suacomidadeveserricaiemenxofreesaisdeberilo.SetivéssemospostoissoaquiInamesa,ossenhoresseriamembrevetrêshomensdoentes!

—Wenzlcomeriasempestanejar—disseNeumann,idosoadministrador.Eracalmoemoreno,comumarcansadodehomemdenegócios.—Ha!Éverdade!—gritouGrück.—NossoWenzléfeitodeferrofundido!Masosbípedesnão,

senhores.Sãodelicados!Exigemcuidadosconstantes.—Edinheiro—acrescentouNeumannsecamente,espetandoogarfonumpedaçodecarnedoprato,

noqualmaltocara.—Éverdade—disseGrücksobriamente.—Sãoraridadesevêmdeumadistânciadedezoitoanos-

luz.Nãoseatravessadezoitoanos-luzparaumpiquenique,hem,PurserBang?Um som sussurrante, vindo de um dos cantos, distraiu a atenção dos presentes por ummomento.

Cabeçassevoltaram.Daobscuridadesurgiualgopequenoecommuitaspernas,comapeledeumazulcintilante.Fitou-oscomseusfaiscantesolhinhosvermelhosedepoisentrouporumburaconorodapé.Ospresentesficaramolhandosemqualquercomentário.

O homem do espaço inclinou a cabeça. Era alto e taciturno, de rosto magro e parecia mais umporteiro que um intrépido aventureiro. Cortava cubos exatos de carne em seu prato e mastigava-osdemoradamenteantesdeengolir.

—Entãoporquegastartantocomosbípedes,Grück?—indagouUmrath.—Sãointeressantesmasseráquevalemisto?

— Meu caro Umrath — respondeu Grück, largando o garfo, — devo dizer-lhe que os bípedesrepresentamosonhodaminhavida.Sim,confesso,éverdadequeeusonho!Afinaldecontas,vivemospararealizaralgonestemundo,paraatingirumameta!Eisporque,caroUmrath,planejeieescrevicartasdurantecincoanos,adquiridoispássarosdesacrifíciodeAltairenãosepodemencionarodinheiroqueinvesti...—OlhouparaNeumann,quesorriu,levemente—paraadquirirnossomaravilhosonovobípedeFritz.Estáaqui,comsaúdeeésexualmentemaduro.Játemosnossobípedefêmea,Emma.NenhumoutroZoológicosobreaTerratemmaisdeum.Riamdemimsequiserem,massóGrück,comseuZoológicoemBerlim,serásemprelembradocomooprimeirohomemaprocriarbípedesnocativeiro!

—Algunsdizemqueistonãoépossível—ponderouUmrath.—Sim,eusei!—gritouGrückdivertido.—Nuncaseprocrioubípedescomsucessonocativeiro,

nemmesmonoPlanetaBrecht!Eporquenão?Porqueatéagoraninguémconseguiureproduzircomêxitoascondiçõesessenciaisdomeioambientedeles.

—Eessascondiçõessão?...—perguntouNeumann,comfatigadapolidez.—Éoquevamosdescobrir!—respondeuGrück.—Creiam-me,senhores,játenhoumacoleçãode

estudos sobreoPlanetaBrecht e especialmente sobreosbípedes.Nãoháoutramaior noGalacticum,inclusivenoArquivodeBerlim!Eaquientrenós,senhores,PurserBangestáemcontatocomumgrupodo Planeta Brecht, apto a fazer estudos fisiológicos sobre os bípedes! Esse grupo nos dará valiosasinformações...atravésdenossobomamigoPurserBang!

Estendeu amão e bateu namanga de Bang afetuosamente. O homem do espaço sorriu levemente,piscouevoltouacomer.

—Bem,entãoumbrindeaosbípedes!—disseUmrath,erguendoocopodevinho.Grück, Prinzmetal, Rausch e Bang beberam. Neumann apenas levantou o copo, baixando-o

novamente.Wenzl,friamenteaprumado,continuouacortarmetodicamenteeacomersuacarneverde.—Apesar disso— acrescentouNeumann após ummomento,— parece que em grande parte vai

dependerdeFritz.

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VNAMANHÃdoseuquartodianaloja,orapazdesceumuitocedo,comodecostume,quandoogrande

recinto estava quase vazio. Uma ou duas pessoas o olharam com curiosidade quando passou pelasgalerias, porém continuou a andar e ninguém falou com ele. Os vendedores estavam ocupados, noscompartimentosdeparedesdevidro,colocandonovamercadoria,abrindoefechandoasportasdemetal.Os serventes, emuniformescinzentos listrados, empurravamsuasmáquinas zumbidoraspelo assoalho.Vozesecoavamsolitariamentenotetodistante.

O rapazmatou a sede numbebedouro entre amercearia e a galeria de arte. Seguiu, então, para aseçãodepomicultura,comsuasmontanhasdefrutasnasvitrinas,parafazersuaprimeirarefeição.Nesseínterim, as portas externas haviam sido abertas, começou a se ouvir umamúsica suave e as pessoasprincipiaramapercorrerasgalerias.Orapazpagousetentapfennigsporumsacotransparentedelaranjase um pacote de bananas. Pôs-se a vagar pela loja, comendo as bananas e chupando as laranjasalternadamente.Quando terminavaumafruta,metiaacascacuidadosamentedentrodosacoque levavasobobraço.

Uma vez, na tarde do seu segundo dia, o rapaz aventurou-se a ir novamente até a avenida,mas amultidão,obarulhoeasluzesoperturbarameelevoltouquaseimediatamenteparaaloja,commedodechegar e encontrar as portas fechadas. Estar lá dentro era bemmelhor. Tambémhavia ruído,mas eradiferente,menosassustador.Aluzerasuave,friaenãolheferiaosolhos.Alémdisso,encontravalátudooqueprecisava:comida,bebida,diversão.Algumasvezes,perdia-se,tãograndeeraaloja.Masachavasempreoseucaminhoseguindoosfachosdeluzmóveisdoteto.

Quandoviaalgumdoshomensdeuniformeazul,olhavaemfrenteatéqueelepassasse.Aprenderaqueoshomensdeazulnãooperseguiriamseelenãoescalasseagradenemtirassealgodasvitrinassempagar.Eagoraelepagavasempre.

Quanto à grade, subia por ela todas as noites, pois não conseguira encontrar outro caminho. Foranotadoduasvezes,eoshomensdeazulcorreramegritaram,fazendosoaroalarma.Masninguémpôdesubir atrás dele..Assim, não tinha realmentemuitomedodoshomensde azul.Mas, apesar disso, nãogostavadeficarmuitopertodeles.

Ainda havia coisas desconfortáveis no seu corpo que constantemente o preocupavam e às vezeschegavam a alarmá-lo por sua intensidade. Por exemplo, havia algo que sua boca e sua gargantadesejavamfazer.Ficavaexperimentandodiferentesespéciesdecomidaebebidaeaestranhasensaçãopassavamas voltava sempre. Pêlos escuros e anelados começaram a crescer-lhe pelo rosto e queixo,provocando-lhe comichão. Ainda assim sentia-se bemmelhor que antes. Descobrira que, se tirasse aroupa e os sapatos à noite, ficavamais fácil suportá-los sobre o corpo no dia seguinte.Quando suasroupasíntimasficaramsujas,navéspera,compraraoutrasnumamáquinaedescobriraqueaquelenovotecido,macioelimpo,erainesperadamenteagradávelsobreapelenua.

Passando pela ala dos presuntos, viu um homem de rosto vermelho, que olhou-o asperamente ecomentoualgoaoouvidodeumhomemmagroepálidoaseulado.Orapazficouassustado.Aquelerostovermelhoparecia-lhefamiliar.Seriaomesmoque?...

Olhouparatrás.Ohomemderostovermelhoeseucompanheirohaviamdesaparecido.Aliviadomasaindainquieto,orapazdobrouumaesquinaeentrounaseçãodeVegetaisFrescos.Nofimdagaleria,aodobraràesquerda,viu-sefaceafacecomohomemderostovermelho.

Page 36: O Outro Pé - ler-agora.jegueajato.comler-agora.jegueajato.com/Damon Knight/O Outro Pe/O Outro Pe - Damon... · de lã. Olhando para trás, quando o aparelho começou a acelerar,

—Olheaqui!—grunhiuohomem.—Meuamigoquerlheproporumnegócio.Vamosconversararespeito,estábem?

Orapazolhouemvolta.Ohomempálido,cujoslábiosequeixoestavamcobertosdepêloscomoosseus,pararáportrásdeleesorria.Orapazencostounabarraca.

—Nãotenhamedo—disseohomempálidoameiavoz.—Nãosomosdapolícia,entende?Vamosconversar,sim?Vocêestáinteressadoemganharalgumdinheiro,não?

—Dinheiro?—perguntouorapaz.— Legítimo— disse o homem vermelho, fazendo tilintar algumasmoedas namão gorda.—Um

camaradainteligentecomovocêpodeficarrico,nãohádúvida.Pegouo rapazpelobraçoesquerdo,enquantoooutro lhe seguravaodireito.Os trêspuseram-sea

caminharpelagaleriacentral,nadireçãodasaída.Chegandonaportadarua,orapaztentouvoltaratrás,masestavapresopelosbraços.

—Nadadisso—murmurouohomemderostovermelho.—Nósnãosomosdapolícia,maspodemosentregá-loaelafacilmente,entendeu?

Levaram-noatéumcafé,entraramos trêsemumaestreitacabine,como rapaznomeio.Ohomempálido,quedissechamar-seHorst,tinhaorostofinoevelhacoegrandesolhosesverdeados.

OhomemderostovermelhosechamavaPutzi.Umavezsentados,começouafalargesticulando:—Sabe,tenhodeirembora—disse.—Vocêbemquepoderiacuidardisto,Horst...—FiqueatéqueTrudlchegue—retrucouohomempálido.Apertouobotãonopaineldecontroleevirou-separaorapaz,colocandoobraçoemtornodoseu

ombro.—Poiséisso—disse.—Osenhorsabeescalarmuitobem.Jálhedisseram,Herr...?—MartinNaumchik,senhor—completouorapaz,nervoso.Eraincômodoestartãoimprensadoentreosdoishomenseterumbraçoemvoltadosombros.—Nãome chamede senhor— falouHorst, sacudindoo braço— somos todos amigos aqui, não

somos?Agora diga-me,Martin, você gostaria de ganhar quinhentosmarcos, trabalhando somente umatarde?

—Obrigado,gostariamuito—respondeuorapaz.Horstfitou-ocomosolhossemicerradoseretirouobraço.

—Entãoéassim,hem?Éumcarafrio,hem,Putzi?Masvamosdevagar!Diga-me,Martin,oquevocêfaziaantes,alémdeafanarcoisasnaElektra?

—Sótrabalhodeescritório,HerrHorst.—Trabalhodeescritório,vejasó!Emoutraspalavras,vocêéumamador,Martin,nãoé?Quinhentos

marcosémuitodinheiro...demaisparaoprimeirotrabalhodeumamador,talvez.Noentanto...—Horstfranziu os lábios.—Bem, vamos esperar para ver.Quemais preciso dizer?—Sorriu.—Está tudoacertado.Aquitemminhamão.

Eapertouamãodorapaz,comfirmeza.Aportadotransportadorseabriu.Dentrohaviamtrêscopinhoscontendoumfluidomarrom-escuro,

queHorstdistribuiucomcuidado.Putzibebeudeumsógole.Orapazprovoucomprecaução,achandoogostodesagradavelmenteáspero.Alémdisso,aemanaçãoenchia-lheosolhosd'água.

—Trudlchegou—dissesubitamenteohomemderostovermelho—vouindo,Horst...sevocênãoseincomoda,discutiremosisto...

ConversaramummomentoemvozbaixaealgopassoudasmãosdeHorstparaasmãosdePutzi.Estesaiuentãodacabineeumaesbeltajovemdecabeloscastanhosentrou.

O rapaz bebericou novamente, descobrindo desta vez que o gosto não era assim tão ruim e que olíquidoaqueciaagradavelmenteseuestômago.

—Bem,Trudl,eisonossotrepador.—disseHorstanimado.—Martin,estaéTrudl.

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—Comovai,senhorita?—perguntouorapazcortesmente.Elafitou-osemexpressãoedepoisolhouHorst,porcimadele.—Temcertezadequeéele?Putzivenderiaaprópriaavópordezmarcos.—Nãosepreocupe,éele—falouHorst,irritado.—Agora,diga,Martin,ondevocêsemaloca?—Senhor?—Nãosefaçadetolo...ondevocêmora?—Oh.Orapazhesitou.Porumarazãoqualquer,nãoqueriarevelaraHorstopequenopatamarnotopoda

Elektra.—Tinhaumquarto,masesquecidepagaroaluguel,HerrHorst.Ohomemeajovemseentreolharam.—Serámelhorentãoqueelevenhaconosco—falouHorst.—Podeficaremsuacasa.A jovem deu de ombros. Levantaram-se e o rapaz engoliu o que restara da sua bebida para não

esperdiçá-la.Aoatravessaremapraça,nadireçãodatabuletaquedizia"UNTERFÜHRUNG",pareceu-lhequealuzsuavedamanhãsobreacalçadaeramuitoagradáveleseusdoisnovosamigosextremamenteamáveiseinteressantes.

Emergiramdaestaçãosubterrâneaepuseram-seacaminharjuntosnumaruaestreita,entrefileirasde

prédios brilhantemente decorados com quadrados coloridos, laranja, preto, amarelo, malva, verde,marfimeazul-celeste.Orapazbalançavanervosamenteacabeça.Aviagemnocarro-tuboaborrecera-oporqueoveículoestavaapinhadodegente:tiveramqueficardepé,penduradosnaparedeporalçasdeplástico,entaladostãoapertadamentenamultidãoquemalconseguiamrespirar.

Na rua, porém, era muito mais agradável; o ar era puro e transparente e as cores brilhantes dosedifícioslhefaziambem.Gostariadeparareficarolhandoparaelas,masHorsteamoçaoseguravampeloscotovelos,fazendo-oapressar-se.

Dobraramaesquinaeatravessaramarua.Horstparouabruptamente.—Olhesóaquilo!—dissecomvozirritada.O rapaz olhou. No meio da rua transversal, uma enorme máquina, com um guindaste, estava

estacionadadoladoopostoaumdosedifícios.Presaaoguindaste,umadasseçõesdaparededoprédiocomasjanelasetudo,estavasendoretiradaepostadelado.Ocorpodamáquina,umagigantescacaixademetalalaranjado,tinhasidoerguidaporumamaciçacolunadeaçoeoseuladoestavaencaixadonumburaconaparede.Gritosecoaram,vindosdecima.Omaquinistainclinou-separaafrenteefezalgo.Amáquinacomeçouaafastar-selentamentedoedifício,sobresuasgrandesrodasdeborracha,girandoaomesmo tempo.O rapazpôdeverqueo interiordacaixa estava repletodemobília, tapetes equadros,enquantooscômodosexpostosdoprédioestavamvazios.Trêshomensdemacacãobrancoesperavamnaaberturadacaixa.

—Venha—disseHorstepuseram-seaandarnovamente.—Elesnãodevemtrabalhartãopertodasuamaloca—murmuroueleparaTrudl.—Sabemmuitobemquevocêmoranestarua!

—Quemé?Stammeseugrupo?—perguntouela,inclinando-seligeiramenteparafalarporcimadacabeçadorapaz.

—Sim,éaquelemalucodeumafiga!—Porquevocênãofalacomele?Horstresmungoucomraiva.—Umteimosocomoele...Queadianta?Ohomemnacabineolhouquandoelesseafastavamepassouotocodocharutodeumcantodaboca

paraooutro.Masnadadisse.Acima,oguindastemovia-senovamenteparaoprédio.Aseçãodaparede,presanaextremidadedoguindastepordoisimensosdiscosdemetal,balançou,sacudiuevoltouaoseulugar.Oguindaste tinhaopaineldecomandonaparteposteriordamáquina—viuo rapaz—eoutro

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homemdemacacãobrancoomanobrava.Queria parar e ver a parede ser recolocada e as portas damáquina fechadas,masHorst puxou-o

rudementepelobraço.—Venha!Dobraramsubitamentenumvãoaoladodeumatabacaria.Nofimdeumsombriocorredor,portrás

daescada,desceramalgunsdegraus.Trudlabriuaportadescascada,acendendoasluzesaoentrar.Horstafundou-senumsofáforradodeazul,aoladodeumabonecadepanocomosbraçoseaspernas

desengonçados.Asalaerapequena,masagradavelmentedecorada.Haviamuitasalmofadasredondasnosofáepelochão.Aslâmpadastinhamabajurescor-de-rosa.

—Sente-se,sente-se—disseHorstirritadamenteparaorapaz.—Trudl,peloamordeDeus,arranjeumascervejas.

A jovem colocou a bolsa sobre uma cadeira e dirigiu-se a um nicho onde fora encaixado umminúsculo fogão. Quando não o usava, cobria-o com uma chapa metálica ondulada, pintada commargaridasamarelas.

—Vocêsepreocupademais—disseelasobreoombro.—Preocupa!—repetiuHorst.—Alguémtemdesepreocupar.Senãofosseeu,todosvocêsagora

estariampresos—Coçouirritadamenteabarbacurtaeobigodedesleixado.—Preocupademais!Eévocêquemodiz!

O rapaz sentara, desajeitado, na beira de uma cadeira estofada em veludo verde e olhava para aboneca.Ocabeloeradelãamarela,osorrisopintadoeestavacomumaroupadearlequim,delosangosvermelhos e verdes. Os olhos eram pretos: botões brilhantes costurados no rosto. Tinha um grandecírculo rosado em cada face. O sorriso, os braços e as pernas compridas, davam-lhe um aspectoamigávelesuave.Orapaztevevontadedeapanhá-laesegurá-la,masnãosabiaseseriacorreto.

—Estejogoéperigoso!—disseHorst,curvando-separaafrente.—Stammdeviasaberdisso!Éummilagrequenãootenhamagarrado!

Trudlvoltou,trazendocanecasnumabandejaquecolocousobreumamesabaixaemfrenteaHorst.—Vamos,bebaenãofiquetãonervoso—disseela.—Elesjáforamembora.—Sentou-senobraço

deumacadeira,inclinando-separapegarumcigarronumacaixa.Levou-oaoslábios,sustentandooolhardorapazcomexpressãoenigmática.

—Elesnãopodemsertãoespertosquantovocê,Horst,porissoesqueça.—Bem,éverdade—retrucouHorst,parecendomaisalegre.Apanhousuacanecaebebeucomsofreguidão,sugandoruidosamenteolíquido.Orapazprovouasua,

masestavafria,amargaetinhaespuma.Colocouacanecadenovosobreamesa.—Muitobem,vamosaosnegócios—disseHorst,reclinando-se.—Dê-meaqueleenvelope,Trudl.A jovempegouabolsa com lentidão, apanhouumenvelopecheiodepapéis e entregou-oaHorst.

Esteespalhou-ossobreamesaeseparouum.Atirou-oporcimadamesa,aorapaz.—Vocêconseguiriaescalaristo?—perguntou.Orapazpegouopequenoquadradodecartolinaeexaminou-osementendermuitobemoquequeriam

dele.Era a fotografia de uma casa de pedras cinzentas, com três andares e teto de ardósia inclinado,cobertodechaminés.Sóumaentradaeravisível,sobumabaixaporte-cochère.Sobressaindonoúltimoandar,via-seumasacadadeferrotrabalhado,comportasfrancesas.

—Eentão,vocêpode?—Escalaracasa?—perguntouorapaz,incrédulo.—Subirnaquelasacada—disseHorst,inclinando-separamostrarolocal,comapontadoindicador

sujo.—Vocêpodefazeristo?O rapaz olhou novamente a foto, estudando a alvenaria, as saliências e os peitoris.Nunca tentara

escalarumacasa,porémaquelanãolhepareciaespecialmentedifícil.

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—Sim,HerrHorst,acreditoquesim.—Certo.Agoradeixe-memostrar-lheoplano.Horst colocou um cigarro na boca e começou a explicar, à medida em que tirava os papéis do

envelope,desdobrava-oseosespalhavasobreamesa.Umdelesestavacobertoporlinhaspontilhadasepequenosquadrados,cuidadosamentedesenhadosa

lápis.— Aqui está a casa— falou Horst, apontando para um dos quadrados.— Pertence a um certo

cavalheiro,cujonomeprefironãomencionar já.Acontecequeumamigomeuconheceumagarotaquetrabalhalácomoarrumadeira.Alémdeserricocomoumporco,essecavalheirotambémconheceoqueébom.—Opolegar e o indicadordeHorst se esfregaram sensualmente.—Eaqui está umaautobahnsubterrânea.—-Apontouumalinharetapontilhada.—Hásaídasdeemergênciaaquieaqui,mastodaspossuemsistemasdealarme:aWaponospegaráemcincominutos.Oque temosa fazerépenetrarnolocal a luz do dia e nos esconder... aqui. — Seu indicador mostrou um ponto com árvores toscasdesenhadas,àesquerdadopequenoquadrado.Trudlmudaradelugar,sentando-seaoseuladonosofá,apoiandooqueixonumadasmãos,comocabeloescurocaindo-lhesobreorosto.Suaexpressãoeradeenfadobemeducado.

—Vocêdirigiráofurgão—falouHorst,voltando-separaela.—Naturalmente—respondeuajovem,comvozarrastada.Horstpareceunãoouvir.Mostrououtralinhapontilhada.—Vocêdeveráestacionaraqui,exatamenteentreotúneleacasadeIpolitov.Estelocalestávazio,

poisninguémusaotúnel.Aí,enquantonósentramos,vocêfaráumavoltaaqui—seudedopercorreualinha—atéoentroncamentoedepoisatéotúnelOberkeller,estacionandoaoladodabarreira.Simples.

—Éclaro—concordouTrudl.—Agora—disseHorstasperamente.Colocouopapeldeladoeapanhandooutro.—Aquiestáo

interior da casa. — A planta mostrava três caixas desenhadas, com outras divisões internas. Horstindicouumadelas,noalto.—Segundoandar.Vocêsubiráaqui...atravessaráestasduassalas...descerápelaescada.Primeiroandar.—Horstmostrou,rapidamente,asegundacaixaepassouàterceira.—Aquiéotérreo.Vocêtomaráestecaminho,atravésdasaladejogoedosalão,atéovestíbulo.Abriráaportadafrente,nósentraremoseentãoseutrabalhoestaráterminado...nósfaremosoresto.—Ergueuosolhos.—Entendeu?

—Sim,HerrHorst—disseorapazsemconvicção.Jáviraalgunsmapasantes,masnãodecasas,easpequenascaixaselinhasnadasignificavamparaele.Mastudopareciamuitosimples:escalar,descerpelosdiversosandareseabriraportadafrente.

—Tudocerto,então.Deacordo?—Horsttomouamãodorapaz,apertou-avigorosamenteelargou-a.—ótimo.

Olhourapidamenteparaorelógioebateunosdentescomaunhadopolegar.—Nãoadiantaesperar—murmurouelevantou,enfiandoasmãosnosbolsos.—Vouencontrar-me

comGeorgeOtto—disse.—Esperempormimaqui...nãoodeixesair,ouviu?—Vocêpretendeagiraindaestanoite?—perguntouTrudl.—Sim,estanoitemesmo.Quantomaisesperarmos,maiorachancedepôrtudoaperder.Arranjarei

ofurgão,preparareitudo.Aportasefechouatrásdele.

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VIORAPAZdeuumespirro.—Fiquequieto!—sibilouGeorg,voltandoacabeçaredondanaescuridão.—Nãopossomecontrolar—sussurrouorapaz,surpreendidoconsigomesmo.Nunca espirrara antes e esta era uma experiência notável. O peito se comprimia, os olhos se

fechavamecomeçavamalacrimejar,acabeçarecuava,haviaumaintolerávelcoceiranasnarinaseentãouma espécie de explosão, um espasmo em todo o corpo, que produzia ummaravilhoso alívio. Estavatentando definir se era agradável ou não espirrar, quando sentiu a coceira começar novamente. Suacabeçarecuou.

—Ah...ah...Ouviu-seumfarfalhardefolhassecas,quandoGeorgrastejouparaele.—Façamelecalar,peloamordeDeus!—vociferouHorst,emvozbaixa.Orapazsentiuoespasmocrescerimplacável...Amãogordaesuadadealguémapertou-lheabocae

onariz.Elesedebateu.Oespirrochegou.Foicomoumaexplosãovindadedentrodesuacabeça.—Nãofaçaisso—disseele,indignado,dandoumempurrãoemGeorg.Georgolhou-o,limpandoamãonascalças.—Porco!—respondeu.HorsteOttoolhavamfuriosamenteparaambos.—Chiu!Chiu!Enchaomalditonarizdeledelixosefizeristooutravez—sussurrouOtto.Tinhacaradecavalo,pálida,eolábioinferiorpendia,mostrandoosdentesmanchadosdecastanho.Osquatroachavam-sedeitadossobreumcapimespinhento,noaltodeumacolinacercadadeárvores.

Abaixo,oonduladogramadodeCharlottenburgapareciafracamenteiluminadopelaluzdasestrelas,comamassaescuradoGrünewaldaofundo.

Nocentrodoprimeiroplano,aatarracadaestruturacinzentadacasaespalhavaluzatravésdemeiacentenadejanelas.Maisadiante,numdosestreitosecurvoscaminhosqueseabriamnomatagal,orapazconseguiu divisar o movimento suave de um par de lâmpadas amarelas de uma carruagem puxada acavalo.Olagoestavainvisívelagora,naespessaescuridão,emesmoquemsaíradebarco,járegressarahaviahoras.

Orapazsentiacansaçoefrio.Haviahorasqueestavamdeitadosali,semnadaparacomeralémdeovoscozidosqueOtto trouxeranamochilaenadaparabeberalémdeumácidovinhotinto.Maisumacarruagemseaproximava,logoseguidadeoutra.Foradisso,nadamaissevia.Nãoeracomoduranteodia, quando havia gente jogando tênis atrás da cerca de ciprestes,meninos dos estábulos levando oscavalos para fazerem exercício e carruagens indo e vindo. Subitamente houve uma agitação e Horstsussurrouimediatamente:

—Abaixem-se!—eestendeu-sesobrearelva,comoosoutros.Orapazolhoueviuumamáquinabrancaseaproximar,comumhomemdecapacetenoseuinterior.

Esteolhavacuidadosamentedeumladoparaooutro,enquantoamáquinaflutuavadiagonalmentesobreogramado,aquinzemetrosdosolo.Usavaumuniformedebotõesbrancosetalabarte.Olhouumaveznadireção deles, mas aparentemente não os viu sob as árvores e sua máquina continuou voando atédesaparecer.

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AquilopareciatãointeressantequantoaviagemnofurgãopuxadoacavalodeBerlimatéali,apesardeHorst tê-lo impedido de olhar pelas janelas.O cavalo não estava dentro do furgão, como o rapazhaviamaisoumenosesperadoquandofalaramnoassunto,masseucheiroestava.Aquelaspessoaserammesmomuitocorajosasparaficaremtãopróximasdaqueleenormeanimal,semaproteçãodeumagrade.Porqueofaziamsepodiamusarveículosmotorizados?

Ofurgãodetraçãoanimalparou,ouviu-seomurmúriodocondutor,entãoasportasseabrirameosquatropularamparaforacomseussacosdepanogrosso,subindoomorroaoabrigodasárvores,comumcheirodepoeiraedesolnasnarinas...

OrapazdesejouqueTrudlestivesseali,pararespondersuasperguntas.Haviamconversadomuito,enquantoHorstestevefora,atéqueelaficarasubitamentezangadaeochamaradetolo.TrudllhecontouqueKieleraumacidadenojenta,queelagostavadedançarejogarbezique,quesótiveraumamigo,umladrãoamãoarmada,masforaapenasumnamorobobo.Prestoumuitaatençãoaoqueeladisseeguardoucuidadosamentetodasaspalavrasnamemória.Talvezlhefossemúteis.

Foramuitodesagradável.Elapareceu,aprincípio,muitoamável,pedira-lheparanãochamá-ladeFräuleinesentarapertodelenosofáenquantobrincavamcomaboneca,Ermingarde.Então,começouadizercoisasqueelenãoentendeu.Noinício,aquilopareceudiverti-la,maslogoperderaapaciênciaeeleaindanãosabiaporquê.Foramuitodesagradável.

Láembaixo,umafieiradeluzesnapartedetrásdacasaseapagou.Ummomentodepois,outrasnafachadaforamdesligadas.Orapazficoutensodeinteresseeesperandoquealgomaisacontecesse,masfoiemvão.

Entãochegouumoutroespirro.Noespaçosoapartamentodoandartérreo,napartetraseiradamansãoOberkeller,HerrHeimatsrat

WernerOberkellerestavasentadoaindaàmesadebezique,comoaconteciaquasetodasasnoitesemquepassava em casa com alguns velhos amigos. Sob a luz, as brilhantes costas vermelhas das cartasfaiscavamcomo jóias sobreopanoverde.HerrOberkeller estendeuavelhamãogordae recolheu-ascom surpreendente delicadeza. Seu rostomantinha-se inexpressivo, corado dosmolares para baixo epálidona parte superior.Mechas alouradas entremeavam-se na cabeleira grisalha já rareando,mas asgrossassobrancelhascastanhascontinuavamescuras.Onarizvolumosoeraestriadodepequeninasveiaseoslábioseramdeumvermelhopurpurino.

—Então,cavalheiros,outramão?—Demôniosolevem,não!—disseRenéCapezius,sacudindoocharutocomindolência.Escreveualgumacoisanumcadernodenotasdecapadourada,atirando-odeladocomdesinteresse.

Deviaterunssetentaanos,aidadedeOberkeller,maspareciaaomesmotempomaisvelhoecurvadoemais vigoroso. Sua pele amarelada, cor de cera, estava coberta de rugas, dando-lhe um aspectosardônico.Seusolhosazuisesmaecidospiscavamdivertidamente.

—Vocêjámeganhoubastante,porhoje.Evocê,Pias,oqueacha?JoachimPiaseraomaisbaixoemaisjovemdamesa:gordoedisforme,umpudim.Nameialuz,via-

seocabeloescuro,obigodepretoeosóculos.Orestopareciaapenasumborrãosemfeiçõesdefinidas.—Umdesastre,comosempre—resmungouele.—Vocêstrêsestãoquerendomelevaràbancarrota.Rupolo,oquartohomem,abriu-senumriso,mostrandoadentaduraperfeita.Eracalvocomoumovo,

comprotuberânciasemontículosdecarnerosada.—Mashojevocênãosesentiutãopobreaolerascotaçõesdabolsa,hem,Pias?Piassorriucomrelutância.—ASociedade doEspaço foi a 108—disse.—É, não estámal.Masmedeixa nervoso: subiu

demais.Oqueacham,devovendê-las?

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AscadeirasrangeramquandoOberkellereCapeziusserecostaram,pegandoseuscoposdeporto.—Nadadisso—disseRupolo.—Naminhaopinião,qualquerpessoaquevenderagoraasaçõesda

Espaçoéumtolo.—Talvez,masouvidizerquevãonacionalizarasempresasparticulares.Éverdade?Issomedeixa

nervoso.OberkellereCapezius,osdoismembrosdoConselho,trocaramumsorrisoexperiente.— Isto épropagandadosDemocratasCristãos—disseCapezius.—Ullman temque fazer algum

alvoroçoparaagradarseuseleitoresenadamais...nãotemimportância.— Contudo — retorquiu Pias, teimoso — uma bolha pode crescer bastante e depois explodir.

Quantos desses projetos interestelares têm, realmente, dado lucro? Depois de quinze anos? Se ascompanhiasforemnacionalizadas...

—Istonuncaacontecerá—afirmouOberkellergravemente.OstrêsrostosseviraramparaOberkelleresperançosos,maselesecalou.Seusvelhosolhosestavam

quasefechados.Apanhouseucopodevinho,levou-oaoslábiosebebeu.Depoisdeummomento,Piasrecomeçouaselamentar:—Eumeperguntoparaondeestãoindooslucros?OqueestamosganhandocomoPlanetaThiessen,

porexemplo?Algumaspedraspreciosas,algunsbichinhosparaascrianças...Rupoloinclinou-separaafrente.— É aí que você se engana, amigo Pias. Thiessen tem um gigantesco potencial... simplesmente

gigantesco.Não,não,nãome refiroaocomérciodewog.—Apertouaboca, aborrecido.—Sevocêquersaber,ofatoéqueaS.E.perdedinheirocomoswogs.Ésomenteumavitrina...algoparamanterointeressedopúblico.Afinaldecontas, seupequeno investidornuncavêumpalmoadiantedonariz.Éprecisoterumbrinquedooudoisparasacudirdiantedele...vêquebeleza,vêquebeleza?—Seurostode ogre se distorceu num horrendo sorriso adulador.—Mas, importações nunca compensarão nossoinvestimentoemplanetascomoThiessen,pelomenosduranteumséculo.

—Oque,então?—perguntouPias.—Bensimóveis!—disseRupolo.Tirouumcharutodacaixaaoladodeleeacendeu-o.—Bilhões

dehectaresdeterracompletamentevirgem.—Quenãoserveparanada,porquecustaumafortunachegaratélá.Rupoloapontouumgrossodedovermelhonadireçãodele.—Graveminhaspalavras:dentrodevinteanosvocêpoderálevartodaasuafamíliaparaThiessen

pelomesmopreçodeumaviagemaoPanamá.—CapeziuseOberkellerconcordaramcomveemência.—Casadecampo,parquedecaça,diversõesturísticas,tudoenfim.

Colocouocharutonomeiodabocaeacendeu-ocomumvolumosoisqueirodourado.—Sim,nãohádúvida,vocêestácerto—concordouPias.—Dentrodevinteanos,certamente.Mas

noínterim...—Sacudiuacabeça.—Pergunto-me:eseaconteceralgumacoisaquenãoesperamos?Queme dizem dos boatos sobre um planeta com nativos inteligentes? Digamos que nós e os Sovsreivindiquemosdireitossobreomesmoplaneta...comodoiscãescomumsóosso,hem?Eentão?

OrostodeCapeziusperdeusuaexpressãoirônica.Curvou-separafrente.—Essesboatossujos!—exclamou.—Ojornalistaquepublicouesselixodeveriaserfuzilado!— Em primeiro lugar, é completamente absurdo— afirmou Rupolo, sacudindo vigorosamente a

cabeça.—Alémdisso,Herr Professor Schlossmacher provou definitivamente que a raça humana e acultura germânica são um acidente único. Não pode haver outra raça igual no universo... ématematicamenteimpossível.

—Quantoaisso—falouOberkeller,sacudindoacabeçorra,—tenhoalgoadizer-lhes.Olhou-os,umaum.Nosilêncio,podia-seouvirotique-taquedogranderelógiodepêndulonocanto

dasala.Capeziusvoltouasentar-se,umtantoaborrecido,ajeitandoasrendasdeumadasmangascom

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seus longos dedos bem manicurados. Pias acomodou-se na poltrona, cruzando as mãos sobre abarriguinharedonda.

— A menos de seis meses— recomeçou Oberkeller— uma nave da exploração cósmica russaencontrou umplaneta, incluindo-o na classificação "Z".Ou seja, umplaneta comuma lua, na terceiraposição orbital de um sistema estelar G. Agindo de acordo com as instruções, não pousaram, masentraram em órbita do planeta, tiraram fotografias, fizeram leituras espectrográficas etc. As fotosmostraramcalotasdegelomédias, trêsmassasde terra continentais, com rios,montanhas evegetaçãoverde.—Oberkellerfezumapausa.—Asfotografiasmostraramtambémumaquantidadedeformaçõesregularesquepodemserinterpretadascomocidades.

Capeziusdeuumsalto.—Ridículo!—explodiu.—Vocêestáquerendomedizerque?...Podemexistirestruturascristalinas,

formaçõesnaturaisdealgumaespécie...ou,nomáximo,colméiasdequalquerinsetogregário!—Estácerto—disseOberkeller,fechandoosolhosemassentimento.—Mas,meucaroCapezius,

vamosumpoucomais longe!Seessas fotografias se tornassempúblicas,qual seriao resultado?Vocêsabe tanto quanto eu que devem ser formações naturais. Mas os ingleses e outros corações molescomeçariamagritar:"Vidainteligente!"Eentãoestaríamosmetidosnumaencrencadosdiabos.

Capeziusconcordoudemávontadeereclinou-seacariciandooqueixolongo.Piasacrescentou,emtomlamuriento:

— Mas os Sovs estão sempre dizendo que não se importariam de encontrar outra civilizaçãoadiantadaforadenossoslimites,porqueserianecessariamentesocialistaetc.etal.

AcadeiradeRupolorangeuquandoeleseinclinouparaafrente.—Bem,equemais?—perguntou.—Quefizerameles?— Simplesmente se calaram — respondeu Oberkeller calculadamente. — Os registros foram

alterados,a tripulaçãodanavefoisubmetidaaumrecondicionamentopsíquicoedistribuída...Nãoseionde,masseeupudesseimaginar,diriaAtlântica.

Fezumgestoparabaixocomoíndex.—Possoperguntar—falouRupolodelicadamente—comoéquevocêsabedetudoisso?Oberkellersorriulevemente.— Ora, eles não são tolos. Vieram até nós com as fotografias, mapas... tudo. O Ministério

silenciosamente interditou toda a área. Eles fizeram o mesmo. Nem as naves deles nem as nossasvisitarãoaqueleplanetaoutravez.

Osquatroficaramemsilêncioporummomento,comosolhospensativos.—Entretanto,maiscedooumaistarde...—dissePiasparasimesmo.Oberkellerencolheuosombros.—Emvinte,cinqüentaanos,haveráanecessidadedeumreexame... talvezumasoluçãodefinitiva.

Mas no presente imediato, a situação está estacionaria.Os Sovs não estão ansiosos para provocaremperguntassobreseusplanetas,enóstambémnão.

—Pelomenoselessãorealistas—assentiuRupolo,comrelutância.Olhou os dois centímetros de cinza da ponta do seu charuto e depositou-os cuidadosamente no

cinzeiro.Agarrafapassouemvolta.Piasbebericouoseucomarausenteelimpouobigodecomolençodobrado.

—Sim,estácerto...—disse.—Massuponhamosquenãosejamformaçõesnaturais...Capeziusbufou,comobomhumorrecuperado.—Bobagem,meubomPias.Asoutrasraçassãoinferiores,semexceção.Amelhorqueencontramos

tem cérebro de coelho.Nenhuma delas tem as características de um ser humano... exceto, é claro—piscou—asencantadorasfêmeasdoMundodeAldoré.

Oberkellerpermitiu-seosegundosorrisodanoite.

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—Porfalarnisso—disseele,—conseguicompraralgumasfotografias...Abraessapequenagavetadamesa,sim,Rupolo?

Ocarecaacedeueosquatroinclinaramascabeçassobreopacotedelustrosasestereofotosqueelecolocousobreamesa.Ouviram-seexclamaçõesdesatisfação.Capeziusestalouoslábios.

—Admirável!Muito apetitosas. Ah, as queridinhas, têm pêlos como as gatinhas!—Atirou umaolhadairônicaaOberkeller.—Émelhornãomostrá-lasasuamulher,hem,meuamigo?

—Não,não,elaémuitomoralista...nãoentenderia!— Como vai a querida Lorraine? — perguntou Capezius polidamente. — Nós a vimos muito

rapidamenteaojantar.—Oh, vaimuito bem. Fica em casa amaior parte do tempo. Ela tem seus próprios interesses...

jardinagemetc.—Ei,vejaestaaqui—disseRupolo,apanhandooutrafoto.Osoutrosafitaramemsilêncio,comolhoscintilantes.Asluzesdofundodacasahaviamseapagadohorasatráseorapazviraastrêscarruagenspuxadasa

cavalos saíremumaaumadascocheiras.Umhomemhaviaentradoemcadaumae logoseafastaram.Depoisdealgumtempo,aluzdaporte-cochèretambémseapagoueumadasjanelasdoprimeiroandarseiluminou.Então,muitodepois,apagou-secomoorestodacasa.

Apesardisso,HerrHorstnãoagiuatéparecerhaverdecorridooutrahora.Geladoatéosossos,orapazrodeouocorpocomosbraços,tremendo.AvozdeHorstchegouatéelenumsussurro.Virou-se,abrindoosolhos.HorstestavafalandonumpequenoaparelhoquetinhanasmãoseavozdeTrudl,finacomoadeumgrilo,respondia.

—Muitobem,fiqueaí.Nósvamosdesceragora—disseHorsteafastouoaparelho.Fezumsinalcomamão.Osoutrosdoiscomeçaramimediatamentearastejarpelarampadacolina.A

gramacediaaopesodoscorpos,cinzentaepoucovisívelàluzdasestrelas.Nadapareciaoqueera.Asárvoresassemelhavam-seaameaçadorasmanchasdeescuridão.Aluzdasestrelasiluminavafracamenteas torrinhasdo telhadoeaschaminésdamansão.O restoeraumaescuramassa informe.O ruídoquefizeramnasfolhasmortasenamatorasteiro,quandodesceramdacolina,pareceuincrivelmentealtoaorapaz.

Nabasedacolina,ospassosficarammaisleves:haviagramaaparada,quesibilavabrandamentesobospésdorapaz.Nãoconseguiuouvirosmovimentosdoscompanheiros...eramfantasmascinzentosaoladodele,corcundasporcausadossacosquecarregavam.Acasamergulhounumgrupodeárvores,àmedida que eles avançavam, e desapareceu, menos o cimo dos dois telhados que apareciam cinza-prateados.

Começaramarodearasárvores,nosilênciopenetrante.Orapaznãogostoudaquilo:aescuridãoeraumateiadearanha,ondepodiahavercoisasescondidas...

Algoenormeecinzentosurgiunafrentedele.Orapaz,viuHorstpararelevantarobraço:houveumsomsibilante.Acoisacinzentapermaneceuondeestava:eraumvultoatarracado,comumaalertacabeçaerguida.Acabeçatombou.

AgoraHorsteosoutrosestavamavançando,passandopelacoisacinzenta.Estasevoltouparaolhá-los, mas não se moveu. O rapaz acompanhou-os, fazendo um pequeno desvio para alcançá-los, sempassarmuitopertodacoisacinzenta.Quandopassou,percebeuqueeraumcachorro:umanimalenorme,compontudasorelhastriangularesefocinhoachatado.Sentiuumarrepionaespinhaaoverosolhosdelebrilharemnaescuridão.Masocãonadafez,alémdeabanargentilmenteacaudaevê-losdesaparecer.

Encontraram ainda mais dois daqueles animais gigantescos: um ao passarem pela carruagem e ooutro,nasombradasárvoresnoladomaisafastadodacasa.Horsttornavaaerguerobraçodecadavez,parecendo esguichar alguma coisa com um som sibilante e de cada vez o animal parava e olhava-os

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afastarem-se.Agoraestavam todosagachados juntos, atravessandoumsuavedeclivedegramadefrontedacasa.

Horstziguezagueouparajuntodorapaz,colocando-lheamãonoombro.—Láestáasacada,vê?—sussurrou,apontando.Aprincípioorapaznãopôdedistinguir.Numaescuridãocomoaquela,nãohavianadaparecidocom

afotografia.Finalmente,viuasjanelasdosegundopavimento,comumamanchaindistinta,quepoderiaser a sacada de ferro trabalhado. Quanto ao peitoril e aos relevos de granito, confundiam-se com aescuridãogeral.

—Muitobem,mande-separacima.Lembre:desçaasescadasatéohalldeentradaeabraaportadarua.

Horstdeuumleveempurrãonorapaz.—Estáescurodemais,HerrHorst—protestouojovem.Ooutrohomembalançouacabeçacomoseestivesseespantado.—Queéquevocêpensa?QuevamosiluminartudoparavocêcomoseistofosseoFreudenpalast?

Váandando.—Queéquehá?—sibilouOttoarrastando-separaperto.—Cale-se!Olhe aqui, seu...—Horstmostrou-lheopunho fechado.—Você concordou em fazer.

Agoratratedesubireparedebobagens,ouvaisearrepender,compreendeu?Demávontade,orapazlevantou-seecomeçouaatravessarogramado.Quandoolhouparatrás,os

trêshomensnãopassavamdevultosindistintosnasombra.Voltou-separaolharoescuropenhascodealvenariaacimadele.Nãoeranadadoquetinhaesperado.

Sepelomenosnãotivesseconcordadocomoumtolo!Tentoulembrar-sedafotografia.Sim,alihaviaumajanelacomumpeitorildegranito.Acimadela,àdireita,deviahaverumaespéciedeescudoornamentalcomarabescosesculpidos...Orapazprocurouumapoioparaasmãos,içouocorpoecomeçouaescalar.

—Querido,vocêestáacordado?Naobscuridade,elamalconseguiadistinguiracabeçaescuradelesobreotravesseiro.—Um,uh.—Suacabeçavoltou-se,seusolhosseabaram.—Oquehouve,querida?—Amor,achoqueouvialgumacoisa.Acamaondulouquandoeleseapoiounocotovelo.—Oberkeller?—Não,bobinho,elenuncavemaqui.Tiveaimpressão...umbarulho.Elesentou-se,aguçandooouvido.Osquartosestavamsilenciosos.—Nada.Achoquevocêimaginou,querida...Vocêémuitonervosa,nãoseesqueça.—Bateu-lheno

ombrolevemente.—Deiteagora,comoumaboamenina,edescanse.Elamergulhounacamacomumsuspirodesatisfação.—Estábem,querido.—Suavozficoulogosonolenta.—Descansetambém.Ohomemdeitou-se,bocejouumavezevirou-sedelado.—Lorraine,sóamoavocê—disseele.Masamulherjáhaviaadormecidoenãorespondeu.Ofegante,orapazpulouporcimadagradedasacada.Quequantidadedeárvorespodia-severdali!O

gramadoembaixoeravagoecinzentoàluzdasestrelas.Aliestavamasportas.Nãoconseguiavernadaatravésdovidro.Dentroestavapretocomoazeviche.

ApanhounobolsooinstrumentoqueHorstlhedera,abriuumadaslâminas—aparecidacomumachavede fenda—e inseriu-a experimentalmente entre as duas portas.Quando empurrou, as portas abriram.Nãoestavamnemmesmoaferrolhadas.

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Orapazparouummomento,comamãonaombreiradaporta,espreitandoeescutandocomatenção.Nadapodiaouvir,alémdasbatidasdoseuprópriocoração.ProcurounobolsoumapequenalanternaeóculosdeproteçãoqueHorstlhedera.Colocouosóculos,masascoisasficarammaisescurasqueanteseporissopuxou-osparaatesta.Recordou-sequeHorstlhedisseraqueosóculossófuncionavamcomalanternaacesa...masquesódeveriaacendê-laquandoestivessenointeriordacasa.

Mantendoalanternapreparada,penetrounointeriorescuro.Onegrorerasufocante.Apertouobotãodalanterna,masnadaaconteceu.Lembrou-seentãodebaixarosóculossobreosolhos.

Imediatamenteasalaficoubrilhantementetomadaporumaluzvioleta.Mesas,armáriosesculpidos,umaparedecobertadequadros,compesadasmolduras,grandesepequenos...centenasdeles.Acuriosaluzfaziatudoparecerirreal,comoumafotografiacoloridamalrevelada.Viucomalívioumaaberturaeenveredouporela.

Foi dar numa outra sala, ainda mais larga e mais profusamente mobiliada. Nela também haviaquadros pendurados nas paredes e estátuas enormes sustentando lâmpadas na cabeça,mesas, um sofácompridodelistrasvioletasepúrpura-escuro,cadeiras,armários...

Àesquerdaeàdireitahaviaduasportas:aprimeiraestavafechada.Apontandoalanternaparadentrodaoutra,orapazficousurpreendidoaoverumacamacomduaspessoasdeitadas.Acamatinhaaformade um barco, com uma cabeça de pássaro na frente e coisas arredondadas dos lados como escudos.Encimandooconjunto,haviaumdossel,semelhanteaumavela.

Amaispróximadasduaspessoasnacamaeraumamulher,ajulgar-sepelascurvassobolençol.Aoutrapareciaserumhomem.Enquantoolhava,parahorrordorapaz,ohomemrolounacama,sentou-sedeumsaltoeficouencarando-opelaportaaberta.

A reação instintivado rapaz foi apagar a lanterna.Mas issoodeixounamais completa escuridãooutravezequandosevoltouparasairdali,tropeçouemalgoqueoscilouedepoiscaiucomumestrondoincrível.Ouvindoumaexclamaçãonoquartoaolado,orapazperdeucompletamenteacabeça:começoua correr. Alguma coisa bateu-lhe com força no quadril, fazendo-o perder o equilíbrio. Cambaleando,atravessouasalanumanovadireçãoetropeçouemoutracoisa.Novoestrondo.

Naescuridão,umamulhercomeçouaberrar.—Quemestáaí?—gritouavozdohomem.Aporta,ondeestavaaporta?Nopânico,orapaznempercebeuquedeixaracairalanterna.Tateando

àfrentecomambasasmãos,deuoutropasso,pisouemalgoquerolousobseuspésecaiupesadamente.Aterrissounumasuperfíciefrágilquecedeuaopesodeseucorpo,comumdespedaçardemadeira.

—Socorro!Assassinos!Socorro!—gritavaamulher.Aturdido,comaspernasparacima, incapazde levantar-se,orapaz,dominadopelo terror, também

começouagritar:—Socorro!Socorro!Doiscírculosamarelo-pálidossurgiramnaescuridão.Passossoaramnotapete,nadireçãodorapaz.

Roloudesesperadamente, procurando levantar-se dali, e pôs-se depéno exatomomentode receber oimpactodoataquedeumcorpoqueoderrubououtravez.Osestrondosserepetiram.

O rapaz percebeu que podia enxergar novamente. Alguém acendera as luzes comuns e os óculoshaviamcaídodasuacabeça.

Levantando-se por detrás dele, surgindo das ruínas de uma mesa destruída, havia um homem decabeloescuro,emcamisoladedormir.Seurostobrilhavadefuror.

—Você...você...—gaguejoueavançoucontraorapaz.Nooutroquarto,amulhercontinuavaagritar.Paroupararespirarerecomeçou,maislancinanteque

antes.O rapaz a vira de relance, através da porta aberta, quando rolou embolado com o homem doscabelosescuros.Estavasentadanacamacomolençolpuxadoatéopescoço ...olhosfechadosebocaaberta,gritandocomquantasforçastinha.

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Asalapareceugirar.Orapazachou-sedeitadodecostasnochão.Ajoelhadoemcimadele,ooutrogrunhia:

—Agorasim!Pegouacabeçadorapazcomasduasmãosecomeçouabatê-lanochão.Ouviramumapancadasúbitanooutroladodasalaeumavozabafadaperguntou:—Oquehouve?Abramaporta!Ohomemdacamisoladedormirdeixoucairacabeçadorapaz.—Oh,meuDeus!—gemeu.Pôs-se em pé. A mulher, no quarto, deu mais um berro e calou-se. As pancadas na porta

recomeçaram,misturadas a gritos de diversas vozes.O homem de camisola virou-se e deu um passoantesqueaportafossearrombada.

Porcimadamesadesmantelada,orapazviu,então,umhomemderostovermelhoirrompercomumaarma na mão. Os cabelos em desordem, os olhos brilhando selvagemente. Vestia um robe de xadrezvermelho,abertoatéametade,mostrandoopeitocobertodepêlosgrisalhos.

—Nadelbach!Você!—gritou.Atrásdeleentraramosoutros,atulhandoasalaeesticandoospescoços.Ohomemdacamisolaparouedepoisvoltou-separacontinuaracorrer.Aarmadisparou,comum

ruídoensurdecedoreumachuvadefagulhas.Aterrorizado,orapazviuohomemdacamisolamergulharportrásdeumamontoadodemóveis:umsofá,algumasmesinhaseumarmárioalto.Ohomemderoupavermelhacorreuatrásdele.Aarmadisparounovamente.Fragmentosdorebocojorraramdaparedeeumdosquadrosvooupelosarescomoumafolha.

Surdoetonto,orapazcaiudejoelhos.Olhouparaacama-barcodoquartoaolado:amulherjaziaimóvel,comosetivessedesmaiado.

Ouviuumruídodepassosnotapeteatrásdele:abaixou-senovamente,abrigando-seentreasruínasdamesa, enquanto o homem de camisola correu na direção da porta aberta, seguido pelo homem com aarma. Dois ou três criados uniformizados espalharam-se dando gritos de alarma. Houve um terceirodisparo:outroquadrocaiudaparede.Entãoohomemdecamisoladesapareceunocorredorexterno,eohomemderobevermelho,arfandopenosamente,sumiuatrásdele.

Osouvidosdorapazzumbiam.Desesperadamente,pôs-sedepé,pensandonaescuridãodaoutrasala,nas portas francesas e na sacada.Mas ao avançar naquela direção, os criados impediram o caminho,atravancandoaentrada,ondeaparentementeumtropeçaranapressaeoutrocaíraemcimadele.

Aproveitandosuaúnicachance,orapazenveredoupelocorredor.Àsuadireita,distante,ecoououtrotiro.Tomouocaminhooposto.Nofimdagaleria,encontrouumaescadaestreitaedesceu-adetrêsemtrêsdegraus.Seucoraçãomartelavaagarganta.Chegandoembaixo,nãoviuninguém,masouviaaindaoalaridodosgritoseberros.

Desceuosegundo lanço, indodarnumestreitovestíbulodos fundos.Umaporta seabriueo rostogordodeumamulherespiou.Elaoviu,deuumberroebateunovamenteaporta.

O rapazcorreu.Chegousubitamenteemumamplovestíbulo,voltou-seeviuumbalcãonoalto.Ohomem dos cabelos escuros apareceu nele, cambaleando, arrastando as pernas com dificuldade, decabeçabaixaecomacamisolabatendo.Atrásdele,ohomemderoupavermelhasurgiugritando:

—Pare!Aarmadisparouaindaumavez.Ohomemdecamisoladesapareceunovamente,seguidopelooutro.Oamplovestíbulo lajeadoestavaparcamente iluminadoevazio,anãoserpelapresençadevasos

complantaseumaarmadura.O rapaz rodopiou,viuaportaenormeentreduas jardineirasecaminhouparaela.Tateouotrincoeaportagirou,abrindo-se.Entãosaiuparaabenditaescuridão.

Cincohorasmaistarde,exaustoecobertodegravetos,orapazsaiudafloresta,indodarnumpequeno

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centrocomercialpavimentadodepedrasredondas.Limpou-secomopôdeedirigiu-separaumquiosqueencimadoporumanúncioluminoso:UNTERFÜHRUNG.

Aviagemdevoltaàcidade,nosilenciosocarrocilíndrico,levousóvinteminutos.Quandoorapazreconheceu os arredores, dirigiu-se diretamente para o Elektra. Eram nove da manhã. As portascomeçavamaser*abertas.Nãopoderiahavernadademelhor.

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VIINOSEUDÉCIMO-PRIMEIRODIAnalojaaconteceuumacoisaalarmante.Haviadescido,comode

costume, antes que algum empregado chegasse, e havia se escondido num canto que conhecia dodepartamento deMobiliáriosDomésticos, até que as portas se abrissem e a loja ficasse cheia. Entãotomouaprimeirarefeição,compostadelaranjasebolinhos,queeramosseuspreferidos.

Semprestaratençãoaondeseuspésolevavam,entroupasseandonaseçãoderoupasfemininas.Nomeio do espaço central não ocupado, havia umamultidão amontoada em torno de uma plataforma.Orapazaproximou-se.Naplataforma,umhomemmoreno,transpirando,estavaativamenteenrolandoumalongapeçadetecidovioletaemtornodeumamulherloura,queestavaparadaimóvel,comosolhosfixosnotetoeosbraçoserguidos.

Tanto o homem como amulher tinham as brilhantes cores irreais e o curioso contorno escuro docinemaqueeleviranoprimeirodia.Orapazpercebeuqueaquilo-eraumanovailusão.Ohomemeamulhernãoestavamrealmenteali.

Otecidotomouforma,transformando-senumvestido.Ohomemmorenopregouumobjetodemetalnoladodamulher,fazendoumapregaeesticandoovestidonocorpodela.Entãofezomesmodooutrolado,tocoulevementeovestidoaquieali,fezumaaberturanascostasecomeçouacompletarotrabalhosobreacabeçadamulher.Porbaixo,seucorpofoienvolvidoecobertoporduaspeçasminúsculasderendaazulmarinho.Olhá-lafezorapazficarsemjeitoeumadassuasafliçõesficoumuitomaisforte.

Orapaznãogostou.Aovoltar-separaabrircaminhoentreamultidão,viu-se facea facecomumamoçadepeleclaraecabelosescuros,queoolhousurpreendidaedepoissorriufeliz.

—Martin!—exclamou,pegando-lheobraço.Orapazseafastou,nervoso.—Nãoaconheço,madame—respondeu.—Oquê?Aexpressãodamulhersemodificou.Orapazcontinuouaandar.Eladeuumpassoemsuadireção.—MartinNaumchik...Completamenteassustado,orapazvoltou-seeenfiou-senomeiodamultidão.Caminhouemvoltada

plataforma, virando a cabeça freqüentemente para ver se estava sendo seguido. Em cima, o homemmorenoestavavirandoovestidopeloavesso.Quandoacabou,equilibrou-osobreosombrosdamoçaecomeçouafazeroutronocorpodela.Pormaisqueandasseemvolta,nãoconseguiaverascostasdeles.

O rapaz saiudamultidãocautelosamentepelo ladooposto eolhouemvolta.Amulherde cabelosescurosnãoestavaàvista.Contudo,escolheuumcaminhocomplicadoparalongedaquelapartedaloja,olhandoparatrástodootempo.

Ao atravessar o vestíbulo do elevador, percebeu que as pessoas o olhavam e viu que vinhabalançandoinconscientementeacabeçaenquantoandava.Oencontrocomamulherdecabelosescurostomara-ototalmentedesurpresa.Nuncalheocorreraantesque,comoumserhumano,tinhaagora,nãosóum nome e roupas, posses etc., mas também amigos e conhecidos. Essa idéia o amedrontava. O quepoderiadizeràquelaspessoas?Oqueesperavamdele?

Oconfortoeasegurançadoseurefúgionalojacomeçaramaparecer-lheilusórios.Porummomento,pensoucomsaudade,noseupequenoeexpostocubículonoZoológicodeHamburgo.Masarecordaçãojáseesvaíaenãotomoumuitaatenção.Arealidadeeraumagigantescaeiluminadasala,comseuinfinitomurmúriodevozes,odoresexcitantes,elevadoreserabosdefoguete,vermelhos,verdes,âmbar,azuis,

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quepassavampiscandopeloteto.Acoisaseriairembora,mudardenometalvezeencontrarumlocalparamoraremoutracidadeonde

nãofosseconhecido.Masnão tinhaconfiançasuficientepara levaressaviagemabomtermo.Haveriatambémoutras lojascomoesta,emoutrascidadesalémdeBerlim?Envergonhava-seporverificarquenãosabia.ViveraemHamburgodurantedozeanos,masnãotinhaidéiadoquehaviaalémdoslimitesdoZoológico.Asoutrascidadeseramsomentenomesparaele.

Umahoramaistarde,nalanchonetedoterceiroandar,aindaestavapensandonisso,olhandoparaosbiscoitoseocafé.Eraaprimeiravezquetomavacafé.Osaborerainesperadoeumtantodesagradável,masapreciouadoçuraeocalor.

Era curiosa a maneira como se sentia em relação aos alimentos, agora que era um ser humano.Tornara-semaiscautelosodesdeaquelaexperiêncianegativadaprimeiranoitenorestaurante.Passaraacomerapenas frutasepãoe,devezemquando,algumassalsichas.Mas,como tempo,esperava fazertodasascoisasqueossereshumanosfaziam,mesmocomerosalimentoscastanhospastososquevianasmesasaolado.

Pegou axícara, experimentou flexionarosmúsculosdos lábios e bebeu.Orgulhou-sede conseguirrealizaroquelheexigiratantoesforço.

As últimas gotas fizeram barulho ao serem sorvidas e uma ou duas pessoas o olharam, desobrancelhas erguidas. Evidentemente, não se devia fazer aquele som. Pousou a xícara embaraçado econsultouorelógiodepulso:eramonzehorasemponto.

Refreouoimpulsodeconfirmarahoranooutrorelógiodepulso,queestavanobolso.Observaraqueossereshumanosnãocostumavamusardoisrelógiosaomesmotempo.Talvezporqueosrelógioseramtãoprecisosquedispensavamconfirmação.

Umfachode luzbrilhante iluminouporummomentooseu ladodobalcão.Olhouautomaticamenteparacima—comofaziasempre—esóviuoexplodirdefagulhasvermelhasquesaltavamdamáquinaacima da cabeça dele. Apagaram e desapareceram. Um momento depois, novas fagulhas saltaram,fazendo-o piscar e atirar a cabeça para trás.O cromo brilhante e o anel de vidro da vitrina rotativa,diminuíramavelocidade epararam.Bemdefrontedele apareceuumburaco escuro equadrado, comouma transparência iluminada em cima. O rapaz leu: PRATOS VAZIOS, POR FAVOR. Empurrouobedientementeaxícara,opireseopratocomosrestosdosbiscoitosparaoburaco,quesefechoucomumestalidometálico.Atransparênciapiscou,tremeueiluminou-seoutravez:OBRIGADO.

Comumacalorosasimpatiapelamáquinaeducada,orapazselevantouesaiudalanchonete.Assimqueatravessouaporta,ondehaviaumamultidãoesperandoparaentrar,encontrou-senovamentecaraacaracomamulherdoscabelosescuros.

Elaoolhou,aparentementetãochocadaquantoele.Poruminstante,nenhumdosdoissemexeu.Entãoamoça,semumapalavra,levantouamãoeesbofeteou-onorosto.

Otapafoi tãoinesperadoedoloroso,queorapazficouincapazdesemoverdurantealgumtempo,enquantoamoçaseviravaedesaparecia.Aspessoasao redor ficaramolhandoparaele,cochichandoentresi.

Ninguém antes o esbofeteara. Com amão na curiosa dormência em que se transformara a dor norosto,orapaz;virouseefoiembora.

Passouorestododiavagandopelaloja,comosolhosembaçadosetremendoligeiramente.Oprazerque sentia com as cores vivas e as formas variadas em torno dele, estava embotado e quase extinto.Esperavasomenteahoradesubirparaoseurefúgionatorreenãoconseguiapensaremmaisnada,

Finalmente,eramoitoemeia.Amultidãoestavacomeçandoasedirigiràssaídas.Orapazatravessou

ovestíbulodoelevadorcomavagasensaçãodequeamultidãoestavamais sombriaeum tantomaisagitadaquedecostumenaquelanoite.Passouporumhomemcomumacâmeraedepoisporoutro.Dois

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numafila.Elecostumavaàsvezessedivertircontandooshomenscomcâmerasouasmulheresgordas,ouascriançaschoronas,masagoranãoestavainteressado.Viutambémmuitoshomensuniformizados:nãosóosdeazul,davigilânciadaloja,masuniformesvermelhos,brancos,douradosebrancos...

Passoupordoisde azul, que estavamparados juntos, examinandoatentamente emvolta.Umdelesavançou,,olhandoparaorapazedepoisparaoquetinhanamão.

—Ummomento,senhor.Orapazafastou-se,commedodenovoataque.—Pare!—gritouoagentedaloja,estendendoobraço.Orapazsevoltouecorreuparaagrade.Os

alarmassoaramdetodososladoseouviupassosapressadosatrásdele.Deuumsalto,agarrou-seàgradeecomeçouatrepar.

Nomeio do caminho, olhou para trás.Ninguém subia atrás dele,mas podia perceber uma grandeagitação na base da grade.Homens de uniforme azul aglomeravam-se em torno de um fardo cinzento,desenrolando-o.Haviaoutros,embrilhantesuniformesbrancos,compenasnochapéu.Masestesnadafaziam,apenasficavamdepernasabertas,olhando-osubir.

Continuousubindo.Aoseaproximardotopodagrade,duascabeçassurgiramnoparapeitoedepoisumaterceira.

O rapaz parou. Os três homens usavam bonés azuis: eram da vigilância da loja e não merosempregadosquecostumavamtrabalharnaquelepavimento.Enquantopensavasobreoquefazer,as trêscabeças desapareceram e depois reapareceram. Os ombros e os braços dos policiais surgiram. Algonebulosoecinzentoflutuouparabaixo,nadireçãodele.

Orapazseencolheu,masjáeratarde.Acoisaenvolveu-ocomumgolpesurdoeeledescobriuserumarededecordaparda.Envolveu-oapertadamente,quandotentouselivrar.

Havia cabos presos à rede, seguros pelos homens emcima.Empânico, o rapaz tentoudescer.Ascordasseretesaramedepoisafrouxaramumpouco.Quando,porém,parouparaprocurarremoveraredecomumadasmãos,oshomensaesticaramoutravez.

Embaixo,doishomensdeuniformecinzentolistadoempurravamumaespéciedealtaescadaderodas.Osaguãoestavarepletodepessoasimóveis,queoshomensdebrancomantinhamafastadas.Aescadafoicolocadaquasediretamentesoborapazeagoraumdoshomensdeuniformebrancoestavacomeçandoasubirporela.

Orapazviuquesuaschanceschegavamaofim.Respirandofundo,afastou-seviolentamentedagrade,arrebentandocomambasasmãosaredequeoprendia.

O grande salão rodopiou totalmente em torno dele. Suas costas bateram brutalmente na grade,cortando-lhearespiração.Deunovoimpulsoaocorpo,continuandoarasparselvagementeasmalhasdarede. O homem da escada estava muito perto. A rede cedeu ligeiramente. Encontrara uma abertura.Passouprimeiroacabeçaedepoisosombros.

Bateu na grade outra vez. O homem da escada inclinou-se, tentando alcançá-lo. Então o rapazcomeçouacair.

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VIIIESTENDIDOnosofádoseuquarto,obípedelia:OsbípedesdoGrandePlanaltodoNorte,emborasendoamaisinteressanteformadevidadoPlaneta

Brecht,sãoespécimesemextinção.Seusbandosoutroranumerososnãosãomaisvistosnasadjacênciasdas colônias terrestres. Somente pequenos grupos disseminados de três a cinco são ocasionalmenteencontradosnasmontanhasecontrafortesaonorte.Estesanimais,antesdodesenvolvimentodoPlanetaBrechtpelohomem,possuíamumaorganizaçãoembandoscomplexaecomunicavam-seatravésdesinaisvocais.Suascerimôniasdeacasalamento,realizadasnoiníciodecadaano,parecemenvolvercrueldadesbárbarascomasfêmeas.

Fechouolivro,pensativo.IssopodiaserlevadoemcontaparaexplicaremparteaatitudedeEmma

—pensou—casoelativessetestemunhadoalgoparecido,antesdesercapturadaetrazidacriançaparaaTerra.Contudo...

Abriuolivroemoutrapágina:Ocalombooucrista,[leu]aparecendosomentecomoumvestígionomacho,éumvisívelovóidede

cor vermelho-púrpura na fêmea. A função da crista é desconhecida, mas acredita-se ser umacaracterística sexual secundária.Erhardt sugeriuqueela funcionacomoórgãodeexibiçãopeculiardoestado da natureza do animal, mas Zimmer prefere classificá-la meramente como um olho pinealhipertrofiado.Oórgãoévulnerável,comoficouprovadoporumgrandenúmerodefêmeasmaisidosas,queoperderamemacidenteouemconflitoscomoutrosbípedes.

Obípede fechouo livronovamenteeatirou-oaochão irritado.Estava lendoOPlanetaBrecht:o

EnigmadoUniversopelasegundavez,cheiode tédio,poiseraoúnico livroquehavianoquartodosfundos: mas os capítulos, cheios de anotações de pé de página, lembravam-lhemuito o trabalho quecopiavatodososdiasparaGrückeosoutrosmembrosdaequipe.

Dentro de duas horas o Zoológico fecharia e ele poderia ir para a sala de estar, sem expor-se àcuriosidade de todas aquelas caras vermelhas.Dessa vez, iria lembrar de apanharmaterial de leiturasuficienteparaospróximosdias.

Naverdade, nada o impedia de sair naquelemo*mento... havia algumas revistas na prateleira—lembrava—comcapasbrilhantes.Poderiaapanhá-lasevoltardireto.Mashesitou.

Eraextraordinárioquãodetestávelpodiaserumafileiraderostosdaspessoasolhandoparaagenteatravésdagradedeferro,comseusgordosqueixossemovendoaomastigar.Levantou-se,inquieto.Queinferno! Nada havia para fazer ali, a não ser ler o Planeta Brecht outra vez. E nem no escritório. Oserviçoterminaraenãoadiantavatentarcontrabandearumanovacartasemsaberoqueaconteceracomaprimeira.

Ficounovamenteangustiadoecomeçouaandardeumladoparaoutro.Certamentenadateriasaídoerrado?

Quandooprimeirolotedecorrespondênciaassinadadesceude"cima"paraserenvelopadaeselada,o bípede simplesmente acrescentara a sua à pilha. Rudi, o jovem guarda gorducho, as levaria na suapróxima saída. Não havia razão para suspeitar de que Grück ou algum outro inspecionassem acorrespondência fechada e selada. O guarda possivelmente as levaria diretamente para a caixa do

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correio.Masestavaesperandohaviaumasemana.SeSteintivesserecebidoacarta,porquenãoacontecera

nadaatéagora?Ouviuumleverangido,umapausaeoutrorangido,vindosdoquartodeEmma.Elaprovavelmente

levantaradacadeiraparafazeralgoesentaranovamente...tudoàvistadamultidão,naturalmente.Issofê-lodecidir-se.Olhouparaaportaaberta,levantou-seeatravessou-a,olhandoemfrente.Oprimeiromomentofoipiordoquehaviaesperado.Asalaeraenormeevazia.Ajanelaestavacheia

derostos.Tentouafastá-losdasuapercepção,olhandosomenteparaasrevistasqueagoralhepareciammuitomenosatraentesqueantes.Depoisdeummomento,ficoumaisfácilcontinuarquevoltar,massuabocaaindaestavasecaeocoraçãobatiapenosamente.Láfora,houveummovimentoaolongodogradil,comoseaspessoasqueestavamolhandoEmmacaminhassemparavê-lo.

Andando firmemente,obípedechegouàespreguiçadeirae inclinou-separapegaras revistas.Sejanatural,disseparasimesmo.Pegueasrevistas,volte-se...

Doladodeforadaparededevidro,aspessoasfaziamgestosparaatrairsuaatenção.Houvegritosde:"Ah,olheparacá"e"Alô,Fritz!".Umacriançaloura,sobreosombrosdopaiparavermelhor,virou-se subitamente, vermelha como uma beterraba, e começou a chorar. Algumas pessoas assestavamcâmeras.Emmeioà algazarra, quando sevoltavapara ir embora,obípedepensou terouvidoalguémchamá-lo.

Voltou-seincredulamente.Na primeira fila da multidão, ladeado por duas gordas matronas, estava um homem de estatura

mediana,vestidocomumsobretudocinzento,trazendonamãoumbloco.Seusolhosamistososeinquiridoresmergulharamnosdobípede.Suabocasemoveuenovamenteo

bípedeouviuseunome,masobarulhoeratãogrande,queelenãopôdetercerteza.O homem de cinzento sorriu levemente, ergueu seu bloco e então escreveu algo commovimentos

firmesecuidadosos.Mostrou,então,afolha.Láestava,emletrasgrandes:"VOCÊÉMARTINNAUMCHIK?"O bípede sentiu um ímpeto de alegria e gratidão tão grandes, que quase ficou sufocado. Jogou-se

contraovidro,concordandoveementementeeapontandoparasimesmo.—SouMartinNaumchik!—gritou.Ohomemdecinzentoacenoudemaneiratranqüilizadora,dobrouopapeleguardou-o.Comumaceno

demão,virou-seecomeçouaabrircaminhoentreamultidão."Fritz!Fritz!",gritavamtodososrostosvermelhos.O bípede, andando de um lado para outro, esperou durante vinte minutos contados pelo grande

relógiodoescritórioenadaaconteceu.Sabiaqueprecisavacontrolarsuaimpaciência,queohomemdecinzento deveria subir as escadas a qualquermomento, discutindopara libertá-lo.Masnão adiantava.Tinhadefazeralgumacoisaouexplodir.

Olhou para o telefone. Estava proibido de usá-lo exceto para chamadas de rotina, ligadas ao seutrabalho.Masquesedanassem!

Obípededeuumpassoparaoaparelhoeergueuaunidadeauditiva.Aluzdechamadacomeçouapiscar.Apósummomento,avozdatelefonistasaiubaixinhodoinstrumento:

—Alô?—AquiéMartinNaumchik—disseobípede,sentindoimediatamentequesuavozsoavasutilmente

falsa.—DesejofalarcomoDr.Grück.Ligue-mecomele,porfavor.—Quemosenhordizqueé?—Martin...—começouobípede,masinterrompeu-se.—Estábem,esqueça,aquiéFritz,obípede.

Desejofalar...—Porquenãodisselogo?Algumproblemacomotrabalho?—Não,otrabalhoestáterminado.Êassuntodeurgência,assim,sepudessemefazeragentileza...

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—Algumacoisaerradacomajaula?—Não,masprecisofalarcomGrück.Olhe,quemquerqueseja,porfavor,nãomeperguntenadae

deixe-mefalarcom...—MeunomeéFräuleinMüller—interrompeuela,comvozgelada—erecebiinstruçõesparanão

deixarosanimaisfazeremligaçõespessoais.Assim,senãoécasodeemergênciaeestátudocertocomoseutrabalho...

—Jádissequeéurgente!—esbravejouobípede.Comfúriacrescente,começouagritarnobocal:—Suaidiota,semeimpedirdefalarcomGrückteremosumajustedecontas,eulheprometo!Façaa

ligaçãoimediatamente,ou...Alô?Estámeouvindo?Alô,FräuleinMüller,alô?Ovagozumbidodalinhafoiaresposta.Comdedostrêmulos,obípededesligouoaparelhoeligou-onovamentecomumasacudida.Aluzde

chamadapiscouecontinuoupiscando.Acabeçaesverdeadaedegrandesmaxilaresdafêmeaapareceunaportaquandoobípedesevoltou.—Porqueestámeolhando?—gritouele.Acabeçasumiu.Obípedesentouabruptamentenacadeiradaescrivaninha,esfregandonervosamente

asmãosdetrêsdedosumanaoutra.Eraintolerávelsercaladoassim,logoagoraquandosualiberdadeparecia talvezestar tãopróxima.Sealgoestavaparaacontecer,omínimoqueelespoderiamfazererainformá-loarespeitoenãodeixá-lonaignorânciadaquelamaneira.Afinaldecontas,quevidaestavaemjogo?Mas aquela era sempre amaneira de agir dos burocratas, tão cheios de si que não conseguiamenxergarumpalmoadiantedosnarizesgorduchos.Deixarosseusdependentesesubalternosesperaremepreocuparem-seatoa.Oquelhesimportava?

Oh,maserasóseverlivredalieentão!Quelibeloescreveria!Quesérie!DesumanidadeChocantedosDiretoresdoZoológico!Seunervosismo,quediminuíraumpouco,cresceunovamenteeelepuloudepé.Ah,seodeixassemsairumdia,nãoprecisavamais...sósair!Orestonãoimportavamuito,mesmoquefossecondenado...

Parouparaescutar.Sim,osomserepetira.Aportaestavasendoaberta.Obípedecorreuatéapassagem,masnãoeraGrück,nemohomemdecinzento.SomenteRudi,com

seucarrinho.—Oh,évocê—disseobípede,voltou-seaborrecido.—Sim,eu—respondeuRudi,comespírito—Quemmaispoderiaser?Eugostariadesaber.Quem

maisfazoserviçopesadoporaqui,semnenhumagradecimento?Empurrouocarrinhoparadentrodoescritório,resmungandotodootempo,semolharparaobípede.—AcasoéoHerrDoktorGrückquemalimentaorinoceronteouospássarosdotrovão?Queméque

empurracomumcabodevassouraacarnepelaestreitagargantadajibóia:Wenzl?ÉRauschquemvarreas jaulas dos macacos, ou sou eu? Vocês, bípedes, até que não são tão ruins, pelo menos lavam-sesozinhos.Masalgunsdessesanimais...Vocênãoacreditariacomosãoimundos!Fazemnecessidadespelochão,ficamondequerem...Enfim,estaéavida.Algunsvivemnaabundânciaenquantooutrosseocupamcom a sujeira dos macacos. — Com uma careta, tirou qualquer coisa do carrinho e jogou sobre aescrivaninhamaispróxima.—Aquiestáosabãoparavocê.Mandaramdizer-lhequetomeumbanhoesubaparaumaentrevista.Eaordeméandardepressa.Assim,nãoseatrase,por favor,pois levareiaculpaenãovocê.

Ocoraçãodobípedecomeçouabatercomforça.—Vocêdisseentrevista?—gaguejou.—Com...comquem?—Entrevista,ésóoquesei.Algunsjornalistasdesejamescreverumareportagemsobrevocê.Tudo

mentira,tenhocerteza,maséopontodevistadeles.Rudivoltouaempurrarocarrinho,sempresemolharparaobípede.Ouviuumruídoatrásdeleevirou-seatempodeverEmmacorrerassustadaparaforadoquarto.

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—Rudi—guinchouela.—Oh!Rudi...porfavor,espere!Mas o guarda havia desaparecido no corredor. Não a ouvira ou talvez não quisesse voltar. Logo

depoischegouoruídodaportaexternasendofechada.Emmarecuouparaseuquartoquandoobípedese*voltou,levandoasmãosàtestanogestofamiliar.

Parou,entretanto,aovê-loalcançaropacotesobreaescrivaninha..—Issoésabão?—perguntouela,timidamente.—OuviRudidizerqueera.Obípedeapanhouopequenoembrulhooblongo.Sentiuumaromasuaveesingularmenteperturbador.—Sim,ésabão—respondeudistraído.—Devolavar-meparaserentrevistado.—Umaveztambémganhei,—disseafêmea,aproximando-se.—Foihámuitotempo.Masdisseram

quemefezmal.—Imagino—murmurouobípede,rasgandoopapelcomosdedosgrossos.Oinvólucroseabriueo

sabãoescorregoudassuasmãos,indocairnochão,pertodospésdeEmma.Elainclinou-sedevagareapanhou-o.Operfumetornara-sequaseintoleravelmenteforte.

—Dê-me,sim?—disseobípedeimpaciente,aproximando-se.Estava quase ultrapassando a risca de giz que separava seu lado da sala do dela,masEmmanão

percebeu.Abocadabípedeestavaligeiramenteabertaeosolhosvoltadosparacima.Obípededeuumpassoporcimadalinha.Elacontinuousemperceber.Alarmado,obípedeparoueolhouparaela.—Emma!—disse.Elavoltouacabeçaparaele.—Sim?—perguntou,comvozsonhadora.—Oquehouvecomvocê,Emma?—Nada—replicoucomumvagosorriso.—Então,porfavordevolva-meosabão.—Umbomsabão—disseela,balançandoacabeça,masnãofezumgestoparadevolvê-loeparecia

quaseinconscientedeestaraindasegurando-ojuntoaorosto.A ponto de cruzar a linha para tomá-lo dasmãos dela, o bípede hesitou. Pareceu-lhe subitamente

estranhoqueRudilhelevassesabãoparaselavar.Nãoviraumpedaçoemsemanasdeencarceramentoenãosentirafaltarealmente.Osabãoseriabomparaaquelecorpo,comsuapenugemdeespinhos?Senãofosse,entãoporque...?

Balançandoacabeçacom irritação, recuoupara longedoaromacapitosoquevinhadaquelacoisaqueEmmaestavasegurando.Comaqueleodorinsistenteemsuasnarinas,eradifícilraciocinardireito.

Concentrou-se,finalmente.—Porqueelesdisseramquesabãoeramauparavocê,Emma?—perguntou.—Mauparamim—concordouela,balançando-secomoseouvisseumamúsicainaudível.—Sabão

mauparaEmma.Nãomaissabão,muitomau.Lindosabão.Enquanto o bípede olhava para ela em silêncio, ouviu a porta se abrir novamente. Seu cérebro

entorpecidovoltouafuncionarrapidamentemaisumavez.—Emma,ouça—sussurrouele.—Pegueosabãoeleve-oparaoseuquarto.Entendeu?Váparao

quarto.Nãosaiaatéqueeuchame!—Emmanãosairá.Comlentidãoexasperante,dirigiu-separaaporta,enquantoRudientrava,destavezsemocarrinho.—Estápronto?—disse,comumaolhadelaparaafiguradeEmmaquesaía.Obípedeficoudefrenteparaele,tentandoimitaroolharsonhadoredistantedeEmma.—Pronto—repetiudevagar.—Vocêsabequemé,não?—MeunomeéNaum...

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—Não,não—interrompeuRudi—nãosejaestúpido,seunomeéFritz.Agorarepitacomigo:"MeunomeéFritz".

—...nomeéFritz—disseobípedeconformado.Mantinhaosolhosviradosparacimaebalançavanospés.Suacabeçaestavafervendoderaiva,masconservavaavozempostadaelenta.

—Assimestábem—falouRudi,satisfeito.—Quantossãodoisedois,Fritz?Obípedefingiupensarlongamentesobreapergunta.—Quatro?—perguntouhesitante.—Aí,rapaz.Equantossãoquatromaisquatro,maisquatroemaisquatro?Obípedepiscoudevagar.—Quatromaisquatro...—disse.Rudisorriu.—Muitobem,vamosentão.Vocêvaisubirparaencontraralgunscavalheirossimpáticos,Fritz,ese

vocêsecomportar—perdoe-mepordizer"se"—lhedareiumacoisagostosasóparavocê.Pegouobípedepelobraço.Subirampeloelevador.Passarampelocorredordeparedesdevidrodeondesepodiamvertodasas

dependênciasdoZoológico.Eraumcairdetardeensolaradoeasaléiasdecascalhoestavamcheiasdegentepasseando.Algunsrostosseviraramparaolhá-lo,massemmuitaexcitação.Entraramnoedifícioprincipal.Rudiabriuumaportaeobípede foi introduzidonomesmoescritório revestidodecarvalhoondeforarecebidonoprimeirodia.Aoladodamesa,Grück,Wenzleohomemdesobretudocinzentooaguardavam.

—Ha!—exclamouGrück,jovial.—EisfinalmenteonossoFritz.Agoraveremos,meucaroTassen,oquehádeverdadeironessafantásticahistória.Poderíamostercomeçadomaiscedo,masFritzdevezemquandosesuja,nãoéWenzl?Éumapena,masquesepoderiaesperar?ótimo!—esfregouasmãos.—Fritz,vocêestábem?

—Muitobem,HerrDoktor—respondeuobípede.—Excelente!Eteveumbomjantar?—Sim,HerrDoktor.Grück franziu ligeiramente a testa olhando paraRudi,mas logo se recompôs e falou outra vez ao

bípede:—Muitobem,Fritz.EstecavalheiroéHerrTassen,daFreiePresse.Elelhefaráalgumasperguntase

vocêdeverárespondercorretamente.Compreendeu?Comece,pois,HerrTassen!Ohomemdesobretudocinzentoolhouparaobípede,comumaligeiraexpressãodedúvida.—Bem,Fritz...—começouele.Obípededeuumpassoàfrente,afastando-sedeRudi,eperguntourapidamente:—HáquantotempotrabalhanaFretePresse?Tassenergueuassobrancelhas.—Hápoucomaisdeumano,porquê?—ConheceZellini,ocopydesk?—Oqueéisto?—gritouGrück,aproximando-se,comorostovermelhodeespantoederaiva.—

Fritz,tenhamodos!Lembre-se...— Sim, conheço Zellini— respondeu o jornalista. Estava garatujando depressa no seu bloco de

notas.—Umhomenzinhomoreno,quasecareca.Sentei-meaoladodelenoúltimo"JantardosJornalistas

Europeus".Ele...—Wenzl!—vociferouGrück.ObípedesentiuRudiagarrá-loportrás,enquantoWenzl,comorostoparecendoumamáscarabranca,

caminhouparaele,rodeandoamesa.—Elesmemantêmpresocontraaminhavontade!—gritouobípede,tentandodesvencilhar-se.—

MeunomeéMartinNaumchik!Tentarammedrogarantesdemetrazeremaqui!

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GrückeTassendiscutiamemvozalta.Wenzlagarraraobraçodobípedecomumadasmãosecomaoutra apertava-lhe o focinho, mantendo-o fechado. Juntamente com Rudi, ergueu o bípede do chão ecomeçouacarregá-loparaforadali.

—Éumultraje!—trombeteouGrück.—Umafraude!Ojornalista,quasetãovermelhoquantoele,gritava:

—Tragam-nodevoltaimediatamente!Aportasefechou,interrompendoaalgazarra.Semsedaraotrabalhodepô-lonochão,WenzleRudi

carregaramoagorainermebípedepelocorredorafora,nadireçãodoelevador.Emma,aoqueparece,nãosóficaracheirandoosabãootempotodoemqueobípedeestiverafora,

mashaviacomidoumaboaparte.Foilevadaparaaenfermaria,inconsciente,ealipermaneceudoisdias.A distribuição de trabalho parou. Rudi, o guarda, desaparecera e seu lugar foi ocupado por um

homemlentoepesado,chamadoOtto.Ninguémmaisvisitouajaula.Exaustoe triunfante,obípedepassavaamaiorpartedo temponasalade frenteda jaula,àsvezes

lendo, outras assistindo televisão, ocasionalmente apenas olhando as multidões, com as quais ia seacostumandoaospoucos.EsperouverTassenoutravez,masestenãoreapareceu.Nodiaseguinteaodaentrevista,contudo,umhomem,doladodefora,tirouumjornaldobradodedentrodosobretudoeabriu-odemodoaqueobípedeovisse.

Conseguiuapenasleramanchete:BÍPEDEDOZÔOPRETENDESERVERDADEIRAMENTEHUMANO.Entãoumdosguardasarrancouojornaldasmãosdohomem,levando-oparaforaerepreendendo-o

severamente.Obípedeteriadadoumdiaderefeiçõesemtrocadojornal.MaspelomenosagorasabiaqueTassen

haviaescritoareportagemequeosecretáriodenotíciaslocaisaimprimira.Agorapodiaesperar.Umavezespalhadaaverdade,nuncamaisconseguiriamfazê-localar-se,fosse

comofosse.Obípedeseacostumaraaterpaciência.Porummomentobrincoucomaidéiadeescreveralgunsrecadosemgrandespedaçosdepapelãoeerguê-losparamostraràmultidão.Mastinhamedodeque,sefizesseisso,otirassemdoquartodafrente,impedindo-odeverquandoTassenchegasse.

No terceirodia,Emmafoi trazidadevoltadepoisdocafé.Ligeiramenteabatida,comar furiosoeespinhos caídos. Lançou um olhar para o bípede ao passar, que ele não conseguiu definir: saudade,censura,umaespéciedeapelo?

Viu que ficara preocupado com isso e teve vontade de falar com ela,mas Emma não deixou seualojamento.

Umpoucomaistarde,aportaexternaseabriuoutravezeOttoentrou.Parounasoleiraerosnou:—Precisamvocêemcima.Umaentrevista.Venha.Obípedepuloudepéesentiuocoraçãobater.

Perguntoudesconfiado:—Semsabãodestavez?Masoguardaolhouparaelenumaincompreensãodebruto.Destavez,emlugardeiremdiretamente

aoescritóriodeGrück,passaramporeleeentraramemumapequenasaladoladoopostodocorredor.Ocompartimentoestavaquasevazio.Haviaapenasumamesaeduascadeiras.

Otto segurou a porta sem qualquer comentário, esperou que o bípede entrasse e saiu novamente,fechando-a.

Obípedeolhouemvoltanervoso,masnadahaviaparaver alémdas trêspeçasdomobiliário,osgastosladrilhosescurosdochãoeasparedesmanchadasdecastanho,queprecisavamdepintura.

Depois de uma longa espera, a porta se abriu outra vez e um homemgrande, de tezmorena, numsobretudovermelho,entrou.Atrásdele,obípedeviuamassavolumosadeGrückeouviusuavozricaeaflautada.

—Naturalmente,caroHerrOpatescu,naturalmente!Nóssemprequisemos...

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—Nãopensequeeuvoucairnessa—disseovisitante,furioso,parandonaentradadasala.—SeeunãotivesseameaçadoiraoConselho...

—Osenhorestáenganado,HerrOpatescu,garanto-lhe!Nóssóquisemos...—Euseioqueossenhoresquiseram—disseOpatescu,sarcasticamente.—Saia,queeujáestou

fartodisto.Grückretirou-secomardequemfoicastigadoeovisitantefechouaporta.Carregavaumavalisede

courodeporco,quedepositoucuidadosamentenamesa.Então,comumsorrisoamplo,aproximou-sedobípedeeapertou-lheamãocordialmente.

—Nós,jornalistas,precisamosestarunidosquandotemosdelidarcomporcoscomoesse—disseele. — Permita apresentar-me: meu nome é Opatescu. Você não pode imaginar os truques que elesinventaram para manter-me afastado. Mas aqui estou! Agora, Herr Naumchik. .. um momento —vasculhou a pasta, fazendo surgir um gravador portátil chato, transparente e crístico solidstate e ummicrofone.Aquiestão.Sente-se,porfavor...assim.

Empurrouomicrofonenadireçãodobípede,ajustouoscomandosdoaparelhoeligou-o.Oponteirocomeçouamover-senasuperfíciedaunidadedegravação.

Opatescusentou-sedefrenteparaobípede,apoiando-sesobreosbraços,semsepreocuparemtiraropesadosobretudo.

—EstagravaçãoestásendorealizadanoZoológicodeBerlim,em17dejunhode2002.Presentes:MartinNaumchik,tambémconhecidocomoobípedeFritz,eorepórterOpatescu.

Ajeitou-semaisconfortavelmentenapoltronaecontinuou:—Agora,HerrNaumchik—porqueeuacreditoqueosenhorémesmoMartinNaumchik—peçoque

me conte, se o senhor quiser, com suas próprias palavras, como se deu esta sua incrível experiência.Comece,porgentileza.

Obípedecomeçouimediatamente,apesardeOpatescuserumtipoquenãolheagradasse:melífluo,dogmático, a espéciede repórterque se costumavaencontrar trabalhandonos jornais escandalososdaEuropaCentral.Mas,jáqueohomemestavadoseuladoeagravaçãosendofeita...

Opatescuouviuum tanto inquieto,massem interrompê-lo,atéqueobípedecontou todaahistória.Então, com uma perfeição que fez o bípede pensar se sua primeira impressão não fora um engano,Opatesculevou-oarepetirtudooquedissera,fazendoperguntas,extraindomaisdetalhes,pedindoquerepetissecertospontosdiversasvezes,compalavrasdiferentes.Quandosedeuporsatisfeito,começouafazerperguntassobreavidapassadadobípedeeparticularmentesobreasfontesquepossuíaparaprovarque era realmente Naumchik. Depois, repassou o assunto com igual perfeição. Quando, finalmente,Opatescudesligouogravadorecomeçouaguardá-lo,obípedeoolhavacomrelutanterespeito.

—Devodizerquelhesoumuitogratoportudoisto—falou.—SuponhoqueosenhorsejaamigodeTassen,ohomemqueiniciouestainvestigação?

—Tassen,sim,conheçoTassen—respondeuOpatescu,fechandoavalise.—Eleescreveuumasériedeartigos,umaboamatéria,vocêvaiverquandosairdaí!

Obípedeumedeceuoslábiosduros.—Seráquetemalgumaidéia...—Dequandoserá?Nãovaidemorarmuito.Osenhordeverá terumencontrocoma imprensa,um

grandedestavez:jornais,rádio,televisão.Depoisdisto,elesnãopoderãomantê-lopreso.Opúbliconãoopermitiria.Bem,Naumchik,foiumprazer.

Eestendeuamãocarnuda.—Oprazerfoimeu,HerrOpatescu.Apropósito,emquejornalosenhordissequetrabalha?—Pravda.Opatescuolhouorelógio,pegouavalisenamesaevirou-separasair.

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—SeráqueconheceKyrillReshevsky,o...—Sim, sim,mas vamos deixar as recordações para outra ocasião, sim?—Sorriu,mostrando os

grandes dentes brilhantes. — Deram-me um prazo, o senhor entende. Até logo, Herr Naumchik...paciência!

Sorrindoainda,retirou-seefechouaporta.Otto apareceu quase imediatamente para levar o bípede de volta. Embora habitualmente lacônico,

falounocaminhodevoltaàjaula:—Agoraelesterãodesoltá-lo,hem?—Assimparece—respondeuobípedealegremente.—Muitobem—disseOtto,sacudindoacabeça.—Oqueaconteceráemseguida?Nosdoisdiasque se seguiram,obípedenãoconseguiu ficar lendoousentadopormaisdealguns

minutosdecadavez.Deixavaatelevisãoligadatodootempoeolhavaonoticiáriodehoraemhora.Umavez,logonoprimeirodia,umcomentaristafezumarápidareferênciaaofato,eumabreveapariçãosuanumfilme—evidentementefeitonodiadasuachegadaaoZoo—foipassadanovídeo.

No intervalo das notícias, gastava a maior parte do tempo andando de um lado para outro noescritório, aprisionando a pobre Emma, que tão cedo não poria a cabeça para fora do quarto,amedrontadapelosgritosegestosdobípede.Nãodeudescansoàtelefonista,chamando-aodiainteiro,pedindo ora para falar comGrück, ora com Prinzmetal ou outra pessoa. Na tarde do segundo dia, otelefoneestavadesligado.Alinhaforacortada.

LogodepoisentrouOtto.Traziaumapilhadejornaiserevistasnocarrinho.—Mandaramistoparavocê—disse,atirandoomontesobreumaescrivaninhavazia.—Leiaenão

aborreçaFráuleinMüller.Virou-se e saiu.Obípede esqueceu-o logo.Avançou para a pilha e tirou oprimeiro jornal.Era oFrankfurterMorgenblatt e folheou-o commãos trêmulas até deparar comumacolunaintitulada:

ESTRANHASDECLARAÇÕESDOBÍPEDEDOZÔO.Leuareportagemcomavidez,emborafosseevidentementenadamaisquesuaentrevistacomTassen

reescrita. Então, refreando a impaciência, começou a separar os jornais, em ordem cronológica,empilhando-osnochão.Quandochegouaofimdomonte,encontrou,parasuaalegria,umálbumeumatesoura.

Agachando-se no chão — suas velhas pernas nunca haviam estado tão flexíveis — começoucuidadosamentearecortarasnotíciassobreeleeaapertá-lascontraaspáginasadesivasdoálbum.Pôsorefugodeladoparalermaistarde.

Enquanto trabalhava, descobriu que as reportagens sobre o bípede se dividiam em três classes.Primeiro, reportagensdiretasum tanto sem imaginação,comoadoFrankfurterMorgenblatt Segundo,matérias cheias de simpatia, aparecendo principalmente nos cadernos ilustrados de domingo, algunsassinadospormulheres(ointituladoPRESONOCORPODEUMANIMAL!deCarlaErnsting,eraumexemplotípico).Eporfimumacoleçãodenarrativaseeditoriaisambíguos,queenchiamasúltimasediçõeseasrevistas.Obípedeleuaquelesúltimoscomsurpresaemedocrescente:

Pseudo-humanitáriosneuróticos,diziaaHeute,numeditorialdecolunaaberta,"buscamdegradarahumanidade ao nível de animais, atingindo assim as profundas raízes da nossa civilização. Não seenganem: essas mentes doentias querem que aceitemos como humanos cada pólipo viscoso, saposfedorentos que conseguempapaguear algumas frases em alemão ou atravessar um labirinto comum.OsupostoMartinNaumchikéumexemplo,talvezomaisevidente,dessaespéciedegradadaeviciosa...

O bípede amarrotou a página, numa explosão de raiva. Levantando-se, rodeou a pilha de jornais,olhando-acomódio.Então,abaixou-senovamente,pegouafolhaamarrotada,alisou-aeleuoeditorialatéofim.

Mas estava agitado demais para continuar seu trabalho. Fechou o álbume caminhou até a sala da

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frente,olhandoparafora,paraocinzentodiaoutonal.Océutornara-sefrioechuvosoepoucaspessoasandavampelasaléias.

Nãopodiaignorarpormaistempoofatodequeninguémqueriaacreditarqueocorpodeumbípedepudesse ser habitadopor alma ementehumanas.Demaneirageral, ele tambémsimpatizava comessepontodevista.Mascertamenteelesprecisavamverqueaquelaeraumasituaçãoespecial,diferente!

Pensativo,apertouofocinhocontraovidrofrio,nolugarondeospingosdechuva,maisespaçados,escorriamdevagar.

Masqueaconteceriasenãopudessemacreditar?Tentouimaginar-selivre,reconhecidocomoMartinNaumchik,seusdireitosdecidadãorestaurados...

Edepois?Tevederepenteagrotescavisãodesimesmo,umbípedenunasaladaredaçãodoParis-Soir,conversando comEhrichs... e depois numa festa, entre homens emulheres completamentevestidos, decoposnasmãos.

Eraabsurdo,impossível.Ondepoderiair?Quemoaceitaria?Ondeconseguiriatrabalhooumesmomoradia?

Obípedeprojetouoqueixoparaafrenteteimosamente,agarrandoumadasmãosdetrêsdedoscomaoutra.

—SouMartinNaumchik!—murmurou.Masatéemseusprópriosouvidosafrasesooufalsa.

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IXOBÍPEDE acordou, sacudindo-se e resmungando, depois de um sonho peculiarmente desagradável.

Algohaviaacontecidocomseucorpo.Seurostosetornaratotalmentemacioemole,suaspernasduras...Ohorríveldaquiloeraquetodos,aoseuredor,pareciamaceitarofatocomointeiramentenormaleelenãopodiaexplicar-lhesoquehaviadeerrado.

Acordou então completamente e sentou-se na cama, estalando asmandíbulas e passando amãonapenugem espinhosa. Compreendeu subitamente que estivera sonhando... sonhando com sua aparênciaantesdamudança.

Sentouporummomento,pensandoestupidamentenaquilo.Foiassaltadoporumaindefinidasensaçãode traição, comose tivesse,decertamaneira,perjurado sua lealdadeparacomaquelecorpohumano,outroratãofamiliar,masqueagoraseassemelhavaauminesperadopesadelo.Ficouumtantoperturbadopelo fato dos seus sentimentos seremcapazes demudar tão radicalmente empoucas semanas.Se issopodiaacontecer,oqueseriadelenofimdetudo?

Saiudacama,sentindovoltarasboasdisposições,comassaudáveisexigênciasdoseucorpo.Afinaldecontas,nãoadiantavasepreocupartantocomopassado.

Eleeraelemesmo,tãodeterminadocomosempree—inteiriçou-seaoperceber—comopodiateresquecido?—aquelaeraamanhãdoajustedecontascomGrück.

Bocejandonervosamente, dirigiu-se para a sala de estar e ligou a televisão de parede.Ainda nãoestavanahoradosnoticiários.Olhoupelajanela,alémdacercaprovisória,adezmetrosdedistância,queostrabalhadoreshaviamlevantadonodiaanterior.Osgramadoseasaléiasestavamvazios,nosolmatutino. Ouviu um leve bater de asas, vindo de um dos aviários distantes, e depois o silêncionovamente.

Agora que a hora se aproximava, estava começando a ficar ansioso. Tinha esperado que Grücktentassedopá-loumavezmais,edormiratodasasnoitesprotegidoporumabarricadadiantedaporta.Mas, comexceçãoda cerca, que impedia as pessoas de se aproximaremda jaula, nada foi feito paraatingi-lo.Arrastouamesaeaestanteparaforadocaminhoepassouaoescritório.

Aoatravessarasala,orostodeEmmaapareceunaportadoquartodela.—Bomdia—disseelatimidamente.—Bomdia,Emma—respondeuobípede,umtantosurpreso.Nãoprestouatençãoaela.Seupensamentoestavavoltadoparaaconferênciadeimprensamarcada

paramaistarde.Afêmeaaventurouumoudoispassosalémdasoleira.—Hojeéquarta-feira—observouela.—Istomesmo,quarta-feira.—ÉodiaemquevocêiráprovarqueéHerrNaumchik.—Sim—confirmouobípede,surpreendidoesatisfeito.—Eentãovocêiráembora.—Sim,suponhoquevou.Queseriaqueaquelacriaturaestavaquerendo?—Euficareicompletamentesozinha—disseEmma.—Bem—respondeuobípededesajeitadamente—esperoquevocêseacostume.

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—Sentireisuafalta.Adeus,Fritz—disseEmma.—Adeus.Elavirou-seevoltouparaoquarto.Obípedeviu-adesaparecer,comovidoevagamenteperturbado.Dasaladeestarvieramumabadaladaeumavozentusiástica:"Oito da manhã, horário das notícias! Bom dia, fala o repórter Walter Szaborni, para servi-los.

Setecentos foramdadoscomomortosnum tremorde terra emCalcutá!DoismembrosdoConselhodaBavieraforamacusadosdecondutairregular.Estaseoutrasnotícias..."

Entrandonasaladepressa,obípedepegouacaixadecontrole,aoladodacadeira,eapertouobotãoseletordecanais.Nateladaparede,orostocoradodolocutordesapareceuenoseulugarsurgiuafiguracintilantedeumasenhoraidosa,vestidacomexcentricidade,sentadadiantedotecladodeumpiano.

"Comominhaprimeiraseleçãodestamanhã",anunciouela,comfortesotaqueeslavo,"tocareiDawn,deMorgenstern..."Clique!

Ela cedeuo lugar a um rapazmusculoso, vestidonuma,malhade cor creme, que rodavano chão,apoiadosobreumanádega.

"Fa-cil-men-teatrás",disseele,"eagoranafrente..."Clique!"...trazemosavocêsaúltimanovidade,deumcasoquetodaBerlimvemcomentando",disseumavoz

invisível.Obípedeprendeuarespiração:natelasurgiuaimagemdasdependênciasdoZoológico.Acâmarase

moveuapassonadireçãodoedifícioprincipal.Comumchoquecurioso,virando-seeolhandoparaforadajanela,porcimadosrostosindiferentesdaspoucaspessoasquepermaneciamjuntoàárea,obípedepercebeuoqueestavaparaver.Láfora,sobosoldamanhã,passeandolentamentenogramado,haviaumhomemcomumalevecâmeradetelevisão.

"...queafirmaserMartinNaumchik,umrepórterdoParis-Soir",diziaavoz.Nessemomento,aportaexternarangeu.Obípedevacilouuminstanteedepoisabandonouatela,correndoparaoescritório.Eraoguarda,comocarrinho.

—Otto!Vocêtemalgumrecadoparamim?—Nenhumrecado.Coma—respondeuOtto,retirandoastravessasdocarrinho.—Mas,aconferênciadeimprensaserámesmorealizada?Jáchegoualguém?—Cheiodegente—grunhiuOtto.—Tudoaseutempo.Coma.Afastou-se.Mascomerestavaforadecogitação;obípedeespalhouacomidacomogarfo,comeuum

pouco,depoisafastou-seecomeçouaandardeumladoparaooutronasalainternaatéqueaportaseabriueOttovoltou.Parecia-lheterempassadohoras.

Quando sedirigiu ao escritório, obípedeviuEmma,na soleiradaporta, olhandonovamenteparafora.Ignorando-a,perguntou:

—Elesestãoprontosparareceber-me?—Sim.Venha—disseOtto.Obípedealisouosespinhoseseguiu-o.Haviamultidõesforadagaleriaenoscorredores.Obípede

viuPrinzmetalpassarcomumaexpressãodecaçador.Foradasalade jantardo terraço,haviahomenscom fonesnoouvido, curvados sobre caixasdemetal cobertas de interruptores e botões.Umpolicialberlinensedeuniformebrancomontavaguardaàentrada.Semlheprestaratenção,Ottoabriuaportaeinclinou-separadentrouminstante,bloqueandoapassagemcomocorpo.Faloucomalguémefechouaportaoutravez.

—Espere—disseparaobípede.Momentosdepois,aportaseabriunovamenteeumrostopálidoesuadosurgiu.Eraumrapazqueo

bípedenuncavira.—Estábem,traga-o.Rápido,rápido!—Sempreapressado,hem?—resmungouOtto.—Muitobem,vamoslá.

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Deuumempurrãonobípede.LádentroorapazpálidopegouobraçodeFritz.—Vamoslogo,nãodevemosdeixá-losesperando!Portrásdele,alémdascostasdevárioshomens

queestavamjuntosempé,obípededivisouarotundafiguradeGrückdooutroladodeumamesa.—Eagora—falouoDiretor,comvoznervosa—apresento-lhesFritz,obípede.Obípedecaminhoufirmementeemmeioaosilêncio.Aamplasalaestavarepletadegente,unsempé

comcâmeras,orestosentadoàsmesasespalhadasaoredor,atéàparededofundo.Quandoobípedeseaproximou,Grücklançou-lheumolharinescrutável.

—Conteaelessuahistória,Fritz...oudevodizerHerrNaumchik?Curvou-seedeuumpassoparatrás,deixandoobípedesozinho.Estepigarreou,comuminesperado

grasnarqueprovocouumaondaderisosnasala.Assustadoefurioso,inclinou-separaafrenteeagarrouabordadamesa.

—MeunomeéMartinNaumchik—começouemvozalta.A sala se acalmou quase imediatamente quando principiou a falar e ele pôde sentir a respeitosa

atenção dos ouvintes. Adquirindo confiança, relatou os fatos clara e objetivamente, começando domomentoemqueseachoudentrodajauladobípede.Enquantofalava,olhavaaoredordasalaesperandoencontrarrostosfamiliares,masasluzesestavamcolocadasdetalmodoqueelemalconseguiadivisarassilhuetasdosqueoolhavam.

Quandoterminou,fez-seummomentodesilêncio,depoishouveumrebuliçoeumaflorestademãosseelevou.

—Osenhoraí—indicouobípedeaoacaso,semajuda.Umamulherpôs-sedepé.—Quemlhedisseparacontartudoisso?—perguntou.Tinhaorostoindignadoeosolhosbrilhavam.

Ummurmúriodeprotestocercou-a.—Ninguém—falouobípede,comfirmeza—Oseguinte!Osenhoraí...sim,osenhormesmo.— Você disse ter-se formado na Sorbonne em 1999. Quem era o chefe do departamento alemão

naquelaépoca?—HerrWinkler—respondeuobípedesemhesitareapontouparaoutroinjuriador.—QuemeraseuchefenoParis-Soir,quandovocêtrabalhavanaredação?—ClaudeEhrichs.Amaiorpartedasperguntaseraigualàsquehaviarespondidoantes,muitasdelasinúmerasvezesem

entrevistasanteriores.Continuaradarasmesmasrespostasfê-losentirumapontadedesânimo.Quandoterminariatudoaquilo?Masaatitudedosouvintesreanimou-o:estavamrespeitosamenteatentosemesmoamáveis.

Umhomemalto,debarbavermelha,levantou-se.—Permita-meumapergunta,HerrNaumchik.Qualsuaexplicaçãoparaessacoisaestranha?Quala

causadela?—Nãotenhonenhumacausa—falouobípedegravemente.—Masestoudizendoaverdade.Houveummurmúriodesimpatia,quandoohomemdebarbavermelhasentou-se.Obípedeabriua

bocapararecomeçarafalar,masantesquepudesseouviu-seavozmelífluadoDr.Grück.—Aquiterminanossopequenoperíododeperguntas,muitoobrigado,senhoresesenhoras.Grückavançou,seguidopordoisguardasque,rapidamente,pegaramosbraçosdobípedeeolevaram

paraforadasala.Obípede,aprincípioapanhadodesurpresa,começouaresistir.—Aindanãoterminei!—gritou—Apeloparavocês,façamcomquemesoltem.—Apesardese

debater, os guardas o arrastaram para longe da mesa. — Façam com que me soltem! Sou MartinNaumchik!

Chegaram à porta. Atrás deles levantou-se um protesto indignado da assistência. Houve gritos de"Vergonha!Tragam-nodevolta!"Sobrepondo-seaocrescentetumulto,avozdeGrückrepetiaemvão:

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—Ummomento,senhoresesenhoras!Peço-lhesporfavor!Ummomento!Ummomento!Osguardasempurraramobípedeparafora.Aportasefechou.Obípedeparoudedebater-se.—Quersecomportar?—perguntouumdosguardas,ajeitandoocolarinho.Ottoapareceu,saídodaturbacomaexpressãoestúpidadesempre.—Podemir,seprecisardevocêschamarei—rosnouele.—Venha,Fritz.Obípedeseguiu-odocumentemasseucoraçãobatiaaceleradodeexcitaçãoeraiva.—Vocêouviu?—perguntou.—Vocêouviucomoaquelehomemme impediude falar,exatamente

quando...—Eu não— interrompeuOtto.—Nãome importo com essas coisas.Estive sentado lá embaixo

fumando.Evitando a multidão, empurrou o bípede para uma escada dos fundos. Desceram dois lanços e

atravessaramumaexposiçãodelivrosabrindocaminhoporentreasmesas,roçandoporfaixasvermelhasqueconvidavam:"Leiaumlivrosobreanimais!".Aquelapartedoprédioestavaquasedeserta,bemcomoagaleria.

Assim queOtto trancou a porta externa, o bípede ouviu a voz deGrück retumbar de dentro. Suaexcitaçãocresceuoutravez:correuà saladeestar.Na telada televisão,o rostovermelhoe suadodeHerrGrückolhavaferozmente.

"Senhoresesenhoras,peço-lhessuabondosaatenção!Senhoresesenhoras!"Avozdeumcomentaristainvisívelcortou-ocalmamente:"Osalãoestáaindabastantetumultuado.HerrDoktornãoconseguesefazerouvir."Obípededançoude alegria dianteda tela, batendopalmas.Lá fora, alémda cerca, amultidão se

aglomerava,maselenempercebia.Osomdatelevisãotinhaumaqualidadecuriosamenteressoanteeelepercebeu,depoisdeummomento,queEmmadeviaterligadotambémseuaparelhonoquartoaolado.

Oruídodiminuiu.Grückgritou:"Senhores e senhoras... ouviram as declarações do bípede! Agora permitam que o Diretor do

Zoológicotambémsepronuncie!"Ouviram-seaplausosesparsos.Osilênciofoiquebradonoinícioportossesearrastardepés.Quando

setornoucompleto,Grückvoltouafalar."Peço-lhesquepensemnumacoisa",disse."OndeestáMartinNaumchik?"Olhoudeumladoparaoutro.Osilênciotornou-semaisprofundo."OndeestáNaumchik,esseoperosojornalistaqueconseguiutaltriunfo?"Ummurmúrio se ergueu.A câmera girouparamostrar a constante agitaçãoda sala e umaouduas

pessoasselevantando.Vozesindistintassefaziamouvir."Estará andando pelas ruas de Berlim, com amente de um animal dentro do seu corpo?". Grück

insistia."Porqueentãonãoévisto?Nãoéumaperguntainteressante,senhoresesenhoras?Issonãoosfazpensar,não lhesdespertao interesse?Voltoaperguntar:onde está esse famosoMartinNaumchik?Estáseescondendo?"

Encarouacâmera,comosolhosbrilhandoportrásdosóculossemaros.Obípedecerrouospunhosinvoluntariamente."E se eu agora lhes disser que todos estamos sendo vítimas de um logro inteligente?'', perguntou

Grück. Houve vaias e resmungos no auditório. "Não acreditam? Estão mesmo tão definitivamenteconvencidos?"

Uma voz profunda elevou-se no auditório: era o homem alto, de barba vermelha, que já sepronunciara.Suavozaumentoueficoumaisclara:

"...estafarsa.Porquetiveramtantapressaemafastarobípede...porqueelenãoestáaquiagoraparacontinuarafalar?"

Gritosdeaprovação.Ohomemdabarbavermelhaficousatisfeitoecruzouosbraçossobreopeito.

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ODr.Grückapareceudenovo."Meu caro HerrWilenski— é este o seu nome, não?— o senhor verá que eu estou dizendo a

verdade."Bateudelicadamentenopeitogordo."Estebípedeéumanimalmuitovalioso,masétambémaltamenteexcitávelenervoso.Precisaserprotegido.Voucolocarsuasaúdeemperigo?Pensaquesoulouco?"

Umapequenagargalhadaencobriuosgritosdeaprovação.Ohomemdebarbavermelhaocupouatelaoutravez,apontandoodedoseveramente."Eaacusaçãodobípede,dequeossenhoresodrogaram?Quemedizaisso?"OrostogravedeGrückapareceuemprimeiroplano:"O animal deve ter apanhado em algum lugar o pedaço de sabão, Herr Wilenski. O guarda

responsáveljáfoi..."("Sabão?",repetiuavozdeWilenski.)"Sim,sabão.Ossaisdesódioepotássiodosabãotêmefeitotóxiconessesbípedes.Osenhorprecisa

lembrar de que eles não são seres humanos, Herr Wilenski." Ergueu a mão gorducha. "Deixe-mecontinuar" (murmúriosnoauditório). "Mas,antes,querodizer-lheumacoisa,HerrWilenski, ea todosaquipresentes: senãoconseguir convencê-losdequeestamosdiantedeumamistificação,deumsujoplanopublicitário,sedepoisdemeouviremaindaacreditaremquenaquelepobrecorpodebípedeexisteaalmadeumserhumano,prometosolenementelibertarMartinNaumchik!"

Sensaçãono salão.Obípede fechouos olhos, sentiu-se fraquejar e tateou atrás dele a procura dacadeira.Seualíviofoitãogrande,quenemouviuasrestantespalavrasseguintesnatela:

"...nósaquinoZoológicoestávamostãonoescuroquantoossenhores,podemcrer!Comopôdetalfato ocorrer? Nem por um instante acreditamos na história do bípede... mas que outra explicaçãopodíamosencontrar?Nãosabíamosmaisoquefazer,senhoresesenhoras...atéquetivemosafelizidéiade examinar a jaula dobípede! Imaginementão, qual não foi o nosso choque, o nossohorror, quandoachamos...isto!"

A câmera recuou.Grück,meio de lado, estendia amão, num gesto dramático, na direção de umamáquinaqueestavasobreumamesinhaatrásdele.Umassistenteempurrou-aparapertodacâmera.Peloqueobípedepôdeperceber,nadamaiseraqueumgravadorsolidstatesemelhanteàquelequeOpatescuhaviausado...

Sentiuumfrionocoração.Inclinou-separaafrente,preocupado."Sob as cobertas da cama do bípede", continuou a voz de Grück, "encontramos escondida esta

máquinadegravar!""Ecomofoipararali?",reboouavozdeWilenski.Grückvoltouorosto.Suaexpressãoerasolene."Ainda estamos investigando", respondeu. "E podem estar certos de que, quando forem presos os

indivíduos culpados, serão punidos com toda a severidade da lei! Por enquanto, só posso dizer queestamos muito interessados em interrogar o guarda que foi despedido." Aproximou-se da mesinha,colocandoamãosobreogravador."Agora,desejoquetodosouçamoquenósencontramosnoaparelhoescondido!Escutemcomatenção!"

Eligouogravador.Depoisdeummomento,umaprofundavozdehomemsefezouvir:"Ouçaerepitadepois.MeunomeéMartinNaumchik...NasciemAsnières,em1976...Soujornalista.

TrabalhoparaoParis-Soir.MeuchefeéMonsieurClaudeEhrichs..."Ummurmúriodistanteatravessouaparededevidro.Obípedevirouacabeçainvoluntariamenteeviu

umpequeno grupo de pessoas aglomerado em torno da antena de um aparelho portátil deTV. Punhoscomeçaramasersacudidos.Vozeschegaramatéeleabafadas:"Charlatão!Mistificador!"

Com um sentimento de perdição, o bípede voltou-se para a tela. A câmera agora fazia uma

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panorâmica sobre os rostos dos espectadores. Ele viu choque e surpresa darem lugar ao cinismo, aodesgostoeàraiva.Começaramalevantar-se,aquieali,portodoosalão,algunsseretirando.Obípedeviuohomemdebarbavermelhadirigir-separaocomeçodocorredor,balançandoacabeça.

—Espere!Espere!—gritouobípede,masohomemnatelanãopodiaouvi-lo.Asalaseesvaziou.Avozmonótonadorepórterparoudefalar.Grückpermaneceuainda,olhandosem

pressaamultidãosair,comumimperceptívelsorrisodesatisfaçãonoslábios.Wenzl inclinou-se para falar com ele. Grück balançou a cabeça, com ar ausente. Seus lábios se

contraíram:estavaassoviando."Eassim",disseolocutorsemfôlego,"comestadramáticarevelação,omistériodobípedehumano

ficouesclarecido!HerrDoktorGrücktemtodasashonrasporsuadignacondutanestadifícilsituação!Vamosvoltar,agora,aosnossosestúdios".

A tela tremeu e ficou clara. O bípede bateu no botão de controle às cegas. A imagem esmaeceu,encolheuesumiu.

"Ssss!Fritz,omistificador!Ssss!",chegavamatéeleasvozesvindasdefora.A agitação no Viveiro redobrou no momento em que Wenzl entrou. Os tucanos abriram seus

gigantescos bicos, agitaram as asas e começaram a gritar. O ar ficou cheio de pequenos pássarosesvoaçantes,comlampejosdepenasvermelhas,amarelaseazuis.Asararaspuseram-seaagarrarebicarospoleirosdemadeira,atirando-secontraainvisívelcercadeargritando:"Violação!Violação!"

Wenzlpassoupor eles, comseu rostomortocomoodeum tubarãobranconadandopelocorredorverdedoViveiro.

Nofimdoedifício,doispoliciaisauxiliaresmontavamguarda.Tudoemordemali.Wenzlatravessoua porta de saída meio aberta, abrindo caminho entre a multidão vagarosa e dirigiu-se à Casa dosPrimatas.

Guinchos,rugidoseotrovãodasgradessacudidasosaudaramquandoatravessouolimiar.Caiararasseatiraramunsnascostasdosoutros,amontoando-senasgrades,mostrandoosafiadosdentesafiadosegritandoaplenospulmões.Osmacacosnarigudosdesceramdosseuspoleirosdetrêspernaspiscandoetagarelando.Hugo,obabuíno,pulouruidosamentecontraasgrades,afastou-seedeuumacambalhotanoar,exibindootraseiroazul.Osdoischimpanzésbatiamnasgradeseguinchavamjuntos.

Wenzlmoveu-seentreasjaulas,atentoecalmo.Passou,então,poroutraentradaaberta,paraaCasadoRépteis.

Aliestavatudosilencioso.OolhardeWenzlsuavizou-sepelaprimeiravez.AsenormestartarugasdasGalápagos,grandescomocarrinhosdemão,mastigavamcalmamenteumpédealfacecomsuascruéismandíbulas. A jibóia enrolava-se preguiçosamente, com um respeitável pedaço metido na garganta.Quatrocascavéissibilavamematraqueavamdeleve,deslizandoentreaspedrasdassuastocas.

Emsuajaulailuminada,acobraverdependiaemfestõesgraciosos.SuaminúsculacabeçaondulouparaWenzl.Alínguarosadatremulouparafora.Wenzlparouuminstanteparaolhá-lacomprazer.

NaCasadosMamíferosTerrestreshaviaumamultidãoemtornodochiqueirodosrinocerontes,ondePrinzmetal estava dando uma injeção num deles. Ao terminar, pulou a grade e juntou-se a Wenzl,esfregandoassobrancelhascomumpano.

—Foibemsucedido?—perguntouWenzl.—Oh,achoquesim—concordouPrinzmetal,comsuavozsuaveemodesta.—Elevaificarbom.—Énecessárioqueelefiquebom.—Oh,ficará.Caminharam juntos em direção à saída, dobraram à direita e abriram uma porta onde se lia: "É

proibidaaentrada".Umguardamagro,decabeloslouros,vinhadepressanadireçãodeles,carregandoumbaldedepeixe.—Schildt,porquenãotemalimentadoosleõesmarinhos?—inquiriuseveramenteWenzl.

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—Jáestouindo,senhor!—retorquiuopobreguardaemposiçãodesentido.—Entãooqueestáesperando?Vá!—Sim,senhor!Wenzl,continuandoaandarao ladodePrinzmetal, tirouumpequenocadernodenotasdobolsodo

peitoecomumminúsculolápisdeprata,aguçadocomoumestilete,rabiscouumaminúsculaobservação.Prinzmetalfitou-ocomumsuaveolhocastanho,masnãofezcomentários.

—Vocêviuosjornais?—perguntouPrinzmetal,quandotomaramoelevador.—Sim—retrucouWenzl.Saíram.WenzlhesitouedepoisseguiuPrinzmetalatéolavatóriodossubalternos.—Quejornais,exatamente?—perguntou.Prinzmetal,surpreendido,ergueu-sedapiaondecomeçara

alavarasmãos.—Ora...esteaquinamesa.OZeitung.Naterceirapágina.ContaahistóriadeumbebêemBuenos

Airesqueentendetudooquevocêlhedisseremfrancês,espanholealemão.Comapenastrêsmesesdeidade.

—Li.—Eomaiscurioso...oquemechamouaatenção...—Équeaama-secafrancesadogarotosofreuumataquedeloucuraaomesmotempo—completou

Wenzl,comvozcortante.—Foi—dissePrinzmetal,interrompendoalavagemdasmãos.—Elaestáinconsciente—falouWenzl.—Está.— Não entende nada, tem de ser alimentada e só dá uns gritinhos infantis. Mas o bebê entende

francês,alemãoeespanhol.—Entãovocêleuojornal—falouPrinzmetal.—Evocê,viuistonoTageblatt?—perguntouWenzl,quasecomrelutância.Tirouumjornaldobrado

dobolsodopeitoeleu:"Umhomemesuamulher,naTasmânia,afirmam,cadaum,serooutro".—Ouvitambém,natelevisão,quequandoestavalançandoumapedrafundamentalemAberdeen,o

prefeitotransformou-senumagarotanua,quefugiuchorando—contouPrinzmetal.—Mas,quemsabeoqueessescarasinventameoqueéverdade?

—Supondoquetudoissopodeserverdade?—perguntouWenzl,dobrandoojornalcuidadosamenteepondo-odelado.

—Seriainteressante—observouPrinzmetal,voltandoaatençãoparasuasmaciasepeludasmãos,quecomeçouaesfregarcuidadosamente.

—É?—Énossodever relatar aoDiretor tudoque for de importância para o trabalhodoZôo— falou

Prinzmetal,comoserecitasseumalição.—Poroutrolado—dissedeliberadamenteWenzl—éinútilemesmodesastrosotomarotempodo

HerrDoktorcomescândalosjornalísticossembase.Osdoishomensseentreolharamporummomento,comardecompletoentendimento.—Afinaldecontas—comentouPrinzmetal,enxugandoasmãos—qualaimportânciadetudoisso?— Exatamente .— concordou Wenzl e dobrando seu jornal no sentido do comprimento, jogou-o

dentrodalatadelixo.Quandoorapazacordou,estavanumacamaestreitadeumasaladeazulejosbrancos.Fios,vindosde

foradacama,estavampresosnasuacabeça,braçosepernas,comapertadasataduraselásticas.Puxou-os,comirritação,masnãosesoltaram.

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Olhouaoredor.Viuumaportaaberta,masnenhumajanela.Aumcanto,portrásdeumbiomboquequaseaescondia,haviaumalatrina.Dooutrolado,umafrágilpoltronadeplásticoeumaluzparaleitura,masnadaparaler.

Orapaztentoulevantar-se,puxandoosfios,edescobriuquetinhamjuntasprateadasquepodiamseseparar.Saiudacama,arrastandoosfios.

Depoisdeummomento,umamulhercorpulenta,comuniformedeenfermeira,entrouebotoualínguaparaele.

—Depá,hem?Quemlhedissequepodia?—Queroiràlatrina—respondeuele,gemendo.—Estábem,váedepoisvolteparaacama.HerrDoktorHölderleinaindanãooexaminou.Parasuasurpresa,amulherparoudebraçoscruzadosemfrenteaeleeficouaolhá-lo,enquantoo

rapazusavaa latrina.Depois levou-oatéacamae fê-lodeitar-se,enquanto ligavaas juntasprateadasnovamenteaosfioseaoredordacama.

—Fiquequieto—ordenouela.—Nadadebobagens.Aquiestáacampainha...toque-aseprecisardealgumacoisa.

Mostrouaeleumaperaplásticanapontadeumfiaflexívelesaiu.—Euestoudoente?—gritoueleàssuascostas,masamulhernãovoltou.Orapaztentoumaisumaveztirarasataduraselásticas,masdesistiu.Suasúltimaslembrançaseram

confusas. Recordava-se vagamente da queda na rede, de ter sido agarrado e ter resistido. Então asensaçãodesercarregadoearápidavisãodemuitaspernascaminhando...depoisnada,atéseacharnominúsculoquartoladrilhadodebranco,combarrasnolugardaporta.Suasroupashaviamdesaparecido,eestavausandoumpijamacinza.Ninguématendeuaoseuchamado,atéquecomeçouabaternasbarras,com um jarro demetal que achou no quarto. Veio então um homem e esguichou água nele, com umamangueira.Entãodeixoudebater,massentou-seecomeçouatremer.

Lembrou-seaindadetercaídonosono,edeseterlevantadopelomenosduasvezesnaquelequarto.Numa das vezes deram-lhe comida. Depois dois homens vieram buscá-lo, lhe devolveram a roupanovamenteelhederamcafé,coisaqueelegostou.Levaram-noentãoatravésdeumlongocorredorparauma sala cheia de gente e lhe disseramque esperasse.No fundo da sala, por trás de um alto balcão,estava um homem com um manto vermelho e um chapéu desengonçado, também vermelho. O rapazdescobrira,assistindotelevisão,queaquelehomemeraumjuiz,equeeleiaserjulgado...

Agoraeleestavaemoutrolugar.Otempopassou.Orapazcomeçouaficarcomfome,masnãotinhacoragem de tocar a campainha. Por fim, um atendente apareceu com um carrinho e lhe foi permitidosentar e comer. Era quase como no Zôo. Então o atendente voltou para apanhar o prato e ligou-onovamenteaosfios.Durantemuitotemponadamaisaconteceu.

O rapaz estava perplexo. Por que se encontrava ali? O que o juiz e aquele outro homem tinhamcochichadolánofundodasalaeporqueojuizpareciatãoaborrecidoquandoolhouparaele?

Aquelelugareramelhorqueaprisão,nãotinhadequesequeixar.Mas,senãoestavadoente,porqueopuseramali?

Campainhassoavamdoladodefora.Ocasionalmente,passavampessoasrapidamentepelasuaporta,comsolasmaciasquesibilavamerangiamnosladrilhosdoassoalho.

Entãoaenfermeiratornouavoltar.—Vocêestácomsorte—informouela.—HerrDoktorHölderleindissequevocêpodeverHerr

DoktorBoehmerhoje.—Eladesligouosfioscombrusquidão,ajudando-oalevantar-se.—Venha,nãodeixeomédicoesperando.

Pegou-opelocotoveloe levou-oparaovestíbulo,ondemensagensem letrascoloridasondulavamsilenciosamentepelasparedes,edaíparaumescritório,ondeumhomemdebigodeestavasentadoatrásdeumaescrivaninha.Sobreelaumatabuletaquedizia:HrDr.Boehmer.

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Omédicomediuorapazlongamentecomumolharedesatarraxoulentamenteumtacrógrafoforademoda.

—Sente-se,porfavor.—Começouaescrevernumbloco.—Agora,podemedizerseunome?Orapazhesitousóummomento.Seeledissesse"Fritz",sabiamuitobemqueomandariamdevolta

aoZôo.—MartinNaumchik,HerrDoktor—respondeu.—Ocupação?—Jornalista.Omédicobalançouacabeçalentamente,escrevendo.—Eseuendereço?—Gastnerstrasse.—Quenúmero?Orapaztentoulembrar-se,masnãoconseguiu.ODr.Boehmerfranziuoslábiosgrossos.—Vocêpareceumpoucoconfuso.DesdequandovocêmoranesseapartamentoGastnerstrasse?Orapazmudoudeposiçãoconstrangido.—Achoquehádez...oumelhor,onzedias.—Vocênaverdadenãoselembra.DoktorBoehmerescreveualgumacoisadevagar, comsuagrossa letrapreta.O rapazolhou-ocom

apreensão.—Bem,vocêpoderiamedizerpelomenosadata?—Dezdejunho,HerrDoktor...outalvezonze.AsespessassobrancelhasdeBoehmerergueram-seimperceptivelmente.—ótimo.EpodemedizerqueméopresidentedoSupremoConselho?—HerrProfessorOnderdonck...estácerto?—Não,nãoestácerto.Foipresidentenoanopassado.Boehmerescreveualgumacoisalentamenteno

bloco.—Muitobem—cruzouosbraçosgrossossobreobloco,segurandooenormetacrógrafopretocomo

sefosseumcharuto.—Diga-me,lembra-sedeterestadonaloja?—Sim,HerrDoktor.—Edeter-seescondidoláemcima,descendoduranteodia?—Sim,HerrDoktor.—Eporquefaziaisso?Orapazhesitou,abrindoefechandoabocadiversasvezes.—Podedizer-me,HerrNaumchick.Prossiga.Porquefaziaisso?Orapazrespondeu,desanimado.—Porquenãotinhaparaondeir,HerrDoktor.Boehmerlentamentedescruzouosbraçosefezoutraanotaçãonobloco.Estendeuamãosemolhare

alcançouumasinetanocantodaescrivaninha.—Entendo.Muitobem,HerrNaumchik,amanhãàmesmahora,deacordo?—Sim,HerrDoktor.Aenfermeiraentrou,segurandoaportaaberta.Orapazlevantou-sedocumenteesaiu.—Odoutordissequevocêpodedormirsemosfiosestanoite—falouaenfermeiraasperamente,

quandovoltaram ao quarto.Respirando fortemente pelo nariz, ficou junto dele e começou a retirar asataduraselásticas.—Nãosetorça—disse.

—Estádoendo.—Bobagem, é só um instante. Pronto.—Enrolou as ataduras, amarrou os fios em torno delas e

virou-separasair.—Agoradeite-seedescanse.

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—Mas,enfermeira,porquetenhodeficaraqui?Estoudoente?—perguntouorapaz.Elavoltou-seeolhou-orapidamente.—Éclaroqueestádoente.Masestámelhorandomuito.Agoradescanse.Egingouparafora.Muitotempodepoischegouojantaretambémpílulasparatomar.Quandoacordou,haviaamanhecido

novamente.—Boas notícias!— gritou a enfermeira, entrando para ajeitar os travesseiros.—Você tem uma

visitahoje.—Tenho?—perguntouorapaz.Ocoraçãodelecomeçouabatermaisdepressa.Nãoconseguiaimaginarquempoderiaser.Alguém

doZoológico?—Umasenhorita—disseaenfermeiramaliciosamente.—Comosechama?Nãoconheçonenhumasenhorita.—Hátempoparatudo.Tomeseucaféagora,depoisobarbeiroviráaprontá-loeentãopoderáver

suaamiga.Saiu.Orapazesfregouamãonapenugemquecresciaemseuqueixoefaces.Sabiaoqueerabarbear-

se,masnãocomoerafeito.Deviaserbombarbear-se.Obarbeirochegoudepoisdocafé.Eraumhomembaixoemorenovestidodebranco,queligouum

aparelhozumbidornaparedeecomeçouapassá-lonascosteletasdorapazcomexpressãodeenfado.Aprincípio repuxavaedoía,mas logo sentiu-semelhor e finalmenteospêlosdesapareceram todos.Suapeleparoudecocareficoudeliciosamentesuaveaotoque.

Esperou com impaciência.Um ajudante entrou e deu-lhe um pente. Penteou várias vezes o cabelodiantedoespelho,atéacharqueestavabem.

Então teve de esperarmais. Por fim a enfermeira entrou novamente, examinou-o com ar crítico edisse:

—Muitobem!Siga-me!Levou-oparaumapequenasalacomjanelas,quasevaziaeclara,comcadeirasestofadaserevistas

numamesinha.Havia nela umamulher vestida de azul.Um homem de roupa branca estava de pé umpouco atrás dela. Olhando de um para outro, o rapaz reconheceu o Herr Doktor Boeh-er quaseimediatamente,massópercebeuquemeraamulherquandoestadeuumpassoàfrente.Eraamulherdaloja,aqueoesbofeteara.

—Oh,meupobreMartin,queaconteceucomvocê?—lamentou-seela,estendendoosbraços.Orapazrecuou,nervoso.—Disseramqueestoudoente—murmurou,olhando-adeperto.—Reconheceentãoseujovemamigo,FrauSchorr?—interrogouomédicoamavelmente.—Elenãoselembrademim—respondeuamulhercomvozfirme.—MaséMartin,claroqueé

Martin.—Easenhoraé...Amulhermordeuoslábios.—Irmãdele.Seráquepodereilevá-locomigo,HerrDoktor?Queacha?—Issodependedemuitas coisas,FrauSchorr— respondeuomédico, severamente.—Venhaao

meuescritórioquandoterminarediscutiremosdetalhadamente.—Sim,voujá—respondeu.Voltou-separaorapaz.—Martin,vocêgostariadeircomigo?Elehesitou.Eraverdadequeelanãoparecia tãoentusiasmadacomoantes,masquemsabequando

estariadispostaoutravez?—Iremboradaqui?—insistiuela.Orapazresolveu-se.

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—Sim,porfavor,gostaria.Elasorriuparaeleevirou-separaomédico.—Muitobem,HerrDoktor,jáestouàsuadisposição.Atébreve,Martin...Saíramambos.Aenfermeiraentroulogoparalevá-lodevoltaaoseuquarto.Então,emboraorapazesperassecomansiedade,nadaaconteceuanãoseroalmoço.Depoisquea

refeiçãoterminou,esperouainda,começandoairritar-se,masotempopassoueninguémveio.Oatendentetrouxeojantar.Começouaficarassustado.Esealgumacoisaestivesseerradaeamulher

nãovoltassemais?Aenfermeiranãorespondiasuasperguntas,masficavarepetindocoisasidiotascomo:—Espereeverá.Nãosejatãoimpaciente.Porqueestácomtantapressa?Deu-lhepílulasparatomar,insistindoemligaroutravezosfios.Quandoacordoueradianovamente.—Boasnovas!—gritouaenfermeiraalegremente,entrandonoquarto.—Vãodispensá-lohoje!—Vãomesmo?—perguntouorapaz,ansioso.Tentoupulardacama,masfoi impedido.—Queo

diabooscarregue!—gritou,furiosocomosfios.—Enfermeira,querominhasroupas!—Quegênio!Quegênio!—disseela,erguendoosbraçosefingindodesânimo.—Nãopodeesperar

atédepoisdocafé?Queimpaciência!Desligouosfioseretirou-osdacama.—Apressaéinimigadaperfeição—continuouela.—Vamos,lave-se.Tudoaseutempo.Saiuapressada.Orapazselavouepenteouocabelonovamente.Eraduroficarsentadoesperando.Ocaféveioeele

comeuumpouco,pensando:"Agoraeladeveestarchegando".Massepassarammaisalgumashorasdamesmamaneirainfindáveldeantes.Queteriasaídoerrado?

Plantou-senasoleiradaporta,esperandoaenfermeira.Elafinalmenteapareceu.Segurouamãodela.—Enfermeira,quandovãomelevardaqui?—Logo,logo—respondeu,passandoporele.—Vápentearseucabelo.Nãosepreocupe.Nãovai

demorarmuito.—Mas,vocêdissequeseriahojedemanhã!—gritouorapaz.Nãoadiantou.Elasefora.Depoisdeterficadosentadodurantemuitotempoolhandoperdidamenteparaochão,umatendente

entrou.—Seucabeloestáumpavor—disse.Oatendentetinhaocabelocuidadosamenteondulado,brilhandodeóleo.—Useomeupente,tome—disse.—Quandovãomedeixarsairdaqui?—Nãosei.Breve—disseoatendentecomindiferençaeafastou-se.Chegou a hora do almoço.Agora o rapaz compreendeu que tudo não passava de uma brincadeira

cruel.Ficoudeitadonacama,semtocarnosalimentos.Ouviubateremnaporta.Oajudanteentrou, empurrandoumcarrinhodemetal comalgumas roupas

penduradas.Olhando incredulamente, o jovem reconheceu as calças e o sobretudoqueusava antes deentrarali.Ocasacoestavarasgadodoladoeamangamanchadacomumamassagrossafedorenta.

—Vistaisto—disseoatendente.—Ordens.Retirou-se.O rapazvestiu-sedesajeitadamente.Ocoraçãobatia acelerado e tinhadificuldade emdescobrir o

ladocertodascoisas.Conseguiufinalmentesevestirepenteouocabelocomcuidadomaisumavez.Então esperou. Passos iam e vinham apressadamente no corredor. Pessoas de blusas brancas

passavam e tornavam a passar. Uma campainha soou e um menino de camisolão púrpura passoucarregandoumavela num recipiente de vidro, seguido por umhomemde roupa escura, cabeça baixa,

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murmurandoalgumacoisaparasimesmo.Acampainhaecoounadistância.Ouviuumagargalhadaemalgumlugarnãomuitolongedali.—Bem,vocêsabeoqueeutivededizeraele!—exclamouumavigorosavozdehomem.Então, duas vozes começaram a falar ao mesmo tempo, em tom baixo, e o jovem não conseguiu

entendermaisnada.Passosseaproximaramnovamentedaporta.Umamulherentrou.

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XAPRINCÍPIONÃOPERCEBEUqueeraFrauSchorr.Estavamaisformalmentevestidaquenodia

anterior,comumaexageradasaiarodada,quelheocultavaasformasdocorpo.Estavapálida,nervosa,enãooencarou.

—Martin,elesprometeramdar-lhealtaàsnoveetrintadestamanhã—foidizendo—eagorasãoquase...

—MadameSchorr—interrompeuoatendente,pondoacabeçanaporta,—estãopedindoquedesçaatéoescritórioimediatamente.

—Oh!meuDeus—disseamulhere,virando-se,foiemboraoutravez.Orapazesperou.PorfimFrauSchorrentrou,andandoapressadamente.Destavezpareciaexuberante

eenérgica.—Venhadepressa—falou,pegando-lheobraço—antesqueelesmudemdeidéia.—Possoir?—perguntouele.—Sim,estátudoacertado.Depressa!Ela levou-o para o corredor branco, passando pelas letras piscantes da parede.Havia vasos com

plantasemcadainterseçãodecorredores:sempreamesmaplanta,combrilhantesfolhaspontiagudas.Entraram num elevador veloz, idêntico ao que o rapaz vira na loja. Abriu-se para eles, estalou

fechandoecomumaquedaatordoanteestavamsendoarremessadosparabaixo.Outraquedanadireçãocontrária, um estalo e se viramparados emumgrande vestíbulo de ladrilhos cinzentos, com enormesjanelasdevidroclaro,atravésdasquaisorapazpôdeveratorrecentraldaFlugbahn,brilhandoàluzdosolcontraocéudeumazulpuro.

—Depressa!—disseamulher,levando-oparaoutroelevador.Esteeraemespiral.Caíramporumtubodevidro,passaramaprincípioporparedesescurasedepois

impetuosamenteparaaluzdodia.Oqueaconteceracomoedifício?Ojovemestendeuopescoçoeviuo titânicoblocodealvenaria

desapareceracimadesuacabeça.Tinhamemergidodofundodohospital,queerasustentadonoespaçopor pernas de cimento.Ao redor, um viçoso gramado verde e jardins floridos.Apenas outro edifíciopodiaservistoàdistância:umúnicoblocodespretensiosamenteentalhadoempedrarosada,semjanelasouentradasvisíveis.Além,ostetosdealgunsprédiosseerguiamacimadotopodasárvores.

Oelevadormergulhounosolosemparareumminutodepoisestavamnumtúnelsubterrâneobranco,fracamente iluminado.Aodeixaremoelevador,umcarroovalaproximou-sesobreduasgrossasrodas.Paroueotetotransparentegirou,abrindo-se.Nãotinhamotorista.

Orapazencolheu-se,masFrauSchorrinsistiuparaqueentrasse.Sentaram-senasalmofadasfofas.Otetohesitou,desceulentamenteefechou-secomumestalo.FrauSchorrinclinou-separaafrente.

—Leve-nosasaídadaFiedlerPlatz,porfavor.Depoisdeumapausa,umavozmecânicafaloupelagradeàfrentedeles:

—Sãodoismarcosedez,porfavor.Amulherprocurounabolsa,achouumanotaecolocou-anafendajuntoàgrade.—Obrigado—disseavoz.Algumas moedas tilintaram num recipiente de metal. A mulher recolheu-as cuidadosamente e

guardou-as,enquantoocarrosepunhaemmovimento.Não pareciam estar andando em grande velocidade, mas o rapaz sentiu-se espremido contra as

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almofadaseasluzesbrancasdotúnelpiscavamcomatordoanterapidez.Outroscarroseramvisíveisatrásenafrente.Otúnelbifurcou-se.Oramalàesquerdadesciaeoa

direita subia. O carro deles dobrou à esquerda, sem perder velocidade. Numa segunda bifurcação,viraramàdireita,tornandoasubir.

Ocarrodeslizouparaumaparadaao ladodeumelevador idênticoaoquehaviam tomadoquandosaíramdohospital.Otetoseabriuoutravez.

Meioatordoadopelavelocidadeexcessiva,orapazseguiuamulheratéoelevador.Quandoocarrosubiu pelo tubo, outro carro, com dois homens e uma criança, passou girando para baixo na contra-espiral.Orapazsentiuoestômagoembrulhadoaovê-losefechouosolhos.

Maisumavezseencontravamnasuperfície.Aruaestavafriaecheiadesombrasazuladas,masacima

desuascabeçasosolaindaaqueciaasfachadas.Pegando-lheobraçonovamente,amulherlevouorapazpelacalçadavaziaatéumadasentradas,naqualeleviuonúmero"109"emletrasprateadas.

Elaparounovestíbulo,levandoamãoenluvadaàboca.—Vocêtemachave?—indagou.—Chave?—Orapazexplorouosbolsos,tirandoumachavepresaaumarodourado.—Éesta?Amulherapanhou-acomalívio.—Sim,tenhocerteza.Venha.Entraramemoutroelevador,destavezumverticalcomum,eamulherfaloujuntoàgrade:—Três.Saltaramnumestreitocorredoratapetadodebegeeverde.FrauSchorrdirigiu-sediretamenteparaa

portanúmero3C,abrindo-acomachave.Dentro,foramenvolvidosporumameia-luzesverdeada.Oquartoerapequeno,comumacamaestreita,umamesacommaterialparafazercaféeumamáquina

deescreversobreumaescrivaninha.Nãohaviapó,masoarestavacheirandoamofo.Amulher foiatéa janela,correuascortinasedeixouentraro sol.Apertouumbotãonopainelde

comandosobreacamaeimediatamenteumarfrescocomeçouasussurrarpelasala.—Bem,aquiestávocê,afinal!—exclamoualegrementeamulher.—Noseuquartinho...—fezuma

pausa.—Mas,vocênãoselembradissotambém?Orapazestavaolhandoemvolta.Nuncaviraaquelequartoantesenãoseimportavamuito.—Nãoháumaparelhodetelevisãoaqui?—perguntou.Amulherobservou-oummomento,depois foi atéo painelde comandoe apertououtrobotão.Um

quadro na parede abriu-se e dobrou-se para trás, deixando ver a tela de um aparelho de TV queimediatamentecomeçouafuncionar.Orostosorridentedeumhomempulouparaeles,gigantesco,voraz,enquantoagargalhadasaíareboantedaparede.Então,osommorreueorostodebocaabertaencolheuedesapareceu,quandoamulhermexeunovamentenoscomandos.

Asduasmetadesdoquadropularam,bateramevoltaramasejuntar.—Quefoi?—indagouamulher.—Eunãosabiaoqueiaacontecer—respondeuorapaz,estremecendo.Elaencarou-opensativamente.—Entendo—colocouaspontasdosdedosenluvadossobreoslábios.—Martin,vocêsabequeeste

éoseuquarto.Nãofazvocêserecordardenada?Acheiquetalvezquandovocêovisse...masnão.Achomelhorvocênãoficaraqui,Martin.Venha,ajude-me.

Foivivamenteatéaparedeoposta,fezdeslizarum.paineleapanhouduasmalas.Abriu-assobreacama,voltouaatravessaroquarto,puxouumagavetanaparedeeseparouumapilhaderoupas.

—Tomeistoaqui—Atirouasroupasnosbraçosdele.—Ponhatudosobreacama,queeuarrumoasmalasdepois.

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—Masondevamos?—perguntouele,carregando,,obedientemente,seufardoatravésdoquarto.—Paraomeuapartamento—disseela.Apanhouasroupas,dobrou-ascuidadosamenteecomeçouametê-lasaocompridonasduasmalas.—Váeapanhemais.O rapaz voltou e abriu outra gaveta abaixo da primeira. Só havia meias nela. Levou-as

obedientementeparaacama.—EseFrauBiefeldernãogostardisto,que sufoque!—disseamulher, colocandoascamisasna

mala,commovimentosbruscosezangados.Sementender,orapazfaziaoqueelamandava.Todasasroupas,inclusivedoisconjuntosdecapase

sobretudo, foram parar na grande mala. A menor, chata e estreita, foi enchida com os papéis daescrivaninha. Frau Schorr apanhou, então, as duasmalas e o rapaz carregou amáquina dentro de suaprópria maleta. Desceram outra vez pelo elevador, saíram para a rua, entraram em outro elevador etomaramumtáxiigualaoqueostrouxeraatéali.

Destavez,chegaramaumaruamaismovimentada.Carregandoasmalas,atravessaram-na,passandoporumgrupodegarotasquepasseavam,porumrapazaltocomumamonocicletaeporumvendedordeflores.

Havialojasdecadaladocominteressantesobjetosexpostosnasvitrines,porémFrauSchorrnãoodeixouparar.Dobraramaprimeira esquina à esquerda e entraramnumprédio com fachadadepedrasazuis.Umavelhasenhoradecabelosbrancos,comorostocheioderugas,estavasentadanaentrada.

—Boatarde,FrauBiefelder—disseFrauSchorrcerimoniosamente.Amulhernãorespondeu,masolhou-oscomosolhosminúsculoseorladosdevermelho.—Éatébomparaelalevarumsustodevezemquando—murmurouFrauSchorr,quandosemeteram

noelevador.Pareciaangustiada.Orapazgostariadepoderajudá-la,porémnãosabiaqualeraoproblema.Assim,

nadadisse.Emcima,ovestíbuloerapequeno,comapenasduasportaslaqueadasdevermelho.—Chegamos,enfim!—disseamulheranimadamente,abrindoaprimeira.Entraramnumasalaclaraeconfortável,comtapeteseestofosdecoresbrilhantes.Aoentrarem,uma

gatinha amarela pulou do banco sob a janela e foi na direção deles, com os olhinhos azul-clarosbrilhandonofocinhoinescrutável.

Orapazolhou-asurpreso.Nuncaantesviraumagatadoméstica,excetoemfotografias.SóaquelesanimaisenormesdoZoológicoeassimmesmodeumacertadistância.

—Ébravo?—perguntou.—Maggie?—indagouamulher,confusa.—Vocêquerdizeroquê?Parouparapegar agata,queolhavao rapazcomo lomboarqueadoemiandobaixinho.Quandoa

mulheraergueu,agataficoupenduradanamãodelacomoumapele.Depoisretorceu-seepulouparaochão.

Omiadocresceu.Agataestavatodaarrepiada.—Oh!querida!—exclamouamulher.—Maggie,vocênãolembradeMartin?—Voltou-separaele,

desconcertada.—Elaestáaborrecida.Sente-se,querido,tudovaidarcerto.Tireosobretudoedescanseumpouco.Vocêterácaféesanduíchesnuminstante.

Agataavançoucomfirmeza,masamulherempurrou-acomopé.Comumguinchoderaiva,oanimalfoienroscar-senovamentenobancodajanela.Seusolhosazuissefecharam,masacadavezqueorapazfaziaummovimento,arregalavam-seesuabocaabria-senumsorrisodedentesafiados.

—Nãoconsigoimaginaroquehácomela—disseFrauSchorr,dooutroquarto.—Éumacriaturamuitoafetuosaesempregostoudevocê,Martin.

Querendoolharumquadronaparedeoposta,orapazdeuumoudoispassosnadireçãodele,vigiando

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agatacomocantodoolho.Oanimaldevolveu-lheoolhar,fazendobaixinhoumruídosibilante,masnãosemoveu.Encorajado,

orapazatravessouasalaeolhouparaoquadrodeperto,masnãoconseguiuentenderoquerepresentava.Voltou-se,perplexo,exatamenteno instanteemquealgo roliçoebranco-sujoapareceunaporta.A

coisafitou-ocomosolhinhosvermelhosechiou.Asalivaescorriadoslábiosdasuaimensabocaabertae duas presas descoloridas surgiram na mandíbula inferior. Encarou o rapaz por um momento comespanto. Depois, o pêlo branco-acinzentado das suas costas se eriçou e o animal rosnouameaçadoramente. O rapaz levantou a mão. O animal pôs-se a latir, pulando na soleira, com olhosesbugalhadosecongestionadosdelouco.

Orapazrecuouomaisquepôde.—Churchill!—gritouamulhernacozinha.Ocãovoltouacabeçanadireçãodavozmascontinuoua

latir.—Churchill!—gritououtravezerapidamenteentrounasala,enxugandoasmãosnoavental.—Que

vergonha!—disse,olhandoparaorapaz.—Churchill,quehouvecomvocê?Olatidocontinuou.—Entãotoma!—disseamulher,batendocomapalmadamãonofocinhodoanimalenfurecido.Oanimalsoluçou,balançouacabeçaefixou-acomumaexpressãodesurpresa.Latiumaisumavez.

Amulhertornouabater-lhe,masdestavezmaisgentilmente.—Não,Churchill...quevergonha!EsteéMartin,nãolembra?Elehaviaesquecidovocê—disseela,

sedesculpandoporcimadoombro.—Vamos,Churchill,volteparaseutapete.Vá,seucachorromau!Empurrou o cão pela porta. O bicho recuou com firmeza e depois se voltou relutantemente e

desapareceu,rosnandoefarejando.Ouviu-seumúltimolatidonocompartimentoaolado.—Oh,querido—disseamulher.—Sintomuito,Martin.Comlicençauminstante...ocafé.Elavoltouparaacozinhaeorapaz,ligeiramenteenervado,começouaandardeumladoparaooutro

entreasestantesbaixas,lendoostítulosdoslivros.Nocantomais afastadoda sala,viuuma frágilgaiolapresaaumsuportedecobrebrilhante.Uma

toalha bege a cobria. Curioso, suspendeu a ponta da toalha e olhou para dentro.Na obscuridade, umpassarinho de plumas verdes e violetas estava empoleirado numa miniatura de trapézio. Seu olho,douradocomoumacabeçadealfinete,piscouparaorapaz.Acriaturadisse:

—Weep!Orapazbaixounovamenteacoberta."ExatamentecomonoZoológico",pensou.Amulhervoltoualvoroçada,comumabandejanasmãos.Nelahaviasanduíchesecafé.Colocoua

bandejanamesadefrontedosofá.—Agoravenhacomer,Martin,vocêdeveestarfaminto.Elafê-losentar-senosofáeenquantoeleobedientementecomiaossanduíchesebebiaocafé,sentou-

se à sua frente, napoltrona estofada, comasmãos crispadasnosbraços, sorrindo levemente aovê-locomer.Seurostoestavacoradopeloesforço.

Algumasmechasdocabeloescuroescapavamdopenteado,caindo-lhesobreatesta.—Isso,coma,fazbem—disse.—Gostariadeouvirmúsica,Martin?Orapazconcordoucomabocacheia.Amulherlevantou-se,dirigiu-separaumaparelhoaumcantoe

apertoualgunsbotões.Logodepoisoaparelhocomeçouaproduzirmúsica,lentaesuave,tocadaporumaorquestracommuitosviolinos.Orapazouviacomprazer,mastigandoseusanduíche.

Amulhersuspirouedepoissorriu.—Não,vocênãoselembra,nãoé?—perguntou.—Lembraroquê?—Amúsica.Nóscostumávamosfreqüentementetocá-la...nãoimporta.

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Foiatéoaparelhoemexeunele.Amúsicaparou.—Masémesmoverdade,então,quevocênãoselembradenada?—Achoquemelembro—disseorapaz,mentindocautelosamente.—Vocêéminhairmã...—Não!—retrucouamulher,comveemência.—Issonãoéverdade.Vocênãoselembra.Suabocasecomprimiueseusolhossefecharam.—Masentãoporquedisseaomédicoqueeraminhairmã?—perguntouorapaz,perplexo.—Porqueeuprecisavasermembrodasuafamíliaounãometeriamdeixadotirá-lodelá.Orapazengoliu,pensandonaquilo.Pôsosanduíchedelado.—Mas,sevocênãoéminhairmã...—Sim?—Entãoquemévocê?Orostodamulherseruborizoueeladesviouoolhar.—Nãointeressa,Martin...apenasamigos.Somosapenasamigos.Levantou-seeficoudepéummomento.—Comeu bastante,Martin?Quer bolo?Não?Outra xícara de café? ... Bem, então deixe-me ver:

gostariadejogarumapartidadexadrez?Gostaria?Virou-se para o armário atrás dela, tirou uma mesinha de armar com um tabuleiro de xadrez

incrustadoeumacaixadepeças.—Nãoseiseaindasoubom—disseorapaz,olhandoansiosoessespreparativos.—Nuncajoguei

deverdadecomninguém.SóresolviaosproblemasnosjornaisdeHamburgo...Amulherestavaolhandoparaeledemaneiraestranha,comamãopousadasobreacaixadepeças.—NosjornaisdeHamburgo?—repetiu.—Eu...querodizer...—falouorapaz,percebendoquetinhafeitoumabesteira.—Masissoonde?Naloja?—indagouela.—Naloja,sim—disseorapazaliviado.—Sabe,encontreialguns jornais láemcima...ondeeu

dormia...eparapassarotempo...—Oh,claro.Entendo.—Elaacaboudecolocaraspeçasno tabuleiro.—Maséestranhoqueos

jornaisfossemdeHamburgo.—Sim,muitoestranho,não?—Bem.Elapegouduaspeças,umadecadacor,comasduasmãos.Levouasmãosàscostas,eapresentou-lhe

ospunhosfechados:—Escolha.Orapaztocou-lheamãoesquerda.Elaabriu-a,mostrandoumpiãobranco.— Que sorte— disse alegremente, empurrando as peças brancas na direção dele. — Passe-me

aquelescigarros,sim,Martin?Ele seguiu o olhar da mulher. Não havia nada sobre a mesinha baixa ao lado dele, além de um

cinzeiroeumacaixaesmaltada.Correuatampa:correto,haviacigarrosdentro.Elaapanhouum,acendeu-ocomominúsculoisqueirodequartzorosadoejogouacabeçaparatrás,

paraexpelirumalongabaforada.Comamãoesquerda,colocavadistraídaaspeçaspretasnoslugares.—Nãoquerum?—perguntou.Orapazolhouduvidosoparaoscilindrosbrancos.Nuncahaviatentadofumarumcigarro,masera,

semdúvida,umadascoisasqueprecisavaaprender.Levouumdesajeitadamenteaoslábios,retirou-onovamente,olhou-o,colocou-ooutraveznabocae

tocouaoutraextremidadecomoisqueiro.Deuumatragadacautelosamente.Ocigarroseinflamou.Umafumaça fria e amarga encheu sua boca. Antes de perceber o que estava acontecendo, enviou certaquantidadedelaaospulmões,oqueachouespantosamentebom.Deuoutratragada.Constatoucomgrande

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satisfação, que o fumo era, de certa maneira, um apaziguador dos constantes sofrimentos que vinhasentindootempotodo,desdequesaíradoZôo.

—Comoégostoso!—exclamou,olhandoocilindroincandescente.Osolhosdamulherencheram-sedelágrimas.Inclinou-separaafrenteeencostouseurostonodele.

Envolveu-onumabraço,convulsivamente.—Oh,querido,vocêhaviaesquecidoistotambém?—disse,chorando.

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XIOBÍPEDEACORDOU.Oquartoestavainundadopelatransparenteeincolorluzdamanhã.Saiudacama,

devagar,estalandoasmandíbulas.Quediaera?Nãoconseguiaselembrar.Mas,afinal,queimportânciatinha?

PodiaouvirEmma,noescritórioaolado,jábatendonaortomáquina.Obípedebebeuumcopod'águaeolhouparaasaladafrente—nãohavianinguémnagrade,oZôonãoabriatãocedo—entãofoiparaaoutrasalaesentou-senasuaescrivaninha.

A cesta estava cheia de trabalhoquenão terminara na véspera,mas eram só impressos contábeis.Haviamuitonãolhedavamoutracoisaparadatilografar.Pegouafolhadecimaetornouapô-lanolugar,semmesmotentarlê-la:eratrabalhodemais.

Afêmeadissequalquercoisaemvozbaixa.Surpresoaovê-lafalar,nãoouviuaspalavras.—Oque?Elarepetiu,semseinterromperoulevantarosolhosdotrabalho:—Vocêachaqueéaúnicapessoainfeliz?Eunãoacho.Obípedeolhouembasbacadoparaela.—Quequerdizercomisso?—Outrostambémtêmumavidadifícil.Retirouafolhahabilmentedamáquinaejuntou-aaomonteaoladodela.Colocououtrafolha,ajustou-

aecomeçouadatilografarnovamente.Obípedesentiu-sevagamenteinsultado.Rosnou.—Quesabevocêarespeito?Antesqueelapudesseresponder,aportaexternabateu.Emmaparoudetrabalhar.Viraram-seambos

eviramOttoentrarcomseucarrinho.—Café—disseohomem,grosseiro—Peguem,comamenãomefaçamperdertempo.AtirouumacestadetrabalhonaescrivaninhadobípedeeoutranadeEmma.Piscandoderaiva,obípedeapanhouseupratocobertoelevou-oparaoquarto.Quequeriaaquelacriaturadizer?Quemeraelaparalhefalardaquelamaneira?Suaraivacresceu.Malpôdecomer.Deixoudeladoopratopelametadeevoltouaoescritório.Emma

nãoestavalá.Andou sem objetivo por algum tempo, chutando os ladrilhos cinzentos. Ali estava amarca quase

invisívelqueGrücktraçaracomgizatravésdasala.Queironiaparaele!Fizera-oparaprotegerEmmacontraele,comosefosseumaespéciedeanimal,quandonarealidadeerajustamenteocontrário.

Escutouumbarulhoevoltou-separaverafêmeasaindodoquarto.Elaparou.Suasmãoscobriramocalombodatesta.

—Olheaqui,Emma—começouobípede,umtantoindeciso.—Vocêestánomeuladodasala—pipilouela.—Ora,esqueçaisso!Queimportânciatemagora?—Obípedeavançouumpassonadireçãodela,

ficandomais excitado.—Veja bem, Emma, só porque você passou toda a sua vida num Zoológico,suponhoquevocêacha...

Elamurmuroualgoerecuouparatrásdasuaescrivaninha.—Quefoi?—perguntouobípede,irritado.—Falealto.—EudissequenãopasseitodaaminhavidanumZôo.Afêmeacolocouosauriculares,pôsopapel

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namáquinaecomeçouabater.—Bem,talveznãonesteZoológico,masvocênasceuemalgumZoológico,não?Emmaergueuosolhos.— Nasci no Planeta Brecht. Eles chegaram, me pegaram e me trouxeram para cá quando eu era

criança.Recomeçouadatilografar.Obípedesentiuquefizeraalgumacoisaerrada.—Bem,éclaroquetudoissoémuitoruim,etc,masnãopercebeadiferença?—Começouafalar

commais veemência, entusiasmando-se pelo assunto.—Oh,meuDeus, eu pensava que era bastanteevidente.Deumladoestávocê,umanimalquepassouamaiorpartedavidanumZôoounoutro.Jáestáacostumada,vivebemassim.Dooutroeu,umhomemencerradonocorpodeumanimal,mantidopresonumajaulafedorentaumdiaapósoutro!

Enquantofalava,afêmeaparoudetrabalhareestavaagoraquieta,olhandoparaostrêsdedosdamãosobreoteclado.

Passadoummomento,levantou-sedesuacadeiraepassouporele.Seusolhosestavamfechados.Obípedeviuquesuagargantaseagitavaconvulsivamente.

—Oh,não,espereuminstante—disseele,chocado.Elacontinuouaandar.Achandoumamesaemseucaminho,rodeou-a,tateando,comosolhosaindafechados.

—Oh,Emma—disseobípede—nãoquisferirseussentimentos.Defato,euexagerei.Nãoquisdizerqueajaulaestárealmentefedendo.Foiapenasummododemeexprimir.

Afêmeadesapareceunoquartodela.Irritadonovamente,obípedeseguiu-aatéaporta.—Saia,Emma!—gritou.—Jánão lhepedi desculpas?Emmanão respondeu.Emboraobípede

permanecessemal-humoradodurantehorasnoescritório,elanãosaiudurantetodaamanhã.—Mas diga-me— perguntou Neumann, na hora do almoço, sob as luzes coloridas emóveis da

rotunda—comtodaasinceridade,meucaroGrück,qualéaverdadenestahistóriatoda?Vocêsesaiutãohabilmente,queaindaestouconfuso.Obípedeé,realmente,esseHerrMartinNaumchikounão?

HerrDoktorGrückdeixouafacaeogarfo.Seusolhosficaramsériosportrásdosóculossemaros.—MeucaroNeumann—disselentamente—queimportânciatemisso?Emqualquerdoscasos,o

resultadoéexatamenteomesmo:continuamos,comoantes,comdoisbípedes.Ummachoeumafêmea.—Maseseomachoeraumserhumanoantes?—Mas é um bípede agora.— O bom doutor levou à boca um pedaço de salsicha de fígado e

mastigouvigorosamente.—Seeutivealgumméritonestaquestão,senhores,oqueéverdade,permitam-medizerqueeudevoempartemeusucessoàexcelentecooperaçãodaminhaequipe...

—Muitomodesto—murmurouNeumann.—Demodoalgum!—exclamouoDr.Grückalegremente.—Masse,eeudouênfaseaestese,me

doualgumcrédito,éprecisamenteporqueeusozinhopercebiumpequenofatodesdeoinício.QuemouoqueonossoFritzfoi,antes,nãotemamenorconseqüência.Sefôssemosacreditarnoshindus,onossoWenzlpodetersidoumbesouroemoutraencarnação.

Grückfezumapausaparadeixarorisoacalmar.—Masistonãofazdiferença.Besouroounão,nestemomentoeleéWenzl.NossoWenzlcompreende

isso, tenho a certeza.Mas quanto ao nosso Fritz, não entendeu isso até agora.Mas quando entender,acreditem-me,vocêsirãoverumanimalmaissaudávelefeliz.

Um guarda jovem e desajeitado apareceu ao lado dele, estendendo um pacote. Grück voltou-se,aborrecido.

—Sim?Oqueéisto?—Desculpe, HerrDoktor— disse o rapaz, enrubescendo e gaguejando,mas Freda, ou seja, sua

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ilustresecretária,pediu-meparaentregar-lheistodiretamente.Disse-mequeosenhorquereriaveristologo.

Grückrecebeuoembrulhocomumcômicosacudirdeombroseolhouemvoltaparaoscompanheiroscomo a dizer: "Vejam como é a minha vida!". Virou o volume uma ou duas vezes, examinando asinscrições.

Imediatamentedenotouumvivointeresse.— Pela nave de Xi Bootes Alpha! De Purser Bang! Com licença, senhores, isto é mesmomuito

importante.Começouarasgaroinvólucrocomimpaciência.Dentro,haviaummaçodepapéis.Grückexaminoua

primeirafolhacomatenção.—Sim,éorelatóriodogrupodepesquisadoPlanetaBrecht.Agorairemosdescobriralgumacoisa.

Virouumapáginaedepoisoutra.—Elesdissecaramtrêsbípedes,ummachoeduasfêmeas...Ficoulendoemsilêncio.Ummomentodepoisseuqueixocaiudesurpresa.Ergueuosolhosparaas

fisionomiascuriosasaoredordamesa.—Mas...aquidizqueosmachoseramfêmeaseasfêmeaserammachos!—Grückfranziuocenho.

—Mas,éimpossível!—murmurou.—Oquefoiquedisse?—indagouNeumann.—Asfêmeaserammachoseosmachosfêmeas?Isso

nãofazsentido,HerrDoktor.Seriameleshermafroditas?Entãoporquenãodizem?—Não...não...—respondeuGrück,distraído,continuandoaler.—MeusDeus,cometemosumerro

grave!Vejamsóoquedizaqui!—levantouumafolhaeapontouumdosparágrafos,comogrossodedotrêmulo.

Neumannapanhouopapel,colocou-osobaluz,eleudevagar:—"Asglândulasinguinais,consideradas,aprincípio,gônadasmasculinas,nãoapresentaramconexão

com o sistema reprodutivo e sua função permanece ignorada. Levantaram a hipótese de que seriamapenas órgãos de exibição, análogos aos esporões e cristas dos gaios terrestres.No entanto, deve-seacentuar novamente que o portador desses órgãos é a fêmea e não omacho da espécie. É ela quemcarregaofeto,emumsacoplacentário,eodáàluz.Afecundação,porém,éfeitaporummétodobastanteincomum. Os gametas masculinos são carregados no órgão vermelho-púrpura que trazem na fronte eaparecememformadesenvolvidasónomachoadulto.Duranteocio,afêmea..."Grück,ouçaisto...

Fritz eEmmaestavam sentados lado a ladono catre doquarto internodela:Emma, tensa, comasmãos apertadas sobre o calombo, o bípede inclinado para ela, com o braço ao redor de seu corpo,falandoseriamenteaoseuouvido.

—Vocêsabe,Emma,queeunãoqueriafazer-lhemal.Vocêmeacredita,não?—Nãoéisso—respondeuela,comvozabafada.—Éamaneiracomotodosmetratam:comoseeu

fosseapenasumanimal.Elesdizemqueeunãosouhumanaepor issoachamqueédireitomanter-menuma jauladurante toda avida.—Ergueuosolhos.—Masoque é ser-sehumano?Eupenso, tenhosentimentos,falo.Atébatoascartasparaeleseaindanãoébastante.—Seucorpodelgadotremia.—Éhorrívelouvi-losfalarameurespeitocomoseeufosseumacriaturaquehãofalaououve.Mas,quandovocê...

—Emma,por favor,não—pediuobípede, tomadode ternurae remorso.—Claroquevocê temrazão:vocêéhumanacomoqualquerumdeles.Queimportasevocêtemumaaparênciadiferente?Éamentequeestáaídentro,aalmaqueconta,nãoé?Porqueelesnãoentendem?

Emmavoltouosolhosparaele,outravez.—Vocêachamesmo...—Éclaro—assentiuobípede,apertando-acomforça.Novaseardentesemoçõestomavamconta

dele.—Algumdiaterãodeverisso,Emma.Nósosfaremosouvir,vocêverá.Vamos,Emma.Tudovaiacabarbem.Somosamigosagora,hem?

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Emmafitou-onovamentecomtimidez.Seucorpoparoudetremer.—Sim,Fritz—disseela.Obípedeestreitou-acommaisforça.Juntamentecomasensaçãodeproteçãoquesentia,haviauma

alegriaferoz,umsensodejustiça.Poralgunsmomentos,nãosefalaram.—Emma...—Hem?—Somosrealmenteamigos,agora?Vocênãotemmaismedodemim?—Não,Fritz,nãotenhomais.—Então,porquecontinuaapôrasmãossobreocalombo?Nãoéincômodo?Nãoconfiaemmim?Elaabanouacabeça.—Nãoseiporque...éque...Éclaroqueconfioemvocê,Fritz.—Então...Apósummomentodehesitação,elaobedientementepôsasmãosnocolo.Seucalomboeragrande,

vermelho-púrpuraetinhaumlevearomadeespeciaria.—Nãoémelhor,agora?Aconteceualgumacoisahorrívelporquevocêodescobriu?—Não,Fritz—concordouela.—Encostouo focinhonoombrodele.—Sinto-memuitomelhor

agora.—Eutambém,Emma.Oh,eutambém.Explodindodeemoção,obípedeinclinoumaisacabeça.E,comumainstintivadestreza,queapanhou

ambosdesurpresa,elemordeuocalombodela.

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XIIORAPAZestavaflutuando,era todosensações.Farfalhargigantescodetafetácomcheirodecanela,

infinitamente desenrolado. O ciciar e o ondular de cetins quando os dois corpos se estreitavamvigorosamente,oslábiosseprocurando...pressão,umsentimentodedoçura(Gemidosemtornodelenasala).

Lábiosseseparandoparatomarfôlego,rostobrancocomoanevedesmaiandonoombroacetinado,umsinaldebelezabrilhandonorosto.Suaperucaabundante,maisbrancaqueapele,sombreavaorostodela,doceetristemente:

"Parasempre?""Parasempre!",numbarítonotriunfante."Oh,Stephen..."Osdoiscorposrecuarampesadamentecomoserolassemparalonge.Orostodelase

virouparaele.Ele:"Oquefoi?"Ela:"Veja!"Seus corpos dançaram no espaço como orbes celestes, todo rendas e luzes, para revelar a longa

perspectivaazuldasalaciclópica.Embaixo, tãoenormee tambémtãodistante,ohomemmoreno,numvermelhosuado,debarbanegra,pontudaeluzidiaefogososolhosnegrosdisse,comvozuntuosa:

"Então,meusjovensamantes,encontramo-nosnovamente?"Flutuandonovácuo,orapazsuspirava,variava(tinhaentradoali).Palavras ásperas ecoarampor toda a enorme sala: amulher encolheu-se, ofegante.Veja amãodo

homemagarraropunhodaespada,vejaacriminosalâminarelampejar.(Suspiros)Agoraa lutade titãs:choquede lâminacontra lâmina,faíscas,golpesdeespadasnoar.Umamesa

vooucomumbarulhodefimdomundo.Umavela,cortadaemduas,caiuaochãoemchamas.Umjarroexplodiuemcentenasdepedaçosrodopiantes.

"Ha!"Amãodohomempálidocaiusobreoombrodooutro:osangue jorrouentreseusdedos.Agoraas

lâminasestavamretinindonovamente.Vejaosorrisodorostopálidodesaparecerporcimadoombrodohomemmoreno.Umrodopianteentrelaçamentodeespadas:entãoaespadadohomempálidoarremeteu,surgindogigantesca(eofachodeluzdaesquerda,queavisavaaorapazparadeixarosbraçosempaz,masdestavez,corajoso,persistiu).Oh!Umabrilhantepunhaladadedornocoração.Deusdocéu...

Fraco, meio desmaiado na cadeira, coração acelerado, era ele quem agonizava... viu a salaescurecer-se lentamente, viu o teto girar sobre sua cabeça... viu, vagamente, as duas enormes figurascaíremumanosbraçosdaoutra.Depois,escuridão.

Asluzesseacenderam,banhandoosdoisfelizesamantes.Umamúsicaalegreencheuoaràmedidaem que os rostos tornaram-se absurdamente grandes e saíram do foco, até restar apenas o definhanteaspectodeumsorriso.

FIM.Omundosumiu,deixandoumaluminescênciaesverdeada.Orapaztomouconsciênciadoseupróprio

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corpo,grampeadonapoltronaestofada.Aoseuredor,nagrandecúpula,outraspessoascomeçaramasemover.Suasnádegasestavamdormentese suacabeçadoía.Lutoupara ficardepé.Eradifícil tornara se

acostumaraosilêncioeaoreduzidotamanhodascoisas.Cambaleante, atordoado, saiu para a morna claridade da tarde. Passou pela confeitaria, com seu

enormeecheirosoestéreo-pão,permanentementebalançandosobreaporta.Trêshomensmorenos,comchapeuzinhos brancos engraçados e calças brancas folgadas, caminharam para ele, todos falando aomesmotempoumalínguaestranha.

Umgatoatravessouapraça,perseguidoporalgopequenoeverde,commuitaspernascurtas.Osolaqueciaaspedrasdacalçada.Ondasdecalorflutuavamnoar.

Na esquina seguinte, uma multidão se aglomerava em torno de um homenzinho de verde e umacriaturagigantesca,comumpeitocomoumbarril,cobertadeplumasrosadas,queohomenzinhotraziapresaporumacorreia.Moedas tilintaramnumpote.Estimuladapelodono,aenormecriaturaexecutouumapseudodançadesajeitada.Seurostoerametadehumano,metadeágua-viva,retardadoeinexpressivo.

— Obrigado, cavalheiro, obrigado, senhora — dizia o homenzinho, tirando o chapéu. Tlim. —Obrigado,senhor.

Orapazcontinuouseucaminho.Afinaldecontas,nocinemavêem-semonstrosmaioresqueaquele.Parounabancadejornais,nofimdapraça,ecomprouoBerlinerZeitungeoHamburgerTageblatt,

metendoosjornaisdobradosdebaixodobraço.Abancaseguinteeradefrutas.Orapazpassavaporaliquasetodososdiaseàsvezescompravabananasoularanjas.Mashojeeradiferente.Nomeiodabancaviu um amontoado de ovóides verde-amarelados, maiores que peras, com uma tabuleta: "Especiais!RecentementechegadasdoPlanetaBrecht.Raras!Experimente!".Opreçoeraummarcoedez.

Abocadorapazficousecadeexcitação.DoPlanetaBrecht!Remexeunobolso.Tinhaexatamenteosuficiente.

Oempregadocansadorecebeuodinheiroedeu-lheumadasfrutasesverdeadas.Orapazaseguroucomcuidadoenquantocaminhava.Erapesada,quenteesuaveaotoque.

Umafraseperdidadolivrovoltou-lheàmemória:"Certosfrutosesverdeados,queosbípedescomemcomavidez..."Nunca,antes,sesentira tãopróximodoseuplanetadeorigem.Parecera-lhesempreumtanto irreal, algo que se lia nos livros. Agora, pela primeira vez, sentiu que aquele lugar existiarealmente, que era feito com pedras de verdade e sujeira e tinha árvores verdadeiras que produziamfrutosverdadeiros.

Percebendo Frau Biefelder no vestíbulo do prédio, com seus olhinhos avermelhados, atentos esuspeitoscomosempre,orapazinstintivamentemeteuopesadofrutonobolso,continuandoasegurá-lo.

—Boatarde,FrauBiefelder—dissedelicadamente,caminhandoparaoelevador.Avelhanãorespondeu.O rapaz parouo elevador em todos os andares, comode costume, examinando cuidadosamente as

portasvermelhasfechadas.AdeJúliapermaneciaentreaberta,masemvezdeparar,continuouasubir.Quartoandar,quinto,sexto.Saiu,subiuapequenaescadaatéoterraço.

Berlimseespalhavaàfrentedelenapálidaluzdooutono.OscaboscurvosdoFlugbahnbrilhavamcontra o azul. Lá embaixo, erguendo-se entre os tetos baixos dos edifícios, destacava-se a abóbadadouradadoKonzertgebaude.

Umabrisafriacomeçouasoprarfortepeloterraço,fazendoasfolhasdosjornaisseagitaremsobseubraço!O rapaz segurou-os comdificuldade comapenas umadasmãos, pois nãoqueria largar o frutoquente.Algunsmetrosadiante,umventiladorgiravarapidamentesobsuacoberturaescura.Orapaztevesuaatençãovoltadaparaumavião,quezumbianohorizonteazul-cinzento.Farejouoarcominteresse,óleodiesel,ozona,cimentofresco.

Umagrandeborboletaoumariposaestavapousadanoparapeito,agitandofracamenteasasasazuise

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vermelhas.Orapazexaminou-acuriosamente.Nãopareciacapazdevoar.Quandoatocoucomodedo,elaapenasfezummovimentoespasmódicocomasasas.

Algo pousou com um ruído surdo atrás dele.Voltou-se e viu outra borboleta, idêntica à primeira.Ficouagitandoasasasummomento,comosmesmosmovimentosfebris.Derepente,orapazpercebeuqueoarestavacheiodelas:minúsculasformasescuras,descendo,pousandonostelhadosaoredor.Haviameiadúziaaosseuspésedepoisduasvezesmais.Umabateu-lhesuavementenopescoçoantesdecairnoterraço.

Aborrecido,orapazvirou-separasair.Masemboraescolhessecuidadosamenteocaminho,nãopôdedeixardeesmagarsobospésinúmerosdaquelescorposfrágeis.

Desceu novamente ao terceiro andar e abriu a porta com cautela. Júlia a deixava agora sempredestrancada,porqueelehaviatidomuitosproblemascomaschaves.Nointerior,tudoestavaquieto.

Maggie,agata,saudou-oaoentrar,comummiadoqueixoso.Orapazcaiudequatroparaesfregarseunariznodela.Onarizdagataestavafrioeseco.Esfregouofocinhocontraodele,arqueandoolomboesacudindoorabo.

Poucodepois,houveumbarulhonoquartoeChurchillsaiucomarperigoso.Quandoviuqueerasóorapaz,oclarãodefúriaabandonouseusolhos.Gingou,farejouelambeuorostodorapazcomalínguafedorenta.

Orapazselevantouelimpouorostocomumpano.—Martin?—chamouumavozsonolentadedentrodoquarto.Orapazchegouatéocorredoreespioupelaporta.Júliaolhava-osonolentamentedacama.—Que

horassão?Orapazolhouorelógiodepulso.—Quasetrêshoras.Estásesentindomelhor,Júlia?—Sim,achoquesim.Vocêpoderiametrazerumcopod'água?—Poisnão,queridaJúlia.Orapazfoiàcozinhaeencheuumcopo.Sentou-seàbeiradacama,vendo-abeber,comumasensaçãoumtantoesquisita.Eraaprimeiravez

queelaoconvidavaaentrarnoquarto.Umavezaconteceu-lheolharparadentroquandoelaestavasedespindo e vira seus seios nus, que o interessaram muito, mas sentiu-se tão esquisito que fugiu doapartamento.Agorapodiaperceber-lheas formasarredondadassoba finacamisolabrancaecheiodecuriosidadetocounum.Erasuaveebalançante,mastinhaumaprotuberânciaduradeoutracornomeio.

—Oh!—disseela,espantada.Suamãoafastouadele.—Machuquei-a?—Não...não,estábem,Martin.Podetocar,sevocêgosta.Elalargouocopoetomou-lheambasasmãos,levando-asaosseios.—QueridoMartin—disseela.Eleviuqueosolhosdelabrilhavamdelágrimas.—QueridaJúlia.Inclinou-seebeijou-a.Paraumaprimeiratentativa, 'atéquenãofoimal.Osnarizesficaramumao

ladodooutroeelesemprepensavaqueseriamuitodifícil.Amulhercomeçouaofegar.Depoisdeummomento,envolveu-ocomosbraçoseapertou-o.Obeijo

continuoue,passadoalgumtempo,outrascoisasinteressantescomeçaramaacontecer.Quandotudoterminou,orapazestendeu-sedecostasnacama,exaustoeespantado.Júliasentou-se,

escovandoocabeloefalandobaixinhoparasimesma.Subitamentealuzdaportabrilhou.Entreolharam-se.—Oh,querido,quemserá?—Vouver.—Querido!—disseamulher,segurandoamãodeleparaimpedi-lo,meiochorando,meiorindo.—

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Vistaasroupasprimeiro.—Oh!Orapazbeijou-aaindaumavezporqueelaestavatãocoradaecontenteedepoisvestiu-se.Aluzda

portabrilhourepetidamente.—Estábem,jávou,jávou—murmurou.Nocorredor,umhomemdemeiaestatura,vestidocomumsobretudodeverãocinza-escuro,fumava

umcharuto.—Então,Naumchik?—dissesorrindo.—Sim?—perguntouorapaz,indeciso.—Nãomeconhece?Tassen,daFreiePresse...lembra?—Não.HerrTassen?Oquedeseja?—Estavapassando—falouTassen,olhandocomolhosperspicazeseamáveis.—Entãoéaquique

vocêseesconde?Incomoda-seseeuentrarummomento?—Bem...achoquenão.Orapazrecuou,indeciso,eohomemseguiu-o,examinandooapartamentocominteresse.Houveumberronoquartoedepoisobarulhodegarrasarranhandoaportafechada,seguidosdavoz

abafadadeJúlia:—Pare,Churchill!Cãodanado!Tassenergueuumasobrancelhanadireçãodossons,masnãofezcomentário.—Bem,éumlugarconfortável,Naumchik.Nãovoutomar-lhemuitotempo.Possosentar?—Façaofavor.—ViuZelliniultimamente?—Como?Tassenfranziuasobrancelha,batendoocharutonacinzeiro.—VocêvoltoufinalmenteaParisdepoisque?...Tornouaerguerasobrancelha.—AParis?—perguntouorapazconfuso.—Não.—Suponhoquesaibaqueelesamarraramumfogueteemvocê,não?—Perdão!—Despediramvocê...Mandaram-noembora.—Oh.Não,nãosabia.Tassentragouocharuto,encarandoorapaz.Apósummomento,indagou:—Afinal,oqueaconteceucomvocê,Naumchik?Nummomento,atéondepudesaber,vocêeraum

perfeitojornalistajovem,atéqueaconteceutodaaquelahistóriadobípedeevocêcomeçouasebalançarnostetosdaElektra.Esperoqueagoravocêestejabem.

—Oh,sim,perfeitamente.—Bem?—Bem?Tassenpareceuperplexoeligeiramenteaborrecido.—Claro,sevocênãoquermecontar...—Maseunãomelembro.—Oh?—Tassenpiscou.—Doquenãoselembra?—Denada...antesdaElektra.—Entendo.Entãoéisso.Vocênãotemcomomecontarsualigaçãocomaquelebípede,não?—Não.—Estábem.Bem,dequalquermodo,Naumchik,ébomsaberqueestátudocertocomvocê.Acho

quenãotemfeitonenhumtrabalhojornalísticonosúltimostempos?—Não.

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—Querfazer?—Nãopenseinisso—disseorapaz.—ProvavelmentenãoserátãofácilparavocêconseguirtrabalhonosjornaisdeBerlimdepoisdesse

escândalo—disseTassen.—Masvocêarranjaráalgumserviçotemporário,comcerteza.UmmaterialsobresuaexperiêncianaElektra,porquenão?—Levantou-seetirouumcartãodobolsodosobretudo.—Aquiestáomeuendereço.Seprecisardeajuda...

Esedespediucomumalegreadeus.No dia seguinte, o rapaz lembrou-se da fruta do Planeta Brecht e resolveu abri-la antes que se

estragasse.Acascaverde-amareladaerabastantefinaedentrohaviaumapolpaamarela,dearumtantodoentio. Júlia comeu umpedaço e disse que era interessante.O rapaz, entretanto, deu umamordida ecuspiulogo:apolpaestavamoleedesagradável,comumclarosaborderanço.Odesapontamentofoitãograndequeeleselamentoudurantedias.

Aondademudança,expandindo-sedosseusdoislocais,afastou-selentamentedaTerra.Ocorreramalgumastransformaçõesfinais.

Vates romanos dos tempos de Júlio César, estudando as entranhas de algumas aves para fazervaticínios, encontraram massas de piche fedorento e profetizaram um desastre. Uma chuva de palhasangrentacausouumarápidasensaçãonaagradávelcidadedeKikumeru,círculopolarantártico,noanode 3019. Uma inscrição apareceu na parede de um palácio na Babilônia, com palavras que nenhumhomemconseguiuler.UmasúbitaquedadetemperaturacongeloumamutesnumplanaltodaSibéria...

Amudança havia derivado na direção de Vega, onde cefalópodes inteligentes do terceiro planetadaquela estrela ficaram intrigados com elamilhões de anos antes e depois.Na Terra, os poucos quetinhamreparadonaquelascoisasestranhasdecidiramhaviamuitoaconservarasbocasfechadas.

Obomtempopermaneceuatéoutubro.Depoistornou-sefrioetempestuoso,comneveeocasionais

quedas de granizo. Numa tarde, em fins de novembro, o rapaz entrou no bar do Clube dosCorrespondentes.Parouporummomento,sacudindoanevederretidadochapéu.Olongobardemognoestavameiodeserto.Asluzescobertasdobarserefletiamnosespelhos,easpequenaslâmpadasverdesdotelefonebrilhavamnobar.

Emile,ogarçom,umsaxãoderostovermelho,ergueuasobrancelha,saudandoorapazquandoesteseaproximou.

—Boanoite,HerrNaumchik.Nãoovemosháalgumtempo.—Não.EstivenaVestfália,Emile.Dê-meumLongJohnduplo.—Sim,senhor.Emileestendeuobraçoparatráseapanhouagarrafa.Encheuumcopoquaseatéaborda.Inclinou-se

parainformar:—Houveumchamadoparaosenhormaiscedo,HerrNaumchik.Umasenhora.—Oh!Deixouonome?—Nãosenhor.Setelefonaroutravez,devodizerqueestáaqui?Orapazficoupensando.—Podeservantajoso.Quemseria?Nina?Olga?Quetipodemulherera,Emile?—perguntou,maso

troncudogarçomjáseafastaraeatendiaaoutrofreguês.—Alô,Naumchik,quandochegou?Umhomemalto,usandoumpaletódexadrezeumchapéuàmodadoTirol,encostou-seaoladodele

nobar.Falavacomumforteacentoinglês.Traziapresoporumacorreiacurtaumgalgodepêlosedosoeolhosmelancólicos.Ocachorroesfregouonarizfrionapalmadamãodorapaz.

—Oh,alôPotter—O rapazacaricioudistraídoo focinhodocão.—Cheguei estamanhã.Deite,Bruno.Deveriaterchegadoontemàsduasdamadrugada,mastivemosdesobrevoarTemplehofdurante

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cincohoras.—Tempohorrível—dissePotter.—Temalgoavercomessahistóriaderegeneração?—Não,éumanevasca.Masconseguimandarduascolunasantes.Vocêmeparecebem.Ouvidizer

quequebrouumbraçoemRiga.—Não,foiMerle—explicouohomem,apontandocomoqueixoparaumamesanocanto,ondeuma

mulherlouraestavasentadacomobraçonatipóia.Elaergueuocopoesorriu.—Oh,quepena—disseorapaz,acenandoemresposta.—Não tem importância.Faz comque ela fiquemais tratável.Algumasvezesdesejoque todas as

mulheresquebremosbraços,aspernasoualgosemelhante.Umrapazjovem,vestidodepreto,transpirando,chegoueagarrouoinglêspelobraço.—Olhe,Potter,vocêsabeondepossoencontrarJohnnyYbarra?—Não,nãotenhoidéia...Játentouprocurarnosbordéis?—Todoseles?—perguntouohomemsuado,desesperadamente,porcimadoombro,afastando-se.

—Alô,Naumchik—acrescentouantesdedesaparecer.Emile,quetinhaestadofalandonotelefonecoberto,nofundodobar,levantouacabeçaeergueuas

sobrancelhas.Orapazfezummovimentoassentindo.Emileapertouateclaeoaparelhodefrontedorapaziluminou-se.

—Com licença, Donald. Alô... oh, é você, Júlia?O rostomiúdo na tela olhou para ele com umsorriso.

—Quesorteencontrá-lo,Martin!Penseiquenãoestivesseaí...podevirjantar?— Deixe-me pensar. Sim... não, me atrapalhei, tenho um jantar com Schenk. Sinto muito, Júlia,

esqueci.—Éumapena.Adorariavê-lo,Martin.Olhou-oesperançosa.—Eutambém.Talvezpossamosencontrar-nosamanhã,paratomaralgo...O rapaz refletiu que, embora Júlia estivesse um pouco velha para ele, e não tivesse intenção de

recomeçartudooutravez,aindaselembravadosmomentosagradáveis,naquelepequenoapartamentodaHeinrichstrasse, onde havia escrito sua primeira reportagem na máquina portátil de Júlia: Eu fui oenigma escalante da Elektra, por Martin Naumchik. Como tinham ficado ambos orgulhosos quandoviramimpressonojornal!Tudoagoraeradiferente...

—ComoestáChurchill?—Tivequedá-lo,Martin.Estavasetornandomuitorabujento.Mordeuumamigomeu.—Quepena!MasvocêaindatemMaggie?—Sim,Maggieestábem.Nobar,trêshomenscomcapasdeplásticojogavammoedasnumataçadiantedaestereofotodeuma

jovem bávara gorducha, vestida de camponesa. Sempre que umamoeda entrava no orifício, amulherrodopiava devagar e levantava a saia,mostrando o traseiro nu. Cada vez que isso acontecia, os trêshomensdesatavamarircomvozrouca.

Pottertocou-lhenoombroemurmurou:—Atéavista.Orapazvoltou-se,acenando.—Bem,Martin,telefone-mequandopuder.—Sim,telefonarei.Amanhã,talvezàtarde.VocêaindaestánoMinistério?—Aindaestou.—ótimo.Telefonarei.Atéavista.Apatéticafiguradesapareceudateladotelefone.Comumapontaderemorsoeumsuspirodealívio,

orapazrecolocouofone.

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Um jovemgordo, vestido comumpaletómarrom, tomouo lugar dePotter no bar.Tinha o bigodecurtoedesleixadoeolhosazuisprotuberantes,parecendoaomesmotempoinocenteedissoluto.

—Alô,Naumchik,comoelesestãopendurados?—Alô,Wallenstein.Umaltooutrobaixo,comosempre.—Eoterceiro?Orapazgordoacenouparaogarçom.— Emile, um Black Wednesday. Escute, Naumchik, você pode ser exatamente o homem que eu

preciso.VocêconheceKohler,osujeitoresponsávelpelacadeiadesemanáriosparaointerior?—Sim,edaí?—Bem,éridículo:devo-lheumfavoreprometicobrirtodaaestóriadoZôoparaele,amanhã.Esse

trabalhotemdeserfeito,masaUPImepropôsumacoisainteressanteemOslo.Doismeses,comtudopagoeestadianosmelhoreshotéis.Masdevoconfessar:tenhodepartirdemanhãoupercoacoisa.Vocênãovaiseimportar,nãoémesmo,Naumchik?Estetrabalhosóirátomar-lhemeiahora.Podereiatédar-lheumpoucomaisdomeuprópriobolso.

—Umminuto,nãoestouentendendoumapalavradoquedisse.QuehistóriadoZôo?—Oh,umdosbípedesacabadedaràluzeKohlerdesejaumareportagemcompletaparaosleitores

dointerior.Quemediz?—Bem,suponhoquenãohárazão...—começouorapaz,parandosubitamente.Quesensaçãocuriosa!Dofundodesuamemória,veio-lhea imagemdeumanimaldeduaspernas

arranhandoaparededevidrodeumajaula,enquantoele,doladodefora,noarfrio,olhavamaravilhadopara suas rosadasmãosde cincodedos.Que estranho!Era a primeira vez emmeses que ele pensavanaquilo.

—Então,concorda?—Não.Pensandomelhor,nãoacreditoquesejaaconselhável—disseorapaz.—Aconselhável?Oquequerdizer?Ora,vamos,velhinho,vouacrescentardezaosvintedeKohler...

eentão?Naumchikesvaziouocoporapidamente,colocando-onobalcão.—Não,sintomuito—disse.—Lembrei-meagoraquedevoestaramanhãnumlugar.—Bateunas

costasdojovemgorducho.—Mas,vocêencontraráoutrapessoa,tenhocerteza.Atébreve,Wallenstein.Ohomemolhou-ocomcarafeia.—Estábem,jáquevocêquerserumsalafrário.—Quero—concordouNaumchik,jovialmente—Nãosomostodos?Mantenha-selimpo,meuvelho.Esaiuassoviando.Nolimiardaporta,parouerespiroufundo.Anevecessara.Asestrelastinhamum

brilhodecristalsobreostelhados.