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O Orçamento como lei: contributo para o compreensão de algumas especificidadesdo Direito Orçamental Português

Autor(es): Xavier, António Lobo

Publicado por: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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o ORÇAMENTO COMO LEI

Contributo para o com preensão de a]gumas especificidades do Direito

Orçamental Português

I PARTE

OS PODERES FINANCEIROS DO PARLAMENTO

CAPÍTULO I

ORIGEM E FUNDAMENTO DA DISTRIBUIÇÃO DOS PODERES FINANCEIROS PÚBLICOS

1. Sem querermos exagerar, como alguns, afirmando que o modo como se distribuem as competências dos órgãos de soberania em matéria financeira é a chave da compreen­são de cada sistema constitucional (1), não podemos tam­bém alinhar com quantos consideram ser a estrutura orga­nizatório-funcional dos ordenamentos jurídico-constitu­cionais que aceitam o princípio do Estado de direito, no que diz respeito especificamente às competências finan-

(1) Cfr., p. ex., J.-C. MARTINEZ, Droit Budgétaire, Paris, 1982, pp. 3 e 55., J. M. COITBRBT e CLAUDB EMBRI, Le Budget de I' État, P. U.F. , Paris, 1972, p. 5; ACHIM-RüDIGBR BORNER, Zur Eittführung : Haushalts­recht, in JuS, 1982, pp. 805 e 55.

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ceiras, uma simples questão de tradição que se assume como mero símbolo das lutas políticas do séc. XIX (2).

Julgamos antes, adoptando conscientemente uma posi­ção intermédia, que, apesar de ser verdade que os Estados democrático-representativos tomaram como padrão básico a estrutura organizat6rio-funcional que se sedimentou no séc. XIX (3), ainda hoje a distribuição de poderes financeiros entre o Governo e o Parlamento constitui fonte de dúvidas e origem de intrincados problemas políticos e jurídicos, o que torna a sua concreta configuração num ponto sensível para a identificação de sub-espécies constitucionais daquele

padrão básico referido. Convém, antes de tudo, esclarecer que, quando nos

referimos aos poderes financeiros e à sua articulação cons­titucional, estamos sobretudo a pensar na forma como o Governo e o Parlamento dividem entre si as funções rela­cionadas com a criação e o estabelecimento dos impostos e com o orçamento, de uma forma genérica. Trata-se, com certeza, de institutos clássicos do Direito Financeiro; mas o seu classicismo - no sentido de que aparecem nas consti­tuições, desde há muito - não impede que assumam hoje um significado jurídico ainda não inteiramente compreen­dido (4). Depois, também é verdade que as transformações

(2) Veja-se, p. ex., COOMBES (ed.) , The POlUer of the Purse­A SymposiulII on the Role of European Parlia/llellts iII Blldgetary Decisions, G.B., 1975, p. 366.

(3) Sobre a divisão de poderes e o seu sentido pretérito e actual veja-se, por todos, GOMES CANOTll.HO, Direito COtlstitucional, Coimbra, 4.' ed., 1986, pp. 321 e ss.

(4) Não há dúvida de que o alcance jurídico concreto do orça­mento e do plincípio da autorização parlamentar dos impostos não é assunto encerrado em muitos países. Entre nós, por exemplo, desde que entrou em vigor a Constituição de 1976, a Comissão Constitucional e, mais tarde, o Tribunal Constitucional, não cessaram de se pronunciar sobre estes temas, e a própria doutrina ainda não apreendeu completa-

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políticas do nosso século implicaram, muitas vezes, mudan­ças importantes ao nível do que podemos chamar a «cons­tituição financeira» de vários países (5). Portanto, um tema que nos obriga a encetar uma abordagem do problema da repartição dos poderes financeiros públicos pode ser um tema clássico, mas nem por isso tem que ser desactuali­zado, mesmo descontando a inevitável parcialidade do autor.

Sucede, porém, que, se não limitássemos mais o objecto do nosso estudo, teríamos porventura que resolver a questão do novo lugar que o moderno Direito Financeiro ocupa na ordem jurídica - o que, mesmo que nos pro­curássemos limitar aos dados fornecidos pelo direito posi­tivo português, seria sempre uma tarefa demasiado ambi­closa.

O propósito deste trabalho é, sem dúvida, mais modesto, como, aliás, o proprio título sugere, segundo esperamos. Desejaríamos somente conseguir captar algu­mas especificidades do Direito Orçamental português, na mira de esclarecer o significado do orçamento na nossa

mente todas as implicações da nossa constituição fmanceira. Esta juris­prudência e os mais recentes contributos doutrinários, nestes domínios , serão, à frente, detalhadamente apresentados e discutidos (cfr. infra, pp. 78 e ss.).

Entre nós, no entanto, poderia dizer-se que as dúvidas e incerte­zas se devem à juventude da nossa Constituição. Mas vejam-se, então, as hesitações de MUSSGNUG, Der Haushalt aIs Gesetz, Gottingen, 1976 pp. 30, 31 e 32, p. ex., ou de LOle PHlUP. Le droit cOlIstitutionneI des jillances publiques, RFFP, n. o 7, 1984, pp. 127 e ss.

(5) Ver, como exemplo, as diferenças entre a IV e V Repúblicas francesas, em matéria de rlivisão dos poderes financeiros, em MABILBAu, La compétence jinanciere du Parlell/ent de la Cillquieme République, RSF, 1961, pp. 45 e ss.

Entre nós, também, devem ver-se as novidades introduzidas pela Constituição de 1976 e pela L.C. 1/82, em matéria de Finanças Públicas, como uma sequência normal das trnsformações políticas operadas em Portugal desde 1974.

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ordem jurídico-financeira, convencidos de que, logrando tal fito, estamos a contribuir para a compreensão de um aspecto importante do direito das «novas finanças».

Ora, é verdade que o Direito Orçamental traz a marca de todas as grandes modificações que ocorreram no domí­nio da actividade financeira pública. O seu objecto alar­gou-se, fatalmente, quando é certo que quase metade da produção de um país transita pelo seu orçamento (6). Em Portugal, também as Finanças Públicas mudaram de feição nos últimos doze anos (7), e tal não pode deixar de estar presente quando se ensaia um estudo - ainda que limi­tado - , de algumas normas que as visam disciplinar.

As transformações políticas sofridas pelo nosso País na década de setenta originaram manifestações do poder constituinte que deram lugar, por seu turno, à Constituição de 1976. Acontece que a nova Constituição - quer na sua forma original, quer no texto que re~ultou da sua primeira revisão, em 1982 - aparesenta princípios e normas sobre o úrçamento que estão longe de se poderem considerar devi­damente assimiladas. Bem ao invés, julgamos: as solicita­ções do Tribunal Constitucional têm sido particularmente frequentes, assumindo mesmo, em alguns períodos, um carácter sistemático, e as decisões proferidas sobre a consti­tucionalidade das leis orçamentais ou sobre a partilha de competências entre a lei e o decreto-lei, em matéria finan­

ceira, não têm conto. Não se deve encarecer exageradamente o particula­

rismo de cada sistema de Direito Orçamental: há, evidente­mente, princípios comuns, que iluminam vários ordena-

(6) J.-C. MARTINEZ, cito (n. 1), introdução. (') A. L. SOUSA FRANCO , Finanças Públicas e Direito Financeiro,

2. ' 00., 1987, pp. 136 e SS .

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mentos jurídicos; mas, como o sistema orçamental de um país reflecte sempre a sua estrutura constitucional, o núcleo do comum não há-de ser muito alargado. A bem dizer, até, este núcleo comum é ainda mais pequeno do que seria de esperar, já que encontramos esquemas constitucionais semelhantes que divergem apreciavelmente na regulamen­tação do ciclo orçamental (8).

Pode dizer-se que, nos Estados de direito, aos parla­mentos é submetida anualmente uma previsão de despesas e receitas que o Governo pretende realizar e cobrar; que essa previsão é normalmente estruturada por items e deve ser objecto da autorização parlamentar; e que, fmalmente, é costume o Parlamento controlar a relação que existe entre a referida previsão e o resultado da execução de cada orçamento.

Ora bem: estudar o Direito Orçamental português, procurando aprofundar o significado jurídico-político da articulação dos poderes financeiros em Portugal, pode levar-nos a perceber melhor o sentido moderno das Finan­ças Públicas - objectivo com interesse mais do que evi­dente para justificar esta tentativa.

2. Quando se pretende tecer algumas considerações sobre o assunto proposto, não raramente começa-se por recordar alguns passos da história inglesa, uma vez que, a bem dizer, ela marcou profundamente a configuração do Direito Financeiro actual (9), pelo menos desde o séc. XII.

(8) KARL HmNRlCH FRIAUP, in The power of the Ame, cito (n. 2), p. 66. Aliás, a este facto não é estranha a intenção da Comissão das Comunidades de estimular a harmonização dos processos orçamentais.

(9) Optámos por não retomar aqui o discurso a propósito do conceito de Direito FinancC'iro, preferindo uma remissão para as exce­lentes definições de TBIXBIRA RrnBIRO, Lições de Finanças Públicas, 2.' ed., 1984, Coimbra, p. 39, e SOUSA FRANCO, cito (n. 7), pp. 95 e ss.

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No entanto, há que distinguir entre a função parlamentar de criação ou estabelecimento dos impostos, e aqueloutra que consiste na votação do orçamento, se quisermos tra­çar uma breve evolução histurica, nestas áreas. É que uma e outra funçõe , ainda que hoje se encontrem indissociavel­mente ligadas (10), não surgem historicamente em simul­tâneo; e a sua consideração com respeito pela cronologia esbate mesmo a importância pioneira que é costume con­ceder-se ao direito político inglês, como atrás referimos.

Com efeito, o princípio segundo o qual é aos repre­sentantes dos cidadãos que compete dar autorização para a cobrança de tributos é aceite, de uma forma geral, em paí­ses como a Inglaterra, a França, os estados germânicos e mesmo Portugal, ao que se sabe, a partir do séc. XIII (11).

(lO) A ligação entre o principio da autorização dos impostos e o instituto do orçamento é evidentemente estreita. Histoticamente, aliás, a reivindicação parlamentar de um autêntico «direito ao orçamento. apresentou-se corno urna consequência directa do poder de criar impostos (ver, p. ex., G. JEzE, Traité de Science des Fina/lces, t. 1- Le Bl4dget, Paris, 1910, pp. 18 a 21).

Para INGROSSO, também, in Irlstituzio/le di Diritto Firlallziario, vol. I, Nápoles, 1935, pp. 62 e ss. - embora falando a propósito da natureza jurídica das leis orçamentais e das leis tributárias -, as leis fiscais estão intimamente ligadas ao orçamento, porque os impostos se destinam às fmalidades públicas e, por isso, todos os anos ganham sentido à luz dos debates orçamentais.

Entre nós, ARMINDO MONTEIRO, Direito Fiscal (lições taquigr.), Lisboa, 1947, p. 41. Cfr. ainda SOARES MARTINEZ, Matlual de Direito Fiscal, Coimbra, 1983, pp. 87 e ss., a propósito das soluções constitu­cionais portuguesas relativamente aos «órgãos de soberarua fiscal •.

(I I) CEr. G. JEzE, cito (n. 10), pp. 9 elO, 44 e 45; R. STOURM, Cours de Finallces - Le Budget, Paris, 1912, pp. 9 a 22; J. P. LASSALE, Le Parlement et l'autorisatio/l des dépenses publiql4es, RSF, 1963, p. 580.

Sobre as competências tributárias das Côrtes, em Portugal, ver MARCELLO CAETANO, Sllbsfdios para a história das Côrtes Medievais por­tuguesas, in «Braccara Augusta., n.OS XIV-XV (n.o especial), 1963, Braga, pp. 142 e ss.; M. PAULO Ml!.RÊA, O poder real e as Côrtes, 1923, Coimbra, pp. 36 a 38; ARMINDo MONTEIRO, cit. , (n. 10), pp. 10, 11 e 12; SOARES MARTINEZ, cito (n. 10), pp. 83 e ss.

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Em contrapartida, porém, o orçamento público com o sen­tido actual (12) - documento onde constam as receitas e despesas públicas previstas para um determinado período de tempo e autorizadas pelo 6rgão parlamentar - , é um instituto que s6 no séc. XIX encontramos definitivamente na maior parte dos Estados - excepção feita, aqui justa­mente, para a Inglaterra, cujo Direito Público conhece o orçamento desde o séc. XVII (13).

Parece, na verdade, que se deve dizer que o Príncipe, na Idade Média europeia, não dispunha de poderes ilimi­tados perante a nação, sendo certo, desde logo, que não podia criar arbitrariamente impostos. Em países como os há pouco referidos, entendia-se que o soberano devia ba~­tar-se com os rendimentos oriundos dos seus domínios, admitindo-se que, para acorrer a necessidades extraordiná­rias, os cidadãos pudessem ser compelidos a contribuir com somas pecuniárias. Simplesmente, acontece que, a par de uma natureza extraordinária do tributo, implicitamente admitida ~ pelo menos em termos teóricos - , vigorava a ideia, como norma, de que o seu estabelecimento carecia do consentimento popular. É claro que existiam variantes, quer quanto ao modo de exprimir esse consentimento, quer quanto ao tipo de órgão representativo a quem tal função competia; mas não é controversa a aftrmação de que esta era, ao menos, uma das atribuições do Parlamento, dos Estados gerais, das Côrtes, ou dos Landstande germâ­nicos (14).

(12) Para um conceito de orçamento público, ver TEIX1lIRA RIBEIRO, cito (n. 9) , pp. 43 e ss.

(1 3) efr. G. JEzE, cito (n. 10), pp. 20 e 21 , e STOURM, cito (n. 11), pp . 9 a 19.

(1 4) efr. autores, obras e locais indicados na (n. 12).

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Em Portugal. neste período. pode-se sem receio sus­tentar que. apesar da importância do poder real (suprema potestas). as Côrtes eram um instrumento privilegiado para exprimir certos direitos da nação perante o rei. ao lado dos toros e das imunidades. É bem verdade. no entanto. como assinala PAULO MBR~A (15). que tais limites jurídicos ao poder do soberano não são comparáveis com os que. séculos depois. apareceram com o Estado de direito. até porque então não existia separação de poderes. De toda a maneira. a competência das Côrtes no domínio do esta­belecimento dos impostos. a partir da segunda metade do séc. xm. constitui uma realidade tão segura que permite a MARCELLO CAETANO (1 6) dizer que é essa sua atribuição que as apresenta como «instituição dotada de existência pró­pria». com vocação para a defesa dos «direitos das classes perante o monarca». e a ARMINDO MONTEIRO (17) procla­mar que é com ela que nascem os nossos Direito Fiscal e Direito Orçamental.

A seguir à Idade Média. o princípio do consentimento dos impostos pelo povo sofre diversas vicissitudes. designa­damente nos países a que nos vimos referindo. Se. em Inglaterra. a instituição parlamentar. nas suas atribuições. vai ganhando uma solidez progressiva. até à sua absoluta consolidação nos finais do séc. XVII. nos outros estados o advento do absolutismo veio esbater (ou eliminar. mesmo) a prerrogativa dos povos de autorizar previamente as exacções a favor do soberano.

Portugal. aliás. não escapa a esta regra. O séc. XVI

marca o início de uma longa involução. no que diz res-

(15) M. PAULO MERÊA, cito (n. 12), pp. 36 e ss. (16) MARCELLO CAETANO, cito (n. 12), p. 142. (17) ARMmno MONTEIRO, cito (n. 12), p. 13.

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peito ao consentimento do imposto, como nos mostram provas abundantes carreadas pelas memórias dos reinados de D. Manuel, de D. Afonso V, de D. Sebastião e do domínio filipino. É certo que, com a Restauração, veri­fica-se um recrudescimento da importância das Côrtes, por razões 6bvias; mas podemos dizer que, desde 1668 até à Revolução de 1820, não existem mais menções do exercí­cio efectivo do poder tributário pela «(representação popula[) (18).

O orçamento por seu lado, ao contrário do princípio da autorização dos impostos, é um instituto relativamente moderno. A fiscalização das aplicações que o soberano escolhia para as receitas que cobrava - implícita no con­ceito de orçamento - foi sempre, um pouco por toda a parte, uma ideia mais difícil de aceitar.

Em Inglaterra - país relativamente ao qual existe uma convicção geral de extrema precocidade, nestas maté­rias, como já dissemos -, as despesas do rei são considera­pas como secretas, e s6 a partir do séc. XVII é que se desen­volvem tentativas para conseguir que o Parlamento con­trole também as despesas realizadas com os impostos auto­rizados. Só será, aliás, rigoroso dizer que o Parlamento inglês se pronuncia sobre todas as despesas públicas a par­tir de 1830 (19).

Nos outros países, só no séc. XIX é que a instituição orçamental se consolida, se desprezarmos ocasionais epi­s6dios de interesse da representação popular pelo destino dado aos dinheiros públicos (20). No direito português,

(18) lbidem, pp. 58 a 61. (19) efr. G. JaZE, cito (n. 11), p . 21. (20) Sobre episódios históricos em que, muito antes de se falar

em orçamento, o povo manifestou .-vontade política» de controlar as

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por exemplo, só com o advento do constitucionalismo monárquico é que surge o princípio da votação parlamen­tar das despesas públicas e a figura do orçamento (21).

A análise da repartição dos poderes financeiros faz-nos penetrar no âmago dos problemas constitucionais; e o seu concreto arranjo, segundo RBUTER, permite-nos encontrar o lado onde está a predominância política, ou discernir quem é o verdadeiro titular do Poder (22). Conhe­cemos a sua origem, ainda que através de um ligeiríssimo sobrevoo; mas falta ainda sublinhar que não é por simples coincidência que a autorização da cobrança de impostos e a votação do orçamento surgem claramente no âmbito das competências dos Parlamentos do séc. XIX, ao mesmo tempo que se tornam definitivamente adquiridos princí­pIOS como o da separação de poderes e da representação electiva.

Desde logo, seria negligência não distinguir entre o sentido medieval da autorização prévia dos tributos e o significado oitocentista dos poderes frnanceiros das Câma­ras. A fórmula medieva, atrás referida, está evidentemente na origem dos poderes das assembleias modernas e do

despesas públicas, IId. JEZE, cito (n. 11), p. 31, referindo-se aos séculos XIV

e XVI da História de França. ARMmno MONTEIRO, em Do Orçamwto Português, tomo I, Lis­

boa, 1922, p. 232, rdata-nos um caso de votação, pelas Côrtes de Évora de 1408, de determinados subsídios em proveito dos Infantes; mas reconhece tratar-se de um acontecimento ell:travagante para a época.

(21) ARM.INDo MONTEIRO, cito (n. 11), p. 275, para quem só em 1823 é que as câmaras legislativas portuguesas discutem um orça­mento digno desse nome, conforme o preceituado nos arts. 224. o e 227. o

da Constituição de 1822. Vd., ainda, SOARES MARTINEZ, cito (n. 11), pp. 85 e ss.

(22) P. REUTER, La significatiotl juridique, politique et écollomique de l'acte blldgétaire, in cAnnales de Finances Publiques-, 1946, 11. 0 VI-VII, pp. 104 elOS.

23í

regime representativo, mas traduz sobretudo a ideia da defesa de interesses que a todos dizem respeito, uma tímida expressão de defesa genérica da liberdade e da propriedade. A f6rmula liberal dos institutos do Direito Financeiro, por seu turno, parece estar antes intimamente ligada às tenta­tivas da burguesia para aceder ao poder político (23).

Com eteito, a estrutura organizat6ria do Estado Cons­titucional moderno, cujos contornos foram delineados e teorizados no período liberal, foi pensada para satisfazer a ascensão da burguesia, em prejuízo das outras forças sociais representadas pelo Rei e pelo Governo (24). E é por isso que, como magistralmente nos mostra ROGÉRIO SOARES, a separação de poderes típica das Constituições do séc. XIX

tem um sentido de partilha de poderes entre forças sociais diversas: é um instrumento político, muito antes de ser uma técnica de organização do Estado (25).

À burguesia, na verdade, não bastava simplesmente poder autorizar ou não a criação de impostos, como faziam as estruturas representativas dos cidadãos na Idade Média, ainda que essa prerrogativa passasse a ter uma instituciona­lização menos vulnerável. O controlo da despesa pública, praticado através da votação do orçamento, surgiu como expediente de eleição para que a classe ascendente pudesse interferir na política de um modo mais sensível (26). Se o princípio da autorização dos impostos era visto sobretudo como um limite, o domínio parlamentar sobre a despesa significa já uma intervenção clara na acção do poder Exe-

(23) J. P. LASSALB, cito (n. 11), pp. 580-581, e ROGÉRIO SOARES,

Direito Público e Sociedade Técnica. Coimbra, 1969, p. 56. (24) ROGÉRIO SOARES, cito (n. 23), p. 153. (25) IbiJem, p. 39. (26) J. P. LASSALB, cito (n. 11), p. 580.

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cutivo (27). Dito de outra forma: se o controlo sobre as receitas tributárias significava o poder de «render pela fome» o Executivo, nas expressivas palavras de RODRIGUEZ

BBRBIJO (28), a votação parlamentar da despesa era a pos­sibilidade de lhe impor determinado indirizzo politico.

A autorização parlamentar dos impostos passou a chamar-se «princípio da legalidade», na medida em que aquela era concedida através de um acto normativo, dotado de generalidade e abstracção, que uma concepção raciona-o lista julgava incapaz de atentar contra a liberdade: a Lei. Mas este princípio da legalidade fiscal bastar-se-ia, no entanto, com um regime representativo (29). Já o orça­mento, ao contrário - ou, mais concretamente, o con­trolo sobre a despesa pública -, é muito mais um produto de uma visão conflituosa das relações entre o poder Legis­lativo e o Executivo, com evidente localização histórica: a burguesia, representada no Parlamento, quer penetrar nos dorrúnios tradicionalmente reservados ao Príncipe e à burocracia» (30).

Não ignoremos, pois, o sábio conselho de ROGÉRIO

SOARES, e não queiramos cometer os erros dos juristas que mantêm «a sua assépcia em face da influência de outros

(27) Ibidem, p. 587: a autorização parlamentar da despesa pública é já qualquer coisa de novo, porque significa também a possibilidade de o Parlamento definir políticas.

efr. ainda TROTABAS, Le droit d'initiative en l1I!ltiere de dépenses et la pratique dll régime pc.rlementaire [rançais, in cAnnales. de Finances Publi­ques-, 1936, n.O III, p. 101: +a autorização da despesa põe imediatamente em causa a actividade governamental •.

(28) efr. a introdução de RODRIGUEZ BEREI]o à tradução espa­nhola da obra célebre de LABAND, EI Derec/io Presupuestario, Madrid, 1979, p. XIV.

(29) Assim também LASSALE, cito (n. 11), p. 581. (30) ROGÉRIo SOARES, cito (n. 23), p. 148, por exemplo.

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sectores» (31). O Direito Financeiro que se afirma na época liberal tem um claro ambiente socio-político e serve intenções facilmente descortináveis. O princípio da legali­dade fiscal e a votação do orçamento aparecem nas constituições do séc. XIX como consequência da superação dos regimes absolutos, consagrando normativamente a impossibilidade de o soberano e o seu governo invadirem a esfera da propriedade e liberdade dos cidadãos, ou de realizarem gastos de uma forma absolutamente insindi­cável.

(31) IbiJelll , pp. 22 e 23.

240

CAPfrur.OIl

o DECLfNIO DAS COMPETSNCIAS PARLAMENTARES EM MATÉRIA FIN ANCElRA

1. Há, no entanto, que reconhecer que os esquemas jurídico-constitucionais podem ter «um sentido imanente que vai apontar-lhes utilidade em circunstâncias diferentes das que os viram nascer», sendo certo que s6 1 comparação entre as realidades de duas épocas ensinará o que se pedia originariamente a esses quadros e o que pode hoje rec1a­mar-se deles», conforme nos avisa o ensinamento de ROGÉRIO SOARES (33).

Decerto, a estrutura organizat6rio-funcional que se sedimentou no séc. XIX continua a ser visível nos ordena­mentos jurídico-constitucionais modernos. Mas não falta quem fale, no entanto, numa nova forma de encarar essa estrutura, nomeadamente no que diz respeito ao princípio da separação de poderes. É que, segundo parece, a sepa­ração entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo já não radica num confronto social semelhante ao que existia no período liberal, a que há pouco nos refe'rimos, até porque já não se concebem interesses da sociedade diferentes dos interesses do Estado (34). Este é hoje organizado através de uma ordenação funcional diferente (35) dos clássicos poderes de MONTESQUIEU, que já não visa realizar uma autêntica repar­tição, mas antes proporcionar um sistema de contrapesos (36) que deve actuar como obstáculo ao abuso de poder.

(33) IbiJem, p. 40. (34) lbidem, pp. 148-151. (35) A expressão é de GOMES CANOTlLHO, cito (n. 3), p. 321. (36) Cfr. ROGÉRIo SOARES, cito (n. 23), p. 153 e, expressamente

a propósito da ordenação dos poderes financeiros, CARDOSO DA COSTA,

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É por isso que não tem sentido o alerta contra a «(ruptura da divisão de poderes» (37): o princípio da separa­ção de poderes, como algo que perdurou muito para além do ambiente histórico da sua origem, tem de ser compreendido hoje no quadro do arranjo funcional de cada comtituição.

Vale, assim, a pena, mergulhar nas águas já revoltas desta questão, se com isso pretendemos conhecer melhor um determinado sistema constitucional, antes do que bra­dar contra uma possível «subversão» do sentido do Estado de direito.

Com estas cautelas, é possível falar-se, no entanto - como já se fala há algum tempo -, numa tendência para o declínio das competências financeiras do Parla­mento (38), com o significado de que, em matéria de Finan­ças Públicas, o Executivo tem vindo a ocupar-se de áreas tradicionalmente confiadas ao Legislativo, sendo inclusiva­mente este fenómeno observável, neste domínio, ao nível da importância relativa dos actos normativos respectivos. A verdade, no entanto, é que, se compulsarmos as consti­tuições dos Estados de direito, invariavelmente verificamos que os poderes de criar impostos e de votar o orçamento continuam a figurar no rol das competências parlamenta­res (39). Com que sentido se fala hoje, então, de tendência para a diminuição dos poderes financeiros do Parlamento?

Sobre as autorizações legislativas da lei do orçamento, separata do n. o esp. do cB.F.D.t, Coimbra -Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Teixeira Ribeiro, 1981 , pp. 13 e ss.

(37) GoMES CANOTILHO, cito (n. 3), p. 322. (38) Cfr. LASSALB, cito (n. 11), p. 586; MABILBAU, cito (n. 6) ,

sobretudo p. 46; LALUMIERE, Les Final1ces publiques, Paris, 1970, pp. 237 e ss.; AMATUCCI, Funzioni e disciplina dei bilancio dello Statto, Nápoles, 1972, pp. 77 a 79; A. L. SOUSA FRANCO, Manual de Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. I, Lisboa, 1974, p. 506.

(39) Cfr., p. ex., o art. 81. 0 da Constituição da República Ita­liana, os arts. 111. o e segs. da Gnltldgesetz, os arts. 34.0 e segs. da Cons-

16

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2. Em primeiro lugar, a constatação de uma progres­siva perda de significado jurídico e político do princípio da legalidade fiscal - enquanto princípio comum do Estado de direito, que reserva à lei parlamentar a tarefa de regu­lar pelo menos alguns dos elementos essenciais dos impos­tos - não é propriamente facto novo. Há já algum tempo que muitos autores, que habitualmente versam os temas do Direito Financeiro, têm assinalado um crepúsculo daquele princípio, negando-lhe hoje o relevo prático que teria tido no último século (40).

O primeiro argumento que pode sustentar uma tal atitude da doutrina - que, aliás se limita a interpretar e a dar sentido às modernas soluções constitucionais e legis­lativas, quando não, muitas vezes, a compreender a impor­tância da praxis na captação de evoluir dos institutos jurí­dicos - recolhe-se de um dos aspectos mais marcantes das Finanças Públicas modernas: a diversificação das fontes de receita do Estado (41). Com efeito, o poder de estabelecer os impostos significava, para o Parlamento clássico, um poder de decisão sobre a quase totalidade das receitas públi­cas, num tempo em que o Estado, regra geral, tinha visto reduzir-se o seu património, e em que o recurso ao crédito

tituição da República Francesa, 05 arts. 115.0 e seg5. da Con5tituição belga, os art5. 106.0 a 108.0 da Constituição da República Portuguesa

(4') Sobre o declínio do princípio da legalidade fiscal, l.-C. MAR­TINEZ, Le Statut de Contribua/e, I - L'é/aboration du Statut, Paris, 1980. CHARLES CADOUX, Du consentement de /'impôt, RSF, 1961, pp. 422 e 55.; lliNRJ Ism, Fitlances Publiques- illtroduction critique, Pari5, 1985, pp. 73 e 55.; A. AMATUCCI, cito (n. 38), pp. 71 e 5S.; KARL HaNruCH FRIAUF, na comunicação inclusa in COOMllES (ed.), cito (n. 2), pp. 66 e 55.; F. SAINZ DE BUJANDA, Lecciones de Derecho Financiero, Madrid, 1979, p. 24, p. ex.; DAVID MuLAR, Par/iamentary Control oi Taxation in Britain, in COOMllBS (ed.), cito (n. 2), pp. 198 e 55.; A. L. SOUSA FRANCO, ob. e p. cits. (n. 38).

(41) Cfr., por tod05, F. SAlNZ BUJANDA, cito (n. 40), p . 120; A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), p. 66.

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público era valorado negativamente pela doutrina, pela política e pela opinião pública (42). Hoje, as receitas tribu­tárias perderam essa importância relativa, perante o res­surgimento do património público (43) - que chega a atingir dimensões consideráveis - e o empalidecer das objecções teóricas e práticas ao recurso a empréstimos para o financiamento da despesa pública (44).

Depois, dentro do âmbito das receitas tributárias, os impostos directos têm vindo a perder terreno face ao avo­lumar da tributação indirecta, pelo menos em muitos paí­ses (45). Não se imagine, bem entendido, que a consagra-

(42) TBIXEIRA RIBBIRO, cito (n. 9), pp. 32 a 35 e 82 a 85; A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), pp. 55 a 61.

(43) TBIXBIRA RIBBIRO, cito (n. 9), p. 195; A. L. SOUSA FRANCO, cit (n. 9), p. 66.

(44) Veja-se, p. ex., a previsão de receitas públicas no Orçamento do Estado para 1987 (L. 49/86, de 31 de Dezembro): as receitas esti­madas para a totalidade dos impostos orçam em cerca de 740 milhões de contos, enquanto que o montante representado pelo recurso ao crédito é de cerca de 630 milhões de contos.

Com efeito, uma das características das finanças modernas é a reabilitação do crédito público, apresentado agora como um instrumento importante para a consecução dos fms ou das funções que com elas se pretende atingir (cfr., p. ex., TBIXEIRA RmBIRO, ob. cit., pp. 392 e ss., ANTÓNIO GAMA LOBO XA vmR, Ellqulldramento Orçamental em Portugal: "lguns problemas, R.D.E., 1983, pp. 224 e ss.). Um factor dessa reabi­litação é, com certeza, a adopção de critérios de equilíbrio do orçamento que pretendem justificar o recurso ao crédito com as mesmas razões com que ele é justificado nas finanças privadas.

Hoje, em vários países europeus tem-se falado muito de um novo tipo de receita públic.a: a venda, através de bolsa, de acções representativas do capital de empresas públicas, que assim são desna­cionalizadas ou reprivatizadas. O problema está, também, na ordem do dia da política portuguesa. Tratam-se, evidentemente, de receitas patrimoniais, e o que nelas existe de verdadell amente específico são os avultados montantes que atingiram no Reino Unido ou em França, por exemplo.

(45) Vd. J. A. STOCKFISCH, Value AJJed Taxes and the Size of Government: ,ome evidence, in «National Tax JoumaJ.., VoI. XXXVIII, n.O 4 (Dez. 1985), pp. 547-552.

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ção constitucional do princípio da legalidade, nos países a que nos vimos reportando, distingue, de algum modo, estas duas formas de tributação. A verdade é que os impos­tos indirectos têm um efeito anestésico importante (46), em termos de se poder dizer, com RAYMOND GUILLIEN, que os Parlamentos lhes prestam menos atenção, e que o pr6prio público se desinteressa das suas vicissitudes (47). Em abono de quanto dizemos estão os progressos relevantes da har­monização comunitária da fiscalidade indirecta, a par da quase absoluta intangibilidade das especificidades múlti­plas que os impostos directos apresentam nos vários Esta­dos membros (48).

Outro fen6meno actual, que contribui para esbater a prerrogativa parlamentar em que se traduz o princípio da legalidade fiscal, é o surgimento daquilo a que podería­mos chamar um «poder fiscal da Administração» (49). Não nos pretendemos referir, com esta expressão, ao facto - não menos assinalável, é certo - de ser normalmente o Governo quem se encarrega da produção de normas fiscais, cá como em outros países, ainda que ao abrigo de delegação parlamentar. É bem verdade que a complexi-

(46) XAVIER DE BASTO, Perspetivas de Evolução do Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal, separata do número especial do B.F.D.C., .Estudos em Homenagem do Doutor Ferrer Correia», Coimbra, 1987, pp. 70 e ss.

(47) R. GUUllBN, na apresentação ao artigo, já citado (n. 40), de CHARLES CADOUX, p. 426.

Cfr. ainda J.-c. MARTINEZ, cito (n. 40), p. 300, por exemplo. (48) Referimo-nos a uma quase absot'lta inexistência de progres­

sos quanto à uniformização da tributação directa porque, apesar de tudo, alguns esforços têm sido feitos, sobretudo no domínio da chamada cooperação entre as administrações fiscais (cfr. Resolução do Conselho de 10/2/75, IO, n. O 35, de 14/2/75, p. 1 e a directiva 77/799/CEE, de 19 de Dezembro, IO, n. o L. 336, 27/12/77, p. 15).

(49) I.-C. MARTINEZ, cito (n. 40), p. 116, prefere falar de uma cfmalitl administrative».

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dade crescente da actividade económica e das formas que a riqueza assume transforma em difícil tarefa a elaboração parlamentar de actos normativos acabados, em matéria fiscal: o Parlamento, frequentemente, acaba por se limitar à produção de leis muito gerais ou de autorizações legis­lativas, que o Governo utiliza, presumivelmente com melhor conhecimento de causa (50).

Com a expressão «poder fiscal da Administração» queremos designar as consequências que derivam da adopção corrente de uma técnica legislativa especial, na concepção das normas fiscais. Estas, com efeito, para pode­rem captar os fenómenos económicos que determinam a capacidade fiscal - fenómenos em permanente evolução e renovação -, têm de se socorrer do emprego de cláu­sulas gerais, conceitos indeterminados, e mesmo, nalguns casos, da concessão aos agentes da Administração fiscal de autênticos poderes discricionários (51). É que a simplici­dade do sistema fiscal clássico, focado em manifestações de capacidade contributiva simples de avaliar e apoiado em métodos indiciários, nada tem que ver com a fiscalidade das finanças modernas, altamente complexa; daí que a

(50) MARTINEZ afuma que na V República francesa todas as leis fiscais são de iniciativa governamental (ibidem, pp. 14 e 90).

Entre nós, pode quase dizer-se o mesmo, tomando um ponto de partida muito mais recuado - a Constituição de 1933. Mas ainda se pode afirmar que, pelo menos desde 1976, a esmagadora maioria das nonnas que versam sobre os elementos essenciais dos impostos são decretos-lei, emitidos no uso de autorização legislativa. A Assembleia da República tem praticamente reduzido a sua intervenção «acabada. a casos muito simples, do ponto de vista técnico, como os impostos. extraordinários criados em 1983 (v., p. ex., a L. 35/83, de 21 de Outubro);

(51) Cfr. INGROSSO, Diritto Finanziario, Nápoles, 1956, p. 65; ).-c. MARTINEZ, c:it. (n. 40), p. 62; CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, p. 153; NUNO SÁ GOMES, Lições de Direito Fiscal, «Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal., 134 (Vol. II), pp. 106 3 112.

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Administração, mais pr6xima do «real», venha desempe­nhando um papel cada vez mais importante, ao mesmo tempo que controverso (52). Além disso, os impostos já não têm hoje uma finalidade exclusivamente reditícia, assinalando-se-Ihes, ao invés, objectivos extrafiscais (53): são encarados antes como instrumento de política econ6-mica, e necessitam de alguma flexibilidade para poderem desempenhar as funções por ela exigidas. Nessa medida, portanto, o Parlamento cede o passo ao Governo, porque mais distante dos critérios de oportunidade da Economia Pública.

Não podemos esquecer, ainda, neste contexto, as manifestações daquilo que J.-c. MARTINEZ chama uma tendência para o «desmembramento da soberania fiscal» (54), como mais um factor do relativo embaciamento do relevo do princípio da legalidade fiscal. Tais manifestações podem ser enquadradas facilmente em dois tipos, cada um deles com importância suficiente para que o encaremos em separado.

Em primeiro lugar, queremos fazer uma breve refe­rência à realidade a que se vem chamando parafiscalidade. O conceito não é suficientemente transparente, e talvez por ISSO a doutrina esteja longe de concordar quando passa a

(52) Cfr., entre nós, DIOGO LEITE CAMPOS, Evolução e perspectivas do Direito Fiscal, in «Revista da Ordem dos Advogados., ano 43 (1983), pp. 662 e SS., sobretudo pp. 670 e 671. Vd., ainda, N. SÁ GOMES, loco e ob. cits. na nota anterior.

(53) Cfr. AMATUCCI, cito (n. 38), p. 63, que descreve os parâ­metros extremamente rígidos com que a Constituição italiana se refere à justiça tributária. Cfr., ainda, ALMEIDA GARRETT, Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1987, pp. 168 e ss.

Entre nós, também se poderá dizer que a Constituição de 1976 é muito minuciosa ao enunciar os objectivos extrafiscais dos impostos, no art. 107.0

(54) J.-c. MARTINEZ, cito n. (40), pp. 292 e 55.

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identificar o seu conteúdo (55): a polémica não pode, no entanto, ser aqui reatada, sob pena de, a benefício da uni­dade deste estudo, termos de ser fatalmente redutores. Procurando, no entanto, não ofender uma maioria sólida de opiniões, sempre diremos que com o conceito de parafiscalidade se quer normalmente designar uma varie­dade de formas de receita, que não são do Estado (56), no sentido vulgar do determinativo, mas antes de organis­mos públicos ou privados, para serem aplicadas nas suas fmalidades que, como regra, representam um interesse apreciavelmente geral. Entre essas formas de receita, algu­mas há que se aproximam claramente do conceito jurídico de imposto, por apresentarem um carácter coactivo e por não implicarem nenhuma contraprestação específica (ao menos actual); outras, contudo, assumem antes as carac­terísticas da taxa ou de contribuições especiais.

Ora, vem a parafiscalidade a talhe de foice, neste quadro, porque justamente a coberto desta expressão se acolhem muitas vezes autênticos impostos que, a bene­fício de uma qualquer flexibilização ou «operacionalidade», são furtados aos princípios fiscais fundamentais, como o da legalidade e o da autorização anual da cobrança - com o que, como é óbvio, se diminui implicitamente o poder fiscal do Parlamento (57).

(55) M. W ALINE, Le regime d'établissement des taxes parnfiscales RSF, 1961, p . 652; Ducos-ADBR, Le régime juridique de la parafiscalité, RSF, 1956, pp. 600 e 55.; TBlXl!IRA RIBEIRO, cito (n. 9), pp. 73 e 74; A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), pp. 501 c 5S.; NUNO SÁ GOMES, cito (n. 51), vol. l, pp. 393 e 5S.

(56) Cfr., sobre o conceito de receita do Estado, o interessante discurso de HENRI lsAiA, cito (n. 40) , pp. 40 e ss.

(57) Ducos-ADER, cito (n. 55), pp. 668 e 669; A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9). p. 502.

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Em segWldo lugar, sucede ainda que a soberania fis­cal, tradicionalmente guardada pelo Parlamento, vem sofrendo fortes reduç- es nos países que assumem compro­missos internacionais. Trata-se de um evento particular­mente visível no seio dos Estados membros da Comuni­dade Econ6mica Europeia, onde se tem progredido enor­memente através da produção de sucessivas directivas do Conselho (5 ). Estes actos normativos, como é sabido, não criam uma disciplina jurídica acabada, sendo o seu efeito típico o de impor objectivos aos Estados membros, que estes procurarão atingir tomando a~ medidas legislativas ou administrativas nacionais que julgarem adequadas: a «direc­tiva impõe ao Estado membro uma obrigação de resul­tado, deixando-lhe livre a possibilidade de escolher os meios» (59 ). Quer isto dizer que as directivas fiscais da Comunidade não excluem - sendo caso di~so - a inter­venção dos parlamentos nacionais, antes a impõem se, de acordo com cada sistema nacional, ela for imprescindível ao desenvolvimento dos regimes jurídicos que estabelecem.

Simplesmente, a configuração destes actos normati­vos comunitários chega a ser tão pormenorizada - é o caso das directivas relacionadas com o Imposto sobre o Valor Acrescentado (60) - que a tarefa do Palllamento de cada Estado, quando tem lugar, assemelha-se unicamente a uma chancela, quase integralmente vinculada. Ora são os ministros dos Governos nacionais que têm assento no

(58) Cfr. a compilação efectuada pelo Centro de Estudos Fiscais, Actos ComunitJrios em matéria de fiscal idade, CEF, (141), Lisboa, 1985.

(59) Escolhemos a expressão por se tratar de uma síntese autori­zada: P. PESCATORE, L'ordre jllridique des COl/ll1lutlatltées Européennes, 1975, Liege, p. 121.

(60) R eferimo-nos, sobretudo, como é evidente, à conhecida 6.' directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977 (77/388/CEE), JO n.O L 145, de 13 de Junho de 19n, p. 8.

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Conselho, de onde emanam aquelas directivas que, depois de aprovadas, são «impostas» aos parlamentos nacionais -quase que se poderia dizer que através de um processo dis­simulado de alteração dos equilíbrios institucionais de cada sistema constitucional (61).

Ainda neste contexto, refira-se que o Tratado de Roma, para além de exigir o estabdecimento de uma pauta aduaneira comum e a eliminação dos direitos aduaneiros ou medidas de efeito equivalente, nas relações comerciais entre os parceiros comunitários (arts. 12. o e seguintes), também impede cada Estado membro de fazer incidir sobre os produtos dos outros Estados membros imposições inter­nas superiores às que incidem sobre os produtos nacionais similares, ou que constituam protecção indirecta a outras produções. Não há dúvida, portanto, de que o Tratado CEE limita as escolhas fiscais dos parlamentos dos países mem­bros; e se, por razões conjunturais, algum Governo preci­sar de suspender a aplicação da pauta comum, é às instân­cias comunitárias que terá de pedir autorização, e não às instituições que, em princípio, ~eriam internamente com­petentes (62).

Finalmente, não poderíamos ignorar a existência do imposto a que aludem os arts. 49. 0 e 50. 0 do Tratado de Paris (C.E.C.A.), e que incide sobre a produção do carvão e do aço: trata-se de um verdadeiro «imposto supranacio­na1), cujo sujeito activo é uma organização internacional,

(61) Cfr. PAUL AMSBLBK, Les CommuIlautées Européennes et les institutio"s buJgétaires françaises, in «Annales de la Faculté de Droit de Strasbourgt, t. 27, Paris, 1975, pp. 68 e ss.

(62) IbiJem, pp. 34 e 35. Cfr., também, MANuEL PORTO, A inte­gração na CEE e a Reforma do Sistema Fiscal Portl4guês, separata do número especial do B.F.D.C. «Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Ferrer Correia», Coimbra, 1985.

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e que obriga as empresas nacionais dos Estados membros (63). Também aqui há, com certeza, uma evidente redução do poder dos parlamentos, dos quais não se poderá mais dizer que controlam todos os impostos cobrados no território sobre que exercem soberania.

3. Não falta, outrossim, quem se refira à desvalori­zação que os tempos modernos emprestaram à votação parlamentar do orçamento (64). É claro, desde logo, que as proprias limitações que apontámos ao princípio da lega­lidade fiscal poderiam aqui ser repetidas, na medida em que as escolhas orçamentais são, também, escolhas fiscais. Que­ríamos agora, no entanto, referir-nos antes àqueles aspectcs que especificamente têm que ver com o orçamento - esquecendo as questões simplesmente fiscais -, e que atestam um processo de «desparlamentarização», por assim dizer, das decisões com ele relacionadas.

Como primeira aproximação a este problema, é pos­sível dizer-se que as Finanças Públicas da nossa época apre­sentam uma característica comum: a rigidez das massas orçamentais (65). Siglúflca isto que, de ano para ano, uma percentagem esmagadora das despesas públicas vai-se tor­nando inelutável, incompressível e inexpandível, o que faz com que o parlamento ~e transforme, por ocasião dos deba­tes orçamentais, em pouco mais do que uma câmara de registo. Com efeito, grande parte das despesas públicas são apenas a consequência financeira do ordenamento jurídio

(63) DANIEL STRASSER, Les Finances de L'Europe, Bruxelas, 1980, pp. 161 e 162; LOUIS CARTOU, Droit Financier et Fiscal Européen, DALLOz,

1972, pp. 20 e 21 ; HE1.ENWALLACE, Las Finanzas de las Comunidades Europeas, trad. espanhola, Madrid, 1982, pp. 79 e ss.

(64) Vd. aut., ob. e loco citados na (n. 38). (65) J.-C. MARTINEZ, cito (n. 1), p. 79.

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preexistente, isto é, da execução das leis e do funcionamento da máquina burocrática: depois, já se vem afirmando que as despesas públicas, em muitos lugares, atingiram o limite máximo sustentável (66).

Isto tem como consequência, por um lado, uma ten­dência para a redução da manejabilidade do orçamento, enquanto instrumento de política econ6mica, mas sobre­tudo, também, uma progressiva redução da importância real da intervenção parlamentar nos debates orçamentais.

Além disso - mas também em ligação com o fen6-meno descrito -, tem assumido grande relevo, ultima­mente, a desor~amenta~ão da despesa pública (67). Trata-se simplesmente de constatar que, por toda a parte, um con­junto assinalável de despesas tem vindo a ser retirado do quadro orçamental, escapando assim à autorização prévia do parlamento e produzindo os efeitos que a clássica regra da universalidade pretendia evitar. Esta prática não é for­tuita, visando antes, pelo contrário, determinados objecti­vos: furtar sectores da actividade financeira pública à fis­calização das Câmaras e, por outro lado, deflacionar apa­rentemente a dimensão da despesa pública, medida fre­quentemente pelos números que constam do orçamento ou dos resultados da sua execução (68).

(66) Ibiáem, Introdução. V., tb., A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), p. 66: o autor, referindo-se à dimensão crescente do sector público, como característica das «finanças activas-, afirma que tO problema que daqui resulta, na actualidade, é claro: ou se muda de sistema ou se trava o crescimento do sector público-o V. ainda, na mesma obra, pp. 446 e ss., sobre a «questão do limite máximo das despesas-.

(67) Sobre o conceito de «desorçamentação- e as formas que assume nas fmanças modernas, vd. JEAN-PIERRE DUPRAT, La de'blldgé­tisation, RSF, 1972, passim. Vd., também, A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), p. 323.

(68) Cfr. M. LAUFENBU1\GER, Traité de Science et Ugislation jinatl­citres, tomo 3.° (Budget et Trésor), Paris, 1948, p. 60; LALUMIEul, cito

252

Por outro lado, os textos constitucionais e as leis contêm frequentemente regras que restringem a iniciativa dos deputados relativamente à configuração do conteúdo do orçamento. Já nutro lugar escrevemos sobre estas res­triçoes ao poder parlamentar de discutir e aprovar o orça­mento (69), e os exemplos que então enunciámos podem ser aqui reproduzidos.

O artigo 40. o da Constituição francesa impede a recep­ção de propostas, formuladas pelos deputados, que impli­quem uma diminuição de recursos públicos ou a criação ou aumento de uma despesa pública. Por seu turno, o art. 42. o

da Ordo~ttla~/ce n. o 59-2, de 2 de Janeiro de 1959, apenas permite aos deputados, aquando do debate em tomo da «Loi de Fi/la/lces» anual, as iniciativas que signifiquem a supressão ou redução efectiva de uma despesa, o acres­cento de uma nova receita ou, ainda, as que se destinem a assegurar o controlo das despesas públicas (70).

Em Itália, como a Constituição proíbe o esta beleci­mento de novos impostos ou novas despe~as através da «Legge di Bilancio», encontra-se reduzido o direito parla­mentar de emenda a modificaçõe~ quantitativas ou supres­soras (71).

Em Inglaterra, embora não haja uma regulamentação homogénea do ciclo orçamental, existem regras internas da (<House oI COmmOI1S» (standi'~g order n. o 89, aprovada em 1713 e emendada em 1852 e 1866) que se referem ao direito par-

(n. 38), pp. 56 e S5.; J.-P. DUPRAT, cito (n. 67), p. 159; A. L. SOUSA FRANCO,

cito (n. 9), p . 323. (69) Cfr. AmÓNJO GAMA LOBO XAVIl!R, (n. 44), pp. 224 e ss. (70) LAWMIE!rn, cito (n. 38), pp. 270 e S., MARTINBZ, cito (n. 1),

pp. 117 e 55.; LOlc PHII.IP, Le dToit cOlIstitutio/mel des fillallces publiq'les, R.F.F.P., 1984, pp. 129 e ss.

(71) INGROSSO, cito (n. 51), p. 53; AMATUCCI, cito (n. 38), pp. 173 e 5S. e pp. 206 e ss.; BUSCBMA, II Bilal1cio, Milão, 1966, p. 121.

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lamentar de introduzir modificações na proposta de orça­mento: os deputados não podem propor o aumento das despesas ou o aumento das receitas, sendo-lhes permitido, no entanto, quanto a estas últimas - ao contrário do regime francês -, concorrer para a sua diminuição (72).

Na Alemanha, finalmente, o poder de introduzir redu­ções nas despesas orçamentais é limitado, antes de mais, pela existência prévia de leis que implicam despesas públi­cas (obrigat6rias). Depois, o art. 113. 0 da Grundgesetz estabelece um autêntico direito de veto, ao dispor do Governo, sobre as alterações pretendidas pelos deputados que signifiquem diminuição das receitas e aumento - quan­titativo ou qualitativo - das despesas públicas (73) (74).

Julgamos ainda que, a este tipo de preceitos constitu­cionais ou legais, se pode juntar um outro, constituído por uma série de expedientes que o direito comparado nos revela, que permitem a flexibilização da execução orçamen­tal, chegando mesmo ao ponto de conferir ao Governo o poder de - em determinadas circunstâncias - alterar, sponte sua, o que foi votado pela assembleia parlamentar (75).

Finalmente, também é verdade que a pertença a orga­nizações econ6micas internacionais pode ser responsável

(72) JOBL MOLINIBR, Parliament's jinantial powers: a comparison between France atld Britain, in COOMBES (ed.), cito (n. 2), pp. 163 e ss.; DAVID Mn.LAR, cito (n. 40), p. 20l.

(73) K. H. FRIAUF, Parliamentary COtltrol of the Budget iII the Fede­rai Republic of Germony, in COOMBES (ed.), cito (n. 2), pp. 66 e ss.; Mus­SGNUG, cito (n. 5), pp. 202 e ss.

74 Mais tarde voltaremos, a propósito do direito orçamental português, aos regimes constitucionais e legais que vigoram noutros países e à análise do seu significado.

(15) Também à frente versaremos este tema em pormenor, ficando-nos agora pela indicação de MARTINEZ, cito (n. 1), pp. 105 e ss. , e CHARLES DEPOORTBRE (aut. princ.), Les systemes et les procédures budgé­taires apliqués au budget de I' État dalls les pays membres de la Coml/llmauté, in -.Économie Européennet, n.O 15, Março de 1983, pp. 113 e ss.

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por uma redução do papel parlamentar no que ao orça­mento diz respeito. Agora, estamos outra vez a pensar, sobretudo, nos efeitos produzidos pela adesão à Comuni­dade Económica Europeia nas instituições financeiras públi­cas dos Estados membros.

Desde logo, podemos dizer que o Tratado de Roma (CEE) limita implicitamente a utilização dos orçamentos nacionais como instrumento de estabilização económica. Com efeito, o § 1. 0 do alt. 103. 0 CEE declara a política de conjuntura dos Estados membros «uma questão de inte­resse comum» e os §§ seguintes do mesmo artigo estabelecem mesmo as possibilidade de a Comissão e o Conselho apro­varem medidas «apropriadas à situação~ de desequilíbrio económico concreta. Além disso, o~ arts. 104. 0 e segs. CEE introduzem regras comuns para a resolução dos problemas da balança de pagamentos com vista à coordenação das políticas económicas. É certo que, em nenhum dos casos referidos, existe qualquer alusão aos orçamentos nacionais. Mas, conhecendo-se a interdependência entre os instru­mentos de estabilização económica, não nos restam dúvidas de que o conteúdo daqueles orçamentos pode ter - ao menos em parte - uma configuração «imposta» pelas instâncias comunitárias: não será ousado dizer-se, em qual­quer caso, que a política orçamental dos Estados membros não é inteiramente livre, pelo que não o é também a deci­são sobre ela tomada pelos respectivos padamentos (76).

Devemos, no entanto, fornecer outros a~pectos mais significativos para este ponto de vista, até porque se pode dizer, com pessimismo, que os avanços da coordenação comunitária das políticas económicas são claramente negligenciáveis.

(76) J.-c. MARTINEZ, cito (n. 1), pp. 85 e 86; P. AMsElEK, cito (n. 61), pp. 45 e 55.

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Repare-se, então, que determinadas despesas do Orçamento Geral são realizadas nos Estados membros sem transitarem pelos orçamentos nacionais, o que mostra que, contra os princípios que vigoram na maioria dos tais paí­ses, há despesas eminentemente públicas que são realizadas nos seus territ6rios sem que os mecanismos institucionais normais - maxime, votação parlamentar - tenham sido accionados (77). Há, por outro lado, determinadas despesas «internas», relacionadas com as Comunidades, que se costu­mam inscrever nos orçamentos de alguns Estados membros, quando é certo que tem pouco sentido submetê-las à vota­ção parlamentar, porque são inelutáveis em razão dos com­promissos nacionais assumidos e ratificados: há países da CEE, por exemplo, que inscrevem nos seus orçamentos como despesa o montante de recursos pr6prios que são obrigados a transferir para o orçamento comunitário, quando se sabe que tais recursos, uma vez constatados, são automaticamente considerados como pertencentes ao domí­nio das «Finanças da Europa» (78).

Mas há ainda mais para dizer. O art. 4. o do Tratado C.E.C.A. e os arts. 92. 0 e seguintes do Tratado CEE proibem a realização de despesas públicas que signifiquem auxílios concedidos pelo Estado a empresas públicas ou privadas, quando tais auxílios falseiem ou ameacem fal­sear a concorrência. Note-se que o art. 93. o CEE prescreve mesmo os moldes em que Comissão deverá efectuar o con­trolo dos auxílios de Estado e as consequências da violação do art. 92. o já referido (79).

(71) P. AMSBLEK, cito (n. 61), pp. 22 e 23. (78) PAUL AMSBLEK, cito (n. 61), p. 26. (79) Cfr., por todos, sobre este tema, J. M. CASEIRO ALVES,

Incentivos ao desenvolvimento regional- sua compatibilidade com as nort/U./s comunitárias de concorrência, Coimbra, 1985, ed. da Comissão de Coor-

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Quer dizer: os Governos e os Padamento~ dos países pertencentes à CEE não podem mais eleger, sem constri­ções graves, as finalidades das despesas públicas (80).

4. Parece adquirido, em primeiro lugar, que a confi­guração constitucional dos clássicos institutos do Direito Financeiro - através dos quais se exercem as competên­cia~ parlamentares, neste domínio - mantém os seus tra­ços característicos nos Estados de direito democráticos, apesar de, como vimos, algumas constituições (e mesmo algumas legislações) apresentarem preceitos que limitam a iniciativa parlamentar no que às Finanças Públicas con­cerne.

Mas não é sobretudo aqui que se devem procurar os indícios do propalado declínio. Não podemos dizer, com efeito, que o enunciado do princípio da legalidade fiscal seja hoje radicalmente diferente da redacção utilizada nas constituições do séc. XIX para afirmar a necessidade do con­sentimento dos impostos pelo Parlamento; e procuraremos infrutiferamente argumentos textuais para mostrar que o orçamento a que se referem as constituições hoje em vigor tem uma arquitectura fundamentalmente diversa da que

denação da Região Centro (Série mstudos Europeust), passim: o autor analisa profundamente o sentido dos arts. 92. o a 94. o do Tratado CEB, permitindo-nos tirar as conclusões que ficam no texto.

(80) Podemos dizer, pois, que o Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias é um verdadeiro trataJo que compromete as Finanças Aíblicas portuguesas, para usarmos a expressão feliz da Cons­tituição francesa da V República (arc. 53. o): as suas implicações directas significam não s6 a diminuição de recursos do Estado Contratante (v. g. o financiamento do F.E.D.), mas ainda, de um modo geral, repre­sentam um novo enquadramento das finanças portuguesas, necessaria­mente mais vinculado, como mostrámos (cfr., sobre a expressão etraités engt<geant les FiliaI/ces Je l' État», FRÉDERIC SUDRE, RFDIP, 1976, t. LXXX, Paris, pp. 163 e ss., e L. TROTABAS e J. M. COTTBRBT, Finauces Publiques, Dalloz, 4.0 ed., 1970, pp. 59 e ss.).

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apresentavam as suas antecessoras, no século passado. Pode é dizer-se, antes, que o princípio da legalidade tem hoje outro sentido no Estado moderno e exprime-se por for­mas diferentes; pode é dizer-se, antes, do mesmo modo, que o orçamento assume funções, no «ambiente» das finan­ças modernas, que não teriam qualquer sentido na época em que foi originado.

Assim, quando se fala na crise do Direito Finan­ceiro (81), pretende-se pôr em destaque que a transforma­ção radical da parcela do «rea1> que com ele se pretende regular acarretou a decrepitude das suas construções jurí­dicas. Não falta mesmo quem acredite que a modificação acelerada do fenómeno financeiro e a multiplicidade das diferenças que separam as finanças modernas das finanças clássicas são razões decisivas para que se duvide da sufi­ciência do travejamento clássico daquele ramo do Direito, cuja sobrevivência parece anacrónica (82).

Claro que a evoJução das fmanças públicas representa quase uma «revolução», cujos contornos seria fastidioso aqui relembrar pormenorizadamente (83). Sempre se dirá, contudo, que o estádio actual dessa evolução no~ mostra a predominância do interesse pelos efeitos económicos da actividade fmanceira e, mais do que isso, pela forma como esta há-de ser orientada, para que se atinjam determinados objectivos económicos. Daí que se tenda a desvalorizar o Direito Financeiro, e a «despolitizá-lo» (84) em nome da tecnocracia: estabelecer os impostos ou definir o orçamento

(81) A. L. SOUSA FRANCO, Dez ali OS de evolução do Direito Finan­ceiro portugu2s -1974/1984, ,R.O.A., ano 45, 1985, pp. 668 e ss.

(82) Cfr. COOMBES (ed.), cito (n. 2), p. 366. (83) Sobre o tema cfr., sobretudo, P. LUUMIEu, cito (n. 38),

p. 240, e A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 9), pp. 64 e ss. (84) Cfr. J.-C. MARTINEZ, cito (n. 1), p. 3.

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já não podem ser actividades que exprimem apenas a defe~a da esfera dos particulares ou outro qualquer sentido mera­mente político; tratam-se antes de peças de uma engrena­gem - «misteriosa parl os políticos e transparente para os técnicoS» - mediante a qual o Estado pretende prosseguir uma função eminentemente transformadora, em direcção à estabilização económica, segundo os critérios do tempo e do lugar ( 5).

A realidade que o Direito Financeiro visa disciplinar mudou, portanto. Mas também as circunstâncias políticls e históricas são hoje diferentes daquelas que viram nascer os princípios deste ramo da ciência jurídica. A divisão de poderes entre o Executivo e o Legislativo já não é pro­duto de uma luta entre forças sociais, como n~ sua matriz, mas uma distribuição funcional de tarefas para a orga­nização do Estado (86). É por isso, aliás, que as com­petências financeiras dos parlamentos já não são focadas sobretudo pelo ângulo da sua feição garantística - e já não são modos de afirmação política -, sobressaindo mais a sua vertente organizatória: os actos normativos que versam sobre os elementos essenciais dos impostos ou que expri­mem a decisão orçamental são da competência das Câmaras, não porque assim se limita o poder Executivo a benefício da liberdade e propriedade dos cidadãos, mas porque os domínios mais relevantes para a vida do Estado democrá­tico carecem do pronunciamento da instituição parla­mentar (87).

(85) Vd.., sobre a -justiça frnanceirv, SAlNZ BUJANOA, cito (n. 40), pp. 145 e 5S., e EuGÉNIO SIMON ACOSTA, El Derecho Fillnnciero y la Cienda Jurídica, Bolonha, 1985, pp. 191 e 192.

(86) Ctt. GOMES CANOTILHO, cito (n. 3), pp. 521 e ss. (87) Daqui não se conclua que pretendemos insinuar que os

institutos clássicos do Direito Financeiro se desrevestiram, em abso )uto ,

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Não se julgue, no entanto, que estamos a aSSlstrr a uma ruptura, mas antes a uma adaptação. A aparelhagem do Estado moderno é, ainda, útil, e pode funcionar, desde

da sua feição garantística. Se é certo que o princípio da legalidade per­deu o sentido de auto-tributação, não é menos verdade que ele significa, ainda hoje, uma protecção dos cidadãos contra o arbítrio da Adminis­tração, na medida em que a esta não fica confiada a tarefa de defuúr os factos tributários e os sujeitos passivos das relações jurídico-fiscais (pelo menos). Por outro lado, o orçamento continua a desempenhar, como veremos, uma função muito importante no domínio da previsi­bilidade das situações futuras, o que parece constituir uma garantia assinalável numa ceconomia de mercado».

O Ac6rdão n. O 48/84 (proc. o 11. 0 76/84, pub. no D.R., II Série, 11. 0 158, de 10/7/1984) do Tribunal Constitucional, veio fornecer um contributo importante para a compreensão desta necessidade de focar os velhos princípios - ou as velhas formas - em novos contextos. S6 seríamos justos, no entanto, acrescentando que o referido Ac6rdão é paradigmático porque reproduz adequadamente o que já tinha escrito CARDOSO DA COSTA, sobre este tema, vários anos atrás (cfr. CI/rso de Direito Fiscal , 2.' ed., actual., Coimbra, 1972, pp. 166 e 167). O Pre­sidente da República havia requerido a apreciação preventiva da cons­titucionalidade de um preceito contido num decreto-lei,registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n. O 256/84, que visava introduzir alterações no C6digo do Imposto Complementar. Apa­rentemente, tal decreto-lei deveria ter sido emitido no uso de autorização legislativa, concedida pela Assembleia da República, porque versava sobre as matérias que a Constituição reserva à lei (art. 106.0). Ora o problema que se discutia era justamente o da existência prévia dessa autorização, c o da sua compatibilidade com outras que constavam do Orçamento do Estado para 1984 (L. 11 . 0 42/83, de 31 de Dezembro).

Não vamos aqui examinar todo o conteúdo da controvérsia que o Ac6rdão do Tribunal Constitucional dirimiu. Apenas nos interessa sublinhar que o Governo, na sua resposta, alegava que o princípio Cm) taxatioll wit!lOut representatio/I» não ficava prejudicado quando o Executivo invadisse a competência das assembleias parlamentares para beneficiar os contribuintes. Revelava-se, assim, claramente, um conceito clássico do significado do princípio da legalidade, uma vez que este era encarado apenas do ponto de vista da protecção dos contribuintes. Nada melhor do que recordar, então como agora, as esclarecidas palavras de CARDOSO DA COSTA (que o Ac6rdão mencionado também repetiu): mum modelo intervencionista do Estado, promotor de justiça e do pro­gresso s6cio-cultural e econ6mico, como é o Estado tsociaI.. dos nossos dias, há que procurar o fundamento da exclusiva competência parla-

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que se adaptem estruturas, princípios e conceitos a uma nova realidade (88). Os quadros sociais e políticos são indispen­sáveis para o conhecimento do fen6meno financeiro e para a descoberta do sentido dos preceitos jurídicos que o regem (89); daí que não possam ignorar-se os contributos actuais da Ciência Política e do Direito Constitucional, sob pena de não podermos captar verdadeiramente a actividade financeira e o Direito Financeiro (90).

5. Em abono do que dissemos, de resto, pode apon­tar-se o aparelho institucional da C.E.E., ou, mais concre­tamente, o seu direito orçamental. Repare-se, na verdade, em primeiro lugar, que na origem do Parlamento Europeu se encontram debates políticos muito semelhantes, mutatis mutandis, aos que precederam o surgimento dos parla­mentos dos Estados membros (91).

Pode dizer-se, julgamos, que as chamadas «Finanças da Europa» surgem com o irúcio do desempenho da polí­tica agrícola comum, a qual, por sua vez, foi a razão deter­minante da célebre decisão de 26/4/70, que estabeleceu os recursos pr6prios comunitários (92). Quando, de facto, a C.E.E.

mentar para a criação de impostos mais na ideia democrática que este prinópio (auto-tributação) encerra do que naquilo que ela possa ter d liberal.

Vd., tb., neste sentido, INGROSSO, cito (n. 51), p. 63. (88) Cfr. ROGÉRIo SOARES, cito (n. 24), p . 8. (89) cfr. LAr.UMIEru!, Les cadres sociaux de la co/",aissatlce ji/ltlllcierl',

in R.S.F., 1963, pp. 30 e ss. (90) P. M. GAUDEMBT, L'apport de la Science Fi/lanciere à la Scie/lu

Politique, RFSP, vol. XV, n.O 1, Fev. 1965, passilll. (91) CHRlSTOPH SASSB, Le reforcement des pouvoirs du Parlement,

I't splcialement ses tlouveaux pouvoirs budgétaires, in eLe Parlement Euro­péen., LE.S.E., Liege, 1976, pp. 21 e ss.

(92) cfr. SASSE, cito (n. 90), p. 26; vd., th., CH.-ALBERT MORANO, Le contróle délllocratique dans les cOllllllunautls européelllll's, in ele Par­lement Européen., coletânea ref. (n. 90), pp. 73 e 55.

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passa a dispor deste tipo de recursos, e quando passa a efec­tuar despesas no territ6rio dos Estados membros, concreti­zando políticas devidamente determinadas, pode-se falar numa actividade filtanceira de n{vel superior àquela que é desenvolvida pelas instituições nacionais competentes, e tem sentido encetar confrontos com os modelos federalis­tas (93). Repare-se, na verdade, que as razões decisivas para a constituição de um parlamento europeu, bem como para a evolução, no tempo, das suas competências «ConstitucIonais», derivam do facto de a Comunidade desenvolver uma autên­tica actividade fmanceira - supraordenada, se se quiser.

Entendeu-se, em primeiro lugar, que a autonomia da C.E.E. se devia justificar com os mesmos meios com que se justifica a autoridade nos Estados membros: o sistema demo­crático parlamentar. E porque se achou conveniente seguir o modelo político de tais Estados, também se entendeu que a possibilidade de dotar a Comunidade de recursos próprios teria de ser acompanhada da atribuição ao Parlamento Europeu de poderes de controlo democrático sobre a apli­cação desses recursos (94).

Assim é que se compreende que esta instituição comu­nitária tenha recebido dos Tratados poderes financeiros antes de receber poderes legislativos - tal e qual o que aconteceu, como regra, com os seus congéneres nacionais. E veja-se que a distribuição da quantidade global de poder financeiro entre o Conselho e o Parlamento Europeu não pode ser apelidada de inédita: trata-se antes de uma divisão de poderes ao estilo clássico das monarquias constitucio-

(93) F. FORTE, II Bila/lcio /leU' Economia Publica, tom. III, 1986, pp. 515 e 55., e RAM6N FALc6N Y TBLLA, IlItroducción ai Derecho Fina/!­ciuo y Tributario de las Comullidades Europeas, Madrid, 1988, pp. 367 e 55.

(94) Cfr. SASSB, cito (n. 93), p. 26; vd., tb., CH.-ALBBRT MORANo,

cito (n. 90), pp. 73 e ss.

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nais (95), em que o governo não é designado pelo parla­mento ou por seu intermédio, e em que e~te último não dispõe de apreciável intervenção no processo legislativo. Com efeito, pode dizer-se que a assembleia europeia dis­põe, apenas, de substanciais poderes financeiros.

O Parlamento Europeu divide, de facto, com o Conse­lho, os poderes relacionados com a configuração do Orça­mento Geral comunitário. O Tratado de Roma, após algumas evoluções, reserva à instituição parlamentar um autêntico direito de emendar o projecto de Orçamento Geral- cuja apresentação constitui iniciativa exclusiva do Conselho -, no que diz respeito às chamadas despesas mão obrigatórias»: estas são fixadas definitivamente pelo Parlamento, se bem que dentro dos limites fornecidos por uma taxa máxima de aumento constatada pela Comissão a partir de dados macroeconómicos (cfr. n. o 9 do art. 203 CEE). Para além disso - ainda no que concerne à interven­ção parlamentar na configuração do conteúdo do Orçamento Geral-, dispõe ainda do poder de propôr modificações do quadro das «despesas obrigatórias». Depois, ao Parla­mento Europeu pertence, hoje, a decisão final sobre a apro­vação ou rejeição do Orçamento Geral. E, se a aprovação tem o sentido normativo de que adiante se falará (96), a rejeição desencadeia a necessidade de recorrer a um proce­dimento especial, semelhante ao que vigora em muitos países membros: a execução por duo décimos do Orça­mento do ano anterior (cfr. art. 204. ti CEE) (97).

(95) Ou, se quisermos acompanhar FORTE, trata-se de wna divisão de poderes que ainda hoje se encontra em sistemas bicameraüsta5 (cfr. , do autor referido, ob. cito (n. 94), p. 455.

(96) Vd. iufra, pp. 183 e ss., (n. 344). (97) V., por todos, STRASSER, cito (n. 63); pp. 35 c ss. c, do mesmo

autor, Actltalité des finances de la COI/I/llJ/tlrllluté el/lopéell/Je, R.F.F.P. , n. o 4, 1983, pp. 1 e 55.

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Por outro lado, assistem a esta instituição comunitá­ria amplos poderes de fiscalização da execução orçamental, que se concretizam num controlo contínuo, realizado pela Comissão dos orçamentos, ou numa apreciação final , a posteriori, formalizada pelo instituto da quitação ou «pou­voir de décharge>, (algo de semelhante à aprovação de uma Conta) (98).

Finalmente, deve dizer-se que, no capítulo das altera­ções do Orçamento Geral que se revelam necessárias durante a sua execução, o Parlamento Europeu dispõe de poderes que às vezes ultrapassam aqueles de que gozam os parla­mentos nacionais: a alteração das despesas «não obrigató­rias» carece sempre do seu pronunciamento prévio (99).

A bem dizer, a semelhança profunda entre os poderes financeiros do Parlamento Europeu e os dos parlamentos nacionais apenas sofre uma restrição - e não é uma restri­ção de somenos: referimo-nos ao poder de criar receitas. Na verdade, se foram os recursos próprios que originaram as competências fmanceiras da Assembleia de Estrasburgo, isso não significa que lhe tivesse sido atribuída a faculdade de interferir na sua configuração. As decisões que a estes recursos respeitam são tomadas pelo Conselho, por unani­midade, ficando depois sujeitas a ratificação pelos Estados

(98) V d. STRASSI!R, L' exercice par le Parlement Européen de son pouvoir de décflarge pour les exercices budgétaires de 1981, 1982 et 1983 des COlllllllmautés Européennes, in R .M.C. , n.O 292, Dez. 1985, pp. 611 (' ss.

(99) Com efeito, como veremos à frente, não é exacto d;zer-se que, nos ordenamentos jurídicos estruturados com base no princípio do Estado de direito, o orçamento s6 pode ser alterado mediante nova inter­venção rectificadora do Parlamento. No entanto, o n.O 2 do art. 21.° do «Regulamento Financeiro. (21 /Dez/77, lO, n. ° L 356, de 31/12/77) estabelece que as transferências entre capítulos do Orçamento Geral têm de ser autorizadas pelo Parlamento Europeu, desde que respeitem a «despesas não obrigatórias •.

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membros, «em conformidade com as suas no unas consti­tucionais respectivas» (cfr. § 3 do art. 201 CEE).

Seja como for, o rol dos poderes financeiros do Par­lamento Europeu tem dimensão que baste para se ver que, para o legislador comunitário de 1975 (100) - há 12 anos, somente -. o direito orçamental baseado nos padrões do séc. XIX tinha ainda suficientes virtualidades para exprimir o princípio democrático e para servir como modelo orga­nizatório para as «Finanças da Europa».

6. Nas páginas anteriores esteve sempre presente a relação íntima que existe entre o princípio da legalidade fiscal e o princípio da votação anual do orçamento - insti­tutos que representam os poderes financeiros mais rele­vantes dos parlamentos. Essa relação íntima é, em primeiro lugar, cronológica ou histórica: apesar de ser medieval a origem do consentimento dos impostos, é no quadro do liberalismo económico, político e jurídico que tal consen­timento ganha caracteres firmes e uma aptidão para a sobrevivência cujo~ limites são imprevisíveis, apesar de tudo. Só então, de facto, o consentimento dos impostos aparece sob a veste de princípio da legalidade, não apenas porque passa a exprimir-se pela forma normal dos actos normativos parlamentares, mas também porque deve par­ticipar das características essenciais da lei - generalidade e abstracção -, condição para que não ofenda a liberdade e a igualdade (101). Ora, vimos também que é no mesmo

(100) Referimo-nos à feitura do Tratado de Bruxelas de 1975, porque a partir dele o direito orçamental comunitário ficou consolidado.

Cfr., também, JEAN VERGEs, Le financement de la Comlllunallté europétttne, e ALDO PERRON, Le droit budgétaire des communautés e.lropéeu­nes, respectivamente, pp. 9 e SS. e 70 e ss. da R.F.F.P., 1983, n.O 4.

(101) TltOTABAS e COTTBRET, cito (n. 80), p. 476.

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quadro que o orçamento se institucionaliza, juntando-se ao princípio da legalidade para acrescentar a necessidade de contrôlo do destino que é dado ao produto dos impostos.

Mas aquela relação íntim que anunCIamos passou a ter, sobretudo, um significado funcional. É que, quando os impostos adquirem a natureza de receita ordÍltária e se constituem num sistema mais ou menos coerente, perde-se de vista que o princípio da legalidade fiscal significa auto­-tributação. Na verdade, tendo hoje os sistemas fiscais uma existência que perdura por vários períodos financeiros (102), a reserva de lei parlamentar, neste domínio, deixou de ser encarada como express -o de /tlll cOllswtime/lto do imposto, passando antes a constituir simplesmente, uma regra cons­titucional sobre as fontes do Direito Fiscal. Uma tal ideia de consentimento é muito mais sensível através da votação anual do orçamento, uma vez que esta significa, pelo menos, a publicitação periódica dos motivos que justificam o~ tri­butos. Aliás, nos sistemas em que o orçamento fixa um quadro fiscal, as garantias que o princípio da legalidade originariamente visava assegurar (v. g., previsibilidade) são propiciadas, com mais evidência, pelo Direito Orça­mental (103).

(102) Falando da estabilidade dos sistemas fiscais das sociedades democráticas modernas, JOHN G. MBAD e RICHARD M. BIRDS falam do seu carácter equasi-colIstitutioflal. (cfr. cTax policy options in the 1980's>, in COII/parative T(/x Studies - Essays iII trono"r of Rich(/rd Goode, Ams­terdão, 1983, pp. 4 e 5, (n. 4)).

(103) A este tema voltaremos, à frente . No entanto, diga-se desde já que, nos ordenamentos em que vigora o princípio da autorização anual da cobrança dos impostos, a votação do orçamento constitui uma autêntica garantia dos contribuintes: «estes conhecerão com o rigor possivel, mediante a aprovação do Orçamento, as obrigações fiscais que, em cada ano, sobre eles irão impender - o que se reflectirá, obvia­mente, na programação da sua vida econ6mica •. (err., do autor, ob. cil. (n. 44), p. 241.

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Esta interligação histórico-funcional destes dois insti­tutos do Direito Financeiro está com certeza patente na c oluçao que sofreram e que há pouco nos esforçámos por surpreender. Temos, com efeito, de distinguir os momen­tos históricos quando queremos referir-ncs ao significado jurídico-político do orçamento: então, cnc ntraremos um (torçamcllto-registo-limit(!l), no período das finança clássicas, e um «orçal/letlto-programa-illterl'wção», como instrumento característico da acti idade fmanceira moderna. Do mesmo modo, havemos de destrinçar a época em que o princípio da legalidade significava auto-tributação daquela em que sobressai antes como mero aspecto da organização funcional das finanças «democráticas>'.

É por isso que todas as limitações que apontámos à expressão moderna dos poderes financeiros dos parlamentos podem ser vistas co mo produto da evolução da realidade que o Direito Financeiro pretende enquadrar. Veja-se, con­tudo, que as próprias «Finanças da Europa» - que encar­nam um dos aspectos mais marcantes daquela evolução referida, e que não é outro senão o da tendência para a integração (ou internacionalização) da actividade frnan­ceira (1Q.1) - não prescindem de uma estrutura jurídica baseada nos princípios clássicos, por mais que se insista na sua modernidade. É, assim, possível dizer-se que aí onde há bens públicos e receitas públicas, produzidos uns e cobradas outras por uma instituição nacional ou interna­cional, para cumprimento de fmalidades institucionais, aí também existem normas jurídicas que disciplinam essa rea-

(104) Não se pode também esquecer outra característica das fmanças modernas' a descentralização. É que se a actividade fmanceira se desenrola, hoje, num nível supra~tadual, também não é menos verdade que ela vai :tssunúndo cada vez mais relevo no nível local ou descentralizado (cfr. T.-C. MARTINEZ, cito (n. 1), p. 3.

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lidadé, segundo o padrão básico do Direito Financeiro clássico - desde que, bem entendido, se respeite o prin­cípio democrático.

Eis, pois, argumentos de sobra para quantos ainda se preocupam em assegurar que não seja negada autonomia ao Direito Financeiro e ao princípio que lhe fornece uma apreciável homogeneidade: o princípio da <<legalidade financeira». E, quanto à anunciada crise deste ramo do Direito, bem poderá pensar-se que estamos apenas no meio de um processo de superação dos seus aspectos tipicamente liberáis (105): ontem, era um Direito impregnado de preo­cupações te6rica~ e políticas com a neutralidade das finan­ças, com o equilíbrio do orçamento, com o auto-consenti­mento dos impostos e com uma justiça formal da tributa­ção; hoje, embora ainda ligado às questões político-consti­tucionais, aos pr6prios efeitos da actividade financeira sobre a esfera dos particulares, o Direito Financeiro precisa de apreender os novos aspectos que caracterizam as finanças intervencionistas. Parece-nos seguro que, por exemplo, desde que o Estado passa a intervir activamente na Econo­mia, a despesa pública tem de alcançar um lugar seme­lhante ao do imposto, no seio do Direito Financeiro (106), seja qual for a hierarquia das nossas preocupações. Pode afirmar-se, por um lado, que a despesa pública é susceptí­vel de afectar os direitos dos cidadãos pelo menos tanto quanto o imposto, embora de forma menos visível; e, por outro, que não tem sentido falar-se de justiça fiscal sem que se procure uma justi~a do gasto público (107).

(105) Cfr., sobre o tema, A. L. SOUSA FRANCO, cito (n. 82), possilll. (106) Vd. JAVIER SAlNZ MORENO, E/ellle/ltos de Derecl,o FitlO/lciero ,

t. L, Madrid, 1983. (107) Sobre a ideia de justiçll fi/lOIlCeirll, EUGÉNIO SIMON ACOSTA,

cito (n. 85), pp. 191 e ss. Aliás, não faltam hoje estudos a demonstrar que, em vários países

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A nova realidade das finanças públicas não reclama, por si, a desvalorização da vertente garantística do Direito Financeiro, que muitos apontam como o maior sintoma da crise deste ramo do Direito. pelo contrário, segundo cre­mos: o predomínio do econ6mico sobre o jurídico e o político antes 110S faz pensar se a~ velhas garantias emble­máticas do ordenamento jurídico-financeiro não serão e cassas primeiro do que caducas.

Continua no Vol. XXXIV de 1991

ANTÓNIO LOBO XA V1ER Faculdade de Olrello de Coimbra

industrializados, o sistema de transferências tem muito mats Impacto sobre a distribuição de rendimento do que o sistema ftscal (cfr., p . ex., JOSEPH A. PECHMAN,W"O pajJ the taxes, 196&-85, Broockings]nst. , 1985, pp. 4 e 55.).

vd. tb. JOHN F. WITTE, A [ollg view oJ Ta.\: ReJo"", in N.T.J., Vol. :XXXIX, n.O 3, Set. 86, p. 259: para o autor, é natural que um sis­tema (fIScal) pensado para proteger os cidadãos do Governo não fun­cione bem quando o Governo actua como «prestador».