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O ocidente Texto escrito pelo prof. Ms. Atson Paulo B. Santos como material de apoio para a disciplina de filosofia da Escola Estadual Professor Abel Freire Coelho. 1. O Conceito de Ocidente Inúmeros países do mundo, diferentes em inúmeros aspectos, estão agrupa- dos sob o título de “Ocidente”. O termo ocidente vem do latim occidens, que significa “lugar onde o Sol se põe”. Nesse sentido, ocidente seria sinônimo de oeste, isto é, um dos quatro pontos cardeais (além do norte, sul e leste). O termo ocidente, no entanto, pode significar algo diferente de um ponto cardeal, especialmente quando grafado com a letra “o” em maiúsculo: Ocidente. Nesse caso, não estamos falando de uma forma de orientação espacial ou geográfi- ca, mas um conjunto de características culturais compartilhadas por inúmeros paí- ses do mundo: países que podem, inclusive, não estar geograficamente no ocidente (com “o” minúsculo, significando oeste) do mundo. Em termos de orientação geográfica, o Meridiano de Greenwich divide o mundo em ocidente (oeste) e oriente (leste). No entanto, vários países – como a Fran- ça, Itália, Alemanha e Austrália - estão ge- ograficamente na parte oriental do mundo e, no entanto, são países de cultura ociden- tal, isto é, pertencem ao que chamamos de Ocidente. No entanto, o que é Ocidente? O termo Ocidente é utilizado para indicar uma rica e complexa herança: a) uma herança de valores morais, tais como a empatia e a tolerância, que devem pautar (e possibilitar) a convivência humana da maneira mais pacífica, solidária e próspera possível; b) uma herança de leis e práticas políticas sedimentadas em um sistema político específico – a democracia, assim como uma enormidade de ideais e esperanças depositadas no aperfeiçoamento desse sistema; c) uma herança de saberes tecnológicos e científicos e, por fim, (d) uma herança de saberes que chamamos de sapienciais, isto é, que podem auxiliar o ser humano a dar sentido e beleza à sua existência, que podem ajudá-lo a encontrar à felicidade - saberes estes que estão presentes especialmente na arte e na filosofia.

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O ocidenteTexto escrito pelo prof. Ms. Atson Paulo B. Santos como material de apoio para a disciplina de filosofia da Escola Estadual Professor Abel Freire Coelho.

1. O Conceito de Ocidente

Inúmeros países do mundo, diferentes em inúmeros aspectos, estão agrupa-dos sob o título de “Ocidente”. O termo ocidente vem do latim occidens, que significa “lugar onde o Sol se põe”. Nesse sentido, ocidente seria sinônimo de oeste, isto é, um dos quatro pontos cardeais (além do norte, sul e leste). O termo ocidente, no entanto, pode significar algo diferente de um ponto cardeal, especialmente quando grafado com a letra “o” em maiúsculo: Ocidente. Nesse caso, não estamos falando de uma forma de orientação espacial ou geográfi-ca, mas um conjunto de características culturais compartilhadas por inúmeros paí-ses do mundo: países que podem, inclusive, não estar geograficamente no ocidente (com “o” minúsculo, significando oeste) do mundo. Em termos de orientação geográfica, o Meridiano de Greenwich divide o mundo em ocidente (oeste) e oriente (leste).

No entanto, vários países – como a Fran-ça, Itália, Alemanha e Austrália - estão ge-ograficamente na parte oriental do mundo e, no entanto, são países de cultura ociden-tal, isto é, pertencem ao que chamamos de

Ocidente. No entanto, o que é Ocidente?

O termo Ocidente é utilizado para indicar uma rica e complexa herança: a) uma herança de valores morais, tais como a empatia e a tolerância, que devem pautar (e possibilitar) a convivência humana da maneira mais pacífica, solidária e próspera possível; b) uma herança de leis e práticas políticas sedimentadas em um sistema político específico – a democracia, assim como uma enormidade de ideais e esperanças depositadas no aperfeiçoamento desse sistema; c) uma herança de saberes tecnológicos e científicos e, por fim, (d) uma herança de saberes que chamamos de sapienciais, isto é, que podem auxiliar o ser humano a dar sentido e beleza à sua existência, que podem ajudá-lo a encontrar à felicidade - saberes estes que estão presentes especialmente na arte e na filosofia.

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Ora, o Ocidente é a soma de todas essas “heranças”: o somatório de contribui-ções que foram sendo feitas por diversas civilizações e inumeráveis pessoas ao lon-go da história; é a soma de incontáveis conquistas que foram obtidas por um preço altíssimo, a saber, o preço de vidas humanas dedicadas e sacrificadas no combate por melhores condições de vida e dignidade, tais como as lutas contra a escravi-dão, por direitos trabalhistas ou pelos direitos da mulher; é a soma do aprendizado que foi sendo construído a partir de inúmeros eventos históricos trágicos, como guerras e genocídios (como o Holocausto), no sentido de evitar que esses eventos voltem a acontecer, voltem a produzir tantas mortes e tanto sofrimento humano. Enfim, o Ocidente é uma herança, e o objetivo da educação básica, seja a brasileira ou de qualquer outro país ocidental, é possibilitar que os jovens recebam ao menos uma parte ou o básico dessa herança. Segundo o filósofo francês Philippe Nemo, os elementos básicos do Ocidente seriam os seguintes:

De fato, a civilização Ocidental pode definir-se, numa primeira aborda-gem, pelo Estado de Direito, a democracia, as liberdades intelectuais, a racionalidade crítica, a ciência e uma economia de liberdade fundada na propriedade privada. Ora, nada disto é “natural”. Estes valores e estas insti-tuições são o fruto de uma longa construção histórica (NEMO, 2005, p. 9).

Para iniciarmos a discussão sobre o Ocidente da forma mais clara e compre-ensível possível, precisamos partir exatamente do instante do seu nascimento e, para maioria dos historiadores e filósofos o berço, ou melhor, o ventre em que em o Ocidente foi gestado e nutrido e de onde saiu para dar seu primeiro sopro foi... A Grécia Antiga.

2. A Grécia Antiga e O Ocidente

Atualmente, a Grécia passa por uma severa crise econômica e, em função de tal crise, cogitou-se excluí-la da União Europeia, bloco econômico formados pelos países europeus e que tem o euro como moeda. Diante da possibilidade da Gré-cia ser excluída da União Europeia, um filósofo italiano contemporâneo chamado Nuccio Ordine escreveu que seria

(...) inconcebível uma Europa sem a Grécia, porque os saberes ocidentais estão profundamente enraizados na língua e na cultura gregas. Podem as dívidas contraídas com os bancos e com o sistema financeiro ter a força de anular, com uma simples passada de borracha, as mais importantes dívidas que, no decurso dos séculos, assumimos com aqueles que nos ofereceram

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como dádiva um extraordinário patrimônio artístico e literário, musical e filosófico, científico e arquitetônico? (ORDINE, 2016, p. 12)

A Grécia antiga é considerada “a mãe” da civilização ocidental, em função do número notável de contribuições culturais importantes que esta antiga civiliza-ção nos legou. Nas palavras do historiador Paul Cartledge, a Grécia antiga foi responsável por “estabelecer os alicerces políticos, artísticos, culturais, educacionais, filosófi-cos e científicos sobre os quais se baseou desde então boa parte da civilização e da cultura ocidentais subsequentes” (2009, p. 12).

3. As invenções da Grécia Antiga

Para tentar dar uma ideia clara, consistente e convincente da quantidade e, sobretudo, da relevância das contribuições que a civilização grega legou ao Oci-dente, passaremos a discutir de forma mais detalhada algumas das invenções gre-gas.

3.1 A Medicina

Um homem é considerado pelos historiadores como o “pai da medicina”: trata-se do grego Hipócrates, que teria nascido na cidade grega de Cós, em 460 a. C, e falecido em 370 a. C.

Por quais razões Hipócrates merece um título tão honroso como este de “pai da medicina”? Primeiramente, Hipócrates interpretou as do-enças de uma forma revolucionária: ele enxergou as patologias como fenômenos totalmente naturais, cujas causas deveriam ser investigadas e explicadas através da observação atenta e minuciosa de inúme-ros casos, adotando uma abordagem naturalista (isto é, que encara o fenômeno como um acontecimento físico, da natureza).

Antes de Hipócrates, pensava-se que as doenças eram provocadas por cau-sas de origem sobrenatural, como castigos divinos ou possessões demoníacas. Vejamos o caso, por exemplo, da epilepsia.

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A epilepsia foi, desde a Antiguidade, uma das doenças mais carregadas de simbolismos sobrenaturais, ao ponto de ser conhecida como “doença sagrada”. Por quê? A epilepsia desencadeia frequentemente convulsões que, por sua vez, provo-cam determinados sintomas que, juntos, dão à crise convulsiva um aspecto assus-tador: o primeiro deles é o caráter inesperado do evento; não se tem como prever quando acontecerá uma crise epiléptica; ela é inesperada, fulminante; tudo está bem e, de repente, sem nenhuma mudança aparente, a pessoa caí e a convulsão começa.

O fenômeno epiléptico, em si mesmo surpreendente, de queda repentina seguida de contorções musculares, o rangido de dentes e a projeção da língua para a frente, tudo isso certamente desempenhou um papel na for-mação da ideia popular de possessão. Não é então de admirar que, para os gregos, a epilepsia fosse “a doença sagrada” par excellence [por excelência] (DODDS, 2002, p. 73)

A epilepsia, assim como outras doenças de sintomas estranhos e surpreen-dentes, era sempre interpretada como o resultado da intervenção de forças sobre-naturais: “a partir desse ponto a noção de possessão iria facilmente se estender a epilépticos e paranoicos. Todos os tipos de distúrbio mental, incluindo sonambu-lismo e delírio de febre alta, seriam atribuídos a agentes demoníacos” (DODDS, 2002, p. 73). Hoje a medicina científica conhece inumeráveis enfermidades mentais e neu-rológicas que, no passado, certamente causaram muita estranheza nas pessoas: a esquizofrenia paranoide, por exemplo, causa alucinações, isto é, visões e sons que não existem na realidade e que estimulam na pessoa afetada uma poderosa sensa-ção de estar sendo seguido ou observado, daí ser chamada de “paranoide” ou “pa-ranoica”; essa doença neurológica pode, inclusive, causar alucinações assustadoras e até mesmo visões religiosas. Outra doença neurológica bastante estranha é a Sín-drome de Tourrette, cujos principais sintomas são movimentos ou sons repetitivos e incontroláveis, como um tique nervoso que jamais para; às vezes, porém, a pes-soa com Síndrome de Tourrete desenvolve um sintoma muito estranho chamado coprolalia (DOLORES, 2004), que leva o doente a falar coisas obscenas e palavrões de forma descontrolada. Certamente alguém acometido com tal doença que, mes-mo sob ameaça ou mesmo sob violência, não conseguisse refrear o impulso de fa-lar coisas obscenas, teria sido considerado alguém possesso por um demônio dos piores. Ao longo da história, portanto, pessoas portadoras de doenças mentais ou neurológicas bastante estranhas, como a epilepsia, a esquizofrenia ou a Síndrome de Tourette, sofreram com o preconceito e, provavelmente, até mesmo com a vio-lência, daqueles que pensavam que estes enfermos eram, na verdade,

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[...] hospedeiros do Diabo. Os epilépticos são vítimas históricas desse pre-conceito. “No passado, a epilepsia era frequentemente confundida com possessão”, diz o neurologista Li Li Min, da Unicamp. Segundo ele, uma convulsão apresenta sintomas que, no passado, podem ter sido considera-dos sobrenaturais: a pessoa tem movimentos involuntários e repetitivos, pode se despir, gritar e até adquirir uma tonalidade arroxeada – isso por-que ela para de respirar (TEIXEIRA e VERONESE, 2006).

Hipócrates foi o primeiro a pensar que as doenças, por mais estranhas e as-sustadoras que pudessem ser, não eram causadas por forças sobrenaturais, mas por causas exclusivamente naturais. A respeito da epilepsia, por exemplo, ele afirmou que o caráter assustador ou estranho da doença não era motivo suficiente para considerá-la sagrada ou sobrenatural. Num tratado médico chamado da Doença Sagrada, dedicado à epilepsia, Hipócrates escreveu o seguinte:

Vou discutir a doença chamada de sagrada [isto é, a epilepsia]. Ela não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada do que qualquer outra do-ença, pois possui uma causa natural, e sua alegada origem divina se deve à inexperiência dos homens, e de seu espanto sobre sua peculiaridade... Mas, se é para ser considerada divina somente por ser espantosa, não ha-verá somente uma doença sagrada, mas muitas, pois mostrarei que outras doenças não são menos espantosas e portentosas, e, ainda assim, ninguém as considera sagradas. (HIPÓCRATES apud GRANT, 2009, p. 37)

Em seguida, Hipócrates faz uma dura crítica aos seus opositores, que insistem em transformar a epilepsia e outras tantas doenças em fenômenos sobrenaturais:

Aqueles que primeiro atribuíram um caráter sagrado a essa enfermidade eram como os mágicos, purificadores, charlatães e impostores do nosso próprio tempo, homens que clamavam ter grande devoção e conhecimen-to superior. Estando perdidos, e sem tratamento que ajudasse, eles se es-condiam e se protegiam atrás da superstição, e chamavam essa doença de sagrada, de maneira que sua completa ignorância não pudesse se tornar aparente (HIPÓCRATES apud GRANT, 2009, p. 37).

O que não quer dizer, absolutamente, que Hipócrates tivesse uma explica-ção perfeitamente estruturada para todas as inumeráveis e estranhíssimas doen-ças. (Até hoje a medicina não consegue explicar de maneira satisfatória todas as doenças que afetam o ser humano). Sua originalidade está na forma como passou a abordá-las, vendo-as como fenômenos naturais e recusando a tentação de expli-cá-las como fruto de algum tipo de força invisível e espiritual. Sua abordagem se estrutura numa tentativa de entender que tipos de causas naturais podem ter pro-vocado a doença, assim como na observação meticulosa dos sintomas de cada

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enfermidade, que eram anotados, descritos e sistematizados.

Essa vontade de aplicar a razão à doença e aos meios de curá-la e de re-nunciar às práticas mágicas para substituí-las pela observação e pelo ex-perimento contribuíram para fazer da medicina, se não uma ciência, pelo menos uma prática racional (MOSSÉ, 2004, p. 198)

Hipócrates foi o primeiro, por exemplo, a supor que o cérebro tinha um papel extremamente impor-tante na nossa vida. Ele foi completamente visionário ao afirmar isso: “O cérebro é considerado inútil no Antigo Egito e, por isso, todos os órgãos eram preser-vados, exceto ele. Era “furado” e extraído pelo nariz (CHRISTIAN, 2013, p. 62). Ora, se o cérebro era tão importante, Hipócrates pensou, distúrbios cerebrais causariam um variedade de doenças bastante estranhas. Eis o que ele escreveu a respeito:

Os homens têm de saber que é do cérebro, e tão somente dele, que surgem nossos prazeres, alegrias, risos e divertimentos, bem como nossas triste-zas, dores, pesares e lágrimas. É por meio dele, em particular, que somos capazes de pensar, ver e ouvir, e distinguir o feio do belo, o mau do bom, o prazeroso do desprazeroso [...]. É no cérebro ainda, que se dão a loucura e o delírio, assim como é ele que inspira temores e medos à noite ou de dia, que causa a insônia e o sonambulismo, pensamentos que não vêm, deveres esquecidos e excentricidades. Todas essas coisas de que padecemos pro-vêm de uma condição enferma do cérebro; ele pode estar mais aquecido ou frio do que deveria estar, ou úmido ou seco em demasia, ou em algum outro estado anormal (HIPÓCRATES apud GIANNETTI, 2010, p. 30).

Hipócrates escreveu isso milênios antes da ciência ser capaz de observar o cérebro vivo e em funcionamento através, por exemplo, de uma ressonância mag-nética funcional... E estava certo: a ciência contemporânea, milhares de anos após, corroboraria sua afirmação sobre o papel do cérebro e dos distúrbios cerebrais nas mais diversas doenças, entre as quais a “doença sagrada”. Hipócrates, além disso, sistematizaria todo o saber médico disponível em seu tempo: ele e os alunos da escola de medicina que ele fundou, teriam escrito em torno de 70 tratados médicos sobre os mais diversos temas: tratados como Das Epi-demias, Das Fraturas (“em que são enumeradas prescrições a respeito da redução

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de fraturas do braço, do pé e da mão, assim como das fraturas cranianas” (MOSSÉ, 2004, p. 199), Da Geração (acerca da gravidez, problemas ginecológicos e outras doenças) e Da Doença Sagrada, já citado, dedicado à epilepsia. Assim, ao produzir esses inúmeros tratados, o médico grego transformou a medicina numa área de pesquisa teórica, e não apenas um saber prático, ligado aos tratamentos e possíveis remédios. Por fim, Hipócrates escreveu um texto enumerando os deveres que o médico deveria ter com seus pacientes: um juramento que os médicos deveriam prestar antes de iniciar sua carreira na área. Esse texto ficou conhecido como “Juramento de Hipócrates”, e é considerado a base da ética médica: até hoje médicos em todo mundo ocidental, no momento da colação de grau, (re)fazem este juramento.

Juro por Apolo Médico, por Esculápio, por Hi-geia, por Panaceia e por todos os Deuses e Deusas que acato este juramento e que o procurarei cum-prir com todas as minhas forças físicas e intelec-tuais. (...)

Em todas as casas em que entrar, fá-lo-ei apenas para benefício dos doentes, evitando todo o mal voluntário e a corrupção, especialmente a sedu-ção das mulheres, dos homens, das crianças e dos servos.

Sobre aquilo que vir ou ouvir respeitante à vida dos doentes, no exercício da minha profissão ou fora dela, e que não convenha que seja divulgado, guardarei silêncio como um segredo religioso.

Se eu respeitar este juramento e não o violar, serei digno de gozar de reputação entre os homens em todos os tempos; se o transgredir ou violar que me aconteça o contrário (HIPÓCRATES, 2016).

O Juramento de Hipócrates, por exemplo, impõe o dever de confidenciali-dade em relação às informações que os pacientes possam, porventura, fornecer ao médico durante as consultas e o tratamento. Além disso, impõe aos médicos o dever de manter uma distância profissional dos pacientes, se eximindo de qualquer forma de sedução na relação com estes. Ora, estes deveres ainda hoje são respeita-dos na ética médica e se tornaram, com o passar dos séculos e milênios, ainda mais sérios e rígidos.

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O fato do “Juramento de Hipócrates” continuar sendo feito nos dias atuais, no momento da colação de grau das turmas de Medicina, em todos os países oci-dentais, além evidentemente do caráter ético do juramento em si, é um reconhe-cimento da grande importância que Hipócrates teve para a medicina e da grande contribuição que a Grécia Antiga deu à essa área. É muito provável que, não fosse a grande contribuição da Grécia antiga, a medicina ocidental não tivesse chegado ao nível impressionantemente avançado em que está hoje. Certamente a medicina das culturas orientais sequer se aproximaram do nível de complexidade e profundida-de da medicina ocidental. Como escreveu o filósofo e neurocientista americano Sam Harris: “A huma-nidade não entendeu a biologia do câncer, não produziu antibióticos e vacinas nem sequenciou o genoma humano sob o sol oriental. Em consequência, a medicina de verdade é quase toda um produto da ciência ocidental” (HARRIS, 2015, p. 32). Certamente devemos isso, em grande parte, aos gregos.

3.2 A concepção de beleza dos Gregos

A concepção estética dos gregos, isto é, o conceito grego de beleza, certamen-te foi de grande influência na história da arte ocidental e, através desta, foi absorvi-da pela cultura ocidental em geral. Para o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, a concepção de beleza dos gregos está expressa em sua religião. Como se sabe, a religião grega é uma religião politeísta, isto é, que apresenta várias divindades: dos incontáveis deu-ses, semideuses, heróis e seres que povoavam a religião grega, é evidente que mui-tos possuíam o atributo da beleza. No entanto, apenas dois deuses representavam a própria beleza e a arte para os gregos: tratava-se de Apolo e Dionísio. O ideal de beleza expresso em cada uma dessas divindades gregas se liga, por sua vez, a diferentes aspectos da natureza humana. Tais deuses representam não somente aspectos diferentes, mas opostos, da mente humana. Para Nietzsche, a grandeza artística da Grécia esteve na capacidade de reunir e conciliar, através da arte, esses aspectos contrastantes da psique humana. Mas, afinal, de que tipo de beleza estamos falando quando falamos de beleza apolínea ou beleza dionisíaca?

3.2.1. A Beleza de Apolo (Beleza Apolínea) Para os gregos, o universo e a natureza possuíam uma organização: o termo utilizado pelos gregos para falar do mundo era “Cosmos”, que significa “realidade organizada”. Todas as coisas e seres na realidade possuem um lugar específico e um papel a desempenhar nessa organização: a chuva existe para regar as plantas e

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possibilitar a vida; as frutas caem das árvores para espalhar as sementes; algumas flores produzem néctar para atrair as abelhas (e outros insetos) que, ao irem de flor em flor, acabam levando o pólen masculino para fecundar outras flores. Tudo tem um motivo para ser, para existir. A grande pergunta é: para que nós, seres huma-nos, existimos? Se tudo que existe tem uma função a desempenhar, qual a função do homem no Cosmos? Para os gregos, é possível encontrar uma resposta para essas importantes per-guntas. No entanto, para encontra-las, seria necessário usar a razão. Usar apenas os olhos não é suficiente para enxergar a ordem que estrutura o universo: ao olhar-mos uma estrutura complexa, como o motor de um carro, simplesmente olhar não nos informa da razão de ser de cada peça, a função de cada parte, ou porque cada peça está posicionada onde está. Seria necessário realmente estudar essa estrutura a fundo para compreender o que vemos. De modo análogo, para entender o fun-cionamento do Universo e a função do ser humano nele, os gregos acreditavam que era necessário se dedicar à reflexão racional sobre o mundo. Uma prova importante de que o Universo “escondia” uma ordem, que só po-dia ser enxergada pelos “olhos” da razão, era o fato de que havia matemática “ocul-ta” na natureza. Os gregos foram os primeiros a afirmar que o mundo físico poderia ser des-crito através da matemática. Pitágoras, um dos primeiros filósofos gregos e tam-bém um importante matemático, afirmou que “tudo é número”: “Pitágoras conclui que todo o cosmos deve ser governado por regras matemáticas. Ele dizia que o número (razões numéricas e axiomas matemáticos) pode ser usado para explicar a estrutura do cosmos” (BUCKINGHAM et al, 2011, p. 28). Na experiência que é considerada por alguns a primeira experiência científica da história, Pitágoras en-controu uma evidência poderosa para sua teoria: existem relações matemáticas na música.

[...] foi provavelmente por meio da experiência com uma cor-da dedilhada que Pitágoras determinou as razões dos intervalos consonantes (...). Ele descobriu que esses intervalos eram har-moniosos porque a relação entre eles era uma razão matemática precisa e simples (BUCKINGHAM et al, 2011, p. 29).

Quanto mais precisa a matemática que subjaz à música (isto é, que está escon-dida e “invisível” nos sons), mais calma, apaziguante e harmoniosa é a música. Os gregos achavam que não era uma coincidência que as notas matematicamente mais precisas e simples, quando combinadas, produziam uma música agradável ao ou-vido: era uma evidência, uma pista, um sinal, uma prova de que existe uma Razão (isto é, uma Ordem) no mundo. A razão humana é apenas uma parte da Razão do mundo, apenas um peça num vasto quebra-cabeça. Quando a razão que existe no

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homem encontra algo de racional no mundo, temos um espécie de encaixe: esse encaixe não somente produz conhecimento, ciência, mas também beleza. Ao se enxergar a razão que se encontra oculta nos mais diversos fenômenos da realidade, o homem é tomado por uma sensação de harmonia e beleza. Para os gregos, por-tanto, o que é belo é racional, e o que é racional, é belo. Por exemplo: por quê achamos belas as coisas simétricas? O Dicionário de língua portuguesa Houaiss (2009) define simetria como a “conformidade [isto é, semelhança], em medida, forma e posição relativa, entre as partes dispostas em cada lado de uma linha divisória, um plano médio, um centro ou um eixo”. Poderíamos defini-la, para efeitos didáticos e introdutórios, de forma ainda mais simples como a semelhança entre metades determinadas por uma linha divisória. O conceito de simetria, por sua vez, “como quase todos, surgiu na Grécia antiga, justamente como uma tentativa de explicar a beleza por bases racionais” (LEUZINGER, 2003).

Os gregos perceberam que os objetos simétricos produziam em nós uma sensação agradável de ordem, calma e beleza: um cemitério cujos túmulos são simétricos, como os cemitérios de guerra americanos, ou um conjunto habitacional cujas casas são mais ou menos simétricas, ou um desfile militar onde as tropas estejam sime-tricamente dispostas, ou uma sala de aula onde as cadeiras estejam simetricamente organizadas produzem uma sensação agradável, calmante e reconfortante.

Não há dúvida de que adoramos simetria. Basta olhar em torno para con-firmar que vivemos cercados de objetos simétricos: computadores, cadei-ras, carros, pratos. Quando olhamos para alguém, instintivamente espe-ramos ver simetria: uma pessoa com um olho dois centímetros abaixo do outro seria considerada grotesca. Mesmo antes do surgimento das religi-ões monoteístas, nas culturas do mundo inteiro ordem e simetria eram já relacionadas com o divino. Na iconografia religiosa, deuses e anjos são sempre belos, suas faces perfeitamente simétricas, enquanto demônios são sempre horrendos, suas faces com traços exagerados e distorcidos. Mesmo no nosso dia a dia, um inofensivo sinal na pele, se grande o suficiente, tira o equilíbrio de um rosto, tornando-o “feio”. Para [alguns] adolescentes, uma espinha pode causar surtos de desespero. Verrugas, então, nem se fala (GLEISER, 2010, p. 151).

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A assimetria produz, por sua vez, sensações estéticas e respostas emocionais opostas: inquietação, movimento e, em casos limítrofes, até mesmo medo e angús-tia. Os gregos não apenas perceberam que a simetria está inconscientemente liga-da à beleza. Os gregos descobriram que a simetria tem uma relação com a matemá-tica: existe uma matemática oculta na simetria, assim como existe uma matemática oculta na música. Eles descobriram, inclusive, que existe uma fórmula matemática na simetria e batizaram-na de “proporção áurea” [isto é, de “ouro”], cujo resultado é o número 1,618, chamado de PHI, em homenagem ao arquiteto grego Phideas, que criou o Parthernon, um simétrico templo grego dedicado à deusa Atenas.

Os gregos não eram dados a muito subjetividade – eles gostavam de achar que havia lógica por trás de tudo. Por isso, conceberam a ideia de propor-ção áurea, uma relação matemática segundo a qual a divisão da medida do pedaço maior pelo pedaço menor de uma linha é igual à divisão da linha inteira pelo pedaço maior. E procuravam por essa proporção mágica em tudo, inclusive em seres humanos. Essa noção de harmonia, de equilíbrio, de proporção – de simetria – foi perseguida ao longo dos séculos no Oci-dente todo, altamente influenciado pelos gregos (LEUZINGER, 2003).

A proporção áu-rea (à direita) e o templo Phater-non, que foi cria-do pelo arquiteto Phideas com base nesta proporção

(à esquerda)

E o que tudo isso tem a ver, afinal de contas, com o deus Apolo, e com a beleza que este deus representa? Apolo é o deus do Sol e, por conseguinte, da luz; é o patrono das artes e da música, da beleza, do futuro e da razão. Nos templos dedicados a Apolo haviam certas injunções (isto é, mandamentos) escritos nas paredes e que seriam, de certa forma, conselhos ou ordens dados pelo deus aos seus fiéis: “conhece-te a ti mesmo” e “nada em demasia”. O deus, portanto, aconselhava seus fiéis ao autoconhecimento e à moderação. Conhecer a si mesmo era uma condição indispensável ao autocon-trole: só quem se conhece bem pode controlar a si mesmo e evitar o excesso nas palavras e ações. O grande pecado contra Apolo é a hybris, isto é, a desmedida, o descomedimento, o excesso: quando alguém se excede em suas ações e palavras, quando se toma mais importante do que é, quando age de forma arrogante, ele está caindo na hybris. Hybris é sinônimo de excesso de confiança ou de orgulho, presun-ção, arrogância, insolência.

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Apolo representa ao mesmo tempo a Razão (com “r” maiúscula) que organi-za o Cosmos, asssim como a razão humana. Em termos morais, Apolo é o deus do comportamento ponderado, moderado, racional. A beleza apolínea é, portanto, a beleza da brancura e da luminosidade. Sim-bolicamente, o branco está ligado à pureza, à inocência, à bondade e à paz. Os ani-mais brancos são puros: a pomba branca representa paz; um cordeiro branco era imolado como uma forma de expiação dos pecados; o unicórnio, por exemplo, é um animal mitológico ligado à pureza; os anjos são representados como brancos e luminosos; o vestido de noiva branco representava, a princípio, a pureza sexual da noiva. Branco é a cor da pureza e da higiene: “o que precisa ser higiênico é bran-co. (...) A vestimenta branca é obrigatória nos lugares que se produzem alimen-tos: cozinheiros, padeiros e açougueiros se vestem de branco. (...) Os que cuidam dos doentes precisam se vestir inteiramente de branco” (HELLER, 2013, p. 163). O branco, quando associado a um defeito moral, ameniza-o: mentira branca é uma mentira com boas intenções ou que não tem intenções maldosas; inveja branca é o sentimento de admiração, que não está acompanhado de nenhum desejo escuso de prejudicar ou rebaixar a pessoa invejada. A beleza apolínea se liga a todos esses significados simbólicos associados ao branco: é a beleza da inocência e da pureza, da luz.

Apolo é também, na religião grega, o patrono das artes e, especialmente, da música; pois o deus era, ele próprio, um músico. A lira era

(...) o seu instrumento preferido, com que ele é representado em muitas cenas, em vasos de cerâmica e até mesmo em escul-turas. Graça ao instrumento, Apolo passa do temível vingador, “que atira longe”, seu epíteto mais comum na Ilíada de Homero, ao deus que apazigua a alma humana com os doces acordes da música. A lira, por sua vez, liga-se definitivamente ao acompanhamento da poesia, dando origem ao termo “lírica” e “lírico”, que deno-mina o gênero literário que expressa as emoções subjetivas, os sentimentos interiores da pessoa que escreve (SUANO & SCO-PACASA, p. 42, s/d).

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A música de Apolo, portanto, é uma música tranquila, que tem o poder de apaziguar a violência das paixões humanas. Eis porque Platão, ao planejar a socie-dade perfeita no seu livro A República, concede à música um papel extremamente importante na vida e educação das pessoas. No entanto, não se tratava de qualquer música, mas a música apolínea; Platão bane da sua cidade ideal determinados tipos de música e de instrumentos: “Certamente, meu amigo, que não fazemos nada de novo ao preferirmos Apolo e os instrumento de Apolo a Mársias e aos seus instru-mentos” (PLATÃO, 2012, p. 129). Platão faz referência nesse trecho a um curioso episódio da mitologia grega: um sátiro [isto é, um ser mitológico metade bode e metade homem] chamado Má-rsias, teria achado perdido no campo um instrumento chamado aulós, que é uma flauta dupla. Curioso, começou a tocar o instrumento e, tempos depois, acabou por tornar-se um exímio músico, ao ponto de desafiar Apolo num duelo musical. Apolo aceitou o desafio, com a condição de que o vencedor teria o direito de im-por uma punição ao vencido. Os jurados escolhidos foram as Musas e o rei Midas. Apolo tocava sua lira, enquanto Mársias tocava seu aulós [flauta dupla]. Apolo foi considerado o vencedor do duelo musical e Mársias foi castigado brutalmente, em função de sua hybris, isto é, por sua arrogância. No entanto, esse duelo tem um sig-nificado filosófico: ele representa a oposição ente dois tipos de beleza: a beleza de Apolo e a beleza de Dionísio.

Vimos como a lira e o aulós [flauta dupla] se inserem simbolicamente em dois universos de vida absolutamente inversos, simbolizados na cultura grega pela oposição entre o que se convencionou chamar de apolíneo e dionisíaco. A ligação que a lira mantém com o apolíneo garante-lhe um papel civilizador da humanidade; por outro lado, a estreita ligação do au-lós [flauta dupla] com o dionisíaco confere-lhe um caráter de desordem potencial, de uma arrebatadora hýbris, capaz de abalar a ordem humana. Ademais, a lira catalisa o poder místico purificador da alma que os pita-góricos viam na música, ao identificarem a harmonia desta com aquela que reina sobre o cosmos; afinal, acreditavam no princípio do número como regulador de toda a ordem e foi através dos intervalos entre as dife-rentes cordas da lira que obtiveram calcular e evidenciar, numericamente,

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os intervalos musicais idênticos àqueles resultantes dos movimentos dos astros. É a música da lira, assim, acompanhando melífluas vozes [vo-zes que produzem mel], que melhor imita a melodia celestial das esferas (CERQUEIRA, 2012; grifos nossos).

Platão expulsou de sua República a música de Mársias – seus instrumentos, suas melodias: para Platão, a música que Mársias - um sátiro - produzia, era uma música que estimulava o lado animal do ser humano [não à toa que é tocada por um ser que é metade homem e metade bode]: ela desperta o desejo e potencializa os instintos. O homem fica excitado sob a música de Mársias. Tal música leva o ho-mem a perder o controle, a perder a razão: ela animaliza o homem. A música de Apolo, ao contrário, acalma, apazigua o homem: ajuda o homem a silenciar seus desejos, a reencontrar a razão. Ela civiliza ou angelicaliza o homem. O que podemos dizer, afinal de contas, sobre Apolo e sua beleza? Apolo representa a beleza da razão. Da Razão [com “r” maiúsculo] que con-trola e organiza o Cosmos. E também da razão que controla o homem. Apolo é o deus da beleza que significa brancura, pureza, inocência. É o deus da beleza que significa tranquilidade, calma, serenidade. Sua beleza está ligada à simetria no campo visual, e à harmonia no campo musical: tanto a simetria quanto a harmonia produzem as sensações emocionais de estabilidade, calma, segurança. Se quiser ter uma imagem mental da beleza apolínea: imagine um lugar iluminado, com pessoas vestidas de branco tocando cítaras ou harpas. Tem algo de divino e angelical nessa imagem, não tem? Pois bem: a beleza de Apolo, que Platão tornou a única beleza existente em sua sociedade ideal (no seu livro A República), seria alguns séculos depois apro-priada pelo cristianismo. A beleza apolínea se ligava muito bem a imagem do pa-raíso cristão, ou às virtudes cristãs da pureza e da moderação. A música que o cris-tianismo apreciava era a que tinha o poder de afastar o homem dos desejos carnais e aproximá-lo de Deus: a música de Apolo tinha o poder de afastar o homem dos desejos carnais e de aproximá-lo da Razão. Para Nietzsche, a beleza de Apolo ape-nas transformou-se na beleza de Cristo. A idade média, dominada pelo cristianismo e pela igreja Católica, duraria 10 séculos. Um milênio. Ao longo desse milênio, a beleza apolínea reinou absoluta e firmou raízes tão profundas que, mesmo após a Idade Média, não seriam facilmen-te arrancadas. Só viriam a ser contestadas e abaladas no século XIX, com o roman-tismo, e no século XX, com a arte moderna.

3.2.2 A beleza de Dionísio (ou beleza dionisíaca) Dionísio é o deus do vinho na mitologia grega. Não somente do vinho, mas

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também da embriaguez e do êxtase, isto é, um prazer que conduz a um estado alterado de consciência. É o deus dos momentos de inconsciência e loucura. É o deus da hybris, isto é, dos momentos de prazer e diversão que nos levam a cometer excessos. Os carnavais gregos festejavam Dionísio. Dionísio também está ligado à música, mas sua música não é como a apolí-nea: a música de Dionísio é a música do aulós [flauta dupla], acompanhada de tam-bores; é a música do sátiro Mársias, uma música alegre, estimulante e que contri-buía para pôr os seus ouvintes num estado alterado de consciência, para produzir perda temporária da autoconsciência, como quando esquecemos de tudo ao ouvir um bom solo de guitarra, por exemplo. Platão expulsou a música dionisíaca de sua República por pensar que ela estimulava os desejos e os instintos no ser humano e, por isso, era moralmente corruptora. Dionísio representa uma parte da natureza humana: a agressividade e o im-pulso sexual presentes na psique humana. Dionísio representa, também, a beleza da assimetria.

Em termos de história da arte, por milênios a beleza dionisíaca foi banida. Na idade Média, por exemplo, foi associada à noção de pecado e, assim, foi evitada e proibida. Somente no século XIX e, em seguida, no século XX, que a beleza dionisíaca ganharia relevo e se tornaria até mesmo mais importante que a própria beleza apo-línea. Uma vertente do movimento romântico, que dominou a arte e a mentalidade entre o fim do século XVIII e o século XIX, conhecida como romantismo noir, ou romantismo negro, deu à beleza dionisíaca uma importância decisiva, jamais en-contrada [exceto na própria Grécia antiga] na história da arte: na literatura, onde os exemplos são mais abundantes, escritores como Oscar Wilde, Mary Shelley, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Lord Byron, Edgar Alan Poe e Goethe criaram obras de arte sombrias e povoadas de temas dionisíacos; no Brasil, a beleza dionisíaca esteve presente sobretudo nas obras da segunda geração romântica, especialmente

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em Álvares de Azevedo; autores como Medeiros e Albuquerque e Augusto dos An-jos também são completamente dionisíacos. O romantismo abriria as portas para a arte moderna que, então, romperia de forma violenta com o ideal de beleza apo-línea.

Na arte e na música, o moderno é, em geral, assimétrico. No início do sé-culo XX, pinturas consideradas revolucionárias, que rompiam com a arte clássica, quebravam explicitamente a ordem nos padrões da Natureza e na simetria da face e do corpo humano. Ainda hoje as mulheres cubistas de Picasso são consideradas “grotescas”. Na música, o estilo atonal criou um novo tipo de composição que abandonava a velha estética da harmonia melódica (GLEISER, 2010, p. 153).

Podemos, por fim, concluir essa discussão afirmando que a beleza grega aca-bou por moldar a história da arte até os dias atuais. Certamente o patrimônio ar-tístico do Ocidente seria muito menor, e menos interessante, se os gregos não ti-vessem deixado sua marca indelével na forma como enxergamos a beleza e como a beleza pode estar ligada às nossas concepções de mundo e da própria natureza humana.

3.3 O Teatro Grego Alguns historiadores afirmam que em civilizações orientais mais antigas que a Grécia já existiam espetáculos muito próximos do que consideraríamos “teatral”. No entanto, pouquíssimo se sabe sobre esses espetáculos, pois eles não deixaram nenhum tipo de vestígio escrito: aliás, eram espetáculos baseados completamente na gesticulação, na mímica e na dança, não possuindo fala ou texto. Estes espe-táculos são conhecidos como Mimo: segundo o dicionário Houaiss (2009), “suas raízes remontam aos rituais mágicos do Paleolítico, sendo a mais antiga tradição teatral da história”.

Estas formas menores de teatro, algumas das quais parecem ter uma ori-gem oriental, nomeadamente síria, não deixaram vestígios, o que é natural, pois sua característica essencial era apresentar um espetáculo e não textos. Dependiam da mímica, da livre gesticulação ou da dança orientada. São as origens populares do teatro “nobre” que, sem elas, não teria sido o que foi (GRIMAL, 2008, p. 9).

O grande mérito dos gregos foi acrescentar a essas formas de espetáculo à dimensão literária: é com essa fusão entre gestual e textual, entre espetáculo e lite-ratura, que o teatro efetivamente nasce. Além disso, os gregos criaram um espaço dedicado exclusivamente ao teatro: os primeiros anfiteatros da história ficam na Grécia antiga, em encostas de pedra, talhadas na forma de arquibancadas.

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Os gregos criaram o teatro literário: o teatro como uma forma de literatura. Até hoje as peças gregas são estudas por críticos literários, psicólogos, psicanalistas, filósofos e humanistas de forma geral por sua beleza literária e por sua profundida-de filosófica. O teatro surgiu na Grécia antiga, em festivais realizados em honra a Dionísio, o deus do vinho e do êxtase na mitologia grega, que já tivemos a oportunidade de discutir.

Dois festivais em honra a Dionísio, o das Lenéias, no final de janeiro, e as Grandes Dionísiacas, no final de março, tinham como uma de suas atra-ções a apresentações de comédias e tragédias em concursos dramáticos presididos pelo arconte (MOSSÉ, 2004, p. 265).

O ato de ir para o teatro, então, revestia-se de uma conotação religiosa, uma vez que os gregos encaravam esses momentos de forma reverente: o teatro não se-ria uma forma de lazer e de arte completamente profana, como para nós é o ato de ir ao cinema ou a festas laicas. Estaria mais próximo do ato de ir à uma procissão religiosa ou participar de um culto.

Para os gregos, o ato de ir ao teatro tinha então uma clara conotação reli-giosa. Os espetáculos eram precedidos por procissões em que a estátua do deus era conduzida até o recinto das representações, onde permanecia até o final da competição. Os coros trágicos e cômicos evoluíam em volta do altar do deus do vinho e diante do seu sacerdote, a quem era reservado um assento na primeira fila da plateia. Banquetes e sacrifícios completavam a programação. Não resta dúvida de que o deus [Dionísio] era visto como o patrono do teatro (DUARTE, p. 8, 2013; grifos nossos).

Os atores eram todos homens, mesmo nos papeis femininos, e usavam todos máscaras (MOSSE, 2004, p. 266). As palavras que os gregos usavam para designar ator e máscara no teatro acabaram dando origem a palavras que usamos ainda hoje. Ator, em grego, é hypocrytês (GRIMAL, 2008, p. 29): o termo dará origem ao nosso termo hipócrita. De certa forma, tanto o ator quanto o hipócrita fingem e atuam, mas o fingimento do ator é nobre: como diz o personagem V (do filme V de Vin-gança), “os artistas usam a mentira para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a mentira para escondê-la.”.

A palavra hipócrita veio do grego e designava, a princípio, apenas um ator, um comediante, um histrião, sem as conotações intensamente negativas – de falsidade, dissimulação, fingimento – que hoje estão grudadas nela. Ou melhor: o fingimento estava lá, mas era exercido em nome de uma causa nobre, a de entreter o público (RODRIGUES, 2013).

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O termo que os gregos usavam para máscara é persona: até hoje o sentido de persona, ligado à atuação, está preservado na palavra “personificar” ou “personi-ficação”: personificar é expressar, simbolizar, representar alguma coisa: “Hitler é a personificação do mal”. A palavra persona, no entanto, está na raiz das palavras per-sonalidade, personagem e pessoa. O primeiro a usar a palavra persona para indicar pessoa foi o filósofo romano Cícero, em seu livro Dos Deveres:

Compreendemos ainda que a natureza nos atribuiu duas personagens

[personas]1: uma, comum a todos nós, porção de razão e dignidade que nos eleva acima dos animais, princípio de todos os nossos deveres, e de onde derivam o que se chama dignidade e decência. A outra é atribuída exclusivamente a cada um de nós (CÍCERO, 1999, p. 53).

O conceito de pessoa não corresponde à generalidade do conceito de ser hu-mano, mas além disso acrescenta um caráter de singularidade ou individualidade: cada pessoa possui atributos como a consciência, a linguagem e a estrutura anatô-mica que o tornam ser humano, mas possui além disso uma máscara ou persona-gem que lhe é exclusiva, única, singular e que a distingue do restante da humanida-de: toda pessoa é, portanto, parte do universal [humanidade], mas singular em si mesma. Esse é o conceito que ainda usamos até hoje: no dicionário Houaiss (2009), pessoa é “cada ser humano considerado como individualidade física e espiritual, e dotado de atributos como racionalidade, autoconsciência, linguagem, moralidade e capacidade para agir”. Cícero, portanto, ao mesmo tempo formulou o conceito –e

escolheu o vocábulo – para pessoa2 .

Notas de Rodapé

1. No texto original, escrito em latim, Cícero usou o termo grego persona: o tradutor decidiu traduzir o ter-mo, ao invés de máscara, por personagem; na verdade, nesse contexto, o termo persona poderia ser traduzido por personagem, uma vez que ele pode ter ser sido usado por Cícero de forma metonímica [metonímia]: por exemplo, na frase “respeite os cabelos brancos”, estamos nos referindo à velhice, que está associada ao embran-quecimento dos cabelos. Cícero pode ter usado persona para indicar máscara, que seria o sentido literal, ou para indicar os personagens de uma peça. Até certo ponto, a máscara que era usada para representar diferentes personagens e os personagens em si se mesclam e se confundem no termo persona.

2. Você pode se perguntar, por fim, como o termo persona virou pessoa, se ambos são tão diferentes! Ora, um termo criado pelo povo grego, com sua língua grega, que passou para o povo romano, com seu latim, e depois foi absorvido pelos lusitanos com seu português [de Portugal] e depois, já no Brasil, foi falado por povos de ori-gens e idiomas tão diferentes quanto os indígenas, os africanos e os descendentes portugueses aqui nascidos... Acaba sofrendo mudanças, ganhando ou perdendo fonemas ou tendo fonemas confundidos... Um bom exem-plo disso é o pronome de tratamento “Vossa mercê”, que ao longo dos séculos transformou-se em você e, menos ainda, “ocê”, “vc” ou “cê” (tá entendendo?). Os estudiosos que pesquisam a origem das palavras são chamados de etimologistas, e tentam refazer as transformações de um termo ao longo do tempo e dos cruzamentos entre culturas, até chegar à sua origem, seu “étimo”. Os etimólogos não se enganam: pessoa nasceu de persona.

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No teatro grego havia um conjunto de atores, entre doze e quinze pessoas, que é era conhecido como coro: os atores do coro falavam, se moviam e dançavam de forma uníssona, de onde deriva nossa palavra coral e também coreografia (co-reografia pode ter dois significados: o primeiro seria a sequência de passos de uma dança, o outro seria um conjunto harmônico de movimentos). Uma das funções do coro era ser um “espectador ideal”, ou seja, reagir às situações da peça como se esperava que o público reagisse: nas tragédias, cheias de situações pesarosas, morte, luto, o coro reagia chorando, ou lamentando, de forma a levar o público a se com-padecer do sofrimento ali representado; nas comédias, em que a reação ideal era o riso, o coro punha-se a rir e, assim, conduzia o público também ao riso. Até hoje em determinados programas televisivos usa-se uma claque, isto é, “grupo de espec-tadores aliciados ou combinados para aplaudir ou vaiar determinado espetáculo ou intérprete” (HOUAISS, 2009) e, acrescento, também rir, reagir com surpresa, ou tristeza, ou revolta, diante de determinados acontecimentos ou falas: ora, a ideia de claque nasceu do coro dos teatros gregos. Outro recurso bastante usado pelo teatro grego é conhecido como deus ex Machina, que significa “deus que desce por uma máquina”: em muitas peças gregas os personagens acabavam chegando à situações desesperadoras e aparentemente insolúveis ou irresolúveis: morreriam ou se perderiam de alguma forma se não acontecesse um verdadeiro milagre na história. Ora, precisamente nesse momento de grande tensão e angústia por parte do espectadores, surgia um deus em resposta às preces dos personagens e do público e resolvia os conflitos presentes: esse deus era içado por uma espécie de guindaste e descia no centro do teatro, causando ver-dadeira comoção nos espectadores.

[Deus ex machina] se trata de um expediente usado no teatro trágico (...) para fazer que as situações desesperadas cheguem a uma solução: fazia-se descer à cena, por meio de uma espécie de sistema de roldanas, um deus que punha as coisas em seus de-vidos lugares, fornecendo, portanto, uma solução “externa” aos acontecimentos (TOSI, 2010, p. 765)´

O recurso deus ex machina foi apropriado, em seguida, pela literatura, pela televisão e, sobretudo, pelo cinema. Os filmes estão cheios de situações de tensão que são resolvidas através do recurso a algum tipo de salvador que, mesmo não sendo um deus, desempenha o mesmo papel que o deus ex machina desempenhava no teatro grego. Os dois principais gêneros teatrais são a comédia e a tragédia.

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Etimologicamente, tragédia vem de traigodia e significa “canto do bode” (VIAL, 2013, p. 371): a melhor hipótese explicativa para esse nome vem do costu-me de sacrificar um bode em homenagem à Dionísio no início das apresentações teatrais de caráter desventuroso, o que provocou uma associação com o canto do bode prestes a ser sacrificado (GRIMAL, 2008, p. 28). As peças trágicas sempre terminavam de maneira funesta, com a morte ou com a perdição dos seus prota-gonistas. O termo acabou se tornando sinônimo de “ocorrência ou acontecimento funesto que desperta piedade ou horror; catástrofe, desgraça” (HOUAISS, 2009). O outro gênero teatral mais conhecido é, evidentemente, a comédia: o termo comédia “surgiu das canções alegres e das brincadeiras do kômos, procissão po-pular em honra a Dioniso” (VIAL, 2013, p. 109). Era uma espécie de cortejo car-navalesco que passava de vila em vila levando um símbolo dionisíaco. Talvez esse cortejo findasse no teatro, com apresentações de peças de caráter divertido, daí a associação que gerou a comédia. Na Grécia antiga, especialmente na democrática Atenas, a comédia realizou o primeiro laço histórico com a crítica social e política: o teatro serviu de plataforma para criticar os vícios dos cidadãos, assim como para criticar os vícios dos políticos. Certamente foi a primeira aliança entre o poder da arte e a crítica: aliança esta seria de extrema importância na história da civilização ocidental:

Os dramaturgos gregos também escreveram comédias. Aristófanes, o maior dos cômicos gregos, satirizava estadistas e intelectuais atenienses e censurava as políticas governamentais. Por trás do humor cortante de Aristófanes, havia uma seriedade implacável: ele pedia o fim da Guerra do Peloponeso e a reafirmação dos valores tradicionais solapados pelos sofis-tas (FERRY, 2002, p. 72).

Certamente, a possibilidade de utilizar a arte para fazer crítica social, moral e política foi favorecida pela Democracia de Atenas: numa sociedade dominada por um tirano ou por aristocratas, essa crítica não seria possível e o artista pagaria um alto preço se, mesmo assim, ousasse fazê-la. Por fim, qual seria o vínculo entre teatro e filosofia? O vínculo entre filosofia e teatro está no riquíssimo repertório de metáforas que o teatro engendrou e que alimentou a reflexão de filósofos desde a Grécia até os tempos atuais. Só a título de revisão, o que é uma metáfora? Uma metáfora é semelhante a uma comparação, mas não lança mão do termo comparativo “como”: se uma mu-lher é bela, frágil, perfumada ou espinhosa como uma flor, podemos compará-la a uma flor: “ela é como uma flor”, “é bela como uma flor” (etc). Uma vez se use o ter-mo comparativo como, temos uma comparação. Mas se suprirmos o termo compa-rativo, deixando implícita a comparação, temos uma metáfora: “ela é uma flor”.

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Uma metáfora, portanto, estabelece uma ligação implícita entre dois objetos, sem necessariamente deixar claro o elemento ou qualidade que os identifica. Na metá-fora “ela é uma flor”, é fácil encontrar esses elementos, mas há metáforas bem mais complexas. Ao longa da história, as metáforas teatrais tiveram uma enorme importância na reflexão filosófica:

A metáfora do teatro ocupa um lugar proeminente na filosofia e sua histó-ria. Isso se deve, por um lado, à multiplicidade das metáforas a ela associa-das: papel, máscara e espectador sempre tiveram importância nos discur-sos antropológicos de autocompreensão do ser humano (LANGBEHN, 2005, p. 505).

Os filósofos sempre usaram metáforas vindas do teatro para refletir sobre si mesmos e o mundo: o mundo é um grande palco; a vida é uma peça; as fases da vida são atos de uma peça; nós somos atores ou personagens na vida e/ou nas re-lações sociais; a vida é uma comédia; a vida é uma tragédia. Todas essas metáforas foram amplamente exploradas por inumeráveis filósofos. Shakespeare, por exemplo, escreveu em sua peça Como quiserem que

O mundo é um grande palco,E todos os homens e mulheres são meros atores:Eles têm suas entradas e saídas,E um homem cumpre em seu tempo vários papéis.Seus atos sendo sete. No início a criançaChoraminga e regurgita nos braços da mãe.E mais tarde o garoto se queixa com sua mochila,E seu rosto iluminado pela manhã, arrastando-se como uma lesmaSem vontade de ir à escola. E então o apaixonado,Suspirando como um forno, com uma balada aflita,Feita para os olhos da sua amada (...).A sexta idade o introduzNa pobre situação de velho bobo de chinelos,Com óculos no nariz e a bolsa do lado,Suas calças estreitas guardadas, o mundo demasiado largo para elas,Suas canelas encolhidas, e sua grande voz masculinaQuebrando-se e voltando-se outra vez para os sons agudos,Os sopros e assobios da infância. A última cena de todas,Que termina sua estranha e acidentada história,É a segunda infância e o mero esquecimento,Sem dentes, sem mais visão, sem gosto, sem coisa alguma (SHAKESPEA-RE).

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Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, muito apreciava a me-táfora da vida como tragédia. Um leitor e admirador seu, Machado de Assis, explo-raria também essa metáfora teatral. Por quê seria a existência humana uma tragé-dia? Eis a justificação filosófica que Machado fornece:

Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim— flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debili-dade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um cho-calho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eterna-mente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebel-de, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da ima-ginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão (ASSIS, 2008. p. 56).

Muitos são os exemplos de que as metáforas teatrais excitaram a imaginação filosófica. Mas estes exemplos devem ser suficientes para mostrar que a reflexão sobre a vida e sobre o mundo podem partir de metáforas e, especificamente, de metáforas teatrais. O teatro, produto da Grécia antiga, alimentou a cultura ocidental desde cedo com grandes peças, palavras, recursos e metáforas que, certamente, deixaram mar-cas indeléveis no nosso vocabulário, na nossa imaginação e na nossa cultura. E para encerrar, por ora, nossa discussão sobre o Ocidente: será que já é pos-sível perceber a importância da Grécia para a Civilização Ocidental?

Referências Bibliográficas

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